28 de dezembro de 2013

1914

Andre Singer

Folha de S.Paulo

Sugere-se aos que preferem começar o ano com a mente posta em imagens bonitas evitar a leitura desta coluna. Parece-me útil, contudo, lembrar os terríveis acontecimentos cujo centenário logo vai se cumprir. Pois com a eclosão da Primeira Guerra, a história fez uma curva abrupta e o século decorrido desde então sugere um contínuo de catástrofes, interrompido por ilhas de prosperidade e paz, apontando para novas tragédias.

Segundo o historiador Eric Hobsbawm, quando o Império Austro-Húngaro declarou guerra à Sérvia, em 28 de julho de 1914, começava um conflito mundial que só iria terminar 31 anos depois. Para ele, a Segunda Guerra foi mera continuação da Primeira, de tal forma que é preciso considerar o período integral, encerrado em 14 de agosto de 1945, data em que o Japão se rendeu aos aliados.

A abrangência da luta e a escala da destruição deram ao drama dessas três décadas uma característica inédita na longa crônica das atividades marciais: pela primeira vez a humanidade correu o risco real de desaparecer da face da terra. Calcula-se que algo como 8 milhões de militares tenham perecido na barbárie de 14, com 20 milhões de feridos. Dos franceses mobilizados para o front, não muito mais do que um terço voltou incólume. "Os britânicos perderam uma geração", lembra Hobsbawm.

Foi tamanho o horror das trincheiras que, encerrada a Primeira em 1918, imaginou-se nunca mais haver guerra no mundo. Ainda traumatizada, a França recusou-se a enfrentar a Alemanha quando invadida vinte anos mais tarde. No entanto, os números da carnificina iniciada em 1939 foram muito mais longe. O morticínio em massa de civis indefesos jogou os dados para a estratosfera. Entre 40 e 50 milhões de pessoas perderam a vida. O holocausto judeu e o uso da bomba atômica contra os japoneses ficaram como sintomas mais expressivos de que todos os limites tinham sido rompidos, mudando a política e a história para sempre.

No fim, "a humanidade sobreviveu. Contudo, o grande edifício da civilização (...) desmoronou nas chamas", diz Hobsbawm. Por isso, como na entrada do Inferno de Dante, 1914 inscreveu na consciência social a mensagem: "Deixai toda esperança". No caso, a expectativa de que o avanço da técnica, grande conquista dos séculos 19 e 20, tenha, em si, o dom de transformar a vida em uma viagem pacífica, fértil e amorosa. Ficou provado que a produção de riqueza, por si só, não leva o trem da sociedade a um patamar superior de relações, podendo ocorrer mesmo de ele se dirigir a toda velocidade para o despenhadeiro.

Que o conhecimento do passado nos ajude, então, a puxar os freios de emergência, na bonita expressão do filósofo Walter Benjamin. São meus votos para 2014.

Sobre o autor

ANDRÉ SINGER escreve aos sábados nesta coluna.

20 de dezembro de 2013

Sarin de quem?

Barack Obama não contou toda a história quando tentou argumentar que Bashar al-Assad foi o responsável pelo ataque com armas químicas em 21 de agosto.

Seymour M. Hersh


Vol. 35 No. 24 · 19 December 2013

Barack Obama não contou a história inteira esse outono, quando tentou argumentar que Bashar al-Assad seria responsável pelo ataque com armas químicas próximo a Damasco no dia 21 de agosto 2013. Em alguns pontos omitiu informações importantes, em outros apresentou pressuposições como se fossem fatos. Mais importante, não reconheceu algo que toda a comunidade de inteligência dos Estados Unidos já havia reconhecido: que o exército sírio não é o único envolvido na guerra civil síria que tem acesso ao gás sarin, o agente de ação neurológica que, conforme estudo da Organização das Nações Unidas (ONU) – sem competência para fazer esse tipo de avaliação – tinha sido utilizado no ataque com foguete. Nos meses anteriores ao ataque, as agências de inteligência americanas produziram vários relatórios altamente secretos, que culminaram em uma formal Operations Order – documento de planejamento que precede invasão por terra – que cita provas de que a Frente al-Nusra, grupo jihadista afiliado à al-Qaeda, já dominava a mecânica da produção de gás sarin e podia produzir em grandes quantidades. Quando o ataque aconteceu, a Frente al-Nusra deveria ter sido um suspeito; mas a administração Obama selecionou a inteligência que lhe interessava para justificar um ataque contra Assad.

Em seu discurso em rede nacional de televisão sobre a Síria, dia 10 de setembro de 2013, Obama culpou fortemente o governo Assad pelo ataque de gás neurológico no subúrbio de Ghouta Leste, e deixou bem claro que estava preparado para fazer valer o alerta público que havia feito, de que qualquer uso de armas infringiria uma "linha vermelha": "O governo Assad matou com gás mais de mil pessoas – disse Obama. Sabemos que o regime de Assad foi responsável... E por isso, depois de cuidadosa deliberação, determinei que é do interesse da segurança nacional dos Estados Unidos responder ao uso de armas químicas pelo governo de Assad com ataque militar focado." Obama estava indo à guerra para "confirmar" uma ameaça que fizera publicamente, mas o fazia sem saber com certeza quem fizera o quê a quem no início da manhã de 21 de setembro de 2013.

Ele citou uma lista do que parecia ser evidência bem comprovada da culpa de Assad: "Nos dias que levaram ao 21 de agosto de 2013, sabemos que o pessoal das armas químicas de Assad preparava-se para um ataque próximo à área onde misturam o gás sarin. Distribuíram máscaras de gás aos seus soldados. Dispararam foguetes de uma área controlada pelo governo na direção de 11 bairros que o regime tentava limpar de forças da oposição." A certeza de Obama, naquele momento, encontrou eco imediato em Denis McDonough, seu chefe de gabinete, que disse ao New York Times: "Ninguém com quem eu falei duvida da inteligência" que liga diretamente Assad e seu governo, aos ataques com gás sarin.

Mas em recentes entrevistas com oficiais e consultores militares e de inteligência, atuais e aposentados, descobri grave preocupação, vez ou outra até medo, em torno do que vários deles veem como deliberada manipulação de inteligência. Um oficial de inteligência de alto nível, em e-mail para um colega, chamou de "farsa" as provas que o governo estava apresentando como tais, da responsabilidade de Assad. O ataque "não foi obra do atual governo" – escreveu ele. Outro ex-funcionário sênior de inteligência disse-me que o governo Obama alterara a informação disponível – alterara o timing e a sequência dos eventos – para permitir que o presidente e seus conselheiros usassem informação recolhida dias depois do ataque, como se tivesse sido recolhida e analisada em tempo real, durante o ataque. Essa distorção, disse ele, lembrou-o do incidente no Golfo de Tonkin em 1964, quando o governo Johnson inverteu a sequência de informação interceptada pela Agência de Segurança Nacional, para assim justificar um dos primeiros ataques com bombas dos Estados Unidos contra o Vietnã do Norte. O mesmo funcionário disse que há imensa frustração nos quadros da burocracia militar e da inteligência dos Estados Unidos: "Os rapazes erguem os braços aos céus e perguntam: 'Como se pode ajudar esse cara' – Obama – se ele e o pessoal dele na Casa Branca, cada vez que se reúnem, inventam inteligência?"

As reclamações focam-se no que Washington não teve: qualquer informação antecipada da fonte presumida do ataque. A comunidade militar de inteligência há anos produz um sumário matinal, super secreto, conhecido como Morning Report, para o secretário da Defesa e o comandante do Estado-Maior das Forças Conjuntas; uma cópia é enviada para o conselheiro de Segurança Nacional e para o diretor da Inteligência Nacional. O Morning Report não inclui informação política ou econômica, mas oferece um resumo de importantes eventos militares pelo mundo, com toda a inteligência existente sobre eles. Um consultor sênior de inteligência disse-me que um pouco depois do ataque ele revisou os relatórios de 20 a 23 de agosto de 2013. Em dois dias – 20 e 21 de agosto de 2013 – não havia menção à Síria. Dia 22 de agosto de 2013, o principal item no Morning Report falava do Egito; item subsequente discutia uma mudança interna na estrutura de comando de um dos grupos rebeldes na Síria. Nada sobre uso de gás de efeito neurológico em Damasco naquele dia. Só no dia 23 de agosto de 2013 é que o sarin tornou-se questão dominante, embora centenas de fotos e vídeos do massacre já fossem virais, em questão de horas, por YouTube, Facebook e outras páginas de mídias sociais. Nesse momento, o governo não sabia mais que o público.

Obama deixou Washington dia 21 de agosto de 2013, cedo, para um frenético tour de discursos em New York e Pennsylvania; segundo o gabinete de imprensa da Casa Branca, foi informado naquele dia, mais tarde, sobre o ataque e o crescente furor na imprensa e na opinião pública. A falta de qualquer inteligência imediata ficou evidente dia 22 de agosto de 2013, quando Jen Psaki, um dos porta-vozes do Departamento de Estado, disse a repórteres: "Não conseguimos determinar conclusivamente [o uso de] armas químicas. Mas estamos focados em cada minuto de cada dia, desde que aconteceram os eventos... fazendo todo o possível ao nosso alcance, para conhecer todos os detalhes dos fatos." Dia 27 de agosto de 2013 o tom do governo endureceu, quando o secretário de imprensa de Obama, Jay Carney, disse a repórteres – sem oferecer qualquer informação específica – que qualquer sugestão de que o governo sírio não foi o responsável "é tão absurda e sem sentido quanto sugerir que o próprio ataque não aconteceu".

A ausência de alarme imediato dentro da comunidade norte-americana de inteligência demonstra que não havia inteligência sobre intenções dos sírios nos dias anteriores ao ataque. E há pelo menos dois modos pelos quais os EUA poderiam ter sabido antecipadamente: os dois foram abordados num dos documentos top secret da inteligência dos EUA divulgados em meses recentes por Edward Snowden, ex-empregado terceirizado da Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos.

Dia 29 de agosto de 2013, o Washington Post publicou excertos do orçamento anual para programas da inteligência nacional, agência por agência, fornecidos por Snowden. Em consulta com o governo Obama, o jornal optou por publicar apenas uma mínima parte do documento de 178 páginas, classificado acima do mais top secret, mas resumiu e publicou uma seção relacionada a áreas-problema. Uma dessas áreas-problema era o "buraco" na cobertura de espionagem do gabinete de Assad. O documento dizia que as instalações de escuta eletrônica da Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos em todo o mundo haviam "conseguido monitorar comunicações encriptadas entre altos oficiais militares sírios no início da guerra civil lá". Mas havia "uma vulnerabilidade, que as forças do presidente Bashar al-Assad aparentemente descobriram logo depois". Em outras palavras, significa que a Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos já não conseguia acesso às conversas dos principais comandantes militares na Síria, o que incluiria comunicações cruciais de Assad – como ordens para um ataque com gás de efeito neurológico. (Em suas falas públicas desde 21 de agosto de 2013, o governo Obama jamais disse que teria informação específica que ligasse o próprio presidente Assad aos ataques).

A matéria publicada no Post também trouxe a primeira indicação de que havia um sistema sensor secreto dentro da Síria, instalado para garantir alerta imediato de qualquer mudança no status do arsenal de armas químicas do governo. Os sensores são monitorados pelo Gabinete Nacional de Reconhecimento, a agência que controla todos os satélites de inteligência dos Estados Unidos em órbita. Segundo o resumo do Post, o Gabinete Nacional de Reconhecimento tem também a tarefa de "extrair dados de sensores plantados no solo" dentro da Síria. O ex-funcionário sênior de inteligência, que tinha conhecimento direto do programa, disse-me que os sensores do Gabinete Nacional de Reconhecimento foram plantados próximos de todos os pontos conhecidos na Síria onde há equipamento para guerra química. São concebidos para garantir monitoramento constante da movimentação das ogivas químicas armazenadas pelos militares. Mas, muito mais importante em termos de alerta precoce, é a capacidade desses sensores para alertar a inteligência dos EUA e de Israel sempre que as ogivas forem carregadas com gás sarin. (País vizinho, Israel há muito tempo monitora mudanças que haja no arsenal químico da Síria, e trabalha em íntima conexão com a inteligência dos EUA, para alertas muito rápidos.) Uma ogiva química, depois de carregada com gás sarin, tem vida útil de poucos, bem poucos dias – porque o gás começa a corroer a própria ogiva: é arma de destruição em massa do tipo "para consumir imediatamente". "O exército sírio não tem três dias para preparar um ataque químico, disse-me aquele ex-funcionário sênior de inteligência. Criamos o sistema de sensores para reação imediata, como um alarme de incêndio ou um raid aéreo de advertência. Não se pode pensar em alarme para dali a três dias, porque todos os envolvidos já estariam mortos. É já, ou você virou história. Ninguém passa três dias preparando-se para disparar gás de efeito neurológico." E nenhum sensor detectou qualquer movimento nos meses e dias antes de 21 de agosto de 2013, disse aquele ex-funcionário sênior da inteligência. É claro que é possível que osarin tenha sido fornecido por outros meios ao exército sírio, mas a ausência de qualquer sinal de alarme significou que Washington não conseguira monitorar os eventos de Ghouta Leste enquanto se desenrolavam.

Os sensores, antes, já funcionaram, como os comandantes sírios sabem muito bem. Em dezembro passado o sistema de sensores recolheu sinais do que parecia ser produção de gás sarin num depósito de armas químicas. No primeiro momento, não se pôde saber se o movimento indicava exercícios do exército sírio, para treinamento (todos os exércitos do mundo fazem esse tipo de exercício “químico”, ou se haveria algum ataque real em preparação. Na ocasião, Obama preveniu publicamente a Síria de que o uso de gás sarin seria “totalmente inaceitável”; e mensagem semelhante foi encaminhada por vias diplomáticas. O evento era parte de exercícios, como adiante se confirmou, segundo o ex-funcionário sênior de inteligência: "Se o que os sensores viram em dezembro passado era tão importante que o presidente teve de dizer que parassem, por que o presidente Obama não fez exatamente o mesmo, três dias antes do ataque com gás, em agosto?"

É claro que a Agência de Segurança Nacional monitoraria o gabinete de Assad 24 horas por dia, todos os dias, disse o mesmo ex-funcionário. Outras comunicações – de várias unidades de combate dentro da Síria – sempre serão de longe muito menos importantes e não são analisadas em tempo real. "Há literalmente milhares de rádio frequências táticas usadas por unidades de campo na Síria para comunicações comuns de rotina– disse ele – e seria necessário um número imenso de técnicos em decriptação para ouvir tudo – e o retorno aproveitável seria zero."

Mas essa "conversa" é rotineiramente arquivada em computadores. Tão logo se entendeu a escala dos eventos de 21 de agosto de 2013, a Agência de Segurança Nacional montou um vasto esforço de busca de qualquer informe relacionável ao ataque, trabalhando no arquivo geral de comunicações arquivadas. Selecionaram-se uma ou duas palavras chaves e aplicou-se um filtro para separar as conversações relevantes. "O que aconteceu aqui é que o pessoal da Agência de Segurança Nacional começou com um evento – o uso de gás sarin – e saiu à procura de conversas que parecessem ter relação com aquele evento – disse o ex-funcionário." Isso não leva a avaliação muito confiável, a menos que você assuma como verdade indiscutível que Bashar Assad ordenou o ataque e saia à procura de qualquer coisa em que apoiar seu pressuposto inicial. Essa busca só pelos feijões "que interessam" foi similar ao processo usado para justificar a guerra do Iraque.

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A Casa Branca precisou de nove dias para montar o seu caso contra o governo sírio. Em 30 de agosto de 2013 convidou um grupo seleto de jornalistas de Washington (pelo menos um repórter crítico, Jonathan Landay, correspondente de segurança nacional da rede McClatchy Newspapers, não foi convidado), aos quais entregou um documento cuidadosamente rotulado como "uma avaliação feita pelo governo", em vez de avaliação feita pela comunidade de inteligência. O documento expunha o que, na essência, não passava de argumento político para inflar o caso do governo Obama contra o governo Assad. Mas era mais específico do que Obama seria adiante, em seu discurso de 10 de setembro de 2013: a inteligência dos Estados Unidos, disse ele, sabia que a Síria "começou a preparar munição química" três dias antes do ataque. Em discurso agressivo, naquele mesmo dia, John Kerry deu mais detalhes. Disse que "pessoal sírio de armas químicas estava em solo na área, fazendo preparativos" no dia 18 de agosto de 2013. "Sabemos que elementos do governo sírio receberam ordens para preparar-se para o ataque, vestindo máscaras contra gases e tomando precauções associadas a armas químicas". A avaliação pelo governo e os comentários de Kerry fizeram parecer que o governo estivera acompanhando o ataque com sarin enquanto acontecia. Essa versão dos eventos, falsa, mas que não foi desmentida, foi fartamente reproduzida e noticiada naquele momento.

Uma reação não prevista veio sob a forma de reclamações da liderança do Exército Sírio Livre e outros, indignados por não terem sido prevenidos. "É inacreditável que não tenham alertado as pessoas, nem tentado deter os criminosos antes do crime" – disse à Foreign Policy, Razan Zaitouneh, membro da oposição, que vivia numa das cidades atingidas pelo gás sarin. O Daily Mail foi mais incisivo: "O relatório da Inteligência diz que os funcionários dos Estados Unidos sabiam sobre o ataque com gás sarin na Síria, três dias antes de o gás matar mais de 1.400 pessoas – inclusive mais de 400 crianças." (O número de mortes pelo ataque varia muito, de pelo menos 1.429, como disse inicialmente o governo Obama, a número bem inferior. Um grupo sírio de direitos humanos relatou 502 mortos; Médicos sem Fronteiras falam de 355; e matéria francesa listou 281 mortos. O número espantosamente preciso de que os Estados Unidos falaram, como disse mais tarde o Wall Street Journal, foi baseado não em alguma contagem real de corpos, mas numa extrapolação feita por analistas da Agência Central de Inteligência (CIA), que escanearam mais de cem vídeos de YouTube de Ghouta Leste num sistema de computação à procura de imagens de mortos. Em outras palavras: foi pouco mais que simples palpite).

Cinco dias depois, um porta-voz do Gabinete do Diretor da Inteligência respondeu às reclamações. Declaração à Associated Press dizia que a inteligência na qual se apoiaram as primeiras declarações do governo ainda não era conhecida no momento do ataque; que fora recuperada só subsequentemente: "Sejamos claros: os Estados Unidos não estavam vigiando, em tempo integral, quando aconteceu esse horrível ataque. A comunidade de inteligência conseguiu reunir e analisar informação depois do fato, e determinar que elementos do regime Assad, sim, deram passos para preparar-se antes de usar armas químicas." Mas, dado que a imprensa-empresa norte-americana já tinha a história à qual se agarrar, deu-se rala atenção à retratação. Dia 31 de agosto de 2013, o Washington Post, repetindo a avaliação do governo, noticiou com destaque, na primeira página, que a inteligência norte-americana conseguira gravar “cada passo” do ataque pelo Exército Sírio em tempo real, "das extensivas preparações para o lançamento dos foguetes, até as avaliações posteriores por oficiais sírios". O Post não publicou a retratação distribuída pela AP. Assim, a Casa Branca manteve o controle sobre a narrativa.

Portanto, quando Obama disse, dia 10 de setembro de 2013, que seu governo sabia que o pessoal de Assad preparara o ataque, baseava sua fala não em inteligência interceptada enquanto acontecia, mas em comunicações analisadas dias depois de 21 de agosto de 2013. O ex-funcionário sênior explicou que a caça por conversa "que interessasse" voltou ao exercício detectado em dezembro, sobre a qual, como Obama disse depois publicamente, o Exército Sírio mobilizara pessoal das armas químicas e distribuíra máscaras entre os soldados. A avaliação distribuída pela Casa Branca e a fala de Obama nada tinham, em dezembro, a ver com os específicos eventos que levaram ao ataque do dia 21 de agosto de 2013; eram simples reprodução do que os militares sírios fariam no caso de algum ataque químico. "Requentaram uma história já passada – disse o ex-funcionário sênior – e há muitas peças e partes diferentes. O modelo que usaram foi o modelo de dezembro." É possível, é claro, que Obama não soubesse que aquele relato havia sido obtido de uma análise dos manuais e protocolos sírio a serem usados para ataque com gás, e não eram conclusão a partir de provas reais de eventos reais. Fosse como fosse, Obama analisou precipitadamente, temerariamente, e só superficialmente, as (nenhuma) provas que lhe exibiram.

Toda a imprensa entrou no mesmo jogo e o manteve pautado. O relatório da ONU de 16/9, confirmando o uso de sarin, foi suficientemente cauteloso; observou que o acesso de seus investigadores aos sítios dos ataques, que só aconteceu cinco dias depois, fora controlado por forças rebeldes. "Como com outros sítios – dizia o relatório – as locações foram pisoteadas por outros indivíduos antes da chegada da missão (...).Durante o tempo que passamos nessas locações, chegavam indivíduos carregando munição suspeita, indicado que provas potenciais estejam sendo retiradas e possivelmente manipuladas." Apesar disso tudo, o New York Times avaliou o relatório, como o avaliaram oficiais britânicos e norte-americanos, e disseram que ali havia provas cruciais em apoio ao que dizia o governo. Um anexo ao relatório da ONU reproduzia fotografias publicadas em YouTube de munição recolhida, inclusive um foguete que “sugestivamente combina” com as especificações de munição de artilharia de 330mm de calibre. O New York Times escreveu que a existência dos foguetes provaria, essencialmente, que o governo sírio foi responsável pelo ataque, “porque a arma em questão não havia sido documentada nem relatada como pertencente à insurgência”.

Theodore Postol, professor de tecnologia e segurança nacional no MIT, revistou, trabalhando com um grupo de colegas especialistas, as fotos feitas pelos inspetores da ONU, e concluíram que o foguete de grande calibre eram munição improvisada de fabricação, provavelmente, local. Disse-me que seria “algo que se pode fabricar num ateliê modesto de ferramentaria”. O foguete nas fotos, acrescentou, absolutamente não satisfaz as especificações de foguete similar, embora menor, que se sabe que existe no arsenal sírio. O New York Times, mais uma vez confiando nos dados do relatório da ONU, também analisou a linha de voo de dois foguetes disparados, os quais se supõe que tenham transportado sarin, e concluiu que o ângulo de descida “aponta diretamente” para provar que foram lançados de uma base síria localizada a mais de 9 km da zona de aterrissagem. Postol, que trabalhou como conselheiro científico do chefe de operações navais no Pentágono, disse que as asserções no Times e noutras publicações “não se baseiam em observação real”. Concluiu que as análises da linha de voo, sobretudo, são, como escreveu num e-mail, “totalmente doidas”, porque estudo aprofundado comprovou que “não há qualquer evidência, e nada sugere” que o alcance dos foguetes improvisados fosse superior a dois quilômetros. Postol e um colega, Richard M. Lloyd, publicaram uma análise duas semanas depois de 21/8, no qual avaliavam, corretamente, que os foguetes envolvidos carregavam quantidade de sarin muito superior à estimada antes. O Times noticiou extensamente essa análise, apresentando Postol e Lloyd como “importantes especialistas em armas”. O mais recente estudo dos dois sobre o alcance e a rota de voo dos foguetes, que desmente matéria anterior do Times, foi enviado por e-mail ao jornal na semana passada; até essa data, ainda não foi nem comentado nem publicado.

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A falsa interpretação que a Casa Branca deu ao que sabia sobre o ataque, e quando soube, correspondeu à rapidez com que ignorou toda a inteligência que poderia minar sua narrativa: a informação sobre a Frente al-Nusra, o grupo islamista rebelde que Estados Unidos e ONU classificaram como organização terrorista. A Frente Al-Nusra é conhecida por ter executado muitos ataques de suicidas-bombas contra cristãos e outras seitas muçulmanas não sunitas dentro da Síria, e por ter atacado também seu aliado nominal na guerra civil, o secular Exército Sírio Livre. O seu objetivo declarado é derrubar o governo de Assad e estabelecer a Lei da Xaria. (Dia 25 de setembro de 2013, a frente al-Nusra uniu-se a outros grupos de islâmicos rebeldes, para repudiarem o Exército Sírio Livre e também outra facção secular, a Coalizão Nacional Síria).

A onda de interesse norte-americano na Frente al-Nusra e no gás sarin começou de uma série de ataques químicos de pequena escala em março e abril; naquele momento, o governo sírio e os rebeldes insistiam, cada um, que o responsável era o outro. Por fim, a ONU concluiu que quatro ataques químicos, sim, haviam acontecido; mas não atribuiu a responsabilidade a nenhum dos lados. Um funcionário da Casa Branca disse à imprensa no final de abril que a comunidade de inteligência avaliara “com variáveis graus de certeza” que o governo sírio fora responsável pelos ataques. Assad, sim, havia transgredido a “linha vermelha” de Obama. A avaliação de abril ganhou manchetes, mas detalhes muito significativos perderam-se no processo. Um funcionário não identificado que coordenava obriefing reconheceu que as avaliações da comunidade de inteligência: "(...) não só, só elas, suficientes. Queremos – disse ele – investigar acima e além dessas avaliações da inteligência, para reunir os fatos de modo a podermos estabelecer um conjunto confiável e comprovável de informação que possa embasar então nossa tomada de decisão." Em outras palavras, a Casa Branca não tinha nenhuma prova direta do envolvimento do Exército Sírio ou do governo do presidente Bashar al-Assad, fato que só muito ocasionalmente apareceu registrado na cobertura oferecida pela imprensa-empresa. E a conversa “durona” de Obama funcionou bem com a opinião pública e o Congresso, que via Assad como assassino cruel e sanguinário.

Dois meses depois, uma declaração da Casa Branca anunciou mudança na avaliação da culpabilidade síria; e declarou que a comunidade de inteligência, agora, tinha “alta certeza” de que o governo Assad fora responsável pelas 150 mortes nos ataques com sarin. Mais e mais manchetes foram geradas e a imprensa-empresa foi informada de que Obama, em resposta à nova inteligência, havia ordenado em ajuda não letal à oposição síria. Não se ofereciam detalhes, nem se identificavam os detalhes nos quais se baseava a matéria. A declaração da Casa Branca dizia que análises laboratoriais confirmaram o uso de sarin, mas que prova positiva da presença de sarin “nada diz sobre como os indivíduos foram expostos ou sobre quem foi o responsável pela disseminação”. A Casa Branca também declarou que: "Não temos relatório confiável provado, que indique que a oposição na Síria adquiriu ou usou armas químicas." A declaração acima contrariava as provas que, naquele momento, fluíam em quantidade para as agências de inteligência dos EUA.

Já no final de maio, o ex-funcionário sênior da inteligência contou-me, a CIA já levara ao conhecimento do governo Obama o que se sabia sobre a Frente al-Nusra e seu trabalho com sarin; e enviara relatórios alarmantes de que outro grupo sunita fundamentalista ativo na Síria – al-Qaeda in Iraq (AQI) – também já dominava o processo de produzir sarin. Naquele momento, a Frente Al-Nusra estava operando em áreas próximas de Damasco, incluindo Goutha do Leste. Documento da inteligência distribuído em meados do verão tratava longamente de Ziyaad Tariq Ahmed, especialista em armas químicas dos militares iraquianos, que ter-se-ia mudado para a Síria e que estaria operando em Ghouta Leste. O consultor disse-me que Tariq havia sido identificado como “um sujeito da al-Nusra, com currículo de ter preparado gás mostarda no Iraque e homem que está implicado na produção e uso do gás sarin”. Os militares dos EUA o consideram alvo “de alto valor”.

Dia 20/6, um telegrama top secret de quatro páginas, reunindo tudo o que se sabia sobre as capacidades da al-Nusra para produzir/usar gás sarin, foi passado para David R. Shedd, vice-diretor da Agência de Inteligência da Defesa. "O que passaram para Shedd foi informação ampla e extensa – disse o consultor. Não foi um punhado de 'acreditamos que'". O mesmo consultor disse-me que esse telegrama não dizia nem sugeria que nem os rebeldes nem o Exército Sírio teriam iniciado os ataques em março e abril; mas, sim, confirmava relatórios anteriores de que a Frente al-Nusra tinha meios e competências para comprar e usar gás sarin. Uma amostra do sarin que havia sido usado também fora recuperada – com a ajuda de um agente israelense – mas, segundo o consultor com o qual falei, não há nenhuma referência à amostra, naquele telegrama nem em outros.

Independentemente dessas avaliações, o Estado-Maior das Forças Conjuntas dos EUA, sob a pressuposição de que soldados dos EUA poderiam ser mandados à Síria para capturar o estoque de agentes químicos, requereu uma análise de todas as fontes, sobre a ameaça potencial. "A Ordem de Operação é base para a execução de operação militar, se for ordenada – explicou-me o ex-funcionário sênior da inteligência. – Inclui a possível necessidade de mandar soldados dos EUA para um sítio químico na Síria, para impedir que seja tomado por rebeldes. Se os rebeldes jihadistas estivessem prestes a tomar o sítio químico, os EUA pressupúnhamos que Assad não lutaria contra nós porque estaríamos protegendo os [produtos] químicos de serem capturados pelos rebeldes." "Todas as Ordens de Operação contêm um item que trata de alguma específica ameaça de inteligência. Tínhamos analistas da CIA, da Agência de Inteligência da Defesa, especialistas em armas e gente de “I & W” trabalhando naquele problema... Concluíram que as forças rebeldes eram capazes de atacar com gás sarin uma força dos EUA, porque sabiam e podiam produzir o gás letal. O exame fora feito a partir de sinais e de inteligência humana, e considerava também intenções manifestas e a capacidade técnica comprovada dos rebeldes."

Há provas de que durante o verão alguns membros do Comando do Estado-Maior das Forças Conjuntas dos EUA estavam preocupados ante a possibilidade de invasão por terra à Síria, e pelo desejo manifesto de Obama de oferecer apoio não letal a facções rebeldes. Em julho, o general Martin Dempsey, comandante do Estado-Maior das Forças Conjuntas, apresentou avaliação sombria e disse à Comissão de Serviços Armados do Senado, em audiência pública, que “milhares de forças de operações especiais e outras forças de terra” serão necessárias para tomar todo o arsenal químico da Síria, extremamente disperso, além de “centenas de aviões, barcos, submarinos e outros tipos de veículos”. Estimativas do Pentágono falam em cerca de 70 mil soldados necessários nessa operação, em parte porque as forças dos EUA teriam de proteger também a frota de foguetes sírios: capturar grandes volumes dos produtos químicos que produzem gás sarin, sem ter os meios para lançar o gás, pouca utilidade teria para alguma força rebelde. Numa carta para o senador Carl Levin, Dempsey alerta que qualquer decisão de capturar o arsenal sírio traria consequências não desejadas: "Ao longo dos últimos dez anos, aprendemos porém que não basta simplesmente alterar o equilíbrio do poder militar, sem considerar atenta e cuidadosamente o que é necessário para preservar o funcionamento do estado (...) Se as instituições do regime entrarem em colapso na ausência de qualquer oposição viável, podemos acabar, inadvertidamente, empoderando extremistas ou lançando em operação as mesmas armas químicas que estamos tentando controlar."

Consultada sobre essa carta, a CIA preferiu não se manifestar. Porta-vozes da Agência de Inteligência da Defesa e do Gabinete do Diretor da Inteligência Nacional disseram que não sabiam do relatório enviado a Shedd; depois de receber os dados de identificação do telegrama, enviados por nós, disseram que não haviam localizado o telegrama. Shawn Turner, relações públicas do Gabinete do Diretor da Inteligência Nacional, disse que nenhuma agência de inteligência dos EUA, incluída a Agência de Inteligência da Defesa, “avalia que a Frente al-Nusra tenha conseguido desenvolver alguma capacidade para produzir gás sarin”.

Os funcionários de Relações Públicas do governo Obama não estão tão preocupados com o potencial militar da Frente al-Nusra quanto Shedd nas suas declarações públicas. No final de julho, Shedd apresentou relatório alarmante da força da Frente al-Nusra, durante o Aspen Security Forum, no Colorado. “Contabilizo nada menos que 1.200 diferentes grupos na oposição [ao governo de Bashar Al-Assad]” – disse Shedd, como se ouve nas gravações de sua conferência. E dentro da oposição, a Frente al-Nusra é a mais efetiva e está ganhando força. Isso, disse Shedd, é motivo de grave preocupação para nós. Se essa força for deixada agir sem qualquer oposição, temo muito que os elementos mais radicais – e citou também o grupo al-Qaeda in Iraq –prevaleçam. A guerra civil - ele continuou - só ficará cada vez pior ao longo do tempo (...) Há inominável violência ainda por vir. Shedd não fez qualquer referência a armas químicas em sua fala, porque, de fato, não podia: os relatórios que seu gabinete recebera eram todos ultra top secret.

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Uma série de despachos secretos vindos da Síria durante o verão relatavam que membros do Exército Sírio Livre andavam reclamando a agentes da inteligência dos Estados Unidos sobre repetidos ataques que estavam sofrendo de combatentes da Frente al-Nusra e da al-Qaeda. Os relatórios, segundo o consultor sênior de inteligência com o qual falamos e que leu aqueles relatórios, traziam provas de que o Exército Sírio Livre estava "mais preocupado com aqueles doidos do que com o governo de Assad". O Exército Sírio Livre é formado em grande parte por desertores do exército sírio. O governo Obama, empenhado em derrubar Assad e em manter o apoio aos rebeldes, procurou, em todas as falas públicas a partir do ataque [com gás sarin], apagar a influência das facções salafistas e wahhabistas. No início de setembro, John Kerry disse, estupefato, em uma audiência no Congresso, que a Frente al-Nusra e outros grupos islâmicos seriam minoria na oposição síria. Mais tarde ele retirou o que dissera.

Em todos as suas falas públicas e privadas depois do dia 21 de agosto de 2013, o governo Obama desconsiderou toda a inteligência que havia sobre a possibilidade real de que a Frente al-Nusra tivesse acesso possível ao gás sarin; e continuou a afirmar que só o governo Assad teria armas químicas. Essa foi a mensagem que se lia nos vários memorandos secretos distribuídos aos membros do Congresso nos dias depois do ataque, quando Obama tentava obter apoio para sua planejada ofensiva aérea contra instalações dos militares sírios. Um deputado, com mais de duas décadas de experiência em questões militares, disse-me que concluiu a leitura de um daqueles memorandos secretos absolutamente convencido de que "só o governo de Assad, não os rebeldes, tinham gás sarin".

Assim também, depois da divulgação do relatório da ONU, dia 16 de setembro de 2013, confirmando que havia sido usado gás sarin no ataque de 21 de agosto de 2013, Samantha Power, embaixadora dos Estados Unidos à ONU, disse, numa conferência de imprensa: "É muito importante observar que só o governo [de Assad] possui sarin, e que não temos prova de que a oposição possua sarin." Não se sabe se os relatórios altamente classificada sobre a Frente al-Nusra chegaram ao gabinete de Power, mas o comentário dela é reflexo da atitude que, então, se via em todo o governo Obama. "A conclusão imediata e geral era que Assad fizera tudo" – disse-me o ex-funcionário sênior de inteligência. – "O novo diretor da CIA, [John] Brennan, pula sobre essa conclusão" corre até a Casa Branca e diz: 'Vejam o que consegui!'. Foi tudo verbal; eles só tinham, de prova, as camisas manchadas de sangue. Houve muita pressão para arrastar Obama à mesa, para ajudar os rebeldes, e havia uma ilusão de que que isso [ligar Assad ao ataque com sarin] forçaria a mão de Obama: 'É o telegrama Zimmermann da rebelião síria! E agora Obama pode reagir'. Pura ilusão, na ala Samantha Power dentro do governo Obama. Infelizmente, alguns dos comandantes do Estado-Maior que foram alertados de que Obama preparava-se para atacar não tinham certeza de que era uma coisa boa."

O proposto ataque com mísseis norte-americanos contra a Síria jamais recebeu apoio da opinião pública; e Obama rapidamente mudou de ideia e agarrou-se à ONU e à proposta dos russos, a favor do desmantelamento dos arsenais químicos sírios. Qualquer possibilidade de ação militar foi afinal definitivamente descartada dia 26 de setembro de 2013, quando o governo Obama acompanhou o voto da Rússia e aprovou projeto de resolução da ONU que pedia que o governo Assad se livrasse de seu arsenal químico. O recuo de Obama trouxe alívio a vários altos comandantes militares. (Um conselheiro de alto nível de operações especiais disse-me que o mal concebido ataque de mísseis dos Estados Unidos contra instalações da Força Aérea síria e silos de mísseis sírios, como foi concebido inicialmente pela Casa Branca, teria sido "praticamente como garantir apoio aéreo próximo à Frente al-Nusra".).

A distorção que o governo Obama criou em todos os fatos que cercam o gás sarin levanta uma questão inevitável: será que afinal conhecemos toda a história do muito que Obama desejava afastar-se da "linha vermelha" que ele mesmo criara, sua ameaça de bombardear a Síria? Primeiro, disse que tinha "caso muito firme" a favor do ataque, e então, de repente, aceita entregar a decisão ao Congresso; e em seguida aceita a oferta de Assad, que se dispõe a entregar seu arsenal químico. Parece razoável e possível que, em algum momento desse processo, Obama tenha recebido informação que andava na direção contrária de tudo que a inteligência dos Estados Unidos lhe dizia: provas suficientemente fortes para convencê-lo, rapidamente, a cancelar o plano de ataque e ver-se obrigado a encarar a crítica que, sem dúvida possível, viria dos Republicanos.

A Resolução da ONU, que foi adotada dia 27 de setembro de 2013 pelo Conselho de Segurança, tratava indiretamente da noção de que forças rebeldes como a al-Nusra também seriam obrigadas a desarmar-se: "... nenhuma parte na Síria deve usar, desenvolver, produzir, comprar, armazenar, possuir ou transferir armas [químicas]." A Resolução também exige que o Conselho de Segurança seja notificado imediatamente no caso de qualquer dos "atores não estatais" adquirirem armas químicas. Nenhum grupo foi citado nominalmente. Enquanto o governo sírio continua a processar a eliminação de seu arsenal químico, a ironia é que, depois que os agentes precursores encontrados nos arsenais do governo do presidente Bashar al-Assad tiverem sido destruídos, a Frente al-Nusra e seus aliados islâmicos talvez acabem sendo a única facção dentro da Síria com acesso aos ingredientes que produzem o gás sarin, arma estratégica sem concorrente naquela zona de guerra. Pode haver muito mais a negociar.

Seymour M. Hersh

O livro de memórias de Seymour M. Hersh, Reporter, foi lançado no ano passado.

11 de dezembro de 2013

Socialismo: Convertendo a miséria histérica em infelicidade comum

A Esquerda quer dar às pessoas a chance de fazer algo mais com suas vidas, lhes dando tempo e espaço longe do mercado.

Corey Robin


Josu Gonzalez / Flickr

Tradução / No New York Times de ontem, Robert Pear fala sobre um fato pouco conhecido sobre o Obamacare: os pacotes de convênio disponíveis no modelo federal têm franquias muito altas. Atraídas pelas mensalidades baixas, as pessoas acabam se descobrindo ferradas por franquias, co-pagamentos, encargos por serviços e profissionais fora da rede, e todas as diferentes palavras e maneiras que as companhias de convênio inventam para esconder o fato de que você está pagando os olhos da cara.

Pelas apólices oferecidas na opção federal, como em muitos estados, as franquias anuais muitas vezes superam $5,000 para um indivíduo e $10,000 para um casal. 
Seguradoras inventaram novas apólices assumindo que os consumidores escolheriam um plano baseado principalmente no preço, como refletido na mensalidade. Mas convênios com mensalidades mais baixas geralmente possuem franquias mais altas. 
Em El Paso, Texas, por exemplo, para um marido e esposa ambos de 35 anos, um dos planos mais baratos na opção federal, oferecido pela Blue Cross and Blue Shield, tem uma mensalidade menor que $300 por mês, mas a franquia anual é de mais de $12,000. Para um casal de 45 anos buscando um convênio de opção federal em Saginaw, Michigan, uma apólice com uma mensalidade de $515 por mês tem uma franquia de $10,000. 
Em Santa Cruz, Califórnia, onde esse mercado é operado pelo Estado, Robert Aaron, um engenheiro autônomo de 56 anos, disse que estava procurando um plano de baixo custo. O melhor que pôde encontrar tinha uma mensalidade de $488. Mas a franquia anual era de $5,000 e isso, ele diz, “soa realmente alto.” 
Como contraste, de acordo com a Fundação Kaiser Family, a média das franquias anuais em planos de saúde pagos pelos empregadores é de $1,135.

É verdade que se você é parte de uma família de três, recebendo anualmente até $48,825 (ou, se você é um indivíduo ganhando até $28,725 anuais), você é elegível para subsídios. Esses podem ser bem substantivos nos extremos mais baixos da escada de renda. Mas enquanto você começa a se aproximar daqueles limites superiores (que nem são realmente tão altos; de fato, abaixo da renda familiar média), os subsídios começam a minguar. Deixando indivíduos e famílias com uma conta e tanto, como mesmo este texto, que em geral é otimista sobre o Obamacare, reconhece.

Além dos números, o que sempre me atinge nestas discussões é simplesmente o quão complicado o Obamare é. Mesmo se nós aceitarmos as premissas de seus defensores, o número de passos, detalhes, ressalvas e qualificações que são necessárias para defendê-lo, é por si mesmo um problema político massivo. Como estamos vendo agora.

Mais importante que as questões política, a complexidade bizantina é um sintoma do que a cidadã comum tem de confrontar quando ela tenta arrumar cobertura de saúde para si e sua família. Como qualquer um que têm mesmo bons planos sabe, navegar o mundo de números, formulários e ligações telefônicas pode ser uma proposição assustadora. Isso requer um tempo excessivo, obstinação, experiência, inteligência e charme manipulativo (para que não acabe se encontrando no lado errado de um operador telefônico descontente). O Obamacare se encaixa bem com esse mundo e o multiplica.

Não estou interessado em discutir aqui o que era possível através de reforma na Saúde e o que não era; nós já tivemos esse debate mil vezes. Mas pensei que poderia ser útil levantar novamente parte deste post que fiz, quando comecei a escrever em meu blog, sobre quanto tempo e energia nosso mundo capitalista requer que nós gastemos, e o que uma abordagem de esquerda para a economia poderia ter a dizer sobre isso tudo. É esse mundo da experiência cotidiana – o que é tentar e arranjar bens básicos para si mesmo e/ou sua família – o que eu gostaria que tanto “liberais” e esquerdistas tivessem mais contato com.

O texto segue uma ideia que tenho sobre o socialismo e o estado de bem-estar social por vários anos. Plagiando Freud e bebendo do meu próprio utopismo anti-utópico, acredito que o objetivo do socialismo é converter miséria histérica em infelicidade comum. Deus, isso seria tão bom!

***

Há um argumento mais profundo e mais substantivo a ser feito para uma abordagem de Esquerda para a economia. Na utopia neoliberal, todos nós somos forçados a gastar um tempo excessivo mantendo rasto de toda e qualquer faceta de nossas vidas econômicas. Isso, de fato, é um objetivo declarado abertamente:uma vez que sejamos mais conscientes sobre nosso dinheiro, de onde ele vem e para onde vai, neoliberais acreditam que seremos mais responsáveis ao gastá-lo e investí-lo. É claro, os ricos têm contadores, advogados, assistentes pessoais e outros para fazer isso para eles, então o argumento não se aplica a eles, mas essa é uma outra história, para outro dia.

O sonho é que nós todos teríamos nosso gazilhão de contas individuais – uma para aposentadoria, uma para doença, uma para desemprego, uma para as crianças, e assim por diante, cada uma conectada com nosso emprego, para que entendêssemos que tudo de bom na vida depende de nossos chefes (e não do governo) – e a cada dia nós iríamos checar como as coisas estariam indo, o que precisaria ser atendido, o que poderia ser melhor investido em outro lugar. É como se, no sonho neoliberal, seríamos todos aposentados em Boca, com nada melhor para fazer do que contatar o nosso corretor, exceto é claro que não seríamos. De fato, se Republicanos (e alguns Democratas) pudessem fazer as coisas do seu jeito, nós nunca nos aposentaríamos.

Na vida real (ou pelo menos em nossa vida preferida), nós temos outras coisas melhores para fazer. Nós temos livros para ler, filhos para criar, amigos para encontrar, pessoas amadas para cuidar, diversões para curtir, bebidas para beber, caminhadas para fazer, internet para navegar, sofás para deitar, jogos para jogar, filmes para assistir, protestos para fazer, movimentos para construir, marchas para marchar, e mais. Na maioria dos dias, não temos tempo para fazer nada disso. Nós estamos trabalhando por horas demais e por salário de menos, e nas poucas horas (minutos) que sobram depois que as crianças estão dormindo, a louça e as roupas estão lavadas, nós temos de pechinchar com companhias de seguro sobre as contas do médico, lidar com funcionários da escola precisando de formulários assinados, e mais.

O que é mais espantoso sobre a proposta de Romney – e a visão de mundo neoliberal, em geral – é que ela apenas contribuiria para aumentar esse aborrecimento imenso, essa merda incrível da vida cotidiana. Uma conta a mais para acompanhar, uma campainha a mais para responder. Por que qualquer um iria querer viver assim? Eu não sei mesmo, mas acho que esse é o objetivo dos neoliberais: não apenas que a gente seja mais responsável com nosso dinheiro, mas também que a gente seja mais consumido por ele, para que a gente não tenha tempo para nada mais. Especialmente nada, como Política, que poderia perturbar a ordem social como ela está.

Nós vimos uma versão disso durante o debate sobre o plano de assistência médica de Obama. Eu me lembro distintamente, apesar de agora não conseguir encontrar, de um daqueles garotos-prodígio da Saúde – talvez tenha sido Ezra Klein – com risinhos sobre a Economia elegante e o visual legal do plano de Obama: como você poderia ir para a internet, checar o plano, comparar esta pequena brecha de um plano com aquela pequena brecha de outro, e o quão ótimo isso tudo era por que era simplesmente complicado para caralho.

Pensei comigo: ou você é muito jovem, ou um acadêmico. E como sou um acadêmico, e pude apenas experimentar vertigem ao olhar para todos aqueles malditos gráficos e tabelas, decidi que, quem quer que você fosse, seria muito jovem. Apenas alguém nos seus vinte e tantos anos – esperto o bastante para dominar uma lei incomumente complicada sem ter de fazer uso real dela – poderia olhar aquele Everest de palavras e números e dizer: Sim! Aí está a Liberdade!

É a isso que a visão neoliberal nos reduz: homens e mulheres tão confrontados pelos aborrecimentos do dia-à-dia que ou somos forçados a dominá-los, como o garoto-maravilha da blogosfera, ou nos tornamos seus escravos. Ou somos atletas do mercado ou a equipe de suporte que toma conta da corrida.

Não é isso que a Esquerda quer. Nós queremos dar às pessoas a chance de fazer algo mais com suas vidas, alguma coisa além de meramente tomar conta delas, sem ter que tomar um desvio de trinta anos em Wall Street para chegar lá. O jeito de fazer isso não é imergir as pessoas mais ainda nos caminhos e meios do mercado, mas dando a elas tempo e espaço para sair disso. É isso que um bom Estado de Bem-Estar Social, uma verdadeira Social-Democracia faz: ao invés de ser consumido pela vida, ela lhe permite construir sua vida. Livremente. Uma campainha a menos para responder, não uma a mais.

Colaborador

Corey Robin é o autor de The Reactionary Mind: Conservatism from Edmund Burke to Donald Trump e editor colaborador da Jacobin.

30 de novembro de 2013

Atos de Desaparecimento: Aquino

Nascido por volta de 1225 perto da pequena cidade de Aquino, no sul da Itália, Tomás de Aquino frequentou a Universidade de Nápoles e, enquanto estava na cidade, entrou para a Ordem Dominicana. Ele então foi para o norte para prosseguir...

Terry Eagleton

London Review of Books

Vol. 35 No. 23 · 5 December 2013

Thomas Aquinas: A Portrait
por Denys Turner
Yale, 300 pp., £18.99, maio 2013, 978 0 300 18855 4

Nascido em 1225 ou perto disso, em Aquino, pequena cidade do sul da Itália, Tomás de Aquino frequentou a Universidade de Nápoles e, ainda na cidade, integrou-se à Ordem dos Dominicanos. Viajou então para o norte, para prosseguir seus estudos com Alberto, O Grande - também Dominicano - em Paris e Colônia. Foi nomeado palestrante e depois professor da Universidade de Paris e voltou a Nápoles para organizar ali a casa de estudos dos Dominicanos. Morreu em 1274, em viagem para Roma onde participaria do Segundo Concílio de Lion, mas bateu a cabeça num galho baixo de árvore e morreu. Foi canonizado 50 anos depois.

O curso plácido da vida de Aquino contrasta fortemente com a magnificência de suas realizações. Esse frade taciturno, de cuja personalidade notável sabe-se muito pouco, está entre os maiores teólogos, só comparável a São Paulo e a Santo Agostinho. Das suas publicações, a pedra central é a assustadoramente grande Summa Theologiae. No seu estilo seco, ríspido, contido, esse formidável compêndio de teologia, metafísica, ética e psicologia vai desde as celebradas demonstrações, por Tomás, da existência de Deus, à vida moral, Cristo e os sacramentos. Hoje, a Summa é parte considerável dos fundamentos intelectuais da Igreja Católica Romana, embora jamais tenha gozado de tal prestígio, em seu tempo. Representava então apenas uma dentre várias escolas medievais escolásticas e em vários momentos foi objeto de muita controvérsia.

Para desconsolo de alguns padres tradicionais, Tomás de Aquino estava convencido de que o pensamento do pagão Aristóteles oferecia os recursos filosoficamente mais valiosos para expor a fé cristã, e foi por essa poderosa síntese, sobretudo, que Aquino conquistou seu lugar entre os imortais da filosofia. O conflito em torno de Aristóteles foi particularmente feroz na Universidade de Paris, onde muitos colegas de Tomás de Aquino abraçaram as doutrinas de Agostinho e do neoplatonismo, e consideravam o pensamento de Aristóteles incompatível com o cristianismo. O que Aquino fazia então era guerra por palavras, embora ninguém jamais suspeitasse, se considerado o estilo sem crispações, sempre em tom menor.

Como Marx, Tomás de Aquino também mergulhou num caldeirão fervente, contra a autoridade, por ser materialista. Não que insistisse na ideia absolutamente tediosa de que só há matéria, nada além de matéria. O seu materialismo não era reducionismo brutal, como, tampouco, o de Marx. Tomás de Aquino acreditava na alma, exatamente como Daniel Dennett e Richard Dawkins não acreditam; mas acreditava, dentre outras razões, porque pensava que a alma leva à compreensão a mais rica possível dessa eclosão de matéria chamada corpo. Como Wittgenstein observou: se quiser uma imagem da alma, olhe o corpo. A alma, para Tomás de Aquino, não é algum tipo de “extra” fantasmagórico, como para os cristãos platonizantes de seu tempo; que não se veja a alma como um rim espiritual ou o espectro de um pâncreas.

Dado que a linguagem é matéria que significa, assim, para Tomás, é o corpo, que deve ser visto, para ser mais bem visto, não como um objeto, mas como um significador. Por trás dessa crença está uma teologia da Palavra que se fez carne, e em particular da Eucaristia, na qual aquela Palavra está presente na transformação do pão e do vinho em algo, assim como aquele significado está presente num signo verbal. Segue-se dos ensinamentos de Tomás de Aquino, que não há o tal de corpo morto. Um cadáver é apenas o que resta de um corpo, uma massa de material do qual saiu o significado, como numa hemorragia; não é mais o artigo genuíno.

Tomás dizia claramente que se algo não envolve o meu corpo, então não me envolve. Posso não estar fisicamente presente junto a você pelo telefone, no sentido de partilharmos o mesmo espaço material, mas estou corporalmente presente para você, do mesmo modo. Cristianismo tem a ver com a transfiguração do corpo, não com a imortalidade da alma. Aquino certamente acreditava em almas desencarnadas, mas nem por isso entendia que a alma de alguém fosse alguém. Nunca lhe ocorreria pensar que a alma desencarnada de Amy Winehouse seria Amy Winehouse. A identidade humana, pensava ele, é uma identidade animal. Como Turner argumenta nessa biografia, Tomás de Aquino pensava, diferente dos platonistas, que “somos completamente animal, animal da cabeça ao pés”. Os que protestam que assim se deixaria de fora um extra invisível chamado alma deixam escapar sem ver, simplesmente, a natureza peculiarmente criativa dessa animalidade.

Dito em termos impolidos, temos o tipo de mente que temos, por causa do tipo de corpo que temos. Nosso pensamento, por exemplo, é discursivo, avança no tempo, como avança, porque nossos sentidos-experiência também são assim. O papel dos conceitos abstratos, ensinou ele, é enriquecer nossa experiência, não torná-la ainda mais rala. Marx argumenta exatamente na mesma direção, nos Grundrisse.

Tomás de Aquino também pensava que a metáfora seria o modo de linguagem mais adequado aos animais humanos, por causa de seu caráter concreto, sensorial. Embora seja frequentemente acusado de racionalismo escolástico sem sangue, está, em vários sentidos, muito mais perto dos empiricistas. O objeto natural da mente, ele insiste, não é Deus, o ego ou ideias, mas coisas materiais. Qualquer conhecimento que tenhamos de Deus tem de começar aqui e, em particular, com aquele patético fracasso de um objeto natural conhecido como Jesus. (Em frase esplendidamente esculpida, Turner escreve de Jesus, que foi “executado extrajudicialmente por recomendação de um comitê corrupto de pessoas muito religiosas”.)

Mas não que a expressão “conhecimento de Deus” soasse como perfeitamente não problemática aos ouvidos de Tomás de Aquino. Teria prontamente concordado com Dennett e Dawkins, que quando falamos de Deus, não sabemos, realmente, do que falamos. (Sobre Dawkins, Turner observa, ácido, que “não há uma única frase em toda a teologia de Tomás de Aquino que [Dawkins] seja capaz de formular com clareza suficiente para negá-la com eficácia”).

Para Aquino, toda a linguagem sobre Deus é metafórica, acerta ou erra, correndo constantemente contra os limites do dizível. Os cristãos dizem, por exemplo, que Deus é um, não vários; mas como qualquer outro fragmento de fala-de-Deus, esse também não pode ser tomado literalmente. Deus não é, na visão de Aquino, alguma espécie de ser, princípio ou entidade que possa ser contado com outras entidades que tais. Não é sequer alguma espécie de pessoa, como há quem diga que Piers Morgan seja pessoa. Deus e o universo não fazem dois. Sejam quais forem os demais erros que os crentes cometem, não ser capaz de contar não é um deles. Os crentes não defendem que haja um objeto a mais, no mundo, além dos que há. Deus, para Aquino, não é coisa no ou fora do mundo, mas o campo de possibilidade de tudo, seja o que for. Se caíssemos fora de suas mãos, mergulharíamos no nada; e a fé é confiança em que, por mais odiosos que sejamos uns para os outros, ele não nos deixará escapar entre os dedos.

A doutrina da Criação não é conversa fiada científica, como racionalistas do século XIX demodés como Dawkins pressupõem. Como Turner argumenta, ela trata realmente da extrema fragilidade das coisas. Aquino acredita que tudo que existe é contingente, no sentido de que não há absolutamente necessidade que as coisas supram. Deus fez o mundo por exigência do amor, não da necessidade. É ser gratuito, o que é o mesmo que dizer que é questão de graça e dom.

Como uma obra de arte modernista, ou como alguém contemplando a própria mortalidade, o mundo está cheio de um senso de nada, que brota da consciência, que dá nó na cabeça, de que o que é poderia perfeitamente jamais ter sido. A Criação é o ato gratuito original. Tomas de Aquino não pensa que podemos controlar o mundo, precisamente porque não podemos controlar o nada, seu contrário; mas entende que seja racional perguntar por que há algo, e não nada, como alguns filósofos não fazem. E, dado que pensa que a resposta a essa pergunta é Deus, essa, Turner argumenta, é a razão pela qual ele afirma a existência de Deus, a qual, embora em sentido algum seja autoevidente, pode ser demonstrada racionalmente.

Tem, pois, crença tipicamente católica no poder da razão, diferente de um ceticismo protestante do intelecto, que seria obscurecido e corrompido. Mas, apesar de que morremos, sem a razão, e apesar de a razão ir até bem longe, ela não completa o serviço, como tampouco o completa, para Marx ou Freud. No fim, o que sustenta a razão é a fé, que é um tipo de amor. Nem Dawkins se daria o trabalho de meter-se em seu laboratório, não fosse por algumas crenças e compromissos subjacentes.

E que essa foi a via pela qual Tomás de Aquino viu o assunto, foi dramaticamente ilustrado bem no final de sua vida. Algo aconteceu a ele no dia 6 de dezembro de 1273. Não se sabe se teve uma visão, um colapso nervoso ou ambos. Mas depois de uma vida de produção quase sobre-humana (a certa altura, quando escrevia sua Summa Theologiae, estava produzindo o equivalente a dois ou três romances de tamanho médio, por mês), abandonou a pena. Consta que teria dito ao seu secretário que nunca mais escreveria depois do que vira naquela dia, “porque tudo que escrevi não passa de palha”. Seguiram-se três meses de silêncio, e a morte.

Sete oitavos da Summa já estavam prontos, e Turner vê um significado teológico nessa incompletude. Como o mundo, do modo como Aquino o compreendia, aquele mais fino dos trabalhos de teologia encerra-se com o silêncio. Turner extrai grande aproveitamento do que se pode chamar de o anonimato de Aquino, o fato de que ele se apaga, some, em sua escrita meticulosa, distanciada, sem arroubos, como que para impedir que a personalidade se interponha entre o leitor e a verdade. Paulo e Agostinho se entretecem eles mesmos em cada palavra, e Meister Eckhart, na expressão de Turner, é “um show de efervescência”. Mas Tomás de Aquino é “o santo quase completamente invisível”, um mestre na arte de sumir-se, cuja nenhuma ostentação é, ela própria, uma forma de totalidade. Se seu texto parece não ter autor, se recusa-se a cintilar, é porque, como observou certa vez, melhor lançar luz aos outros, que brilhar por brilho próprio. Nesse sentido, pode ser adequado que a Summa suspenda-se, finalmente, em silêncio, dado que o autor já tinha os lábios bem cerrados, desde o início. Se se empurra a razão até o mais longe que ela pode ir, pode acontecer de, como no sublime kantiano, ela iluminar, por negação, o que está além de seus limites.


Se Tomas de Aquino depôs deliberadamente a pena, há um sentido no qual ele escolheu a pobreza do espírito, acima da realização do intelecto. Essas são duas virtudes caracteristicamente dominicanas. É importante entender que ele foi frade, não monge. Os monges, como os cistercianos e beneditinos, vivem vida de oração e trabalho reclusos, longe do mundo, e seus monastérios são construídos para ser enclaves de ordem, paz e estabilidade. Enraizados num só ponto, os monges visam à autossuficiência, criando as próprias granjas, mantendo escolas pagas, fabricando licores exóticos e coisas do gênero.

Frades, como os dominicanos e os franciscanos, ao contrário, vivem da mão para a boca, na miséria, como mendigos que dependem da caridade das pessoas comuns. Como os monges, também vivem em comunidades, mas, diferentes deles, perseguem a própria missão nas ruas. Os frades são sujeitos urbanos, os monges são, na maioria, rurais. O objetivo original dos frades é liberar a teologia dos claustros e colégios, para que se torne o que esse livro chama de “prática multitarefa nas ruas”. Os dominicanos, em particular, combinam oração e pobreza, como o próprio Jesus. Têm de ser livres de quaisquer posses; e têm de manter o celibato (para não terem de arcar com deveres domésticos), para poderem ir aonde sejam necessários, flexíveis, disponíveis para os que cheguem. Diferentes dos evangelizadores de televisão nos EUA, também têm de deixar claro àqueles aos quais servem, que, ali, eles nada ganham.

Nada disso valeu aos dominicanos do tempo de Tomás de Aquino uma imagem respeitável. Eram vistos quase sempre como vagabundos e parasitas, “gangues de enganadores dedicados à autopromoção”, como Turner escreve sem meias palavras, que supunham que o mundo teria obrigação de sustentá-los. Enquanto os jesuítas são figuras do establishment, os dominicanos são os lobos solitários intelectuais da igreja. Em nossos dias, tem havido jungianos, marxistas, hippies, pacifistas e wittgensteinianos radicais. Como escritores, palestrantes, professores, pregadores e intelectuais públicos, sua forma especial de santidade exerce-se mediante a palavra.

Tomás de Aquino, membro da pequena aristocracia italiana, estava destinado pela família à ordem dos beneditinos, mas chocou-os todos, ao decidir tornar-se dominicano. Foi, mais ou menos, como se o príncipe Harry se alistasse no Partido dos Trabalhadores Socialistas. Alguns de seus irmãos o separaram à força dos dominicanos e o puseram em prisão domiciliar por um ano, no castelo da família. Com tocante solicitude fraternal, também tentaram demovê-lo da decisão de tornar-se frade: mandaram ao quarto dele uma prostituta nua, tática pouco efetiva para um homem que declarou a contemplação o maior de todos os prazeres. Tomás de Aquino afinal achou sua saída, e escreveu a Summa, como uma espécie de recurso pedagógico para seus irmãos dominicanos. Nas palavras de Turner, foi “o escrito que os pregadores mendigos devem carregar com eles; é uma teologia do homem pobre, o Cristo pobre como teologia. Como para Marx, a teoria a serviço da prática”.

É Tomás de Aquino quem, sobretudo, deu forma ao que se pode chamar de uma característica visão católica da realidade. Para esse modo de ver, o modo como as coisas são não é só o modo como dizemos que elas sejam. Ao contrário, o mundo é rico e intrincado de pleno direito dele, feito de camadas complicadas, mas significativamente estruturado, e até Deus Todo Poderoso deve reconhecer esse fato. Poderia ter criado um cosmos no qual não houvesse mousse de chocolate ou Bruce Willis; mas dado que não o fez, tem de curvar-se à lógica de sua própria criação, em vez de reivindicar o direito de decidir, feito prima-donna caprichosa, que os pinguins se ponham a praticar salto com vara ou que a Cidade do Cabo apareça no hemisfério norte.

Mesmo assim, é a mente humana que, na visão de Tomás de Aquino, traz as coisas à fruição, de tal modo que falar delas é fazê-las ser mais plenamente o que elas já são. Os indivíduos podem trazer-se uns à fruição dos outros, no sentido de que o ser deles é completamente relacional, de cabo a rabo. No centro da visão moral de Tomás de Aquino está a ideia da amizade. É esse tipo de amor, não o amor erótico ou romântico, a melhor imagem do inabordável, inimaginável, amor de Deus, que convoca homens e mulheres a serem seus amigos, não seus servos. Tomás de Aquino, para quem a vida humana é comunitária até a raiz, nunca teria compreendido o individualismo moderno. Nem jamais compreenderia o preconceito neoliberal segundo o qual o poder, a autoridade, os sistemas, as doutrinas e as instituições são inerentemente opressivos.

De um ponto de vista tomista, todo o ser é benigno. É bom em princípio, e o mal é uma espécie de não-ser. Em homens e mulheres, é a forma defectiva de existência dos que jamais acharam jeito de ser humanos.

Os seres humanos vivem em amarga carência de redenção, como pode comprovar qualquer um que leia jornais; mas essa redenção não é rudemente imposta sobre eles na contramão do que desejem. Ao contrário, a natureza deles acolhe, hospitaleira, essa transformação profunda, e anseia por ela, mesmo quando eles nem são inteiramente conscientes disso. A vida moral envolve cortar através de densa camada de falsa consciência e de uma autoenganação pia após outra, para descobrir o que nós realmente, fundamentalmente, desejamos.

Deduz-se da visão do ser de Tomás de Aquino que vida boa é vida florescente, ricamente abundante. Quanto mais uma coisa é ela mesma, melhor se torna. Santos são os supremamente bem-sucedidos na exigente tarefa de ser humano, os George Bests e as Jacqueline du Prés da esfera moral. Moralidade não é questão de dever e obrigação (Turner lembra que o léxico moral tomista praticamente nem registra essas palavras), mas de felicidade e bem-estar.

Terry Eagleton escreveu cerca de cinquenta livros, incluindo, o mais famoso, Teoria Literária: Uma Introdução (1983), e cerca de oitenta textos para a LRB. Seus temas incluem críticos (Erich Auerbach, Mikhail Bakhtin, Georg Lukacs, IA Richards, Stanley Fish, Gayatri Chakravorty Spivak), Deus, um Delírio, de Richard Dawkins, e muitos romances. Ele lecionou por muitos anos em Oxford, tornando-se Professor Warton de Literatura Inglesa em 1992, e depois em Manchester e Lancaster.

27 de novembro de 2013

Descobrir o poder da história do povo - e porque hoje ela é temida

John Pilger

New Statesman

Tradução / A Inglaterra é dois países. Um é dominado por Londres, o outro permanece na sua sombra. Quando cheguei da Austrália pela primeira vez, parecia que ninguém ia ao Norte de Watford e aqueles que haviam emigrado do Norte esforçavam-se arduamente por mudar suas pronúncias, encobrir suas origens e aprender os maneirismos e códigos das satisfeitas classes sulistas. Alguns zombavam da vida que haviam deixado para trás. Estavam a mudar de classe, ou assim pensavam.

Quando o Daily Mirror enviou-me em reportagem ao Norte, na década de 1960, meus colegas em Londres divertiram-se com o meu desterro para os antípodas, o seu equivalente da Sibéria. Na verdade, foi o pior Inverno em 200 anos e eu nunca usara um cachecol ou possuira um casaco. Tente imaginar o que é aquilo como a mais sombria Leeds e Hull, advertiram.

Era um tempo em que, segundo se dizia, os trabalhadores na Inglaterra “falavam alto”, até mesmo “tomavam o comando”. Filmes realistas estavam a ser rodados e pronúncias que antes não eram bem vindas nos media e em secções do negócio do entretenimento agora aparentemente eram procuradas, embora muitas vezes como caricaturas.

Durante aquela primeira viagem ao Norte, quando parei para abastecer de gasolina, não consegui entender o que disse o homem; dentro de semanas, o que as pessoas diziam parecia-me perfeitamente claro. Eles eram uma outra nação com uma história diferente, diferentes lealdades, humor diferente, mesmo valores diferentes. No cerne disto estava a política de classe. Transpondo os Pennines, o Império vinha abaixo. As paixões imperiais do Sul mal se manifestavam. Em Merseyside e Tyneside, excepto entre os notáveis habituais, ninguém se importava com a realeza. Havia o um-por-todos-e-todos-por-um de uma sociedade da classe trabalhadora – a menos, como se tornou penosamente claro em anos posteriores – que acontecesse você ser negro ou mulato. Aquela solidariedade era, para mim, a notícia, como se fosse o capítulo em falta no património político da Inglaterra, uma história do povo dos tempos modernos, omitida por Thatcher e Blair e ainda temida pelas suas repercussões.

Eu já havia vislumbrado o poder desta solidariedade no lugar onde cresceram meus pais e conhecia-a enquanto rapaz: a região mineira do Hunter Valley, no Novo País de Gales. Aqui, todos os mineiros do carvão haviam sido despedidos de Yorkshire, Tyneside e Durham. “Observe-os, eles são comunistas”, ouvi alguém dizer. Eles eram combatentes pela decência da classe trabalhadora: pagamento adequado, segurança e solidariedade. Os galeses eram iguais. Traziam consigo os sofrimentos físicos e mentais e a raiva daqueles que haviam industrializado o mundo e ganhavam pouco excepto a perdurável solidariedade de uns com os outros.

O Mirror publicou minhas reportagens de vidas de trabalhadores: mineiros a trabalharem em poços de menos de um metro, trabalhadores do aço no calor inimaginável. Eu encontrava uma rua, virtualmente qualquer rua, e batia às portas. O que me intrigava então era que tal calor humano e auto-domínio pudessem sobreviver no trabalho monótono das cidades nortistas. Além disso, a grande tradição radical de resistência no Norte – desde os trabalhadores do algodão do século XIX até a Grande Greve dos Mineiros de 1984-85 – sempre ameaçou o jogo que em Londres é conhecido como “o consenso”.

Isto foi o arranjo feito às escondidas entre os governos Trabalhista e Conservador e os cinco por cento que possuíam metade da riqueza de todo o Reino Unidos. O deputado trabalhista que se tornou homem dos media, Brian Walden, descreveu como isto funcionou. “Os das poltronas da frente [no Parlamento] gostavam uns dos outros e não gostavam dos seus pares nas poltronas de trás”, escreveu ele. “Nós éramos filhos do famoso consenso… ir da oposição para o governo fazia pouca diferença, pois acreditávamos nas mesmas coisas”.

Meu segundo filme para a televisão, feito para a Granada TV em Manchester, chamou-se “Conversações com um trabalhador”. Era a história de Jack Walker, trabalhador do tingimento de Keighley, no Yorkshire, cujo trabalho era monótono, sujo e maléfico para a sua saúde, mas ele daí retirava um orgulho em “fazer isto bem”. Jack acreditava apaixonadamente que o povo trabalhador deveria permanecer unido. Que a um sindicalista eloquente era permitido exprimir seus pontos de vista sem a intromissão daqueles que muitas vezes afirmam falar por ele, e preocupar-se em alta voz acerca da democracia costurada em Westminster ia além dos limites. A expressão “classe trabalhadora”, diziam-me, tinha “implicações políticas” e não seria aceitável para a Independent Television Authority. Teria de ser mudada para “património dos trabalhadores” (“working heritage”). A seguir havia o problema da palavra “o povo”. Isto era uma “expressão marxista” e também tinha de ser afastada. E o que era este “consenso”? Certamente, a Grã-Bretanha tinha um vibrante sistema de dois partidos.

Ao ler recentemente que 600 mil residentes na Grande Manchester estavam a “experimentar os efeitos da pobreza extrema” e que 1,6 milhão estavam a cair na penúria, recordei-me de como o consenso político ficou imutável. Dirigido agora pela classe sulista dos proprietários de terra (squirearchy) de David Cameron, George Osborne e os seus colegas etonianos, a única mudança é a ascensão da classe administradora de corporações, exemplificada pelo apoio de Ed Miliband à “austeridade” – o novo jargão para a pobreza imposta.

Na Clara Street, em Newcastle-upon-Tyne, no escuro invernal da madrugada, andei colina abaixo com pessoas que trabalhavam mais de 60 horas por semana por uma ninharia. Eles descreveram seus “ganhos” como o Serviço de Saúde. Tinham visto apenas um político na rua, um liberal que veio, afixou cartazes e disse algo inaudível do seu Land Rover e apressou-se a ir embora. A cantilena de Westminster era então “pagar nossas despesas como nação” e “produtividade”. Hoje, seus lugares de trabalho e sua protecção sindical, sempre ténue, foram-se. “O que está errado”, disse-me um homem na Clara Street, “é do que os políticos não querem mais falar. Os governos não se importam de como vivemos, porque não somos parte do seu país”.

21 de novembro de 2013

Os vazamentos de Snowden e o público

Alan Rusbridger

The New York Review of Books

Florian Schuh/dpa/Corbis

1.

Tradução / Conseguir destruir um computador MacBook Pro da Apple é mais complicado do que o leitor possa pensar à partida, pelo menos de acordo com parâmetros do Governo britânico. Se vivêssemos num mundo perfeito, os agentes do Governo que pretendessem destruir este tipo de máquinas optariam por mergulhá-las numa gigante misturadora de cozinha que as pudessem reduzir a pó. À falta de tal equipamento, o Guardian comprou um berbequim elétrico e uma trituradora a 20 de julho deste ano e — sob observação atenta de dois agentes do Estado – destruiu-as à obsolescência.

Fazia calor e havia muito pó na cave do Guardian naquele sábado, uma data que certamente merecerá nota de rodapé nalguma história que se possa escrever sobre como, em democracias modernas, os governos “colidem” com a imprensa. O Governo britânico já tinha decretado como “suficiente q.b.” o debate gerado em torno do material que tinha saído das fugas de informação de um antigo empregado da NSA, Edward Snowden. Se o Guardian se recusasse a devolver, ou a destruir, os documentos, eu, enquanto diretor do jornal, receberia uma notificação ou uma visita da polícia – na verdade, não me foi dito claramente qual das duas coisas iria na realidade acontecer. Mas, fosse qual fosse, o Estado revogava-se o direito de ameaçar a imprensa com restrições à divulgação de mais dados ou discussão sobre o tema, independentemente de ser do interesse público. É o tipo de situação que seria normal acontecer na Grã-Bretanha do século XVIII, mas não na dos dias de hoje.

Durante as nossas conversas com as autoridades governamentais até 20 de julho, tentamos fazê-los ver que, para além de estar por princípio errada, esta tentativa de amordaçar uma organização de mídia seria infrutífera. Havia, explicamos-lhes, cópias de toda a documentação de Snowden espalhadas por diversos países. Explicamos-lhes também que o Guardian estava a colaborar com outras organizações jornalísticas nos Estados Unidos. Glenn Greenwald, o primeiro jornalista a lidar com Snowden, vivia no Rio de Janeiro. A realizadora de cinema Laura Poitras, que também contatara com o ex-analista da NSA, tinha ainda mais material em Berlim. O que é que eles pensavam conseguir com a destruição de uns quantos discos rígidos em Londres?

Os homens do governo disseram estar “dolorosamente conscientes” de que existiam outras cópias mas que tinham instruções claras para fechar a operação do Guardian em Londres, destruindo os computadores que pudessem ter informação sobre Snowden. A um determinado ponto ainda suspeitei que os nossos interlocutores pudessem ter percebido que o jogo tinha mudado de mãos. A tecnologia que tanto entusiasma os fantasmas – e assegura a vigilância sobre milhares de milhões de vidas – é também uma tecnologia impossível de controlar ou conter. Mas burros velhos não aprendem – e lá teve de vir do tribunal a ordem para impedir a publicação de artigos sobre o tema. Tanto a Lei de Espionagem Americana de 1917 como a sua congênere britânica de 1911, cada qual devidamente ancorada em conspirações de guerra e na febre dos espiões, deixaram um longo rasto de sombra.

Os Estados Unidos têm as suas próprias dificuldades com os jornalistas e as suas fontes. Mas ainda assim têm um ambiente mais ameno para quem quer criar o tipo de debate sobre a segurança e a privacidade que todos parecem concordar ser desejável. A principal vantagem nos EUA é que, espero, é impensável o governo tentar impedir antecipadamente a publicação. A Constituição, a Primeira Emenda e a sentença do Supremo Tribunal sobre o caso dos Pentagon Papers, em 1971, desempenharam o seu papel na criação das proteções que faltam no Reino Unido. Jill Abramson, diretora do The New York Times, não vai ser obrigada a comprar trituradoras tão cedo.

***

E assim continuam as notícias, muitas delas editadas fora de Nova Iorque, tal como antes, pela nossa editora para os EUA, Janine Gibson. O que tem sido gradualmente revelado é que na última década os governos dos EUA e do Reino Unido, trabalhando em colaboração estreita, têm procurado colocar populações inteiras sob algum tipo de vigilância. O objetivo aparente é conseguir reunir e arquivar “todos os sinais o tempo todo” – ou seja, toda a vida digital, incluindo pesquisas na Internet, e todas as chamadas telefônicas, textos, emails, que fazemos e mandamos uns aos outros.

Uma parte disto são dados, outra parte são metadados – informação sobre quem mandou uma comunicação a quem, de onde para onde, e não sobre o conteúdo específico. Mas tal como disse Stewart Baker, antigo conselheiro geral da NSA, num debate recente em Nova Iorque, estas distinções são matreiras. “Os metadados dizem-nos absolutamente tudo sobre a vida de alguém”, afirmou com admirável candura. “Se tivermos metadados suficientes, não precisamos realmente de conteúdo... É até embaraçoso o quão previsíveis os seres humanos são.”

Começamos a ter uma ideia de como tudo se passa. A NSA e a sua congênere britânica, o GCHQ (Government Communication Headquarters), trabalham de perto com serviços de Internet e empresas de telecomunicações para reunir enormes quantidades de dados sobre nós. Uma parte desse trabalho faz-se de forma aberta – através de pedidos legais formais. Outra parte é feita a montante das empresas de tecnologia e de telefones – ou seja, interceptando os sinais em movimento. As agências colocaram sondas nos cabos transatlânticos, permitindo-lhes sugar dados de milhões de utilizadores nos dois lados do Atlântico. No ano passado, o GCHQ tinha em mãos 600 milhões de “acontecimentos telefônicos” por dia, gravações de mais de 200 cabos de fibra ótica e conseguia processar dados de 46 deles de uma só vez.

Também ficamos sabendo como as agências gastaram balúrdios de dinheiro para subverter a integridade da própria Internet – enfraquecendo a sua segurança de formas que deveriam preocupar todos os indivíduos, organismos públicos ou empresas que a utilizam. Um alçapão que permite a NSA entrar nas nossas mensagens é bastante passível de ser explorado por outros, concordam a maioria dos criptologistas. Se está nervoso por os seus detalhes bancários ou registos médicos estarem pairando online, provavelmente tem razões para estar.

***

Se, por exemplo, os chineses tivessem agido assim com a Internet e nas plataformas sociais usadas em todo o mundo, haveria uma fúria difícil de conter no Ocidente. Não admira que o fundador do Facebook, Mark Zuckerberg, não tenha ficado impressionado pelas garantias dadas repetidamente pelo Presidente Obama de que “não há espionagem sobre os americanos”. Isso, salientou ele, não serve de conforto aos empresários americanos que querem criar negócios globais.

Tudo isto está muito distante das origens das agências de espionagem modernas, muitas das quais, como as leis sobre segredos de Estado que as protegem, têm cerca de cem anos. No Reino Unido, começou com pele de sapatos – tentando apanhar espiões alemães que se infiltravam nos navios. Em muito pouco tempo, os espiões estavam tentando captar os novos sinais enviados pela Marconi sem fios. Os jornais dessa altura revelavam a profunda ignorância de governantes e deputados sobre as tecnologias emergentes. O mesmo é verdade hoje.

Durante a maior parte do século XX, a nossa imaginação acerca do que os espiões faziam deveu-se muito a Ian Fleming, John le Carré ou Robert Ludlum. Na maior parte das vezes, era um mundo de espião contra espião. Até agora, quando qualquer tecnologia está envolvida, estão também envolvidos as engenhocas – metralhadoras giroscópicas, impressões digitais falsas, cigarros com gás atordoante ou pasta de dentes explosiva.

A nossa imaginação não resiste a ser colorida por George Orwell, que não escreveu romances de espionagem mas construiu uma visão horrivelmente perturbadora de como as tecnologias que tudo observam podem levar as sociedades a lugares muito escuros. Muito mais recentemente, o filme alemão As Vidas dos Outros deu uma perspectiva assustadora dos horrores que a Stasi, da Alemanha de Leste, estava disposta a infligir a civis com as tecnologias disponíveis da década de 1980. O romance de Henry Porter de 2009, The Dying Light, foi profético na descrição de um mundo de vigilância britânica que ele teve grandes dificuldades em investigar.

Edward Snowden, um colaborador da NSA de 29 anos a viver no Havai, tinha uma visão mais actual da realidade das agências de espionagem – e que tem pouco que ver com o mundo do 007 ou de George Smiley. Ele tinha acesso a milhões de documentos altamente classificados e a relatórios tanto da NSA como do GCHQ. Evidentemente, aquilo que viu perturbou-o. “Mesmo que não estejamos a fazer nada de mal, estamos a ser observados e gravados”, disse ao Guardian quando se desmascarou como fonte do material, no início de Junho. Numa entrevista por vídeo, afirmou: “A capacidade de armazenamento de informação destes sistemas aumenta de ano para ano de forma consistente – nem é preciso fazermos nada de errado. Só precisamos de causar alguma suspeita em alguém, até através de um telefonema por engano. Então eles podem usar este sistema para recuar no tempo e escrutinar todas as decisões que alguma vez tomámos, todos os amigos com quem já tivemos uma conversa. E atacarem-nos com isso, lançando suspeitas sobre um inocente e apresentar qualquer pessoa como um criminoso.”

Snowden acrescentou, ao explicar a sua decisão de revelar aquilo que sabia, arcando com todas as consequências previsíveis para o resto da sua vida: “Apercebemo-nos de que este é o mundo que ajudámos a criar, e vai piorar com a próxima geração e a geração seguinte, que irá alargar as capacidades deste tipo de mecanismo de opressão.”

Na opinião de Snowden, as formas tradicionais de controlo – tribunais secretos unilaterais e comissões de inquérito parlamentares à porta fechada – são inadequadas, até porque apenas possuem uma informação parcial e fraco entendimento técnico e frequentemente são levadas ao engano. Talvez ele estivesse a pensar em momentos como aquele em que o director da National Intelligence James Clapper disse ao Congresso, em Março, que a NSA não coligiu intencionalmente “nenhum tipo de dados” sobre milhões de americanos. Revelou-se não ser verdade. Clapper disse mais tarde que a sua resposta foi “a resposta menos mentirosa” que foi capaz de dar. O que Orwell certamente consideraria uma resposta excelente.

Sem confiança nos tribunais ou no Congresso, Snowden virou-se para quem, em qualquer democracia moderna, está ali para descobrir a verdade, debater e responsabilizar as pessoas – os jornalistas. Quando Daniel Ellsberg deu a conhecer os Pentagon Papers, há mais de 40 anos, ele ou representantes seus foram ao Washington Post e ao New York Times. Hoje em dia, os informadores têm muito mais escolhas. Eles não precisam de “ir” realmente a lado nenhum: podem simplesmente ser eles a publicar. Apenas podemos especular sobre o que ia na cabeça de Snowden quando se preparava para revelar a Greenwald, Poitras e ao Guardian a maior cacha de material secreto alguma vez visto. Mas pode ser que tenha sido alguma coisa deste género:


  • O material será altamente complexo para quem está por fora. Uma equipa de pessoas precisará de milhares de horas para revelar a extensão total daquilo que eu quero que o mundo compreenda. Os jornais de referência às vezes fazem coisas deste género bastante bem.
  • Mas quero que isto seja tratado por pessoas que são apaixonadas e obsessivamente interessadas neste assunto. Pessoas que entenderão o seu verdadeiro significado, que investigarão o contexto legal e político, e que possam voltar repetida e forensicamente ao assunto, com profundidade e de forma abrangente. É isto que bloggers e realizadores de documentários especiais podem fazer bem.
  • O material é tão secreto e revelador que se estivesse nas mãos de uma única organização noticiosa esta ficaria sob uma enorme pressão, que poderia incluir ameaças criminais, legais e do Governo para que não publicasse o material, ou até para que o devolvesse. Os jornais já resistiram a pressões no passado, ou guardaram documentos confidenciais durante meses ou mesmo anos. Por isso, vou garantir que mais do que uma empresa jornalística o receberá.
  • Dispersão geográfica. Dadas as prováveis ameaças legais e pressão governamental, o ideal será ter os documentos em mais do que um país. Um jornal de referência “outsider” com historial de jornalismo de investigação seria interessante.


Qualquer que tenha sido o seu raciocínio, sabemos que Snowden fez uma escolha bastante esperta. Chegou, via Greenwald, ao Guardian, uma empresa jornalística com uma enorme audiência (o terceiro maior do mundo em leitores de inglês) e um historial de agregar algumas das mais formidáveis organizações e indivíduos. Partilhou outros documentos com Barton Gellman, do The Washington Post. E envolveu também dois jornalistas – Greenwald e Poitras – que não só viviam fora dos EUA como vinham de uma tradição jornalística completamente diferente.

O próprio Guardian tem um espaço editorial bastante distinto da maioria dos jornais. Os jornais ingleses cresceram com pouca reverência às noções de objectividade e imparcialidade que podem, bem ou mal, preocupar alguns dos seus colegas americanos. O jornal começou por chamar-se The Manchester Guardian – um forasteiro no mundo aconchegante de Fleet Street [em Londres, onde até há três décadas se concentravam os jornais nacionais]. Apesar de já há muito ter deixado cair o seu “Manchester” do cabeçalho, a sua mentalidade é ainda a de um estrangeiro – e é justo afirmar que é visto por alguns jornalistas britânicos com o tipo de desconfiança de que os membros de um clube sentem em relação a visitantes.

Também temos tido uma perspectiva diferente sobre as novas tecnologias que estão a avassalar radicalmente os actuais modelos editoriais e comerciais. Temos sido, acho, mais receptivos ao argumento de que os jornais podem dar uma cobertura melhor do mundo se juntarem as várias vozes – que nem por sombras serão todas de jornalistas convencionais – que agora são publicadas nas diferentes plataformas e com uma grande variedade de estilos.

Foi assim que Greenwald acabou por ir parar ao Guardian. Intrigou-nos este advogado transformado em blogger, frequentemente erudito, às vezes combativo, que conseguiu criar um grupo considerável de seguidores ao debruçar-se repetidamente sobre assuntos que tinham que ver com privacidade, liberdades civis, guerra e tecnologia. Alguns foram repelidos pelos odores do que diziam ser “activismo” ou “jornalismo de causas”. Nós não.

O filme da Dreamworks sobre Julian Assange e a WikiLeaks tem o nome engraçadinho de O Quinto Poder, evocando um estatuto quase oficial para as novas formas de imprensa digital que agora existem, que ultrapassam as fronteiras tradicionais do Quarto Poder. Greenwald não gosta muito de ser descrito como um membro do Quinto Poder – muito porque existe a tentativa recorrente de pessoas da política e do direito, e também do jornalismo, de limitar as protecções (por exemplo, sobre as fontes ou informação sigilosa) a pessoas que encaram como jornalistas de causas. Mas ele tem um pé em cada campo, no novo e no antigo.

Bill Keller, antigo diretor do The New York Times, confirmou à New Yorker em novembro que o seu jornal teria tido uma abordagem diferente à do Guardian no caso Snowden: “Se um dos nossos colunistas aparecesse com uma história desta magnitude – uma coisa que não se esgotaria na sua coluna de opinião –, nós iríamos entregá-la à nossa equipa de jornalistas. E escreveríamos no artigo ‘Nick Kristof obteve estes documentos’. Mas não íamos ter o Nick Kristof a escrever a história na primeira página do The New York Times.”

Bom, também tivemos os nossos jornalistas a trabalhar nos documentos de Snowden. Mas não impedimos Greenwald de aparecer nas páginas noticiosas. Para além de não usar as capacidades forenses e o conhecimento acumulado de Greenwald, essa demarcação iria reduzi-lo ao papel de mero fornecedor de material secreto, com todos os riscos legais potenciais e sem nenhuma da proteção que teria enquanto redator da peça.

A ironia é que é altamente improvável que Bill Keller alguma vez tivesse de enfrentar este dilema. Snowden – ao que parece deliberadamente – não deu os documentos ao New York Times, e é seguro que Greenwald nunca concordaria com as regras de base de Keller. Nada disto significa que o New York Times e outros não tenham feito um trabalho admirável sobre o material de Snowden. E também há editores britânicos que praticamente afirmaram que não cabe a um jornalista desafiar os serviços de segurança. Isto ajuda a explicar por que é que Greenwald – que anunciou a sua saída do Guardian para formar um grupo de jornalismo independente em formato digital, com um financiamento filantrópico – acabou por receber a maior fuga de informação secreta na História. Será fascinante observar esse grupo, apoiado por 250 milhões de dólares de um bilionário de Silicon Valley. Não é preciso muito para imaginar que será olhado com alguma ansiedade pelas altas instâncias da NSA e do GCHQ. Esta, pensarão alguns deles, é uma organização jornalística saída dos seus pesadelos.

2.

Mas voltemos à cave do The Guardian e ao trabalho sujo de destruir um computador. Por que é que estávamos ali?

Uma resposta plausível é aquela que o Governo deu: não é seguro para o Guardian examinar documentos altamente secretos num escritório do jornal, independentemente das precauções que tenhamos tomado. Nós percebemos este argumento: também não queríamos fugas acidentais de informação. Os agentes que nos deram sermões pareciam não ver a ironia (mais uma!) de que a única organização que perdeu totalmente o controlo dos seus dados não foi um jornal, foi a NSA. Um responsável fechou os olhos à ideia de 850 mil pessoas terem acesso a eles.

Mas, se isto tinha uma importância tão esmagadora, é preciso perguntarmos porque foram precisas cinco semanas para os melhores agentes de segurança do Estado chegarem aos escritórios do Guardian. E porque – quase três meses depois – ninguém da esfera oficial tornou “seguros” os documentos que o New York Times obteve do Guardian, já para não falar em contactar Greenwald, Poitras, o ProPublica, ou o escritório do Guardian em Nova Iorque.

Uma resposta mais plausível é que os serviços secretos britânicos simplesmente têm grandes dificuldades em lidar com jornalistas. O que, em si, é ilustrativo de um problema mais vasto sobre o equilíbrio entre vigilância e liberdades civis. Como é que se reconcilia uma coisa que deve ser secreta com outra que implora ser discutida?

Até há relativamente pouco tempo, era proibido mencionar o nome dos chefes dos serviços de espionagem britânicos. A imprensa britânica era então reunida num grupo — o sistema Defence Advisory (DA) Notice — no qual os editores podiam receber aconselhamento de forma não oficial sobre questões de segurança. O comandante da Força Aérea na reforma que o dirige afirma que entre 80 e 90% dos jornalistas não se importam de lhe entregar as cópias dos seus artigos antes de serem publicados.

Começámos a ter uma ideia de como tudo se passa. A NSA e a sua congénere britânica, o GCHQ, trabalham de perto com serviços de Internet e empresas de telecomunicações para reunir enormes quantidades de dados sobre nós. Uma parte desse trabalho faz-se de forma aberta — através de pedidos legais formais. Outra parte é feita a montante das empresas de tecnologia e de telefones — ou seja, interceptando os sinais em movimento

As duas principais agências de serviços secretos, o MI5 e o MI6, nunca farão comentários em on e preferem lidar com um ou dois jornalistas em cada organização de media – sempre numa base de anonimato. Sei que uma vez recusaram conversar com um jornalista que escrevia o que eles consideravam ser histórias insatisfatórias.

O GCHQ está ainda menos à vontade nas relações com a imprensa. Recentemente, a NSA não se importou de falar com a Der Spiegel. O GCHQ importa-se. Em 18 anos como director, nunca (que eu saiba) me encontrei com um responsável da agência.

O chefe de uma das outras agências disse-me uma vez: “Somos uma organização secreta. Não há nada que nos faça ser mais abertos em relação àquilo que fazemos. Não vemos necessidade de mudar.”

A necessidade de jogar com as cartas coladas ao peito parece espalhar-se ao Governo e até ao Conselho Nacional de Segurança (NSC) – que se reúne uma vez por semana e é chefiado pelo primeiro-ministro, e que se descreve como “o principal fórum de discussão colectiva dos objectivos do Governo para a segurança nacional”.

De acordo com o antigo ministro liberal democrata Chris Huhne, nem o Executivo nem o NSC foram informados dos programas Prism e Tempora revelados por Snowden. “O Executivo não recebeu nenhuma informação sobre... a capacidade extraordinária de sugar e armazenar emails pessoais, contactos por voz, actividade nas redes sociais e até pesquisas na Internet”, escreveu recentemente no Guardian.

O espanto de Huhne ao ler nos jornais sobre segredos que o Governo não partilhou foi ainda maior porque ele tinha feito parte de conversações sobre outro projecto de “supervigilância” – uma lei de dados de comunicações de muito menor envergadura. “Talvez”, especulou ele, “os segurançocratas pensassem que 1,8 mil milhões de libras era um preço modesto para duplicar o que eles já estavam a fazer”.

À medida que as revelações de Snowden continuavam, tornou-se evidente o quanto os serviços de segurança dependem da ajuda, oficial e não oficial, dos serviços comerciais que todos nós usamos – os operadores de Internet, as companhias de telefone e redes sociais. Tanto nos Estados Unidos como no Reino Unido, a bolha de secretismo legal que rodeia esta actividade é tal que nenhuma empresa ousa vir a público discutir as suas relações com os serviços secretos. É ilegal fazê-lo. Pelo que lhes toca, os Governos dos dois lados do Atlântico têm pânico que as empresas comerciais fujam caso os consumidores saibam o que têm feito com as suas informações.

Mas tive um encontro interessante (e que se manteve anónimo, claro) com alguém num cargo muito elevado numa megaempresa da costa Leste [dos EUA] que reconheceu que nem ele nem o CEO da sua organização tinham acesso às informações sobre que tipo de acordos a sua companhia fez com o Governo americano. “Então, é como uma empresa dentro da empresa?”, perguntei. Abanou a mão desdenhosamente: “Conheço o tipo, confio nele.”

Há muita confiança no mundo que Snowden revelou. Qualquer pessoa que use os serviços desta empresa em particular terá de confiar que um homem sem nome (que não é o CEO) tenha uma relação de integridade com o Governo (que pode não ser o Governo do cliente).

Outros documentos a que tivemos acesso mostram que algumas empresas foram “muito para além” daquilo a que legalmente estão obrigadas a fazer. E no Reino Unido temos de confiar num comité governamental cujos próprios membros não conhecem o programa de vigilância mais significativo de todos.

Não admira muito, portanto, que o Estado envie os seus agentes às redacções dos jornais para tentar convencer os directores a manterem bem controlados os seus jornalistas. E usam os argumentos que esperávamos deles: você terá sangue nas mãos porque o nosso mundo “vai ficar fora de controlo”.

O argumento de “ficar fora de controlo” foi dissecado com muita perícia por Peter Swire, que foi conselheiro para a privacidade da Casa Branca do Presidente Bill Clinton e que agora faz parte do painel de observação da NSA de Obama. Num ensaio publicado em 2011, refere que o FBI e a NSA têm protestado contra a perda das capacidades de vigilância – por causa de uma maior encriptação da Internet – desde a década de 1990.

Depois de explicar por que é que a encriptação é “vital para o crescimento económico, criatividade individual, operações governamentais e vários outros objectivos”, Swire sugere aos americanos que tratem estes protestos das agências governamentais com algum cepticismo: “Devido a mudanças tecnológicas, existem realmente formas que fazem com que agências judiciais e de segurança nacional percam capacidades específicas que antes tinham. Estas perdas específicas, no entanto, são amplamente ultrapassadas por outros ganhos. Os debates públicos devem reconhecer que estamos realmente na idade de ouro da vigilância. Ao entender isto, podemos rejeitar os pedidos de uma má política de encriptação. Devemos estudar uma vasta gama de propostas e construir uma infra-estrutura computacional e de comunicações mais segura.”

Isto é dito por um especialista em encriptação na Internet. Um editorial recente da Economist também viu o resultado alarmante das políticas da NSA para enfraquecer a integridade da própria Internet: “Qualquer subversão deliberada de sistemas criptográficos feita pela NSA é simplesmente uma péssima ideia e deve acabar. Isso dificultaria a vida aos infiltrados [agentes dos governos], é verdade, mas há muitas outras técnicas que eles podem usar que não reduzem a segurança da Internet para todos os seus utilizadores, prejudicam a reputação da indústria tecnológica americana e deixam o Governo visto como indigno de confiança e hipócrita.”

Tenho de confessar uma coisa: não fui eu quem apanhou aquela história – de como as agências judiciais estão a tentar pôr em risco as capacidades privadas de encriptação – que vinha nos documentos GCHQ/NSA; e mesmo quando ela me foi explicada por jovens repórteres especialistas em tecnologia que detectaram a sua relevância, eu não a entendi imediatamente.

Foi embaraçoso: tive de fazer um desenho como se fosse uma criança para confirmar aquilo que eu achava que me estavam a dizer o Jeff Larson, um repórter da ProPublica e especialista em Web, e o James Ball, o nosso jornalista de 27 anos barra em tecnologia.

Será que os deputados e congressistas têm uma ideia mais elaborada daquilo que a tecnologia é agora capaz? Conseguem eles, como reguladores, decifrar também estes documentos? Há semanas fiz esta pergunta a outro membro sénior do Governo britânico que tinha seguido vagamente as histórias de Snowden e que a principal experiência em serviços secretos datava da década de 1970. “O problema com os deputados”, admitiu, “é que a maioria de nós não percebe realmente a Internet.”

Será que os deputados e congressistas têm uma ideia mais elaborada daquilo que a tecnologia é agora capaz? Conseguem eles, como reguladores, decifrar também estes documentos?

Voltamos à questão da confiança. Na ausência de jornais para encontrar, analisar e explicar este tipo de coisas, temos de nos apoiar em comités parlamentares ou congressistas, ou tribunais secretos, para nos fazerem esse trabalho.

Nos Estados Unidos, estamos sobretudo nas mãos da senadora Dianne Feinstein e, no Reino Unido, de Malcolm Rifkind, antigo ministro da Defesa. Nenhum deles é, para dizer o mínimo, um filho da era digital. Posso não estar a ajudar Feinstein e Rifkind, mas suspeito de que eles teriam tido dificuldades em entender os documentos que o Jeff decifrou, com ou sem o meu desenho para os ajudar. Ainda há ecos, 100 anos depois, de burocratas terem tentado pôr as mãos nos sinais sem fios de Marconi.

Os documentos de Snowden mostram que a NSA e o GCHQ empregam engenheiros extremamente talentosos e inventivos na criação de formas cada vez mais exóticas de catalogar incontáveis milhões de pessoas. Questionar, e sobretudo noticiar, os seus métodos leva à resposta habitual de que estamos a mostrar o jogo ao inimigo. Os infiltrados insistem que actuam dentro da lei. Explicam pacientemente a diferença entre um palheiro – que eles têm de poder arquivar – e uma agulha, que podem procurar sem quaisquer restrições.

Ninguém tem dúvidas de que o seu trabalho é fundamental. Precisamos de agências de serviços secretos capazes. As democracias liberais têm realmente inimigos determinados e com recursos. Existe uma tensão entre o secretismo que envolve o trabalho de espionagem e a transparência que, em tudo o resto, as democracias exigem. O jornalismo cuidadoso e responsável também é necessário. The Guardian, The Washington Post, ProPublica, e The New York Times tiveram de ser extremamente cautelosos com o material de Snowden. Em privado – e inevitavelmente não em público –, as pessoas familiarizadas com a natureza dos documentos reconhecem isto. (Vale a pena notar que numa entrevista recente ao New York Times, Snowden negou ter levado documentos com ele para a Rússia, acrescentando: “Há 0% de hipóteses de os russos ou os chineses terem recebido quaisquer documentos.” Recentemente, a Reuters confirmou que os governantes americanos não têm provas de que o material de Snowden tenha ido parar a algum desses países.)

A razão pela qual estes assuntos são importantes é que, à medida que a tecnologia se desenvolve, a polícia e as agências de serviços secretos (e outras) quererão sempre mais e maiores palheiros – e a capacidade de os guardar por mais tempo; e a capacidade de criar algoritmos espantosamente poderosos para encontrar as agulhas.

No Reino Unido, existe, como foi referido, outro programa de vigilância prestes a ficar pronto – mas felizmente ainda não activo – que dará ao ministro do Interior poderes para ordenar a retenção de qualquer tipo de comunicação ou dados por parte de qualquer fornecedor de comunicações (CSP, na sigla inglesa) até 12 meses. Isto inclui, pela primeira vez, detalhes de mensagens enviadas pelos media sociais, webmail, Skype e outras chamadas feitas através da Internet, e sites de jogos, tal como detectar todos os emails, textos e utilizações telefónicas. E inclui também dados sobre quem mandou a quem, de onde e quando.

De acordo com a proposta, a polícia, serviços de segurança, autoridades tributárias e várias outras instituições públicas não precisarão de mandado judicial para pedir ao CSP que entregue as informações.

A lei pretende “antever” outras formas de tecnologia. E tudo isto está em sintonia com o que o GCHQ já faz. Vários políticos seniores britânicos protestaram recentemente por não terem sido informados sobre as capacidades das agências de serviços secretos, queixando-se de que a informação não foi dada nem mesmo àqueles que estavam encarregues de escrutinar os pedidos para possibilidades ainda mais intrusivas.

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Sem um debate agora, é difícil ver o que impedirá o negócio da espionagem de continuar a exigir mais. Estima-se que existem cerca de cinco milhões de câmaras CCTV no Reino Unido. É garantidamente só uma questão de tempo antes de alguém sugerir ligar essas câmaras a software de reconhecimento facial (de um tipo que até o Google actualmente receia difundir) e talvez até a microfones para que também possam captar as conversas.

Irá permitir, argumentarão provavelmente, que os tipos bons possam apanhar os tipos maus e talvez impedir outro ataque terrorista em território britânico. E certamente alguém dirá a um futuro director: “Escreva sobre isso e terá sangue nas mãos. Os terroristas vão começar a evitar as ruas principais e outros locais com CCTV. O nosso mundo está a ficar fora de controlo."

Engenheiros talentosos estarão sempre à frente das leis. Foi revelador o quão perturbado ficou o autor da Patriot Act, o congressista Jim Sensenbrenner, pelas revelações feitas pelo Guardian de ordens ultra-secretas para que se reunissem todas as chamadas feitas pelos assinantes da Verizon [prestadora de serviços de telecomunicações]. Não era isso que ele pretendia há 12 anos, quando redigiu a lei, afirmou. Escreveu imediatamente ao Attorney General Eric Holder a protestar: “Estou extremamente perturbado pela interpretação que o FBI fez desta legislação… Captar registos telefónicos de milhões de pessoas inocentes é excessivo e antiamericano.”

Por que é que, que se saiba, os tribunais FISA [Foreign Intelligence Surveillance Act, criados para avaliar pedidos de mandados de vigilância nos EUA] não manifestaram preocupações sobre estas ordens que, podemos inferir, aprovaram repetidamente (aparentemente, protestaram com a expressão “de fachada”)? Por que não há sinais de desconforto no senador Feinstein? Os tribunais FISA vão mudar o seu comportamento agora que o homem que escreveu a lei disse que a sua intenção não era esta? Alguma vez saberemos?

Vários intelectuais e advogados estão extremamente cépticos que as actuais medidas de controlo funcionem. O antigo juiz do Tribunal de Recurso Sir Stephen Sedley descreveu o seu desespero numa edição recente da London Review of Books: “Um regime de vigilância instituída rodeado de secretismo parte de um modelo constitucional que levou alguns de nós a questionar se a separação tripartida de poderes – legislativo, judicial e executivo – convencionalmente saídos de Locke, Montesquieu e Madison ainda tem valor.

“O regime de segurança consegue hoje em muitas democracias exercer algum poder sobre os outros braços do Estado, aproximando-se da autonomia: procurando legislação que dê prioridade aos seus próprios interesses sobre os direitos individuais, dominando os decisores executivos, mantendo os seus críticos de fora do processo judicial e actuando de forma praticamente imune ao escrutínio público.

“O uso arbitrário de poderes de detenção, buscas e interrogatório criado pelo Terrorism Act (pré-11 de Setembro), que recentemente fez manchetes com a detenção de David Miranda [companheiro de Greenwald] em Heathrow, ilustra uma mudança de longo prazo sobre o que é constitucionalmente permitido, e o que é constitucionalmente aceitável. A primeira pode ser uma questão para o Parlamento, mas a última ainda é uma questão para todos nós.”

Acho que ele tem razão.

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