Alan Rusbridger
The New York Review of Books
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Florian Schuh/dpa/Corbis |
1.
Tradução / Conseguir destruir um computador MacBook Pro da Apple é mais complicado do que o leitor possa pensar à partida, pelo menos de acordo com parâmetros do Governo britânico. Se vivêssemos num mundo perfeito, os agentes do Governo que pretendessem destruir este tipo de máquinas optariam por mergulhá-las numa gigante misturadora de cozinha que as pudessem reduzir a pó. À falta de tal equipamento, o Guardian comprou um berbequim elétrico e uma trituradora a 20 de julho deste ano e — sob observação atenta de dois agentes do Estado – destruiu-as à obsolescência.
Fazia calor e havia muito pó na cave do Guardian naquele sábado, uma data que certamente merecerá nota de rodapé nalguma história que se possa escrever sobre como, em democracias modernas, os governos “colidem” com a imprensa. O Governo britânico já tinha decretado como “suficiente q.b.” o debate gerado em torno do material que tinha saído das fugas de informação de um antigo empregado da NSA, Edward Snowden. Se o Guardian se recusasse a devolver, ou a destruir, os documentos, eu, enquanto diretor do jornal, receberia uma notificação ou uma visita da polícia – na verdade, não me foi dito claramente qual das duas coisas iria na realidade acontecer. Mas, fosse qual fosse, o Estado revogava-se o direito de ameaçar a imprensa com restrições à divulgação de mais dados ou discussão sobre o tema, independentemente de ser do interesse público. É o tipo de situação que seria normal acontecer na Grã-Bretanha do século XVIII, mas não na dos dias de hoje.
Durante as nossas conversas com as autoridades governamentais até 20 de julho, tentamos fazê-los ver que, para além de estar por princípio errada, esta tentativa de amordaçar uma organização de mídia seria infrutífera. Havia, explicamos-lhes, cópias de toda a documentação de Snowden espalhadas por diversos países. Explicamos-lhes também que o Guardian estava a colaborar com outras organizações jornalísticas nos Estados Unidos. Glenn Greenwald, o primeiro jornalista a lidar com Snowden, vivia no Rio de Janeiro. A realizadora de cinema Laura Poitras, que também contatara com o ex-analista da NSA, tinha ainda mais material em Berlim. O que é que eles pensavam conseguir com a destruição de uns quantos discos rígidos em Londres?
Os homens do governo disseram estar “dolorosamente conscientes” de que existiam outras cópias mas que tinham instruções claras para fechar a operação do Guardian em Londres, destruindo os computadores que pudessem ter informação sobre Snowden. A um determinado ponto ainda suspeitei que os nossos interlocutores pudessem ter percebido que o jogo tinha mudado de mãos. A tecnologia que tanto entusiasma os fantasmas – e assegura a vigilância sobre milhares de milhões de vidas – é também uma tecnologia impossível de controlar ou conter. Mas burros velhos não aprendem – e lá teve de vir do tribunal a ordem para impedir a publicação de artigos sobre o tema. Tanto a Lei de Espionagem Americana de 1917 como a sua congênere britânica de 1911, cada qual devidamente ancorada em conspirações de guerra e na febre dos espiões, deixaram um longo rasto de sombra.
Os Estados Unidos têm as suas próprias dificuldades com os jornalistas e as suas fontes. Mas ainda assim têm um ambiente mais ameno para quem quer criar o tipo de debate sobre a segurança e a privacidade que todos parecem concordar ser desejável. A principal vantagem nos EUA é que, espero, é impensável o governo tentar impedir antecipadamente a publicação. A Constituição, a Primeira Emenda e a sentença do Supremo Tribunal sobre o caso dos Pentagon Papers, em 1971, desempenharam o seu papel na criação das proteções que faltam no Reino Unido. Jill Abramson, diretora do The New York Times, não vai ser obrigada a comprar trituradoras tão cedo.
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E assim continuam as notícias, muitas delas editadas fora de Nova Iorque, tal como antes, pela nossa editora para os EUA, Janine Gibson. O que tem sido gradualmente revelado é que na última década os governos dos EUA e do Reino Unido, trabalhando em colaboração estreita, têm procurado colocar populações inteiras sob algum tipo de vigilância. O objetivo aparente é conseguir reunir e arquivar “todos os sinais o tempo todo” – ou seja, toda a vida digital, incluindo pesquisas na Internet, e todas as chamadas telefônicas, textos, emails, que fazemos e mandamos uns aos outros.
Uma parte disto são dados, outra parte são metadados – informação sobre quem mandou uma comunicação a quem, de onde para onde, e não sobre o conteúdo específico. Mas tal como disse Stewart Baker, antigo conselheiro geral da NSA, num debate recente em Nova Iorque, estas distinções são matreiras. “Os metadados dizem-nos absolutamente tudo sobre a vida de alguém”, afirmou com admirável candura. “Se tivermos metadados suficientes, não precisamos realmente de conteúdo... É até embaraçoso o quão previsíveis os seres humanos são.”
Começamos a ter uma ideia de como tudo se passa. A NSA e a sua congênere britânica, o GCHQ (Government Communication Headquarters), trabalham de perto com serviços de Internet e empresas de telecomunicações para reunir enormes quantidades de dados sobre nós. Uma parte desse trabalho faz-se de forma aberta – através de pedidos legais formais. Outra parte é feita a montante das empresas de tecnologia e de telefones – ou seja, interceptando os sinais em movimento. As agências colocaram sondas nos cabos transatlânticos, permitindo-lhes sugar dados de milhões de utilizadores nos dois lados do Atlântico. No ano passado, o GCHQ tinha em mãos 600 milhões de “acontecimentos telefônicos” por dia, gravações de mais de 200 cabos de fibra ótica e conseguia processar dados de 46 deles de uma só vez.
Também ficamos sabendo como as agências gastaram balúrdios de dinheiro para subverter a integridade da própria Internet – enfraquecendo a sua segurança de formas que deveriam preocupar todos os indivíduos, organismos públicos ou empresas que a utilizam. Um alçapão que permite a NSA entrar nas nossas mensagens é bastante passível de ser explorado por outros, concordam a maioria dos criptologistas. Se está nervoso por os seus detalhes bancários ou registos médicos estarem pairando online, provavelmente tem razões para estar.
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Se, por exemplo, os chineses tivessem agido assim com a Internet e nas plataformas sociais usadas em todo o mundo, haveria uma fúria difícil de conter no Ocidente. Não admira que o fundador do Facebook, Mark Zuckerberg, não tenha ficado impressionado pelas garantias dadas repetidamente pelo Presidente Obama de que “não há espionagem sobre os americanos”. Isso, salientou ele, não serve de conforto aos empresários americanos que querem criar negócios globais.
Tudo isto está muito distante das origens das agências de espionagem modernas, muitas das quais, como as leis sobre segredos de Estado que as protegem, têm cerca de cem anos. No Reino Unido, começou com pele de sapatos – tentando apanhar espiões alemães que se infiltravam nos navios. Em muito pouco tempo, os espiões estavam tentando captar os novos sinais enviados pela Marconi sem fios. Os jornais dessa altura revelavam a profunda ignorância de governantes e deputados sobre as tecnologias emergentes. O mesmo é verdade hoje.
Durante a maior parte do século XX, a nossa imaginação acerca do que os espiões faziam deveu-se muito a Ian Fleming, John le Carré ou Robert Ludlum. Na maior parte das vezes, era um mundo de espião contra espião. Até agora, quando qualquer tecnologia está envolvida, estão também envolvidos as engenhocas – metralhadoras giroscópicas, impressões digitais falsas, cigarros com gás atordoante ou pasta de dentes explosiva.
A nossa imaginação não resiste a ser colorida por George Orwell, que não escreveu romances de espionagem mas construiu uma visão horrivelmente perturbadora de como as tecnologias que tudo observam podem levar as sociedades a lugares muito escuros. Muito mais recentemente, o filme alemão As Vidas dos Outros deu uma perspectiva assustadora dos horrores que a Stasi, da Alemanha de Leste, estava disposta a infligir a civis com as tecnologias disponíveis da década de 1980. O romance de Henry Porter de 2009, The Dying Light, foi profético na descrição de um mundo de vigilância britânica que ele teve grandes dificuldades em investigar.
Edward Snowden, um colaborador da NSA de 29 anos a viver no Havai, tinha uma visão mais actual da realidade das agências de espionagem – e que tem pouco que ver com o mundo do 007 ou de George Smiley. Ele tinha acesso a milhões de documentos altamente classificados e a relatórios tanto da NSA como do GCHQ. Evidentemente, aquilo que viu perturbou-o. “Mesmo que não estejamos a fazer nada de mal, estamos a ser observados e gravados”, disse ao Guardian quando se desmascarou como fonte do material, no início de Junho. Numa entrevista por vídeo, afirmou: “A capacidade de armazenamento de informação destes sistemas aumenta de ano para ano de forma consistente – nem é preciso fazermos nada de errado. Só precisamos de causar alguma suspeita em alguém, até através de um telefonema por engano. Então eles podem usar este sistema para recuar no tempo e escrutinar todas as decisões que alguma vez tomámos, todos os amigos com quem já tivemos uma conversa. E atacarem-nos com isso, lançando suspeitas sobre um inocente e apresentar qualquer pessoa como um criminoso.”
Snowden acrescentou, ao explicar a sua decisão de revelar aquilo que sabia, arcando com todas as consequências previsíveis para o resto da sua vida: “Apercebemo-nos de que este é o mundo que ajudámos a criar, e vai piorar com a próxima geração e a geração seguinte, que irá alargar as capacidades deste tipo de mecanismo de opressão.”
Na opinião de Snowden, as formas tradicionais de controlo – tribunais secretos unilaterais e comissões de inquérito parlamentares à porta fechada – são inadequadas, até porque apenas possuem uma informação parcial e fraco entendimento técnico e frequentemente são levadas ao engano. Talvez ele estivesse a pensar em momentos como aquele em que o director da National Intelligence James Clapper disse ao Congresso, em Março, que a NSA não coligiu intencionalmente “nenhum tipo de dados” sobre milhões de americanos. Revelou-se não ser verdade. Clapper disse mais tarde que a sua resposta foi “a resposta menos mentirosa” que foi capaz de dar. O que Orwell certamente consideraria uma resposta excelente.
Sem confiança nos tribunais ou no Congresso, Snowden virou-se para quem, em qualquer democracia moderna, está ali para descobrir a verdade, debater e responsabilizar as pessoas – os jornalistas. Quando Daniel Ellsberg deu a conhecer os Pentagon Papers, há mais de 40 anos, ele ou representantes seus foram ao Washington Post e ao New York Times. Hoje em dia, os informadores têm muito mais escolhas. Eles não precisam de “ir” realmente a lado nenhum: podem simplesmente ser eles a publicar. Apenas podemos especular sobre o que ia na cabeça de Snowden quando se preparava para revelar a Greenwald, Poitras e ao Guardian a maior cacha de material secreto alguma vez visto. Mas pode ser que tenha sido alguma coisa deste género:
- O material será altamente complexo para quem está por fora. Uma equipa de pessoas precisará de milhares de horas para revelar a extensão total daquilo que eu quero que o mundo compreenda. Os jornais de referência às vezes fazem coisas deste género bastante bem.
- Mas quero que isto seja tratado por pessoas que são apaixonadas e obsessivamente interessadas neste assunto. Pessoas que entenderão o seu verdadeiro significado, que investigarão o contexto legal e político, e que possam voltar repetida e forensicamente ao assunto, com profundidade e de forma abrangente. É isto que bloggers e realizadores de documentários especiais podem fazer bem.
- O material é tão secreto e revelador que se estivesse nas mãos de uma única organização noticiosa esta ficaria sob uma enorme pressão, que poderia incluir ameaças criminais, legais e do Governo para que não publicasse o material, ou até para que o devolvesse. Os jornais já resistiram a pressões no passado, ou guardaram documentos confidenciais durante meses ou mesmo anos. Por isso, vou garantir que mais do que uma empresa jornalística o receberá.
- Dispersão geográfica. Dadas as prováveis ameaças legais e pressão governamental, o ideal será ter os documentos em mais do que um país. Um jornal de referência “outsider” com historial de jornalismo de investigação seria interessante.
Qualquer que tenha sido o seu raciocínio, sabemos que Snowden fez uma escolha bastante esperta. Chegou, via Greenwald, ao Guardian, uma empresa jornalística com uma enorme audiência (o terceiro maior do mundo em leitores de inglês) e um historial de agregar algumas das mais formidáveis organizações e indivíduos. Partilhou outros documentos com Barton Gellman, do The Washington Post. E envolveu também dois jornalistas – Greenwald e Poitras – que não só viviam fora dos EUA como vinham de uma tradição jornalística completamente diferente.
O próprio Guardian tem um espaço editorial bastante distinto da maioria dos jornais. Os jornais ingleses cresceram com pouca reverência às noções de objectividade e imparcialidade que podem, bem ou mal, preocupar alguns dos seus colegas americanos. O jornal começou por chamar-se The Manchester Guardian – um forasteiro no mundo aconchegante de Fleet Street [em Londres, onde até há três décadas se concentravam os jornais nacionais]. Apesar de já há muito ter deixado cair o seu “Manchester” do cabeçalho, a sua mentalidade é ainda a de um estrangeiro – e é justo afirmar que é visto por alguns jornalistas britânicos com o tipo de desconfiança de que os membros de um clube sentem em relação a visitantes.
Também temos tido uma perspectiva diferente sobre as novas tecnologias que estão a avassalar radicalmente os actuais modelos editoriais e comerciais. Temos sido, acho, mais receptivos ao argumento de que os jornais podem dar uma cobertura melhor do mundo se juntarem as várias vozes – que nem por sombras serão todas de jornalistas convencionais – que agora são publicadas nas diferentes plataformas e com uma grande variedade de estilos.
Foi assim que Greenwald acabou por ir parar ao Guardian. Intrigou-nos este advogado transformado em blogger, frequentemente erudito, às vezes combativo, que conseguiu criar um grupo considerável de seguidores ao debruçar-se repetidamente sobre assuntos que tinham que ver com privacidade, liberdades civis, guerra e tecnologia. Alguns foram repelidos pelos odores do que diziam ser “activismo” ou “jornalismo de causas”. Nós não.
O filme da Dreamworks sobre Julian Assange e a WikiLeaks tem o nome engraçadinho de O Quinto Poder, evocando um estatuto quase oficial para as novas formas de imprensa digital que agora existem, que ultrapassam as fronteiras tradicionais do Quarto Poder. Greenwald não gosta muito de ser descrito como um membro do Quinto Poder – muito porque existe a tentativa recorrente de pessoas da política e do direito, e também do jornalismo, de limitar as protecções (por exemplo, sobre as fontes ou informação sigilosa) a pessoas que encaram como jornalistas de causas. Mas ele tem um pé em cada campo, no novo e no antigo.
Bill Keller, antigo diretor do The New York Times, confirmou à New Yorker em novembro que o seu jornal teria tido uma abordagem diferente à do Guardian no caso Snowden: “Se um dos nossos colunistas aparecesse com uma história desta magnitude – uma coisa que não se esgotaria na sua coluna de opinião –, nós iríamos entregá-la à nossa equipa de jornalistas. E escreveríamos no artigo ‘Nick Kristof obteve estes documentos’. Mas não íamos ter o Nick Kristof a escrever a história na primeira página do The New York Times.”
Bom, também tivemos os nossos jornalistas a trabalhar nos documentos de Snowden. Mas não impedimos Greenwald de aparecer nas páginas noticiosas. Para além de não usar as capacidades forenses e o conhecimento acumulado de Greenwald, essa demarcação iria reduzi-lo ao papel de mero fornecedor de material secreto, com todos os riscos legais potenciais e sem nenhuma da proteção que teria enquanto redator da peça.
A ironia é que é altamente improvável que Bill Keller alguma vez tivesse de enfrentar este dilema. Snowden – ao que parece deliberadamente – não deu os documentos ao New York Times, e é seguro que Greenwald nunca concordaria com as regras de base de Keller. Nada disto significa que o New York Times e outros não tenham feito um trabalho admirável sobre o material de Snowden. E também há editores britânicos que praticamente afirmaram que não cabe a um jornalista desafiar os serviços de segurança. Isto ajuda a explicar por que é que Greenwald – que anunciou a sua saída do Guardian para formar um grupo de jornalismo independente em formato digital, com um financiamento filantrópico – acabou por receber a maior fuga de informação secreta na História. Será fascinante observar esse grupo, apoiado por 250 milhões de dólares de um bilionário de Silicon Valley. Não é preciso muito para imaginar que será olhado com alguma ansiedade pelas altas instâncias da NSA e do GCHQ. Esta, pensarão alguns deles, é uma organização jornalística saída dos seus pesadelos.
2.
Mas voltemos à cave do The Guardian e ao trabalho sujo de destruir um computador. Por que é que estávamos ali?
Uma resposta plausível é aquela que o Governo deu: não é seguro para o Guardian examinar documentos altamente secretos num escritório do jornal, independentemente das precauções que tenhamos tomado. Nós percebemos este argumento: também não queríamos fugas acidentais de informação. Os agentes que nos deram sermões pareciam não ver a ironia (mais uma!) de que a única organização que perdeu totalmente o controlo dos seus dados não foi um jornal, foi a NSA. Um responsável fechou os olhos à ideia de 850 mil pessoas terem acesso a eles.
Mas, se isto tinha uma importância tão esmagadora, é preciso perguntarmos porque foram precisas cinco semanas para os melhores agentes de segurança do Estado chegarem aos escritórios do Guardian. E porque – quase três meses depois – ninguém da esfera oficial tornou “seguros” os documentos que o New York Times obteve do Guardian, já para não falar em contactar Greenwald, Poitras, o ProPublica, ou o escritório do Guardian em Nova Iorque.
Uma resposta mais plausível é que os serviços secretos britânicos simplesmente têm grandes dificuldades em lidar com jornalistas. O que, em si, é ilustrativo de um problema mais vasto sobre o equilíbrio entre vigilância e liberdades civis. Como é que se reconcilia uma coisa que deve ser secreta com outra que implora ser discutida?
Até há relativamente pouco tempo, era proibido mencionar o nome dos chefes dos serviços de espionagem britânicos. A imprensa britânica era então reunida num grupo — o sistema Defence Advisory (DA) Notice — no qual os editores podiam receber aconselhamento de forma não oficial sobre questões de segurança. O comandante da Força Aérea na reforma que o dirige afirma que entre 80 e 90% dos jornalistas não se importam de lhe entregar as cópias dos seus artigos antes de serem publicados.
Começámos a ter uma ideia de como tudo se passa. A NSA e a sua congénere britânica, o GCHQ, trabalham de perto com serviços de Internet e empresas de telecomunicações para reunir enormes quantidades de dados sobre nós. Uma parte desse trabalho faz-se de forma aberta — através de pedidos legais formais. Outra parte é feita a montante das empresas de tecnologia e de telefones — ou seja, interceptando os sinais em movimento
As duas principais agências de serviços secretos, o MI5 e o MI6, nunca farão comentários em on e preferem lidar com um ou dois jornalistas em cada organização de media – sempre numa base de anonimato. Sei que uma vez recusaram conversar com um jornalista que escrevia o que eles consideravam ser histórias insatisfatórias.
O GCHQ está ainda menos à vontade nas relações com a imprensa. Recentemente, a NSA não se importou de falar com a Der Spiegel. O GCHQ importa-se. Em 18 anos como director, nunca (que eu saiba) me encontrei com um responsável da agência.
O chefe de uma das outras agências disse-me uma vez: “Somos uma organização secreta. Não há nada que nos faça ser mais abertos em relação àquilo que fazemos. Não vemos necessidade de mudar.”
A necessidade de jogar com as cartas coladas ao peito parece espalhar-se ao Governo e até ao Conselho Nacional de Segurança (NSC) – que se reúne uma vez por semana e é chefiado pelo primeiro-ministro, e que se descreve como “o principal fórum de discussão colectiva dos objectivos do Governo para a segurança nacional”.
De acordo com o antigo ministro liberal democrata Chris Huhne, nem o Executivo nem o NSC foram informados dos programas Prism e Tempora revelados por Snowden. “O Executivo não recebeu nenhuma informação sobre... a capacidade extraordinária de sugar e armazenar emails pessoais, contactos por voz, actividade nas redes sociais e até pesquisas na Internet”, escreveu recentemente no Guardian.
O espanto de Huhne ao ler nos jornais sobre segredos que o Governo não partilhou foi ainda maior porque ele tinha feito parte de conversações sobre outro projecto de “supervigilância” – uma lei de dados de comunicações de muito menor envergadura. “Talvez”, especulou ele, “os segurançocratas pensassem que 1,8 mil milhões de libras era um preço modesto para duplicar o que eles já estavam a fazer”.
À medida que as revelações de Snowden continuavam, tornou-se evidente o quanto os serviços de segurança dependem da ajuda, oficial e não oficial, dos serviços comerciais que todos nós usamos – os operadores de Internet, as companhias de telefone e redes sociais. Tanto nos Estados Unidos como no Reino Unido, a bolha de secretismo legal que rodeia esta actividade é tal que nenhuma empresa ousa vir a público discutir as suas relações com os serviços secretos. É ilegal fazê-lo. Pelo que lhes toca, os Governos dos dois lados do Atlântico têm pânico que as empresas comerciais fujam caso os consumidores saibam o que têm feito com as suas informações.
Mas tive um encontro interessante (e que se manteve anónimo, claro) com alguém num cargo muito elevado numa megaempresa da costa Leste [dos EUA] que reconheceu que nem ele nem o CEO da sua organização tinham acesso às informações sobre que tipo de acordos a sua companhia fez com o Governo americano. “Então, é como uma empresa dentro da empresa?”, perguntei. Abanou a mão desdenhosamente: “Conheço o tipo, confio nele.”
Há muita confiança no mundo que Snowden revelou. Qualquer pessoa que use os serviços desta empresa em particular terá de confiar que um homem sem nome (que não é o CEO) tenha uma relação de integridade com o Governo (que pode não ser o Governo do cliente).
Outros documentos a que tivemos acesso mostram que algumas empresas foram “muito para além” daquilo a que legalmente estão obrigadas a fazer. E no Reino Unido temos de confiar num comité governamental cujos próprios membros não conhecem o programa de vigilância mais significativo de todos.
Não admira muito, portanto, que o Estado envie os seus agentes às redacções dos jornais para tentar convencer os directores a manterem bem controlados os seus jornalistas. E usam os argumentos que esperávamos deles: você terá sangue nas mãos porque o nosso mundo “vai ficar fora de controlo”.
O argumento de “ficar fora de controlo” foi dissecado com muita perícia por Peter Swire, que foi conselheiro para a privacidade da Casa Branca do Presidente Bill Clinton e que agora faz parte do painel de observação da NSA de Obama. Num ensaio publicado em 2011, refere que o FBI e a NSA têm protestado contra a perda das capacidades de vigilância – por causa de uma maior encriptação da Internet – desde a década de 1990.
Depois de explicar por que é que a encriptação é “vital para o crescimento económico, criatividade individual, operações governamentais e vários outros objectivos”, Swire sugere aos americanos que tratem estes protestos das agências governamentais com algum cepticismo: “Devido a mudanças tecnológicas, existem realmente formas que fazem com que agências judiciais e de segurança nacional percam capacidades específicas que antes tinham. Estas perdas específicas, no entanto, são amplamente ultrapassadas por outros ganhos. Os debates públicos devem reconhecer que estamos realmente na idade de ouro da vigilância. Ao entender isto, podemos rejeitar os pedidos de uma má política de encriptação. Devemos estudar uma vasta gama de propostas e construir uma infra-estrutura computacional e de comunicações mais segura.”
Isto é dito por um especialista em encriptação na Internet. Um editorial recente da Economist também viu o resultado alarmante das políticas da NSA para enfraquecer a integridade da própria Internet: “Qualquer subversão deliberada de sistemas criptográficos feita pela NSA é simplesmente uma péssima ideia e deve acabar. Isso dificultaria a vida aos infiltrados [agentes dos governos], é verdade, mas há muitas outras técnicas que eles podem usar que não reduzem a segurança da Internet para todos os seus utilizadores, prejudicam a reputação da indústria tecnológica americana e deixam o Governo visto como indigno de confiança e hipócrita.”
Tenho de confessar uma coisa: não fui eu quem apanhou aquela história – de como as agências judiciais estão a tentar pôr em risco as capacidades privadas de encriptação – que vinha nos documentos GCHQ/NSA; e mesmo quando ela me foi explicada por jovens repórteres especialistas em tecnologia que detectaram a sua relevância, eu não a entendi imediatamente.
Foi embaraçoso: tive de fazer um desenho como se fosse uma criança para confirmar aquilo que eu achava que me estavam a dizer o Jeff Larson, um repórter da ProPublica e especialista em Web, e o James Ball, o nosso jornalista de 27 anos barra em tecnologia.
Será que os deputados e congressistas têm uma ideia mais elaborada daquilo que a tecnologia é agora capaz? Conseguem eles, como reguladores, decifrar também estes documentos? Há semanas fiz esta pergunta a outro membro sénior do Governo britânico que tinha seguido vagamente as histórias de Snowden e que a principal experiência em serviços secretos datava da década de 1970. “O problema com os deputados”, admitiu, “é que a maioria de nós não percebe realmente a Internet.”
Será que os deputados e congressistas têm uma ideia mais elaborada daquilo que a tecnologia é agora capaz? Conseguem eles, como reguladores, decifrar também estes documentos?
Voltamos à questão da confiança. Na ausência de jornais para encontrar, analisar e explicar este tipo de coisas, temos de nos apoiar em comités parlamentares ou congressistas, ou tribunais secretos, para nos fazerem esse trabalho.
Nos Estados Unidos, estamos sobretudo nas mãos da senadora Dianne Feinstein e, no Reino Unido, de Malcolm Rifkind, antigo ministro da Defesa. Nenhum deles é, para dizer o mínimo, um filho da era digital. Posso não estar a ajudar Feinstein e Rifkind, mas suspeito de que eles teriam tido dificuldades em entender os documentos que o Jeff decifrou, com ou sem o meu desenho para os ajudar. Ainda há ecos, 100 anos depois, de burocratas terem tentado pôr as mãos nos sinais sem fios de Marconi.
Os documentos de Snowden mostram que a NSA e o GCHQ empregam engenheiros extremamente talentosos e inventivos na criação de formas cada vez mais exóticas de catalogar incontáveis milhões de pessoas. Questionar, e sobretudo noticiar, os seus métodos leva à resposta habitual de que estamos a mostrar o jogo ao inimigo. Os infiltrados insistem que actuam dentro da lei. Explicam pacientemente a diferença entre um palheiro – que eles têm de poder arquivar – e uma agulha, que podem procurar sem quaisquer restrições.
Ninguém tem dúvidas de que o seu trabalho é fundamental. Precisamos de agências de serviços secretos capazes. As democracias liberais têm realmente inimigos determinados e com recursos. Existe uma tensão entre o secretismo que envolve o trabalho de espionagem e a transparência que, em tudo o resto, as democracias exigem. O jornalismo cuidadoso e responsável também é necessário. The Guardian, The Washington Post, ProPublica, e The New York Times tiveram de ser extremamente cautelosos com o material de Snowden. Em privado – e inevitavelmente não em público –, as pessoas familiarizadas com a natureza dos documentos reconhecem isto. (Vale a pena notar que numa entrevista recente ao New York Times, Snowden negou ter levado documentos com ele para a Rússia, acrescentando: “Há 0% de hipóteses de os russos ou os chineses terem recebido quaisquer documentos.” Recentemente, a Reuters confirmou que os governantes americanos não têm provas de que o material de Snowden tenha ido parar a algum desses países.)
A razão pela qual estes assuntos são importantes é que, à medida que a tecnologia se desenvolve, a polícia e as agências de serviços secretos (e outras) quererão sempre mais e maiores palheiros – e a capacidade de os guardar por mais tempo; e a capacidade de criar algoritmos espantosamente poderosos para encontrar as agulhas.
No Reino Unido, existe, como foi referido, outro programa de vigilância prestes a ficar pronto – mas felizmente ainda não activo – que dará ao ministro do Interior poderes para ordenar a retenção de qualquer tipo de comunicação ou dados por parte de qualquer fornecedor de comunicações (CSP, na sigla inglesa) até 12 meses. Isto inclui, pela primeira vez, detalhes de mensagens enviadas pelos media sociais, webmail, Skype e outras chamadas feitas através da Internet, e sites de jogos, tal como detectar todos os emails, textos e utilizações telefónicas. E inclui também dados sobre quem mandou a quem, de onde e quando.
De acordo com a proposta, a polícia, serviços de segurança, autoridades tributárias e várias outras instituições públicas não precisarão de mandado judicial para pedir ao CSP que entregue as informações.
A lei pretende “antever” outras formas de tecnologia. E tudo isto está em sintonia com o que o GCHQ já faz. Vários políticos seniores britânicos protestaram recentemente por não terem sido informados sobre as capacidades das agências de serviços secretos, queixando-se de que a informação não foi dada nem mesmo àqueles que estavam encarregues de escrutinar os pedidos para possibilidades ainda mais intrusivas.
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Sem um debate agora, é difícil ver o que impedirá o negócio da espionagem de continuar a exigir mais. Estima-se que existem cerca de cinco milhões de câmaras CCTV no Reino Unido. É garantidamente só uma questão de tempo antes de alguém sugerir ligar essas câmaras a software de reconhecimento facial (de um tipo que até o Google actualmente receia difundir) e talvez até a microfones para que também possam captar as conversas.
Irá permitir, argumentarão provavelmente, que os tipos bons possam apanhar os tipos maus e talvez impedir outro ataque terrorista em território britânico. E certamente alguém dirá a um futuro director: “Escreva sobre isso e terá sangue nas mãos. Os terroristas vão começar a evitar as ruas principais e outros locais com CCTV. O nosso mundo está a ficar fora de controlo."
Engenheiros talentosos estarão sempre à frente das leis. Foi revelador o quão perturbado ficou o autor da Patriot Act, o congressista Jim Sensenbrenner, pelas revelações feitas pelo Guardian de ordens ultra-secretas para que se reunissem todas as chamadas feitas pelos assinantes da Verizon [prestadora de serviços de telecomunicações]. Não era isso que ele pretendia há 12 anos, quando redigiu a lei, afirmou. Escreveu imediatamente ao Attorney General Eric Holder a protestar: “Estou extremamente perturbado pela interpretação que o FBI fez desta legislação… Captar registos telefónicos de milhões de pessoas inocentes é excessivo e antiamericano.”
Por que é que, que se saiba, os tribunais FISA [Foreign Intelligence Surveillance Act, criados para avaliar pedidos de mandados de vigilância nos EUA] não manifestaram preocupações sobre estas ordens que, podemos inferir, aprovaram repetidamente (aparentemente, protestaram com a expressão “de fachada”)? Por que não há sinais de desconforto no senador Feinstein? Os tribunais FISA vão mudar o seu comportamento agora que o homem que escreveu a lei disse que a sua intenção não era esta? Alguma vez saberemos?
Vários intelectuais e advogados estão extremamente cépticos que as actuais medidas de controlo funcionem. O antigo juiz do Tribunal de Recurso Sir Stephen Sedley descreveu o seu desespero numa edição recente da London Review of Books: “Um regime de vigilância instituída rodeado de secretismo parte de um modelo constitucional que levou alguns de nós a questionar se a separação tripartida de poderes – legislativo, judicial e executivo – convencionalmente saídos de Locke, Montesquieu e Madison ainda tem valor.
“O regime de segurança consegue hoje em muitas democracias exercer algum poder sobre os outros braços do Estado, aproximando-se da autonomia: procurando legislação que dê prioridade aos seus próprios interesses sobre os direitos individuais, dominando os decisores executivos, mantendo os seus críticos de fora do processo judicial e actuando de forma praticamente imune ao escrutínio público.
“O uso arbitrário de poderes de detenção, buscas e interrogatório criado pelo Terrorism Act (pré-11 de Setembro), que recentemente fez manchetes com a detenção de David Miranda [companheiro de Greenwald] em Heathrow, ilustra uma mudança de longo prazo sobre o que é constitucionalmente permitido, e o que é constitucionalmente aceitável. A primeira pode ser uma questão para o Parlamento, mas a última ainda é uma questão para todos nós.”
Acho que ele tem razão.