27 de novembro de 2013

Descobrir o poder da história do povo - e porque hoje ela é temida

John Pilger

New Statesman

Tradução / A Inglaterra é dois países. Um é dominado por Londres, o outro permanece na sua sombra. Quando cheguei da Austrália pela primeira vez, parecia que ninguém ia ao Norte de Watford e aqueles que haviam emigrado do Norte esforçavam-se arduamente por mudar suas pronúncias, encobrir suas origens e aprender os maneirismos e códigos das satisfeitas classes sulistas. Alguns zombavam da vida que haviam deixado para trás. Estavam a mudar de classe, ou assim pensavam.

Quando o Daily Mirror enviou-me em reportagem ao Norte, na década de 1960, meus colegas em Londres divertiram-se com o meu desterro para os antípodas, o seu equivalente da Sibéria. Na verdade, foi o pior Inverno em 200 anos e eu nunca usara um cachecol ou possuira um casaco. Tente imaginar o que é aquilo como a mais sombria Leeds e Hull, advertiram.

Era um tempo em que, segundo se dizia, os trabalhadores na Inglaterra “falavam alto”, até mesmo “tomavam o comando”. Filmes realistas estavam a ser rodados e pronúncias que antes não eram bem vindas nos media e em secções do negócio do entretenimento agora aparentemente eram procuradas, embora muitas vezes como caricaturas.

Durante aquela primeira viagem ao Norte, quando parei para abastecer de gasolina, não consegui entender o que disse o homem; dentro de semanas, o que as pessoas diziam parecia-me perfeitamente claro. Eles eram uma outra nação com uma história diferente, diferentes lealdades, humor diferente, mesmo valores diferentes. No cerne disto estava a política de classe. Transpondo os Pennines, o Império vinha abaixo. As paixões imperiais do Sul mal se manifestavam. Em Merseyside e Tyneside, excepto entre os notáveis habituais, ninguém se importava com a realeza. Havia o um-por-todos-e-todos-por-um de uma sociedade da classe trabalhadora – a menos, como se tornou penosamente claro em anos posteriores – que acontecesse você ser negro ou mulato. Aquela solidariedade era, para mim, a notícia, como se fosse o capítulo em falta no património político da Inglaterra, uma história do povo dos tempos modernos, omitida por Thatcher e Blair e ainda temida pelas suas repercussões.

Eu já havia vislumbrado o poder desta solidariedade no lugar onde cresceram meus pais e conhecia-a enquanto rapaz: a região mineira do Hunter Valley, no Novo País de Gales. Aqui, todos os mineiros do carvão haviam sido despedidos de Yorkshire, Tyneside e Durham. “Observe-os, eles são comunistas”, ouvi alguém dizer. Eles eram combatentes pela decência da classe trabalhadora: pagamento adequado, segurança e solidariedade. Os galeses eram iguais. Traziam consigo os sofrimentos físicos e mentais e a raiva daqueles que haviam industrializado o mundo e ganhavam pouco excepto a perdurável solidariedade de uns com os outros.

O Mirror publicou minhas reportagens de vidas de trabalhadores: mineiros a trabalharem em poços de menos de um metro, trabalhadores do aço no calor inimaginável. Eu encontrava uma rua, virtualmente qualquer rua, e batia às portas. O que me intrigava então era que tal calor humano e auto-domínio pudessem sobreviver no trabalho monótono das cidades nortistas. Além disso, a grande tradição radical de resistência no Norte – desde os trabalhadores do algodão do século XIX até a Grande Greve dos Mineiros de 1984-85 – sempre ameaçou o jogo que em Londres é conhecido como “o consenso”.

Isto foi o arranjo feito às escondidas entre os governos Trabalhista e Conservador e os cinco por cento que possuíam metade da riqueza de todo o Reino Unidos. O deputado trabalhista que se tornou homem dos media, Brian Walden, descreveu como isto funcionou. “Os das poltronas da frente [no Parlamento] gostavam uns dos outros e não gostavam dos seus pares nas poltronas de trás”, escreveu ele. “Nós éramos filhos do famoso consenso… ir da oposição para o governo fazia pouca diferença, pois acreditávamos nas mesmas coisas”.

Meu segundo filme para a televisão, feito para a Granada TV em Manchester, chamou-se “Conversações com um trabalhador”. Era a história de Jack Walker, trabalhador do tingimento de Keighley, no Yorkshire, cujo trabalho era monótono, sujo e maléfico para a sua saúde, mas ele daí retirava um orgulho em “fazer isto bem”. Jack acreditava apaixonadamente que o povo trabalhador deveria permanecer unido. Que a um sindicalista eloquente era permitido exprimir seus pontos de vista sem a intromissão daqueles que muitas vezes afirmam falar por ele, e preocupar-se em alta voz acerca da democracia costurada em Westminster ia além dos limites. A expressão “classe trabalhadora”, diziam-me, tinha “implicações políticas” e não seria aceitável para a Independent Television Authority. Teria de ser mudada para “património dos trabalhadores” (“working heritage”). A seguir havia o problema da palavra “o povo”. Isto era uma “expressão marxista” e também tinha de ser afastada. E o que era este “consenso”? Certamente, a Grã-Bretanha tinha um vibrante sistema de dois partidos.

Ao ler recentemente que 600 mil residentes na Grande Manchester estavam a “experimentar os efeitos da pobreza extrema” e que 1,6 milhão estavam a cair na penúria, recordei-me de como o consenso político ficou imutável. Dirigido agora pela classe sulista dos proprietários de terra (squirearchy) de David Cameron, George Osborne e os seus colegas etonianos, a única mudança é a ascensão da classe administradora de corporações, exemplificada pelo apoio de Ed Miliband à “austeridade” – o novo jargão para a pobreza imposta.

Na Clara Street, em Newcastle-upon-Tyne, no escuro invernal da madrugada, andei colina abaixo com pessoas que trabalhavam mais de 60 horas por semana por uma ninharia. Eles descreveram seus “ganhos” como o Serviço de Saúde. Tinham visto apenas um político na rua, um liberal que veio, afixou cartazes e disse algo inaudível do seu Land Rover e apressou-se a ir embora. A cantilena de Westminster era então “pagar nossas despesas como nação” e “produtividade”. Hoje, seus lugares de trabalho e sua protecção sindical, sempre ténue, foram-se. “O que está errado”, disse-me um homem na Clara Street, “é do que os políticos não querem mais falar. Os governos não se importam de como vivemos, porque não somos parte do seu país”.

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