27 de fevereiro de 2013

Neoimperialismo e a arrogância da ignorância

Muitos norte-americanos não veem o quão profundamente os EUA estão-se envolvendo militarmente no turbilhão de conflitos que varrem a África Saariana e Subsaariana.

Franklin C. Spinney

Time

Um fuzileiro naval da 24ª Unidade Expedicionária de Fuzileiros Navais participa de um jogo de guerra enquanto treina nas montanhas costeiras de Djibuti no outono passado. Africom photo / Staff Sergeant Robert L. Fisher III

Tradução / Embora relatos recentes tendam a concentrar-se na tentativa dos franceses para expulsar para fora do Mali a Al Qaeda no Maghreb Islâmico [Al Qaeda in Islamic Maghreb (AQIM) – esforço que pode já se estar convertendo em complexa guerra de guerrilhas, a operação francesa não passa de versão, em pleno século 21, de disputa, à maneira do século 19, pelos recursos da África. É política que, do ponto de vista dos EUA, relaciona-se, bem provavelmente, ao “pivô em direção à China”, dado o crescimento do mercado e a presença chinesa na África no campo da ajuda humanitária. Juntos, a disputa feroz e o “pivô” bastarão para desencadear no Pentágono um movimento de sequestro, no curto prazo, de todos os conflitos, com a correspondente cascata de dinheiro antevista no longo prazo.

Ano passado, Craig Whitlock do Washington Post ofereceu um mosaico do envolvimento dos EUA na África. Publicou uma série de excelentes reportagens. O mapa aqui apresentado (ver mapa abaixo) é uma espécie de resumo das matérias de Whitlock (e outros), com informes para serem distribuídos às populações muçulmanas na África Central.

Considerem-se as distâncias envolvidas nesse enxame de bases (os pontos vermelhos): só a distância entre as bases distribuídas no eixo noroeste-sudoeste no continente africano é maior que a distância entre New York e Los Angeles. Considerem-se as diferenças étnicas e tribais entre Burkina Faso e Quênia, para nem falar das diferenças internas, dentro desses países. E lembrem que praticamente todo o norte da África, do Marrocos ao Egito, é mais de 90% muçulmano.

Por mais que a correlação entre populações muçulmanas e as atividades de intervenção norte-americana nesse mosaico de diferenças culturais sugira um leque de diferentes mensagens para diferentes públicos, só uma generalização é absolutamente garantida, dada a história recente das intervenções norte-americanas: a presença continuada e o envolvimento crescente do Comando dos EUA na África, AFRICOM, só fará inflamar cada vez mais o relacionamento dos EUA com o Islã militante e, talvez, também com número imensamente maior de islamistas moderados.

Mas consideremos outras possibilidades, para que a loucura se generalize. Por exemplo: considerado o resultado da recente aventura líbia, os islamistas de mentalidade conspiracionista do norte da África (e – porque não? –, também muitos moderados), com queda para ler tendências no formato das nuvens, bem poderão interpretar a corrente de bases do AFRICOM na África Subsaariana como os tijolos iniciais de um covil gigante, que lá estará para acomodar uma nova geração de neocolonialistas europeus, que atacarão do norte, obedecendo à doutrina do presidente Obama que manda “liderar pela retaguarda”. Claro, dadas as distâncias envolvidas e a porosidade que aquelas distâncias implicam, tais divagações de mentes paranóicas não passam de tolices, de um ponto de vista militar.

Mas, se se considera a trilha de mentiras assassinas que os EUA deixaram no Iraque; de incompetência, no Afeganistão; e de arrogante indiferença à sorte dos palestinos, que os EUA comprovaram, ao construir processos de paz que só facilitaram o crescimento de colônias israelenses ilegais, num roubo continuado de terras, por Israel, que se arrasta já por 40 anos, esse tipo de caracterização será moída no moinho da propaganda, como reles fulminações de mentes paranoicas. E, lembre: você é paranoico, mas, nem por isso, os EUA deixarão de sair, armados até os dentes, para acabar com você.

Outro sentido da natureza metastática do envolvimento dos EUA na África pode ser inferido da carregada, terrorista-cêntrica, embora cuidadosamente construída verborragia das “respostas preparadas” que o general de exército David M. Rodriguez entregou à Comissão dos Serviços Armados do Senado, como material de apoio ao que disse, dia 12/2/2013, ao ser confirmado como novo comandante do Comando dos EUA na África, Africom. Convido os leitores a, pelo menos, passar os olhos naquele documento revelador.

As “ameaças” terroristas na África Subsaariana, evidentemente tão tentadoras para os neoimperialistas do Africom, não existem isoladamente. Todas são intimamente conectadas à insatisfação étnico/tribal na África – tema ao qual Rodriguez alude, mas que absolutamente não analisa; nem o general nem seus ‘sabatinadores’ senatoriais, naquele jogo cuidadosamente coreografado de perguntas e respostas.

Muitas dessas tensões, por exemplo, são, em parte, legado das fronteiras artificiais criadas pelos intervencionistas europeus no século 19. Aqueles intervencionistas deliberadamente traçaram fronteiras para misturar grupos étnicos, tribais e religiosos; assim contavam facilitar as políticas coloniais de “dividir para governar”. Os colonialistas do século 19 seguidamente exacerbaram deliberadamente as animosidades locais, impondo grupos minoritários em posições política e economicamente vantajosas, o que fazia crescer as ondas de descontentamento e revide. Stálin, aliás, usou a mesma estratégia nos anos 1920s e 1930s para controlar as repúblicas soviéticas muçulmanas, na região antes conhecida como Turquestão, na Ásia Central. Na URSS, o posicionamento dessas fronteiras artificiais entre aqueles novos “-stões” era amplamente conhecido como “pílulas de veneno” de Stálin.

A crise dos reféns na usina de gás no leste da Argélia, em janeiro passado, ilustra algumas dessas complexidades de profundas raízes culturais que sempre há nesses conflitos. Akbar Ahmed escreveu sobre isso, em mais um de uma série de ensaios fascinantes publicados por Al-jazeera. Essa série de matérias – que considero muito importantes – baseiam-se nas pesquisas para seu novo livro, no prelo, The Thistle and the Drone: How America’s War on Terror Became a War on Tribal Islam [O cacto/cardo e o drone: como a Guerra ao Terror, dos EUA, converteu-se em guerra contra o Islã tribal], a ser publicado em março, nos EUA, pela Brookings Institution Press.

O embaixador Akbar Ahmed é ex-alto comissário do Paquistão no Reino Unido, e ocupa agora a cátedra, apropriadamente batizada Cátedra Ibn Khaldun de Estudos Islâmicos da American University em Washington, D.C. Considerado um dos pais da moderna historiografia e das ciências sociais, Ibn Khaldum é um dos especialistas mais influentes, no campo da historiografia, na natureza espontânea do tribalismo e de seu papel na construção da coesão social. O núcleo duro do trabalho do professor Ahmed acompanha essa inspiração. Visa a explicar porque a insatisfação espalha-se tão amplamente em todo o antigo mundo colonial, e como, parcialmente, tem raízes numa complexa história da opressão de grupos étnicos e em rivalidades tribais, em toda aquela região. Assim se criou uma teia de tensões entre os fracos governos centrais dos países ex-colônias e os grupos e tribos minoritários que os cercam.

Ahmed diz que essas tensões foram exacerbadas pela resposta militar que os EUA deram ao 11/9. Explica por que as intervenções militares pelos EUA e outras potências europeias ex-coloniais só farão crescer a tensão que já existe entre os governos centrais daqueles países e os grupos oprimidos.

Dentre outras coisa, Ahmed, talvez inadvertidamente, constrói uma crítica devastadora ao fracasso dos EUA, que não souberam respeitar os critérios de qualquer grande estratégia sensível, na reação ao 11/9. Ao confundir um crime horrendo, com ato de guerra, e declarar guerra global ao terror, sem final previsto; e ao conduzir aquela guerra nos termos de uma grande estratégica classicamente falhada, que assumia que “quem não está conosco está contra nós”, os EUA não apenas criaram inimigos que se multiplicam mais depressa do que seria possível matá-los; também, ao fazê-lo, os EUA, sem avaliar qualquer consequência, exacerbaram conflitos locais altamente voláteis, incrivelmente complexos, de raízes locais profundíssimas; assim, os EUA contribuíram para desestabilizar porções gigantescas da Ásia e da África.

Sem avaliar consequências? É dizer pouco. Considere, leitor, o seguinte: muitos leitores, aqui, já ouviram falar de AQIM e, provavelmente, também dos tuaregues. Mas quantos algum dia ouviram falar dos berberes cabila e de sua história na Argélia? (Eu, nunca.) Pois, como ensina o professor Ahmed, os berberes cabila são os fundadores da AQIM – fundação que tem raízes profundas nos seus padecimentos históricos. Assim sendo, a AQIM é mais do que simples ‘desdobramento’ da al-Qaeda.

Nada disso aparece nas respostas do general Rodriguez, apesar de fazer repetidas referências à AQIM e à Argélia. Tampouco se aprenderão essas coisas daqueles senadores, ou de suas perguntas.

Pode-se confirmar pessoalmente, em casa.

Faça uma pesquisa de palavras no “pacote de perguntas e respostas” do general Rodriguez: ninguém jamais encontrará ali nem vestígios da complexa história que Ahmed explica em seu ensaio para Aljazeera, “The Kabyle Berbers, AQIM, and the search for peace in Algeria” [Os berberes cabila, AQIM e a busca de paz na Argélia]. (Tente, por exemplo, encontrar as palavras AQIM, Kabyle, Berber, history, Tuareg, tribe, tribal conflict, culture, etc. Ou use a própria imaginação).

Além de perceber o muito que não se discutiu, observe também como o contexto centrado em ameaças que cerca todas as palavras sempre salta à vista. Compare a esterilidade de tudo que Rodriguez diz e a riqueza da análise de Ahmed. E tire suas próprias conclusões. E lembre: “AQIM” é apenas um dos verbetes, no portfólio de ameaças com que o AFRICOM trabalha. E o quanto nós não sabemos, sobre os outros verbetes?

Como Robert Asprey mostrou em seu clássico War in the Shadows [Guerra nas sombras], em que estuda 2000 anos da história das guerras de guerrilha, o erro mais frequente, sempre cometido por quem pretenda intervir, vindo de fora, numa guerra de guerrilha, é sucumbir à tentação de deixar que a “arrogância da ignorância” modele seus esforços militares e políticos.

Apesar de a arrogância da ignorância já afirmada e reafirmada no Vietnã, no Afeganistão, no Iraque e na Líbia... já começa a parecer que a conclusão intemporal de Asprey será mais uma vez reafirmada na África.

Sobre o autor

Franklin “Chuck” Spinney é ex-analista militar do Pentágono, autor incluído na coletânea Hopeless: Barack Obama and the Politics of Illusion [Sem esperança: Barack Obama e a política da ilusão], publicada por AK Press.

25 de fevereiro de 2013

O princípio do fim da pobreza

Ainda há muito a ser feito, mas o Brasil avança bastante rápido no combate à miséria. O Cadastro Único tem sido importante nesse caminho 

Tereza Campello e Marcelo Neri 


Ilustração: Visca

A última década testemunhou queda inédita na desigualdade de renda brasileira, que atingiu o menor nível da série histórica, iniciada em 1960. 

Neste ínterim, houve conquistas em várias dimensões do desenvolvimento humano, como queda de 47% da mortalidade infantil, três anos mais de expectativa de vida, aceleração da escolaridade com ganhos de qualidade a partir de 2005, geração de duas vezes mais empregos formais a partir de 2004. 

A pobreza caiu 58% de 2003 a 2011, velocidade três vezes superior àquela prevista no primeiro e principal objetivo do desenvolvimento do milênio da ONU. 

A queda da pobreza foi propulsionada pela criação do Bolsa Família, em 2003. Mesmo sendo um dos mais bem focalizados no mundo, o programa teve de se reinventar para fazer frente aos desafios do Brasil Sem Miséria. A superação da extrema pobreza até 2014 constitui o lema e a principal meta do governo federal.

O primeiro passo nessa direção foi a definição de uma linha de extrema pobreza. O parâmetro usado foi a linha da ONU, de US$ 1,25, correspondendo a renda mensal de R$ 70 por pessoa em junho de 2011, quando o Brasil Sem Miséria foi lançado. O desafio brasileiro é, em quatro anos, superar a miséria em termos de renda, enquanto a ONU propõe a cada país percorrer a metade desse trajeto em 25 anos.

Desde 2011, aperfeiçoamentos no Bolsa Família reforçaram as transferências, especialmente com o novo benefício cujo valor varia de acordo com o déficit de renda de cada família. Quem tem menos renda recebe mais, possibilitando superar a extrema pobreza ao menor custo fiscal possível. Não há caminho mais curto para o fim da miséria no que diz respeito à renda. 

Estudos do Ipea mostram que, a despeito das características que diferenciam censo, PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) e Cadastro Único, todos eles mostrarão uma diminuição vigorosa da pobreza extrema a partir da instituição do Brasil Sem Miséria.

A estruturação do Cadastro Único para Programas Sociais, ocorrida entre 2003 e 2011, com a inclusão de 70 milhões de pessoas, permitiu ao poder público não só implementar o Bolsa Família mas saber quem são, como vivem e onde moram os mais pobres dentre os brasileiros. 

Além de abrir caminho para que recebessem transferências de renda, o cadastro permitiu priorizá-los no acesso a serviços públicos como creches, cursos profissionalizantes, serviços de assistência técnica e extensão rural, cobertura de água e tarifas reduzidas de energia elétrica, entre outros. Mais do que contar pobres, os pobres passaram a contar mais no desenho das políticas públicas brasileiras. 

Além de usar o Cadastro Único como via expressa para levar políticas públicas aos mais pobres, houve empenho redobrado em incluir as famílias que, tendo o perfil requerido, ainda não faziam parte dele. Desde junho de 2011, a busca ativa possibilitou a entrada de 791 mil famílias extremamente pobres no Bolsa Família. Estima-se ser necessário encontrar mais 700 mil para atingir plena cobertura. 

No próximo mês, alcançaremos um objetivo que já pareceu impossível. O Bolsa Família vai garantir a todos os seus beneficiários renda de pelo menos R$ 70. Com mais essa medida, 22 milhões de pessoas terão saído da extrema pobreza desde o lançamento do Plano Brasil Sem Miséria. Do ponto de vista da renda, não haverá mais pobreza extrema no universo do Bolsa Família. 

Mas ainda há muito por fazer nos campos da própria renda, do trabalho, da saúde, da educação, da infraestrutura e da moradia, entre outros desafios. O que está acontecendo agora é apenas um começo. 

Sobre os autores

Tereza Campello, 50, é ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome 

Marcelo Neri, 49, é presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

8 de fevereiro de 2013

Comunismo: Um gigantesco processo de emancipação ainda longe de concluído

Domenico Losurdo



Continuo a julgar correta a visão da ideologia alemã, segundo a qual o comunismo é sobretudo "o movimento real que abole o atual estado de coisas". Observemos as mutações que se verificaram no mundo a partir da primeira revolução que se reclamou de Marx e Engels. Antes de outubro de 1917 não havia democracia, mesmo no Ocidente: era o reino das três grandes discriminações para com as mulheres, as classes subalternas, os povos coloniais e de origem colonial.

Com fevereiro e outubro de 1917, a Rússia revolucionária reconheceu às mulheres direitos políticos ativos e passivos. A República de Weimar (nascida da revolução que explodiu na Alemanha um ano após a revolução de Outubro) tomou o mesmo caminho, seguido pelos Estados Unidos. É certo que na Itália, Alemanha, Áustria e Inglaterra o sufrágio universal (masculino) estava mais ou menos afirmado, mas ficava neutralizado por uma Câmara alta que permanecia o apanágio da nobreza e da grande burguesia.

A discriminação racial apresentava-se sob uma forma dupla: considerados como indignos de se constituírem como Estado nacional independente, os povos coloniais eram submetidos à dominação absoluta das grandes potências. Num país como os EUA, os afro-americanos eram excluídos dos direitos políticos (e por vezes mesmo dos direitos cívicos). A ultrapassagem da discriminação racial sob estes dois aspectos não pode ser pensada sem o capítulo da história aberto por outubro de 1917. O papel desempenhado pelos Partidos Comunistas nas revoluções anti-coloniais é notável. E no que se refere aos Estados Unidos? Em dezembro de 1952, o ministro da Justiça enviava ao Tribunal Supremo, ocupada a discutir a questão da integração nas escolas públicas, uma carta eloquente: "A discriminação racial leva a água ao moinho da propaganda comunista". O desafio comunista desempenhou um papel essencial igualmente na ultrapassagem do regime da supremacia branca.

Os direitos sociais e econômicos fazem parte da democracia tal como a esquerda a entende. E foi este patriarca do neoliberalismo, Hayek, que denunciou o fato de que a teorização e a presença no Ocidente destes direitos remetiam à influência, por ele considerada nefasta, da "revolução marxista russa".

Compreende-se portanto que, à atenuação do desafio comunista, corresponda no Ocidente uma restauração. Não se trata só do desmantelamento do Estado social. O peso da riqueza é tão forte que, mesmo nas colunas do New York Times, podem-se ler denúncias considerando que o regime em vigor nos Estados Unidos assemelha-se mais a uma "plutocracia" do que à democracia. A contra-revolução é evidente igualmente nos caso do colonialismo, reavaliada pelo teórico da "sociedade aberta", Karl Popper: "Nós libertamos estes Estados (as antigas colónias) muito apressadamente e de modo demasiado simplista".

Vejamos, em sentido contrário, o que se passa num país continente que ficou sob a direção do Partido Comunista. Pondo fim à catástrofe provocada pelas guerras do ópio e a agressão colonialista, a China devolveu a centenas de milhões de pessoas o primeiro dos direitos do homem, a saber, o direito à vida. O Estado social começa aqui a dar os seus primeiros passos, ao passo que doravante ele é renegado no Ocidente, inclusive no plano teórico.

Mas isto não é tudo: ao reduzir rapidamente seu atraso tecnológico em relação aos países capitalistas mais avançados, a China põe fim à "era de Colombo", que havia começado com a descoberta-conquista da América e que viu o Ocidente sujeitar o planeta inteiro. Vêem-se criar as condições para frustrar as tentações colonialistas e democratizar as relações internacionais. O declínio da doutrina Monroe, à qual a revolução cubana infligiu pela primeira vez um golpe severo, está lá para confirmar.

Como acontece muitas vezes com revoluções, aquela principiada há aproximadamente um século seguiu um percurso completamente imprevisto. Estamos em todo caso na presença de um gigantesco processo de emancipação que está bem longe de ter chegado à sua conclusão.

Domenico Losurdo é filósofo e professor da Universidade de Urbino, Itália.

3 de fevereiro de 2013

Boa conta, sem truques, inclui mais parâmetros além da renda

Lena Lavinas


Para 69,4% dos brasileiros, a linha de indigência fixada em R$ 70 mensais para identificar quem é a população miserável é de valor muito baixo. Proporção semelhante, 73,1%, julga que, se quiser, o governo tem meios de erradicar a miséria no Brasil.

Somos 64% a concordar que o benefício médio de R$ 130 mensais aos beneficiários do Bolsa Família é baixo, o que explica que só um terço da população com mais de 16 anos acredite que o Bolsa Família é eficaz em retirar muita gente da pobreza.

Tais números, retirados de levantamento nacional conduzido pelo Instituto de Economia da UFRJ e pelo Departamento de Economia da UFF em fins de 2012, revelam uma percepção sensível e precisa de como são tratados pobres e indigentes no Brasil.

Não é preciso muita conta para concluir que o Bolsa Família deveria ser mais efetivo na definição dos parâmetros para estimar a magnitude real e incômoda da miséria.

A sensibilidade do governo, talvez parcialmente amputada pelos cortes que ceifam o Orçamento da seguridade social e condenam o sistema de saúde pública, se mostra indiferente àquilo que salta aos olhos de quem mira a realidade brasileira mesmo sem grande expertise técnica. Com bom-senso apenas.

Os cortes fazem com que 50% dos domicílios brasileiros não disponham de água tratada e 35% não tenham saneamento adequado.

Segundo o IBGE, enquanto 7% da população pode ser considerada vulnerável exclusivamente por falta de renda, o percentual pula para 58,4% se forem adicionados outros déficits que não rendimentos monetários.

Sem atualização


Desde 2009 o governo não atualiza a linha de indigência, que permanece em R$ 70 per capita mensais. Intocável também permanece a linha da pobreza.

Salários são atualizados, o salário mínimo igualmente, numa progressão que fomenta a redistribuição e reduz as desigualdades.

Os benefícios do INSS não escapam à regra da correção do poder de compra.

Mas, sem dúvida, manter o valor nominal da linha de indigência quando aumenta a renda média, e quando o IPCA acumulado entre janeiro de 2009 e dezembro de 2012 bate 24,53%, já é uma boa contribuição para reduzir o número e o percentual de indigentes do país. No automático.

Atualizada, a linha de indigência valeria hoje R$ 87,17, aumentando o contingente de miseráveis. Ainda assim, seria um valor muito baixo.

O Brasil é hoje um país de renda média alta, na rota das grandes mudanças estruturais. É tempo de voltar à discussão pendente sobre como definir com rigor qual o patamar mínimo de bem-estar que a nação solidariamente vai estabelecer.

Sobre a autora


Lena Lavinas, doutora em economia, é professora associada do Instituto de Economia da UFRJ.

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