23 de julho de 2009

Na fronteira noroeste

Junho nunca é um bom mês nas planícies. Estava 46°C na Fortaleza Islamabad há quinze dias. As centenas de seguranças que controlavam os bloqueios e barreiras estavam murchando, o suor escorria...

Tariq Ali


Vol. 31 No. 14 · 23 July 2009

Tradução / Junho não é bom mês na planície. Há duas semanas, fazia 46ºC em Islamabad. As centenas de guardas que patrulham os bloqueios e barreiras de estrada derretiam, o suor escorrendo pelo rosto, enquanto acenavam para deter ou deixar passar carros e motos. A brisa noturna não trazia qualquer alívio, também sufocante, desagradavelmente quente. Difícil não simpatizar com os que, desafiando a lei, saltavam no Lago Rawal, principal reservatório de água da cidade, tentando refrescar-se. Mais para o sul, em Lahore, estava ainda mais quente e houve protestos quando o gerador em Mangla, que esporadicamente fornece energia elétrica à cidade parou completamente de funcionar.

No que tenha a ver com a temperatura política, nenhum mês é bom mês no Paquistão. O país já não é dono do próprio destino. Jamais por aqui vi coisa pior. O principal problema são os EUA e suas exigências, mas também há os extremistas religiosos, o alto comando militar, a corrupção, não só no governo do presidente Zardari e seus opositores: a corrupção é geral, está em toda a parte.

Essa é a guerra de Obama. Lutou para obter autorização do Congresso para mandar mais soldados para o Afeganistão e para ampliar a guerra, sendo necessário, também para o Paquistão. Agora, está fazendo o que pediu autorização para fazer. No dia em que Obama manifestou publicamente sua tristeza pela morte de uma jovem iraniana atingida durante as manifestações em Teeran, os teleguiados não-pilotados dos EUA mataram 60 paquistaneses. Entre os mortos havia mulheres e crianças que nem a BBC conseguiria descrever como “militantes”. Seus nomes não foram divulgados e nada significaram para o mundo. Nem as televisões exibiram fotos desses mortos. Morreram pela “boa causa”.

Mais de dois milhões de desabrigados desamparados (“indivíduos internamente deslocados”, internally displaced persons, IDP, no jargão das ONGs) foram expulsos da província Fronteira Noroeste, fronteira com o Afeganistão, pelo exército; e do vale do Swat, tanto pelas brutalidades dos taliban paquistaneses (Tehrik-i-Taliban Pakistan, TTP) quanto pelas brutalidades da resposta dos militares aos taliban. As ONGs, cientes de que ali chegará o dinheiro ocidental, esvoaçam nos campos de refugiados como moscas. Aqui também a corrupção campeia, apesar da presença de muitos voluntários dedicados. Uma dessas voluntárias disse-me que a única presença organizada e não corrupta, ali, é o exército – o que, se fosse verdade, seria caso único na histia do mundo. A mesma voluntária, que trabalhou num campo próximo de Mardan, mostrou-me, orgulhosamente, fotos em que ela aparece no helicóptero do general Nadeem Ahmed – comandante da operação de apoio aos refugiados (‘pessoas internamente deslocadas’, IDPs) – e informou que a maioria dos refugiados culpam os EUA e o exército pelo suplício pelo qual passam, não os ‘terroristas’ que por lá circulam com os figurinos mais variados. Ouvindo-a falar, ocorreu-me o pensamento de que a ideia de Samuel Huntington, de deslocar camponeses para convertê-los em ‘escudos humanos estratégicos’ no sul do Vietnam, talvez tenha servido de inspiração também aqui: as pessoas são expulsas das áreas de guerra e o inimigo não encontra quem recrutar. Não é segredo para ninguém, por aqui, que os EUA pagam ao exército paquistanês para construírem novos campos para refugiados nas zonas já ‘limpas’ da fronteira paqui-afegã. Não funcionará, mas soa bem e é bom para manter o fluxo de caixa do exército. Alguns paquistaneses acreditam seriamente que algumas centenas de cabeças de taliban recolhidas numa cesta resolverão todos os problemas do Paquistão; por isso apoiam o exército ao mesmo tempo em que fogem dos teleguiados não-tripulados dos EUA – o que é difícil, porque não há exército sem teleguiados não-tripulados dos EUA. Outros deixam-se ficar, apreciando a crueldade das ações do exército do Sri Lanka para derrotar os Tigres Tamil, indiferentes ao dano colateral.

Em maio desse ano, Graham Fuller, ex-chefe de escritório da CIA em Cabul, publicou no Huffington Post uma avaliação da crise na Região. Ignorado pela Casa Branca, porque desmente praticamente todos os pressupostos nos quais se baseia a escalada da guerra, Fuller falava em nome de muitos da sua própria comunidade de inteligência nos EUA, e também da inteligência de países europeus. Não é sempre que acontece de eu concordar com funcionários recém-aposentados da CIA, mas Fuller escreveu, claramente, que Obama está escolhendo “o mesmo caminho de fracasso no Paquistão que George Bush escolheu” e que nenhuma força militar ganhará alguma coisa por lá. Além disso, também explicou aos leitores do Huffington Post que todos os taliban são etnicamente Pashtun – “um dos povos mais ferozmente nacionalistas, tribalizados e xenofóbicos do mundo, que só se uniram como hoje estão unidos porque combatem invasor estrangeiro”; e que “bem feitas as contas, são, provavelmente, mais Pashtun do que islâmicos.” “É fantasia”, Fuller escreveu, “supor que alguém, algum dia, conseguirá fechar a fronteira entre o Paquistão e o Afeganistão.” E que ninguém suponha que Fuller seja o único veterano da CIA que ainda lembra de quando os EUA invadiram o Cambodia “para salvar o Vietnam”.

Saí de Islamabad dia 1º de julho, um dia antes da festa do Dia da Independência inventada pela embaixadora dos EUA, Anne Patterson. Deve ter sido o evento mais pesadamente policiado de todo o calendário social do planeta, equivalente moderno dos garden-party do vice-rei na velha Nova Delhi. Os líderes da elite política, militar e econômica disputaram entre eles mesmos e alguns jornalistas escolhidos a dedo as atenções da embaixadora. Observadores anotaram que a embaixadora Patterson passou mais tempo conversando com X do Baluquistão, do que com Y de Peshawar. Sinal, talvez, de que os combates tomarão o rumo do Baluquistão? Convidados menos importantes esticavam pescoço e orelhas para ver quem mais foi convidado, para acertarem seus escalímetros de bajulação.

Patterson às vezes é enternecedoramente franca. Há alguns meses, ofereceu sua avaliação pessoal de fim-de-semestre a um chefe da inteligência europeia que a visitou. Para ela, Musharraf não merece confiança, porque diz uma coisa em Washington e, em casa, faz o contrário. Melhor Zardari, perfeito: “Faz tudo que o mando fazer.” O mais espantoso, nem é a tolice da embaixadora, mas a total incapacidade para entender seja o que for. Zardari talvez obedeça Washington, mas é universalmente odiado no Paquistão, não só pelos adversários políticos. Todos o desprezam, sobretudo, pela venalidade. Foi recolhido de onde havia sido despejado do cargo de ministro de Investimentos do segundo governo de sua falecida esposa. Com apenas algumas semanas de trabalho, na residência presidencial, seus homens já estavam no telefone, em conversa direta com os principais empresários do país, para acertar as regras da partilha dos lucros.

Por exemplo, o caso de Mr. X, dono de um dos maiores bancos do país. De repente, o telefone toca. À primeira vista, parecia que o presidente queria explicações sobre por que o banco demitira um funcionário imediatamente depois da queda de Benazir Bhutto, no final dos anos 1990s. X disse que ia verificar e informaria. Soube que o rapaz fora apanhado literalmente com a boca na botija ou, como se diz, roubando. A Residência Presidencial foi informada. A explicação foi rejeitada. Alguém informou ao banqueiro que o rapaz fora vítima de perseguição política; que tinha de ser imediatamente readmitido, e que deveria receber os salários correspondentes aos 18 últimos anos, sem descontos e com valores devidamente atualizados. O demitido teria também de ser indenizado e esperava um cheque (valor já calculado e informado ao banqueiro), sem delongas. Se o presidente faz, os subalternos fazem pior. Deputados e respectivos filhos e fil
has vivem ocupados ordenhando empresários e empresas estrangeiras. “Se eles podem, nós também podemos”, é conceito moral muito difundido em Karachi, principal cidade do país. Assaltantes, assassinos de aluguel, especialistas em pequenos (e grandes) roubos, muitos deles empregados nas redes ‘de segurança privada’ de políticos, converteram Karachi em “Nápoles do Leste”.

Há também a ideia, que nada desmente, de que os métodos que levaram Zardari à presidência depois do assassinato de Benazir foram imorais. Documentário exibido no primeiro aniversário do assassinato pelo canal privado GEO TV despertou várias graves questões sobre a segurança de Benazir; uma dessas questões é por que o responsável por toda a segurança da presidente desapareceu quando o carro dela foi bloqueado. No momento dos tiros, absolutamente ninguém o viu. Esse homem, Rehman Malik, antigo companheiro de Zardari e um dos principais elos de contato entre a família e as principais agências de inteligência ocidentais enquanto esteve exilado, é hoje o ministro do Interior.

Há vários meses, rumores selvagens e infundados ligando Zardari à morte de sua esposa varrem o país. Uma mulher que conheço, que já foi muito próxima de Benazir, está convencida de que há alguma verdade neles e está muito irritada com meu ceticismo. Ela me forneceu um relato que, se verdadeiro, exigiria que Asifa Zardari, a filha mais nova do casal, prestasse depoimento no tribunal contra seu pai. A mesma história foi repetida para mim por muitos outros, nenhum deles paranoico ou dado a pensamentos de conspiração. Coisas mais estranhas aconteceram no país, mas continuo não convencido. O interessante não é que essas histórias circulem, mas o número de pessoas que acreditam nelas — o que indica como o viúvo é geralmente visto.

Esses rumores vieram à tona no final de junho, quando o chefe do clã Bhutto, Mumtaz Ali Bhutto, presidente da Frente Nacional Sind, acusou publicamente Zardari em uma coletiva de imprensa, alegando que "o assassino de Murtaza Bhutto também havia assassinado Benazir... Agora eu sou seu alvo. Uma quantia alta foi paga a mercenários para me matarem". (Zardari é geralmente considerado como tendo ordenado a morte de seu cunhado Murtaza. Shoaib Suddle, o chefe de polícia em Karachi, que organizou a operação que levou à morte de Murtaza Bhutto, agora foi promovido e é chefe do Bureau de Inteligência.) Mumtaz Bhutto tem exigido novas investigações sobre o assassinato de Benazir e tem resistido às tentativas de Washington e seus fantoches locais para imputar o crime ao líder to TTP taliban, Baitullah Mahsud. Bhutto prevê que Zardari e seus asseclas acabarão por ser condenados por corrupção ou forçados a deixar o país – o que é mais desejo que previsão e só aconteceria se houvesse muitas outras mudanças altamente improváveis no curto prazo, entre as quais uma mudança radical nas políticas dos EUA.

Mahsud e seus seguidores são especialistas em serrar pescoços, afogar mulheres e sequestros em geral. Os taliban têm feito circular vídeos horripilantes de informantes sendo decapitados, como fator para intimidar delatores e inimigos. E há apenas alguns meses Mahsud circulava como convidado em festas de casamento e conferências de imprensa. Hoje recebe a distinção de ser o primeiro paquistanês a ter a cabeça a prêmio. Os EUA anunciaram recompensa de 5 milhões de dólares a quem o entregue vivo ou morto, prêmio ao qual o governo paquistanês acrescentou míseros 600 mil dólares. As cabeças dos principais subcomandantes do grupo de Mahsud também têm cotação no mercado: 182 mil dólares pela cabeça de Faqir Mohammed in Bajaur e 122 mil por cada cabeça dos três outros procurados, muito menos do que o prêmio que a Liga Indiana de Críquete oferece aos seus campeões. Depois de saudar o retorno à pátria dos campeões paquistaneses de críquete, vencedores do campeonato desse ano, o primeiro-ministro Yousaf Gilani, disse que o país inteiro deveria seguir o exemplo vitorioso do nosso time de críquete e derrotar os terroristas.

Os refugiados do Vale do Swat, onde os taliban cometeram atrocidades em série contam história diferente da que contam os Pashtuns deslocados internamente pelos teleguiados não tripulados, jatos bombardeiros dos EUA e soldados do exército paquistanês no sul do Waziristão, próximo da fronteira afegã. Contam que viveram lá abandonados durante anos pelo governo e deixados à mercê de fanáticos armados. É a mais pura verdade. E se você perguntar por que o Estado paquistanês tolerou esses grupos armados que abertamente desafiaram o monopólio estatal da violência, a resposta é simples. Em Islamabad esses grupos sempre foram vistos como forças auxiliares na batalha que estaria a caminho, pela conquista do Afeganistão. A decisão de esmagar as lideranças taliban do TTP só foi tomada sob intensa pressão dos EUA, motivo pelo qual Mahsud e seu representante pessoal no vale do Swat, Maulana Fazlollah, consideram o assalto contra suas posições na região como traição.

O reinado de terror de Fazlollah sempre incomodou a maioria dos paquistaneses, inclusive os que se opõem à presença dos EUA na região. O chicoteamento público de uma mulher swati, filmado e depois exibido por televisão gerou autêntica fúria nacional. Pela primeira vez, o taliban foi empurrado para a defensiva e teve de dissociar-se publicamente do chicoteamento. Aproveitando-se desse sinal de fraqueza, o governo empurrou um dos mais conhecidos professores-clérigos do país, Dr. Sarfraz Naeemi Al-Azhari, para a frente das câmeras, para que declarasse que o TTP é organização “anti-islâmica”, porque a tradição islâmica proíbe o suicídio e, por extensão, os homens-bomba, que cometem atos de suicídio os quais são chamados também de “operações-martírio”. Dia 12/6, então, os taliban do TTP despacharam um suicida-bomba para dar cabo do Dr. Al-Azhari. Mais dois mártires. Pouco antes, o governo havia subornado, enrolado, conversado e enganado um dos tenentes de Mahsud, Qari Zainuddin, para que traísse o chefe e o denunciasse em público. Qari fez o que o mandaram fazer, mas foi denúncia muito caracterizadamente estranha. Acusou Mahsud de ser agente triplo, a serviço, ao mesmo tempo, de Índia, EUA e Israel, e, também, de outros inimigos do Paquistão. Por essa razão, disse Zainuddin, ele lutava contra o exército paquistanês e suas forças de segurança. Alguns acreditaram nessas bobagens, o que irritou Mahsud. Dia 23/6, Qari Zainuddin foi assassinado por um de seus guarda-costas. A lista não acabou e com certeza haverá mais cadáveres nos próximos meses.

Enquanto isso, a família de Mahsud foi sequestrada pela Polícia e vive sob “custódia e proteção” – em outras palavras, são reféns. No dia seguinte, imediatamente depois de essa notícia ser divulgada, Owais Ghani, governador da província sitiada da Fronteira Noroeste, preveniu, pela televisão, que, se os comandantes da Otan não conseguirem produzir imediatamente alguma estratégia de imediata retirada, a repressão indiscriminada contra os Pashtuns dos dois lados da Linha Durand levará a um levante geral contra todas as tropas estrangeiras. Em outras palavras: Mahsud jamais foi o único problema. Nos dia seguinte, os comandantes da Força Aérea Paquistanesa desfilavam na televisão ao lado dos chineses (‘nossos amigos de todas as horas, faça chuva, faça sol’) que dirigem a estatal que está construindo o jato JF-17 Thunder, no Complexo Aeronáutico do Paquistão. Será que algum desses aviões ficará pronto a tempo de encontrar o rastro de Mahsud, façanha na qual continuam fracassando várias missões de vigilância e reconhecimento de toda a Força Aérea dos EUA?

O TTP taliban é produto das recentes guerras afegãs, russas, nativas e contra os EUA; o pensamento taliban é combinação envenenada de patriarcado tribal tradicional e prescrições Wahhabi. Foi severamente criticado por grupos afegãos que combatem a Otan por não se ter engajado nessa luta. Capturar e matar líderes taliban pode impressionar a opinião pública, mas de pouco adiantará. A massa dos apoiadores do TTP taliban apenas se diluirá por algum tempo, até novamente se reorganizar para continuar a luta. Quanto mais se tente destruí-los, mais cadáveres civis haverá a lamentar. Muitos dos apoiadores de Mahsud estão já abandonando o vale do Swat e unindo-se a outros grupos Pashtun no Waziristão, para lutar contra o exército paquistanês. Há informes de que já se constituiu uma nova organização de vários grupos de mujahedin que eram inimigos até há pouco tempo. Gul Bahadur, considerado comandante Pashtun pró-governo, porque assinou um acordo de trégua em fevereiro de 2008, renegou o acordo que assinou e uniu-se à oposição. Esse novo grupo reivindica a autoria da emboscada contra um comboio militar, dia 28/6, na qual morreram 15 soldados; a emboscada seria resposta a ataques aéreos contra aldeias na mesma região, na qual morreram muitos civis. Não se conhecem nem o número exato nem o nome dos mortos.

Quanto mais se prolongue a guerra, maior a possibilidade de haver quebras graves no próprio corpo do exército. Talvez não no alto comando, mas entre majores e capitães, tanto quanto entre os soldados seus comandados – nenhum dos quais está satisfeito com as missões que os mandam cumprir. Líderes religiosos já anunciaram que soldado morto em luta contra o TTP taliban é mártir e ganhará automaticamente o paraíso, embora os mártires potenciais suspeitem de que os mulás já sabem que todos irão, mesmo, para o inferno. E há os que, ninguém duvide, têm certeza de que já chegaram lá.

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