1 de agosto de 2009

Marx e montagem

O autor de Archaeologies of the Future desenterra fragmentos da "antiguidade ideológica" no recente filme de Alexander Kluge sobre O capital. Encontros com o equivalente não realizado de Eisenstein, à procura de uma transposição cinematográfica do fetiche da mercadoria

Fredric Jameson


58 • July/Aug 2009

Tradução / O lançamento de um novo Kluge é sempre uma boa notícia, desde que o espectador tenha noção do que o aguarda. Seu filme mais recente, Nachrichten aus der ideologischen Antike (Notícias da Antiguidade ideológica), com aproximadamente nove horas de duração, é dividido em três partes: I. Marx e Eisenstein na mesma casa; II. Todas as coisas são pessoas enfeitiçadas; e III. Paradoxos da sociedade da troca [1]. Segundo rumores, Kluge teria retomado o antigo projeto de Eisenstein (1927-28) de fazer uma adaptação cinematográfica de O capital, de Marx, mas na verdade apenas a primeira parte indica essa intenção. Os rumores foram espalhados pelas mesmas pessoas que acreditam que Eisenstein chegou a escrever um roteiro preliminar do filme sobre O capital. Na verdade ele apenas rabiscou cerca de vinte páginas de anotações em um período de seis meses [2]. Pelo menos algumas dessas pessoas sabem que ele estava muito entusiasmado com o Ulisses, de Joyce, mais ou menos na mesma época e “planejou” um filme sobre o livro, fato que relativiza suas fantasias sobre o projeto de O capital. Entretanto, se os planos de Eisenstein tinham a forma de anotações, até que alguns deles fossem transformados em filmes (ficcionais ou narrativos), é bom prevenir os espectadores que os filmes “reais” de Kluge se parecem mais com as anotações de Eisenstein.

Diversos intelectuais importantes acabaram – mesmo que postumamente – por endossar o marxismo: podemos pensar nos Espectros de Marx, de Derrida, ou no inacabado A grandeza de Marx, de Deleuze, assim como em inúmeras testemunhas contemporâneas da crise mundial (“somos todos socialistas agora” etc.). Seria o novo filme de Kluge uma retomada desse tipo? Ele ainda é marxista? Chegou a ser marxista? E o que significaria “ser marxista” hoje? O leitor pode até se indagar sobre a maneira como os alemães em geral se relacionam atualmente com seu grande clássico nacional, agora que há rumores de centenas de grupos de estudo sobre O capital surgindo aqui e ali sob os auspícios da ala estudantil do Linkspartei. Kluge afirma no texto que acompanha o DVD do filme: “A possibilidade de revolução europeia parece ter desaparecido; e com ela se foi a crença na ideia de um processo histórico que possa ser diretamente moldado pela consciência humana” [3]. No entanto, fica evidente que Kluge acredita numa pedagogia coletiva e na reapropriação de processos de aprendizado, no que se poderia chamar de uma reorientação da experiência através da reconstrução de “sentimentos” (um termo técnico chave para ele). O fato fica evidente não apenas em seus comentários interpretativos sobre seus diversos filmes e histórias, mas também em enormes volumes teóricos, como em seu Geschichte und Eigensinn (História e obstinação), escrito em colaboração com Oskar Negt.

Todos esses trabalhos refletem sobre a história. Poucos países tiveram uma história tão variada quanto a Alemanha. A obra de Balzac teria sido impossível sem a extraordinária variedade da experiência histórica dos franceses, da revolução ao império mundial, da ocupação estrangeira à reconstrução econômica, sem falar sobre as mais diversas formas de sofrimento, crimes de guerra e atrocidades. As histórias (ou anedotas, ou faits divers) de Kluge, que somam milhares de páginas, contam com uma massa de matéria histórica de proporções semelhantes.

Mas a história é algo que deve ser escavado: como no caso da protagonista Gabi Teichert, em Die Patriotin, de Kluge, que literalmente tira a pá da bolsa e começa a escavar freneticamente em busca de pistas sobre o passado em ossos e pedaços de vasos antigos. E não necessariamente em vão: em outro filme, o joelho do esqueleto de um soldado alemão relata algumas histórias de guerra “úteis”. Na verdade, o novo filme também tem seus momentos amalucados ou mesmo idiotas: dois atores lendo a prosa incompreensível de Marx em uníssono um para o outro; um professor da antiga Alemanha oriental explicando o que é “liquidez” para um aluno recalcitrante; e até um tipo de peça sátira na qual o (cansativo) comediante Helge Schneider atua em uma variedade de papéis inspirados por Marx, equipado com perucas, barbas falsas e todo tipo de parafernália circense. Pois, como nos lembra Kluge, “devemos deixar que Till Eulenspiegel passe por Marx e Eisenstein, com a intenção de criar uma confusão que permita que conhecimento e emoção sejam combinados de uma nova maneira” [4].

Enquanto isso, num nível menos jocoso, assistimos a uma série interminável de entrevistas – Enzensberger, Sloterdijk, Dietmar Dath, Negt e outras autoridades – nas quais as testemunhas respondem às provocações, perguntas e comentários de Kluge. Assistimos a um trecho curto do estranho projeto de Werner Schroeter, no qual Tristão e Isolda de Wagner é encenado como uma retomada da cena do conflito na ponte de Encouraçado Potemkin (“o renascimento de Tristão a partir do espírito de Potemkin”), além de passagens de óperas de Luigi Nono e Max Brand, para não falar dos clássicos. Vemos um curta-metragem de Tom Tykwer sobre a humanização de objetos, sequências sobre o assassinato de Rosa Luxemburgo e, num tom mais ameno, uma noite com Marx e Wilhelm Liebknecht. Tudo isso entrecortado por diversos trechos de filmes e fotografias, a maioria delas do período do cinema mudo, enquanto efeitos tipográficos dramáticos e coloridos com textos de Marx e Eisenstein deixam claro que os intertítulos do cinema mudo podiam ser eletrizantes. Trata-se da versão de Kluge da “montagem de atrações” de Eisenstein (ou talvez Kluge preferisse chamá-la de montagem de “sentimentos”). Espectadores desacostumados com esse tipo de prática podem muito bem ver nisso tudo uma inacreditável miscelânea. Mas também podem acabar por aprender a navegar nesse prodigioso local de escavação: não se trata ainda de um verdadeiro museu, organizado profissionalmente, mas de uma incrível confusão, com todos os tipos de pessoas, amadores e especialistas, perambulando em diversos estados e atividades, alguns enxugando a testa ou comendo um sanduíche, outros deitados no chão, enquanto outros ainda organizam diversos itens em caixas sobre mesas protegidas por uma tenda, ou cochilando, talvez conversando, todos passando por uma trilha estreita, tomando cuidado para não pisar nas provas do crime. É nosso primeiro contato com a Antiguidade ideológica.

A versão de Eisenstein

Entre os fragmentos mais reconhecíveis está, é claro, o “novo trabalho baseado num libreto de Karl Marx”, o “tratado cinematográfico” que supostamente seria o próximo projeto de Eisenstein depois de Outubro, o filme sobre O capital. Caracteristicamente, as anotações de Eisenstein são reflexões sobre suas próprias práticas, passadas e futuras, assim como releituras de seu próprio trabalho como uma progressão de formas, num movimento semelhante ao progresso no campo das experiências científicas. Esse narcisismo é a origem de grande parte do entusiasmo pedagógico e didático de seus escritos, mas não é preciso que aceitemos as avaliações que ele fez de sua própria carreira, especialmente pelo fato de que elas variaram enormemente durante sua vida.

Neste caso, por exemplo, ela lerá seu trabalho nos termos da abstração, como uma conquista gradual da abstração desde Potemkin, passando por Outubro até chegar ao projeto atual (talvez fosse preferível que ele tivesse caracterizado esse caminho como a ampliação de sua conquista do concreto que inclui a abstração, mas tudo bem). Como era de esperar, partimos dos leões que se levantam em Potemkin para aquele “tratado sobre as deidades” que é a sequência dos ícones/ ídolos em Outubro [5]. Tais momentos são vistos como interrupções verticais, que se aproximam da forma do ensaio, da narrativa horizontal, e é precisamente por esse motivo que a discussão sobre Eisenstein e Joyce é irrelevante neste caso.

Diversos comentadores – e não apenas o próprio Kluge – enfatizaram a fórmula “um dia na vida de um homem” como prova de que Eisenstein imaginou um enredo da ordem do “um dia na vida de Bloom”, de Joyce [6]. Mais adiante, eles apontam a adição de um segundo “enredo”, o da reprodução social e “das ‘virtudes domésticas’ da mulher de um trabalhador alemão”, à qual se soma um lembrete: “durante todo o filme a esposa cozinha uma sopa para o marido que retorna”, de modo a transformar o “homem” não específico da sequência anterior num trabalhador. Essas intercalações – às quais devemos adicionar um dia na vida de um capitalista ou comerciante – estão sendo ruminadas precisamente no mesmo momento histórico em que, como lembra Annette Michelson, Dziga Vertov está filmando O homem com a câmara na mão [7].

É verdade: “Joyce pode ser útil para meus propósitos”, aponta Eisenstein. Mas o que se segue é completamente diferente da fórmula “um dia na vida de”, pois Eisenstein adiciona: “de um prato de sopa aos navios britânicos afundados pela Inglaterra” [8]. O que aconteceu é que esquecemos da presença, em Ulisses, de capítulos estilisticamente bem diferentes do formato da descrição da rotina de um dia. Mas Eisenstein não esqueceu: “No Ulisses de Joyce há um capítulo notável desse tipo, escrito à maneira de um catecismo escolástico. Perguntas são feitas e respostas são dadas” [9]. Mas a que ele está se referindo quando diz “desse tipo”?

Fica claro que Kluge sabe a resposta, pois em sua discussão cinematográfica das anotações a panela de sopa se transformou numa chaleira que ferve a água e apita: a imagem reaparece em diversos momentos na exposição (as anotações de Eisenstein aparecem projetadas em legendas), de modo que esse objeto simples é “abstraído” num símbolo típico de energia. Ela ferve impacientemente, veementemente exige ser utilizada, controlada, e pode ser o sinal que inicia o período de trabalho, o final do período de trabalho, o chamado para a greve, ou o motor de toda a fábrica, uma máquina da produção futura... Ao mesmo tempo, essa é a própria essência da linguagem do filme mudo, sua repetição e insistência em transformar seus objetos em símbolos maiores, num procedimento intimamente relacionado ao “close up”. Mas é exatamente isso que Joyce faz no capítulo do catecismo: a primeira grande afirmação de Ulisses, o primeiro estrondoso “sim”, aparece aqui e não nas últimas palavras de Molly: trata-se da força primitiva da água jorrando do reservatório em Dublin até encontrar seu caminho até a torneira de Bloom [10]. (Em Eisenstein, o equivalente seria a máquina de separar leite de A linha geral.)

A esposa do trabalhador alemão

É nesse ponto que descobrimos o que Eisenstein realmente tem em mente: algo como uma versão marxista da livre-associação de Freud – a cadeia de ligações escondidas que leva da superfície da vida e da experiência cotidianas à própria origem da produção. Como em Freud, este é um mergulho vertical no abismo ontológico, o que ele chamava de “umbigo do sonho”, que interrompe a banalidade da narrativa horizontal para montar um conjunto de associações investidas de afeto.

Vale a pena citar a anotação completa de Eisenstein (1987, p.129) nesse ponto:

Durante todo o filme a esposa prepara a sopa para o marido que retorna. NB Poderia haver dois temas associados: a esposa que cozinha e o marido que retorna. Completamente idiota (útil nos primeiros estágios de uma hipótese de trabalho); na terceira parte (por exemplo), a associação parte da pimenta com que ela tempera a comida. Pimenta. As ilhas Cayenne. A ilha do Diabo. Dreyfus. O chauvinismo francês. O Figaro nas mãos de Krupp. A guerra. Os navios afundados no porto. (Não em quantidades tão grandes, é claro!!). NB Bom em sua não banalidade – transição: pimenta-Dreyfus-Figaro. Seria bom cobrir os navios ingleses afundados (de acordo com Kushner, 103 DIAS NO EXTERIOR) com a tampa da frigideira. Poderia até não ser pimenta – mas querosene para o forno e a transição para o petróleo.[11]

Eisenstein se propõe a fazer aqui aquilo que Brecht tentou fazer na sequência do debate sobre o café no metrô, em Kuhle Wampe: traçar o caminho que leva dos sintomas visíveis às suas causas ausentes (ou não totalizáveis). Mas a tentativa do dramaturgo é frustrada pela nossa inevitável atenção aos personagens que discutem, enquanto Eisenstein pretende, ainda que cruamente (“completamente idiota”, mas é apenas um primeiro rascunho) desenhar e trazer à tona toda uma rede complexa na forma de uma montagem de imagens. (As referências mais apropriadas sempre foram a omissão de comentários nas constelações das Passagens de Benjamin, ou mesmo os ideogramas de Pound – ambos também projetos de um tipo de representação histórica sincrônica.) A teorização de Eisenstein do que ele chama de “filme discursivo” se centra na “de-anedotalização” como processo central e encontra sua analogia na “teoria dos sobretons” [12], que ele viria a desenvolver um ano mais tarde em seu ensaio “A quarta dimensão do filme”, no qual uma formulação nos termos de “estímulos fisiológicos” procurará substituir a doutrina amplamente aceita do formalismo russo da renovação da percepção, da ostranenie estética, do “tornar estranho”. Neste caso, haveria não apenas um conflito entre a temporalidade do filme (montagem) e a simultaneidade das relações e associações causais, mas também uma tensão entre o afetivo e o cognitivo. Assim, ele escreve sobre A linha geral:

Esta montagem não é construída sobre dominantes específicos, mas toma como sua linha mestra o estímulo total através de todos os estímulos. Esta é a rede original de montagem dentro da tomada, surgindo da colisão e combinação de estímulos individuais inerentes a ela [13].

A teoria dos “sobretons” tende não apenas a enfatizar a natureza corpórea do sentimento puro – “a qualidade fisiológica de Debussy e Scriabin” – mas também, através de termos técnicos musicais como “dominante” e “contraponto”, assim como sobretons e subtons “visuais”, tende a precisar toda a complexidade dessa “quarta dimensão”, que inspirou uma enorme atividade contemporânea na chamada teoria do afeto. É provável que o velho mito da “persistência da visão” – a imagem anterior subsistindo brevemente na retina enquanto a nova percepção se sobrepõe a ela e a substitui, uma concepção que tem seu análogo musical – sugira uma síntese possível entre a sucessão temporal do cinema e os conteúdos das imagens individuais. Mas não resolve a tensão que os modelos de afeto mais altamente desenvolvidos estabelecem com o conteúdo cognitivo desses complexos; ou, em outras palavras, a ênfase marxista na produção, distribuição e consumo por trás da superfície fenomenológica da vida cotidiana e da experiência – a tentativa de investigar os bastidores da cena, como diz Marx em O capital. O antigo problema da arte didática não é resolvido aqui, a não ser que pensemos que há uma convergência entre o conhecimento sobre o capitalismo e a raiva (Potemkin) ou entre a construção do socialismo e uma alegria sublime, como na visão transcendental do separador de leite em A linha geral.

Kluge não tenta reproduzir a sequência da pimenta, mas elabora outro motivo de Eisenstein:

as meias das mulheres cheias de buracos e uma meia de seda num anúncio de jornal. Tudo começa com um movimento brusco, que se multiplica em 50 pares de pernas – Revista, Seda, Arte. A luta pelo centímetro da meia de seda. Os estetas são a favor dela. Os bispos e a moralidade são contra. [14]

Mas a tentativa decorativa de Kluge de mostrar esse objeto social multidimensional – ele poderia ter incluído o “ornamento de massa” de Kracauer – mal dá conta das complexidades alegóricas que Eisenstein vislumbrou:

Nesse nível, pode-se imaginar a seguinte solução:

Ein Paar seidene Strumpfe* – arte.
Ein Paar seidene Strumpfe – moralidade.
Ein Paar seidene Strumpfe – comércio e competição.
Ein Paar seidene Strumpfe – índias forçadas a incubar o casulo de seda carregando-os debaixo do braço! [15]

Este último detalhe nos leva de volta ao nível anedótico, que havia sido supostamente neutralizado por essa nova linguagem cinematográfica “discursiva”. Entretanto, é o elemento que radicaliza essa montagem vertical, do mesmo modo que a relação entre a Ilha do Diabo e Dreyfus faz com a sequência da pimenta. Na verdade, as anotações estão repletas de detalhes anedóticos, de faits divers que nos levam ao coração do capital. Gosto desta: “Em algum lugar do oeste. Uma fábrica onde é possível roubar peças e ferramentas. Os trabalhadores não são revistados. Em vez disso, há um ímã no portão de saída” [16]. Chaplin teria adorado o espetáculo dos parafusos, martelos e alicates voando dos bolsos dos trabalhadores.

Antiguidades

Afinidades eletivas: o trabalho de Kluge é bastante anedótico nesse sentido, a dupla visada narrativa, o punctum inesperado no centro daquilo que parecia à primeira vista uma ocorrência banal, um gosto pela incongruência que é abstraída na lida com as grandes ideias. A fórmula extraordinária de Deleuze – “um Marx imberbe, um Hegel barbudo” – não seria estranha a Kluge, que incansavelmente sugere novas reformulações da tradição e dos estereótipos: a futura reconstrução da experiência, unindo afetos e conhecimento de novas maneiras.

Trata-se de um futuro que exige a constituição de uma Antiguidade que lhe seja apropriada. Entretanto, essa “Antiguidade ideológica” não seria apenas outro modo de dizer que Marx, e com ele o marxismo, está superado? As sequências cômicas do filme de Kluge, o jovem casal em diversos momentos da história atormentando um ao outro com a récita repetitiva das abstrações de Marx, poderia nos levar a essa conclusão. Nem mesmo Eisenstein estaria livre de estar fora de moda, com sua bagagem de melodrama antiquado, os paradigmas do filme mudo antiquado, os métodos de montagem antiquados. Lênin e intertítulos! Aparentemente uma perspectiva desinteressante para a pós-modernidade digital...

No entanto, podemos lembrar dos próprios sentimentos de Marx pela Antiguidade: a teoria do valor de Prometeu e Aristóteles, as reflexões de Epicuro e Hegel sobre Homero. Também há a questão com a qual a grande introdução de 1857 inicia os Grundrisse: “a dificuldade não está em entender que a arte grega e a poesia épica estão ligadas a certas formas de desenvolvimento social. A dificuldade é que elas ainda nos dão prazer estético e são em certos aspectos consideradas como um padrão e um modelo inatingíveis” [17]. Marx não era nostálgico e compreendeu que a pólis era uma formação social limitada e por isso contraditória à qual não se podia retornar e que também qualquer futuro socialista seria bem mais complexo que o próprio capitalismo, como observou Raymond Williams.

O conceito de Antiguidade pode ter a função de nos colocar numa nova relação com a tradição marxista e com o próprio Marx – assim como com Eisenstein. Marx não é nem contemporâneo nem antiquado: ele é um clássico, e toda a tradição marxista e comunista, mais ou menos igual em duração à era de ouro de Atenas, é justamente a era de ouro da esquerda europeia, para a qual se retorna constantemente, com resultados espantosamente complexos, produtivos e contraditórios. [18] E para quem levantar a objeção de que seria abominável glorificar uma era que criou as execuções stalinistas e a morte por fome de milhões de camponeses, um lembrete da truculência da história grega pode ser útil – a eterna vergonha de Megara, para não falar das abomináveis práticas ligadas à sociedade escravocrata. A Grécia incluiu tanto Esparta quanto Atenas e a União Soviética também marcou a queda do nazismo e o primeiro sputnik, assim como a República Popular da China representou o despertar de inúmeros milhões de novos sujeitos históricos. A categoria da Antiguidade clássica pode ser uma perspectiva produtiva a partir da qual uma esquerda global pode reinventar um passado energizante para si mesma.

Notas

1 Alexander Kluge, Nachrichten aus der ideologischen Antike (News from Ideological Antiquity), 3 dvds, Frankfurt 2008.
2 These are published as Eisenstein’s ‘Notes for a Film of Capital’, translated by Maciej Sliwowski, Jay Leyda and Annette Michelson, in October: The First Decade, Cambridge, ma 1987, pp. 115–38; they first appeared in October 2, 1976; hereafter nfc.
3 Kluge, Nachrichten, p. 4.
4 Kluge, Nachrichten, p. 16.
5 nfc, p. 116.
6 nfc, p. 127.
7 nfc, p. 127, fn 19.
8 NFC, p. 127. Esta referência enigmática é retomada na citação maior da p.129 mencionada adiante.
9 nfc, p. 119.
10 See 'Ulysses in History', in The Modernist Papers, London and New York 2007.
11 NFC, p. 129. Sobre a parte da sopa, Eisenstein (1987, p.128) anotou: "as 'virtudes domésticas' da esposa do trabalhador alemão representam o maior mal, o mais forte obstáculo a um levante revolucionário. A esposa de um trabalhador alemão sempre terá algo quente para o marido, nunca o deixará ficar completamente com fome. Também é preciso observar a raiz de seu papel negativo que desacelera o ritmo do desenvolvimento social. No enredo, isso poderia tomar a forma de uma ‘sopa rala’ e seu significado em 'escala mundial'": NFC, p. 128.
12 nfc, pp. 116–7.
13 Eisenstein, ‘The Filmic Fourth Dimension’, in Film Form, New York 1949, p. 67.
14 nfc, p. 129
15 nfc, p. 137.
16 nfc, p. 121.
17 Marx and Engels, Collected Works, vol. 28, New York 1986, p. 47.
18 Algo assim é o que se pode dizer que Estética da Resistência de Peter Weiss está tentando.

Sobre o autor

Ensaísta e crítico literário norte-americano, autor de vários livros traduzidos para o português, entre os quais Pós-modernismo, Modernidade singular, As marcas do visível etc. Membro do conselho de colaboradores estrangeiros de Crítica Marxista desde sua criação.

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