25 de outubro de 2014

De que lado está a Turquia? A Batalha por Kobani

Em Kobani, pela primeira vez, o Isis estava lutando contra um inimigo que em aspectos importantes se assemelhava a si mesmo.

Patrick Cockburn

London Review Books

Vol. 36 No. 21 · 6 November 2014

Durante o verão, o Isis — o Estado Islâmico do Iraque e da Síria — derrotou o exército iraquiano, o exército sírio, os rebeldes sírios e os peshmerga curdos iraquianos; estabeleceu um estado que se estendia de Bagdá a Aleppo e da fronteira norte da Síria aos desertos do Iraque no sul. Grupos étnicos e religiosos dos quais o mundo mal tinha ouvido falar — incluindo os yazidis de Sinjar e os cristãos caldeus de Mosul — tornaram-se vítimas da crueldade e do fanatismo sectário do Isis. Em setembro, o Isis voltou sua atenção para os dois milhões e meio de curdos sírios que haviam conquistado autonomia de fato em três cantões ao sul da fronteira turca. Um desses cantões, centrado na cidade de Kobani, tornou-se alvo de um ataque determinado. Em 6 de outubro, os combatentes do Isis abriram caminho até o centro da cidade. Recep Tayyip Erdoğan previu que sua queda era iminente; John Kerry falou da "tragédia" de Kobani, mas afirmou — implausivelmente — que sua captura não seria de grande importância. Uma conhecida combatente curda, Arin Mirkan, explodiu-se enquanto os combatentes do Isis avançavam: parecia um sinal de desespero e derrota iminente.

Com o ataque a Kobani, a liderança do Isis quis provar que ainda pode derrotar seus inimigos, apesar dos ataques aéreos dos EUA contra eles, que começaram em 8 de agosto de 2014 no Iraque e em 23 de outubro de 2014 foram ampliados para invadir também a Síria. No ataque contra Kobani, os milicianos do Isis cantavam: "O Estado Islâmico permanece, o Estado Islâmico cresce." No passado, o Isis optou – foi uma decisão tática – por abandonar batalhas que achasse que não poderia vencer. Mas a batalha de cinco semanas por Kobani tinha durado muito e tinha sido muito informada para o mundo, para que os milicianos pudessem recuar sem perder prestígio. O apelo que tem o Estado Islâmico entre sunitas sírios, iraquianos e por todo o mundo deriva da crença de que suas vitórias são presentes divinos e inevitáveis; qualquer fracasso abala diretamente a crença de que Deus estaria lutando ao lado do Isis.

Mas aquela inevitável vitória do Isis em Kobani não aconteceu. Em 19 de outubro de 2014, revertendo a política na qual os EUA vinham investindo, os aviões americanos passaram a entregar armas, munição e remédio aos que defendiam a cidade. Sob pressão dos EUA, a Turquia anunciou no mesmo dia que garantiria salvo conduto aos guerrilheiros curdos iraquianos da guerrilha peshmerga para saírem do norte do Iraque e se deslocarem para Kobani; hoje, esses guerrilheiros curdos já recapturaram parte da cidade. Washington percebeu que, dada a retórica de Obama sobre um seu plano para “degradar e destruir” o Isis, e com eleições para o Congresso que acontecerão dentro de apenas um mês, os EUA não podiam admitir que os terroristas colhessem mais uma vitória. E nesse caso especial, a vitória muito provavelmente seria comemorada com o massacre, diante de câmeras de televisão, montadas do lado turco da fronteira, de todos os curdos sobreviventes. Quando o sítio começou, o apoio aéreo que os EUA deram aos que defendiam Kobani foi pouco mais que mínimo; com medo de ofender a Turquia, a força aérea dos EUA evitara qualquer associação com combatentes curdos em solo. Em meados de outubro, a política mudou, e os curdos passaram a fornecer aos norte-americanos informações detalhadas sobre alvos em terra, o que possibilitou que os ataques aéreos norte-americanos destruíssem tanques e artilharia do EIIL. Antes, os comandantes do EIIL haviam conseguido esconder com eficácia seu armamento e dispersar as próprias forças terrestres. Até ali, das 6.600 missões de ataques aéreos, só 632 haviam atingido algum alvo em terra. Mas, na campanha para tomar Kobani, os comandantes do EIIL tiveram de concentrar as forças em posições identificáveis, e tornaram-nas vulneráveis. Num período de 48 horas, houve cerca de 40 ataques aéreos americanos, alguns a menos de 50 metros da linha de frente curda.

Não foi só o apoio aéreo que fez a diferença. Em Kobani, pela primeira vez o Isis enfrentou inimigo declarado – as Unidades de Defesa Popular (YPG) e seu braço político, o Partido da União Democrática (PYD) – os quais, sob aspectos importantes, assemelham-se. O PYD é o ramo sírio do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), que desde 1984 luta por autodeterminação para os 15 milhões de curdos turcos. Como o Isis, o PKK combina comprometimento ideológico fanatizado com expertise e talento militares, acumulados ao longo de muitos anos de guerra de guerrilhas. Originalmente de ideologia marxista-leninista, o PKK tem comando vertical e busca monopolizar o poder dentro da comunidade curda, tanto na Turquia como na Síria. O líder do partido, que está preso, Abdullah Ocalan, é objeto de um poderoso culto à personalidade, e distribui instruções de comando da prisão onde é mantido, numa ilha turca no Mar de Marmara. A liderança militar do PKK opera de uma fortaleza nas Montanhas Qandil, no norte do Iraque, uma das maiores fortalezas naturais que há no planeta. A maioria dos combatentes, estimados em 7 mil, retiraram-se da Turquia, nos termos de um acordo de cessar-fogo em 2013, e hoje se movimentam de acampamento em acampamento nos vales e gargantas profundas das Qandil. São fortemente disciplinados e apaixonadamente dedicados à causa do nacionalismo curdo. Graças a isso conseguiram manter-se vivos ao longo de 30 anos de guerra contra o gigantesco exército turco, sempre capazes de se recompor apesar das perdas devastadoras que têm sofrido. Como o EIIL, o PKK, também enfatiza o martírio: combatentes mortos são enterrados em cemitérios protegidos e bem cuidados, sempre no alto das montanhas, as sepulturas marcadas por pedras tumulares elaboradas. Lá há imagens de Ocalan por todas as paredes: há seis, sete anos, visitei um abrigo do PKK nas Qandil e vi, na encosta da montanha, uma enorme imagem de Ocalan construída com pedras coloridas. É uma das poucas bases de guerrilheiros, em todo o planeta, que pode ser vista do espaço.

Síria e Iraque estão cheios de exércitos e milícias que não combatem contra ninguém que possa responder ao fogo, mas o PKK e seus afiliados, o PYD e as YPG, são diferentes. Frequentemente criticados por outros curdos como grupo stalinista e antidemocrático, eles pelo menos construíram e mantêm capacidades para defender as próprias comunidades. A sequência de vitórias do Estado Islâmico contra forças superiores, no início desse ano, só aconteceu porque combatiam contra soldados, como os do exército iraquiano, absolutamente desmoralizados, mal armados, sem munição e, até, sem comida, resultado da ação de comandantes corruptos e incompetentes; aqueles soldados, ou muitos deles, estão sempre prontos a desertar. Quando alguns milhares de milicianos do Isis invadiram Mosul em junho, estariam, em teoria, desafiando 60 mil soldados e policiais iraquianos. O verdadeiro número provavelmente mal alcança 1/3 disso: os demais não passavam de nomes em listas, com os oficiais embolsando os soldos; ou existiam mesmo, mas só porque pagam metade de seus soldos aos comandantes, em troca de jamais terem de aparecer nem por perto de acampamentos militares. A situação pouco melhorou nos quatro meses seguintes, depois da queda de Mosul em 9 de junho de 2014. De acordo com um político iraquiano, recente inspeção de uma divisão blindada do exército iraquiano mostrou “que onde devia haver 120 tanques e 10 mil soldados, só havia 68 tanques e apenas 2 mil soldados”. A guerrilha peshmerga – literalmente “aqueles que desafiam a morte” – dos curdos iraquianos, tampouco é muito efetiva. São vistos frequentemente como soldados melhores que os do exército iraquiano, mas essa é reputação que conquistaram há 30 anos, quando combatiam contra Saddam; depois daquilo pouco combateram, exceto nas guerras civis curdas. Mesmo antes de serem expulsos pelo EIIL em Sinjar em agosto, observador atento da guerrilha peshmerga referiu-se a eles, depreciativamente, como “pêche melba”, que “só prestam para emboscadas nas montanhas”.

Os sucessos do Estado Islâmico foram muito facilitados não só pela incompetência dos inimigos, mas também pelas muitas divisões que se veem entre eles. John Kerry vangloria-se de ter montado uma coalizão de 60 países, todos comprometidos com lutar contra o Isis, mas desde o início já estava muito visível que muitos importantes membros da tal "coalizão" não estavam lá muito preocupados com a ameaça-Isis. Quando começou o bombardeio contra a Síria, em setembro, Obama anunciou, com orgulho, que Arábia Saudita, Jordânia, Emirados Árabes Unidos, Qatar, Bahrain e Turquia tinham se unido como parceiros militares dos EUA contra o Isis. Mas, como os americanos sabiam, todos esses são estados sunitas, que tiveram papel crucial no processo de arregimentar jihadistas para lutar contra governos eleitos na Síria e no Iraque. Foi um problema político para os EUA, como Joe Biden (vice-presidente dos EUA) confessou, para grande embaraço de todo o governo, em uma conversa em Harvard em 2 de outubro de 2014. Biden disse que Turquia, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos haviam promovido uma "guerra por procuração entre sunitas e xiitas" na Síria e "colocaram lá milhões de dólares e dezenas de milhares de toneladas de armas", para qualquer um que se interessasse em lutar contra Assad. O problema aí é que armas e dinheiro estão chegando diretamente às mãos da Frente al-Nusra e da al-Qaeda, e a situação está atraindo para lá jihadistas extremistas vindos de todos os cantos do mundo. Admitiu que: "... os rebeldes sírios moderados, que se supunha que fossem elemento central e efetivo para a política dos EUA na Síria, não passam de força militar mínima, de fato, desprezível." Adiante, Biden desculpou-se pelo que havia dito, mas o que disse é verdade e manifesta aquilo em que Washington realmente acredita. Depois de se mostrarem ofendidos pela franqueza de Biden, os aliados sunitas dos EUA rapidamente confirmaram os parâmetros da cooperação. O príncipe al-Waleed bin Talal al-Saud, magnata e membro da família real saudita, disse que "... a Arábia Saudita não se envolverá diretamente na luta contra o EIIL no Iraque ou na Síria, porque o grupo não afeta explicitamente nosso país." Na Turquia, Erdoğan declarou que "... no que lhe diz respeito, o PKK é tão ruim quanto o EIIL."

Ficaram excluídas dessa bizarra coalizão quase todas as forças que realmente dão combate ao Isis, incluindo o Irã, o exército sírio, os curdos sírios e as milícias xiitas no Iraque. A grande confusão gerada pelas “políticas” de Obama-Kerry-Biden muito beneficiou o Estado Islâmico, como se viu num incidente no norte do Iraque, no início de agosto, quando Obama enviou forças especiais para o Monte Sinjar para monitorar o perigo que ameaçava milhares de iazidis emboscados naquele local. Etnicamente curdos, mas com religião não islamista própria, os iazidis haviam fugido de suas cidades e vilas para escapar de serem massacrados ou escravizados pelo Isis. Os soldados dos EUA chegaram por helicóptero e permaneceram sempre escoltados e eficazmente protegidos por milicianos curdos uniformizados. Mas, de repente, voltaram a embarcar rapidamente nos helicópteros e partiram em disparada. O motivo para a partida precipitada, como depois se revelou em Washington, foi que o oficial encarregado do destacamento norte-americano havia conversado com sua escolta curda, e descobrira que não eram os peshmerga amigos dos EUA do Governo Regional do Curdistão, mas combatentes do PKK – ainda listados como “terroristas” pelos EUA, inobstante o papel crucialmente importante que tiveram no socorro aos iazidis e em obrigar o EIIL a retroceder. Só quando Kobani já estava à beira de ser tomada é que Washington afinal aceitou que não lhe restava alternativa, senão cooperar com o PYD: afinal de contas, o PYD era praticamente a única força efetiva que continuava a combater em solo, contra o EIIL.

E há também o problema turco. Os aviões dos EUA que atacam forças do Isis em Kobani tinham de voar quase 2 mil km a partir da base no Golfo, porque a Turquia não autorizava que usassem a base turca em Incirlik, a apenas poucos quilômetros de Kobani. Ao não impedir que reforços, armas e munições chegassem ao Isis em Kobani, Ankara mostrava que preferia ter o ISIL no comando da cidade: qualquer coisa lhe pareceria melhor que o PYD. A posição da Turquia já estava clara desde julho de 2012, quando o exército sírio, pressionado por rebeldes por todos os lados, abandonou as principais áreas curdas. Os curdos sírios perceberam que, de repente, haviam obtido uma autonomia de facto e que aumentava a autoridade do PKK. Localizados quase que ao longo da fronteira com a Turquia, área estrategicamente importante para o Isis, os curdos inesperadamente foram convertidos e atores na luta pelo poder na Síria. Não foi desenvolvimento que pudesse agradar aos turcos. As principais organizações políticas e militares dos curdos sírios eram ramos do PKK, seguindo ordens de Ocalan e da liderança militar em Qandil. Os insurgentes do PKK, que haviam por tanto tempo combatido por alguma forma de autonomia na Turquia, agora governavam um quase-estado na Síria, centrado nas cidades de Qamishli, Kobani e Afrin. Grande parte da região síria de fronteira permaneceria provavelmente em mãos dos curdos, dado que o governo sírio e seus oponentes eram ambos fracos demais para mudar esse quadro. Ancara pode não jogar como grande-mestre de xadrez na colaboração com o EIIL para quebrar o poder dos curdos, como entendem os teóricos da conspiração, mas viu a vantagem que poderia obter se deixasse o EIIL enfraquecer os curdos sírios. Essa política jamais foi exatamente muito prudente: se o EIIL conseguisse tomar Kobani, o que humilharia também os EUA, a Turquia, pressuposta aliada dos EUA seria vista como parcialmente responsável pelo desastre, depois de ter bloqueado a cidade. De qualquer modo, a mudança de curso dos turcos aconteceu em velocidade escandalosa. Poucas horas depois de Erdoğan dizer que a Turquia não ajudaria os terroristas do PYD, já estava autorizando os curdos iraquianos a reforçar as trincheiras do PYD em Kobani.

A virada total da Turquia foi o último de uma série de erros de cálculo cometidos sobre os desenvolvimentos na Síria desde o início dos tumultos de rua, em 2011. O governo de Erdoğan deveria ter se posicionado a favor do equilíbrio de poder entre Assad e a oposição. Em vez disso, convenceu-se de que Assad − como se fosse Gaddafi na Líbia – seria inevitavelmente derrubado do poder. Não aconteceu. E Ancara passou a apoiar grupos jihadistas pagos pelas monarquias do Golfo, entre os quais a Frente al-Nusra, afiliado sírio da al-Qaeda, e o Isis. A Turquia teve praticamente o mesmo papel, como força de apoio aos jihadistas na Síria, que coube ao Paquistão, que apoiou os Talibã no Afeganistão. Os estimados 12 mil jihadistas estrangeiros que hoje combatem na Síria, e que são motivo de graves preocupações na Europa e nos EUA, entraram, praticamente todos, por uma trilha que se tornou conhecida como “a rodovia dos jihadis”, que se serve dos pontos de passagem da fronteira turca, nos quais os guardas se fazem de cegos. Na segunda metade de 2013, por pressão dos EUA sobre a Turquia, essas vias tornaram-se mais difíceis para militantes do Isis, os quais contudo ainda atravessam a fronteira sem grande dificuldade. Ainda não se conhece muito bem a exata natureza das relações entre os serviços de inteligência turcos e o Isis e al-Nusra, mas há fortes evidências de que, sim, há grau considerável de cooperação entre eles. Quando rebeldes sírios liderados pela frente al-Nusra capturaram a cidade armênia de Kassab em território controlado pelo exército sírio, no início desse ano, parecia que os turcos os tivessem autorizado a operar a partir do território turco. Também foi muito misterioso o caso dos 49 membros do Corpo Consular da Turquia em Mosul que permaneceram na cidade enquanto era tomada pelo EIIL; foram mantidos como reféns em Raqqa, capital síria do Estado Islâmico, depois inexplicavelmente libertados, depois de quatro meses, em troca de membros do EIIL mantidos presos na Turquia.

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Se Erdoğan tivesse optado por ajudar os curdos encurralados em Kobani, em vez de traí-los, poderia ter fortalecido o processo de paz entre seu próprio governo e os curdos turcos. Em vez disso, suas ações só geraram protestos e tumultos de rua, entre os curdos, por toda a Turquia; cidades e vilas do interior do país nas quais nunca tinha havido manifestações de curdos ao longo de toda a história moderna foram queimadas e morreram 44 pessoas. Pela primeira vez em dois anos a aviação militar turca atacou posições do PKK no sudeste do país. Parece que Erdoğan jogou no lixo uma das principais realizações de seus anos de governo: ter dado início a uma solução negociada com a guerrilha armada curda. Hostilidade étnica e violência entre turcos e curdos aumentaram imediatamente. A polícia reprimiu manifestações populares anti-Isis, mas não interferiu em manifestações pró-Isis. 72 refugiados que fugiram de Kobani para a Turquia, foram mandados de volta para a cidade. Cinco membros do PYD que foram capturados pelo exército turco, foram descritos como “terroristas separatistas”. Houve surto de manifestações histéricas de apoiadores de Erdoğan: o prefeito de Ancara, Melih Gökçek, tuitou que “há gente no leste que se faz passar por curdo, mas são, na verdade, armênios ateus”. A imprensa-empresa turca, cada vez mais subserviente ou intimidada pelo governo reduziu muito a gravidade das manifestações de rua. A CNN turca, famosa por exibir um documentário sobre a vida dos pinguins, no auge das manifestações no Gezi Park, ano passado, optou por exibir, dessa vez, durante os protestos curdos, um documentário sobre a vida das abelhas.

Que efeito negativo haverá contra o Isis, se não conseguir tomar Kobani? A reputação de sempre derrotar os inimigos sofrerá um pouco, mas já demonstraram que podem sobreviver a ataques aéreos dos EUA, mesmo no caso de estarem com suas forças concentradas num só ponto. O califado declarado por Abu Bakr al-Baghdadi dia 29 de junho de 2014 continua a expandir-se: as maiores vitórias na Província Anbar asseguraram ao califado mais um quarto do Iraque. Uma série de ataques bem planejados em setembro garantiram ao Isis o controle de terras em torno de Fallujah, cerca de 60 km a oeste de Bagdá. Um acampamento do exército iraquiano em Saqlawiyah foi cercado durante uma semana e invadido: 300 soldados do exército iraquiano foram mortos. Como no passado, o exército mostrou-se incapaz para qualquer contraofensiva efetiva, mesmo com todo o apoio dos ataques aéreos norte-americanos. Em 2 de outubro de 2014, o Isis lançou uma série de ataque bem-sucedidos para capturar Hit, cidade ao norte de Ramadi, deixando o governo com apenas uma única base do exército na área. Há hoje forças do Isis muito próximas dos enclaves sunitas no oeste de Bagdá: até agora, permanecem paradas, embora todas as demais áreas sunitas do país tenham estado em torvelinho. Segundo prisioneiros do Isis, as células do Isis na cidade estão à espera de ordem, para entrar em ação coordenada com ataque que virá de fora da capital. É possível que o Isis não consiga tomar toda a cidade de Bagdá, onde vivem sete milhões de pessoas (a maioria, xiitas), mas poderia tomar as áreas sunitas e gerar pânico na capital. Nos bairros ricos, onde convivem várias religiões, como em al-Mansour, no setor oeste de Bagdá, metade dos habitantes já partiram rumo à Jordânia ou Golfo, porque não têm dúvidas de que o EIIL atacará a cidade. "Acho que o ISIL atacará Bagdá, no mínimo para ocupar os enclaves sunitas,disse um morador. Se conseguirem manter pelo menos parte da capital do Iraque, aumentará a credibilidade do que dizem, que criaram um novo estado." Enquanto isso, o governo e as empresas locais de imprensa dedicam-se empenhadamente em reduzir a gravidade da situação e da possibilidade real de o ISIL invadir a capital, tentando conter a corrida rumo a áreas sunitas mais seguras no sul.

A substituição do governo corrupto e disfuncional de Nouri al-Maliki por Haider al-Abadi não fez tanta diferença quanto seus apoiadores estrangeiros gostariam de ver. Porque o desempenho do exército absolutamente não melhorou, as principais forças que estão enfrentando o Isis são milícias xiitas. Fortemente sectárias e frequentemente criminalizadas, são elas que lutam furiosamente em torno de Bagdá para forçar o Isis a retroceder e para expulsar a população sunita das áreas mistas. Sunitas são frequentemente aprisionados nos pontos de passagem, trocados por resgates de dezenas de milhares de dólares, mas mais frequentemente assassinados depois que o resgate é pago. A Anistia Internacional diz que os milicianos, inclusive a Brigada Badr e o grupo Asaib Ahl al Haq, operam sob total imunidade; ela acusou o governo dominado pelos xiitas de estar “acobertando crimes de guerra”. Com o governo do Iraque e os EUA pagando grandes somas de dinheiro a empresários, comerciantes, líderes tribais e a qualquer um que diga que combaterá contra o Isis, os senhores-da-guerra locais estão novamente em alta: desde o mês de junho, foram criadas de 20 a 30 novas milícias. Tudo isso significa que os sunitas iraquianos não têm escolha, a não ser manter-se ao lado do Isis. A alternativa seria a volta dos ferozes milicianos xiitas, que desconfiam de que todos os sunitas sempre apoiam o Estado Islâmico. Precariamente recuperado da mais recente guerra, o Iraque já está sendo devastado por nova guerra. Aconteça o que acontecer em Kobani, o Isis não implodirá. Qualquer intervenção estrangeira só fará aumentar o nível de violência, e oposição entre sunitas e xiitas ganhará novo impulso, sem fim à vista.

Patrick Cockburn é correspondente do Oriente Médio para o Independent desde 1990. Seus livros incluem um livro de memórias, The Broken Boy, bem como vários estudos sobre o conflito no Iraque e Behind Enemy Lies: War, News and Chaos in the Middle East.

15 de outubro de 2014

Caminhoneiros vermelhos

Os líderes radicais de Minneapolis mostraram como é o sindicalismo democrático.

Bryan D. Palmer

Jacobin

National Archives and Records Administration / Wikimedia Commons

Tradução / Não é segredo que o trabalhador estadunidense está em apuros. Os empregos são cada vez mais precarizados e os salários reais experimentam uma tendência de queda há décadas. Os sindicatos, outrora fortes e agressivos, hoje frequentemente parecem bater em retirada, forçados a um conservadorismo defensivo. Apenas um em cada dez assalariados paga contribuições sindicais, 21% dos 14,5 milhões de sindicalizados nos Estados Unidos vive em dois estados, Nova York e Califórnia.

Em muitas outras regiões do país, sindicalismo é um palavrão. O espírito e a solidariedade do movimento operário são pilheriados como exóticos em relação aos princípios de uma sociedade (em que o mercado é) livre.

Certamente, existem sinais de que muitos trabalhadores querem reconstruir um sindicalismo militante. Mas, como isso pode ser feito? Se nós queremos reconstruir o movimento operário, primeiro é importante avaliar o que os trabalhadores alcançaram no passado, e examinar como eles conseguiram vencer lutas em condições que eram possivelmente muito piores do que aquelas confrontando os trabalhadores hoje. Se queremos ressuscitar os politicamente inconscientes, a injunção de Fredric Jameson “Historicize sempre!” é um bom ponto de partida.

O ano de 2014 marcou o octogésimo aniversário de um dos mais importantes embates de classes na história do movimento operário dos Estados Unidos. Ao longo de sete meses de 1934, os caminhoneiros de Minneapolis travaram três greves. Essas históricas batalhas prepararam o palco para um novo tipo de sindicalismo na continuidade dos anos 1930. E, décadas depois, elas ainda são relevantes para um movimento operário fragilizado.

Constituindo uma cidade sindicalista contra as probabilidades

Nos anos 1920, Minneapolis era dominada por empregadores reacionários e avessos aos trabalhadores. Eles estavam organizados em uma poderosa entidade conhecida como a Citizens’ Alliance [Aliança dos Cidadãos], fundada nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial. A Alliance elaborava listas negras de organizadores sindicais; vigiava de perto os radicais; e contratava espiões, seguranças privados e alcaguetes. As greves eram esmagadas. Minneapolis era conhecida como um refúgio para os pelegos.

Os radicais compreendiam a dimensão da sua derrota. Em uma manifestação no 1º de maio de 1920 em Minneapolis, eles amarraram um cartaz em um burro: “Eu e todos os meus parentes trabalhamos em um mercado aberto [open shop]”, dizia o texto.

Ainda assim, ao final do ano de 1934, Minneapolis passar a ser uma cidade sindicalista e a aparentemente toda poderosa Aliança dos Cidadãos fora derrotada.

O General Drivers’ Union (GDU – Sindicato Geral dos Motoristas), Seção Local 574 da International Brotherhood of Teamsters (IBT – Fraternidade Internacional dos Caminhoneiros), foi o improvável motor dessa transformação nas relações de classe. Com menos de 175 membros dirigindo caminhões dispersos em pequenas empresas de caminhões e de táxis de Minneapolis em 1933, o GDU parecia qualquer coisa, menos um veículo de mobilização militante.

Os líderes da Seção Local 574 eram uma burocracia fossilizada, hostil a qualquer tipo de ação militante. O presidente da International Brotherhood, Dan Tobin, de Boston, era um sindicalista negocial do velho estilo da American Federation of Labor (AFL – Federação Americana do Trabalho). Relutante em aprovar greves, ele louvava a respeitabilidade da sua fraternidade de caminhoneiros, “artesãos” que Tobin enxergava como superiores aos imigrantes não-qualificados e aos trabalhadores “de cor” que trabalhavam em empregos não-organizados, mal remunerados e inseguros. Tobin se esforçava ao máximo para afastar a base dos caminhoneiros das correntes radicais que circulavam pelo sindicalismo há décadas.

Uma dessas correntes estava enraizada em Minneapolis. No final dos anos 1920 e início dos 1930, ela parecia enterrada nas profundezas dos depósitos de carvão da cidade. Numericamente poucos, esses militantes eram isolados pela burocracia dos caminhoneiros, mantidos afastados do sindicato, e atacados publicamente como perigosos “vermelhos”. Eles decidiram constituir um comitê organizativo informal, composto por uma dúzia de motoristas e carregadores de carvão majoritariamente não sindicalizados.

A partir desse começo pouco auspicioso, o contingente rebelde organizou e liderou as greves de 1934 que alteraram a correlação de forças classistas em Minneapolis. A associação à Seção Local 574 explodiu, chegando a 7 mil membros, e o sindicato se tornou uma força vibrante. Ele liderou uma marcha organizativa em onze estados, que levou dezenas de milhares de caminhoneiros que trabalhavam por empreitada ao movimento operário, ampliando as bases nacionais da International Brotherhood of Teamsters a 500 mil no início dos anos 1940.

A emersão dos revolucionários

O punhado de radicais que programaram essa nova direção formava um grupo revolucionário. Figuras-chave entre eles haviam sido membros dos Industrial Workers of the World (IWW – Trabalhadores Industriais do Mundo) ou do Socialist Party. Tendo se frustrado em relação a essas organizações, eles ajudaram a fortalecer o Communist Party (CP – Partido Comunista) nos anos 1920. Entretanto, a crescente estalinização da Internacional Comunista, e suas reverberações no partido estadunidense, não foi bem digerida por eles.

Em 1928-1929, os dissidentes de Minneapolis criticaram o alinhamento do Partido Comunista à União Soviética, levando à sua expulsão em massa de um partido em cuja construção eles haviam sido muito ativos. Eles se tornaram parte de um pequeno movimento trotskista cujo centro estava em Nova York, denominado Communist League of America (CLA – Liga Comunista da América); a organização seria renomeada Socialist Workers Party (SWP – Partido Socialista dos Trabalhadores) em 1938.

A CLA de Minneapolis foi liderada por Carl Skoglund, um socialista sueco que imigrara para os Estados Unidos em 1911 após organizar greves e um motim de soldados conscritos, e Vincent Ray Dunne, possivelmente o “vermelho” de Minnesota com maior presença pública ao longo dos anos 1920. A dupla de trotskistas percebeu que organizar a indústria do transporte em Minneapolis era central para ressuscitar a militância trabalhista em meio à calmaria da Grande Depressão.

Eles sabiam que a direção oficial da IBT, implacavelmente conservadora, não seria de nenhuma utilidade. Então, Skoglund, Dunne e outros membros da CLA foram atuar por conta própria. Discutindo o sindicato com seus companheiros de trabalho, esses militantes recrutaram um pequeno número de trabalhadores para seu círculo mais próximo. Eles abriram discussões sobre problemas de longa data com trabalhadores descontentes na base, envolvendo tanto filiados ao sindicato, quanto trabalhadores não-organizados.

Desse pequeno começo, cresceu entre a classe trabalhadora a percepção de que havia um alternativa à burocracia local da IBT. Tudo poderia ter sido perdido, entretanto, se esse comitê organizativo voluntário tivesse se precipitado, convocando uma greve açodadamente e conduzindo os trabalhadores rumo à derrota. De fato, no mesmo momento em que Dunne foi demitido de seu trabalho em um depósito de distribuição de combustíveis ao final da temporada do carvão de 1933, por terem os patrões se cansando de sua presença pública em protestos dos desempregados, houve clamores por uma ofensiva. Dunne e Skoglund sabiam que a primavera (com as entregas de carvão caindo a quase zero) não era o momento para uma confrontação com os patrões.

Os agitadores trotskistas continuaram com o seu trabalho entre os caminhoneiros. Indo além, consolidaram as relações com os trabalhadores insatisfeitos, mas também desenvolveram uma hábil estratégia de neutralização da burocracia local da IBT. Primeiro, os militantes trotskistas cultivaram relações de trabalho próximas com dois dirigentes da IBT não membros da CLA que demonstravam um espírito de luta, atraindo-os para a sua perspectiva. Segundo, também garantiram um assento na direção executiva da Seção Local 574, conseguindo para o irmão de Dunne uma posição remunerada no âmbito do GDU, no qual ele insistiu na necessidade elementar da preparação dos trabalhadores para uma possível ação de enfrentamento.

Como Farrel Dobbs perceberia posteriormente, “a tática escolhida era a de direcionar a munição dos trabalhadores diretamente sobre os empregadores e pegar os burocratas sindicais no fogo cruzado. Se eles não reagissem positivamente, ficariam desacreditados”. Tudo isso empurrava os líderes sindicais conservadores para posições nas quais eram forçados a, pelo menos, falar na construção do tipo de sindicalismo combativo que na verdade abominavam. Isso, em contrapartida, alimentava o apetite por mudança entre os trabalhadores do ramo, organizados ou não. Um resultado disso foi que a Seção Local 574 efetivamente aprovou uma greve em votação com meros 34 membros sindicalizados presentes. Logo, entretanto, encontros organizados pelo comitê organizativo voluntário estavam atraindo centenas de trabalhadores entusiasmados. Eles exigiam ação militante, e não as habituais festas de pijama da IBT.

Uma primeira greve

Alguns dos mais importantes dentre esses atos sindicais “alternativos” foram marcados em tardes de domingos, sabendo-se que os burocratas da IBT não compareceriam. Eles agitaram os trabalhadores para perceber quais deveriam ser as demandas de uma greve e promoveram a necessidade de arrancar concessões dos patrões.

A ofensiva finalmente veio durante uma temporada de frio em fevereiro de 1934. Com as companhias precisando transportar o combustível às fornalhas dos clientes, Skoglund e Dunne entenderam que os caminhoneiros encarregados de entregar o carvão estariam em um posição de vantagem.

No dia da greve, os líderes militantes trancaram seus caminhões dentro dos pátios de carvão. Haviam sido escolhidos líderes de piquetes, e a eles foram fornecidas instruções mimeografadas esboçando as tarefas e responsabilidades dos líderes da greve. Em função do grande número de locais de trabalho espalhados pela cidade, os piquetes precisavam ser móveis. Caminhões de carvão e automóveis foram orientados a formar “esquadrões volantes”. Eles interceptaram caminhões conduzidos por fura-greves, os apreenderam e despejaram suas cargas em bairros de trabalhadores, onde catadores rapidamente coletaram o carvão gratuito.

Em algumas horas, 65 dos 67 pátios de carvão em Minneapolis estavam fechados e 150 escritórios de despacho de carvão haviam interrompido o funcionamento. Os líderes do direção da IBT, os patrões do carvão, e as empresas de caminhões ficaram todos perplexos. Nenhum deles havia previsto a dramática efetividade da greve.

Os proprietários cederam após dois dias e meio, e o GDU aceitou uma vitória parcial na qual os salários foram modestamente aumentados. Mais importante, os patrões foram forçados a reconhecer o sindicato durante uma greve real, algo que não acontecia há mais de 20 anos.

Organizando os trabalhadores para a vitória

Na ressaca da greve de fevereiro de 1934, os revolucionários da CLA efetivamente dominaram a Seção Local 574. Eles haviam ganho o respeito dos trabalhadores em uma verdadeira batalha contra os patrões. Também haviam construído uma cabeça de ponte dentro da IBT local, consolidando relações com aqueles poucos diretores que realmente queriam ampliar o sindicalismo em Minneapolis e fomentar a luta de classes. A partir dessa base de controle, a CLA criou uma infraestrutura que poderia alimentar e sustentar uma militância de base.

O resultado foram duas greves, em maio e julho. Muito maiores e longas que a ofensiva de fevereiro, elas foram planejadas até os mínimos detalhes. Mas as apostas haviam mudado. A principal batalha desses enfrentamentos de classes era em torno de um novo tipo de sindicalismo inclusivo organizado por indústria.

Uma diferença decisiva entre a burocracia da IBT liderada por Tobin e o GDU de Minneapolis liderado pela CLA era que, para os militantes, as greves de 1934 foram travadas para abranger todos os trabalhadores do ramo. A Seção Local 574 seria construída pela luta – contra patrões e burocracias sindicais – para incluir todos aqueles que transportavam bens, carregavam caminhões e preparavam vegetais nos distritos de mercados e armazéns de Minneapolis.

Para marginalizar ainda mais seus precavidos oponentes da cúpula sindical, que não queriam nenhuma relação com um sindicalismo de massas no setor de caminhões, a liderança da CLA criou um “Comitê de Greve de 100”, que tornou pequenos os burocratas do GDU que permaneciam relutantes. Os membros da CLA e seus defensores agora dominavam todos os pequenos, e criticamente importantes, comitês de organização e negociação.

Os empregadores e seus aliados revidaram violentamente, escorando-se cada vez mais na Citizens’ Alliance. Os poderes municipal e estadual rapidamente cerraram fileiras ao lado da lei e da ordem.

O prefeito apoiou uma força policial vingativa liderada por um chefe determinado a esmagar os trabalhadores e disposto a executar grevistas e seus apoiadores nas ruas se necessário. “Vocês têm espingardas, e vocês sabem como utilizá-las”, foi a instrução dada pelo Chefe de Polícia Johannes aos seus homens em julho de 1934.

Um líder de piquete descreveu a carnificina policial em uma infame batalha, lembrada como a “sexta-feira sangrenta”: “Eles simplesmente ficaram loucos. Na verdade, eles atiravam em qualquer pessoa que se movesse. (…) eles continuavam atirando até que todos os participantes dos piquetes tivessem se escondido ou conseguido abrigo em algum lugar. Oh, eles não estavam de brincadeira”. O relato do romancista Meredel Le Sueur foi mais aterrorizantemente lírico: “Os policiais abriram fogo (...) homens ficaram estirados nas ruas gritando com sangue jorrando da miríade de ferimentos que as balas de grosso calibre haviam causado. Instintivamente se virando para buscar proteção, eles eram alvejados nas costas (...) Nenhum dos participantes dos piquetes estava armado com mais do que palitos de dentes”.

Dois trabalhadores morreram na “sexta-feira sangrenta”: Henry Ness, um grevista, cravado de chumbo grosso, sucumbiu aos seus ferimentos quase imediatamente. John Bellor, um apoiador da greve desempregado, também gravemente ferido na batalha, morreu dias depois. Quarenta mil tomaram as ruas e marcharam acompanhando o funeral de Ness.

Para piorar a situação, o governador Floyd B. Olson, a despeito de se autoproclamar um amigo do trabalhador, convocou a Guarda Nacional para o cenário crescentemente tempestuoso, prendendo os líderes da greve e ocupando sedes de sindicatos. Os líderes da greve estavam preparados para esse tipo de oposição. Eles desenvolveram uma extensa rede de inteligência formada por secretários que trabalhavam para variadas empresas, os quais explicavam o que os magnatas dos caminhões preparavam para seu próximo passo. O sindicato ocupou as ruas e os céus. Ele conseguiu um avião para promover a causa dos trabalhadores com faixas aéreas e um grupamento de motociclistas adolescentes para transportar através de Minneapolis os relatórios dos acontecimentos produzidos pelos líderes da greve.

Eventualmente, como a greve de julho-agosto fazia da guerra entre as classes o drama principal da cidade, irremediavelmente dividindo Minneapolis em campos favoráveis e contrários à greve, a liderança da CLA começou um jornal diário da greve, The Organizer, dirigido por um experiente quadro trotskista de Nova York.

O sindicato organizou seu quartel-general em uma garagem abandonada que ocupava um quarteirão inteiro. O “centro nervoso” do quartel-general grevista era um conjunto de telefones operado por voluntários. Para esses telefones fluíam ligações dos líderes de piquetes através de quinze distritos delineados na cidade, esboçando as condições e pedindo ajuda quando era necessário. Um rádio de ondas curtas era usado para monitorar a comunicação policial. Dunne e Dobbs supervisionavam a distribuição dos piquetes.

Uma despensa foi organizada. Fazendeiros doaram comida para a cozinha, equipada para alimentar cinco mil trabalhadores por dia. Cozinheiros se apresentaram para preparar refeições. Um hospital improvisado foi estabelecido em uma seção do quartel-general para cuidar dos trabalhadores feridos e seus apoiadores. Médicos e enfermeiros compassivos ocuparam a estrutura em suas horas de repouso. Uma organização de trabalhadores desempregados foi estruturada; aqueles em suas fileiras foram nomeados membros honorários do GDU.

Uma unidade auxiliar de mulheres atraiu esposas e filhas, mães e tias. Todas ajudaram a construir o sindicato. Integradas à luta, aquelas mulheres serviam refeições, sanduíches e café aos grevistas; distribuíam o jornal do sindicato; angariavam fundos; marchavam à prefeitura; e até lutavam, de porretes nas mãos, nas linhas de piquetes.

A Seção Local 574 também foi transformada em modelo de procedimentos democráticos e discussão aberta. Reuniões de massas regularmente convocadas mantinham os filiados a par dos desdobramentos da greve. Quando efetivamente garantiram posições pagas no sindicato após as vitórias das greves de 1934, os trotskistas dirigindo a insurgência dos caminhoneiros alteraram as escalas de salários, garantindo que os burocratas do sindicato não recebessem mais do que aqueles que trabalhavam no ramo.

Ao final, os trabalhadores venceram, e venceram bem. A luta sindical foi garantida em Minneapolis. Certamente, os salários subiram e as condições de trabalho melhoraram. Mas, talvez, ainda mais importante, os sindicalistas viram a si mesmos e ao mundo de forma diferente. Os possíveis frutos da luta coletiva e da solidariedade agora estavam presentes no modo como os trabalhadores compreendiam as suas vidas.

Os guerreiros da guerra de classes e o medo vermelho

Tudo isso deixou os patrões apopléticos. A Seção Local 574 e sua liderança trotskista foi vilipendiada nos principais jornais. O anticomunismo cobriu Minneapolis em 1934 como uma densa neblina.

Empregadores e seus aliados socioculturais sem dúvida dirigiam o “medo vermelho” na cidade naquele ano, mas líderes sindicais conservadores como Tobin também contribuíram. Um grevista escreveu para o The Organizer que, como “membro da 574”, ele era “um índio Chippewa e um verdadeiro americano”, “não um comunista”, mas ele desprezava a forma como certos líderes da IBT estavam adicionando “combustível ao fogo” com a suas persistentes acusações de comunismo.

Uma das lideranças da Seção Local 574 era Ray Rainbolt, um caminhoneiro da nação indígena Sioux que atribuía a Dunne seu recrutamento para a causa dos trabalhadores. Rainbolt desempenhou um papel decisivo nas greves de 1934, atuando em diversos comitês cruciais e enfrentando o governador Olson.

No final dos anos 1930, Rainbolt aderiu ao SWP e liderou a Union Defense Guard (UDG – Guarda de Defesa Sindical). Esse corpo foi formado quando os fascistas conhecidos como Silver Shirts [Camisas Prateadas] ameaçaram se organizar em Minneapolis. Os Silver Shirts perceberam a importância de se infiltrar nos então poderosos sindicatos, transformando-os em locais de recrutamento da direita e substituindo visões de mundo de fundo classista pelo seu racismo e antissemitismo perniciosos. Rainbolt, que tinha a experiência militar da Primeira Guerra Mundial, recrutou os sindicalistas armados de rifles da UDG, treinando-os para a ocasião de um ataque reacionário que nunca se materializou.

Expandindo o significado da luta local

Minneapolis não era o único ponto quente na guerra de classes de 1934. Outras greves, incluindo aquelas sustentadas pelos trabalhadores de autopeças de Toledo e pelos estivadores de São Francisco, também eram batalhas significativas. Elas também eram lideradas por “vermelhos”. Mas a sua liderança não era nem tão vinculada às localidades e aos seus ramos típicos, nem tão bem sucedida quanto os trotskistas de Minneapolis.

As greves de Minneapolis irromperam em um momento em que o movimento operário americano estava preparado para dar um importante passo a frente. Em cinemas espalhados pelos Estados Unidos, milhões assistiram a curtas-metragens mostrando trabalhadores, policiais e “xerifes especiais” recrutados pela Citizen’s Alliance lutando nas ruas do distrito do mercado de Minneapolis. O público, da classe trabalhadora, assistia aos trabalhadores de Minneapolis responderem à violência – não com submissão, mas com resistência.

Na “Batalha da Fuga dos Xerifes” de 22 de maio, os grevistas despacharam os 1.500 “xerifes especiais”. Descritos como um bando maltrapilho de “vendedores, balconistas e golfistas patrióticos” animados por um frenesi contra os “ditadores vermelhos”, os recrutas anti-greve da Citizen’s Alliance também incluíam rapazes das fraternidades universitárias, rufiões pagos, playboys e membros da alta sociedade, incluindo alguns que iam às linhas de piquete trajando calças de equitação e chapéus-pólo ou botas de alpinismo com solados de ferro, as quais estavam longe de ser o calçado mais adequado para uma luta em becos pavimentados com paralelepípedos.

Dois de seus membros – o advogado da Citizens’ Alliance, empresário local e pilar da respeitável sociedade de Minneapolis, Arthur Lyman, e um “pequeno capitalista” marginal do setor de transporte de madeira, Peter Erath – sucumbiram a ferimentos recebidos em um embate mortal no mercado com grevistas já acossados pela brutalidade policial.

Meridel Le Sueur escreveu sobre um “mundo emergente... vindo do passado... até o futuro... É o sentido da violência que emerge... o ponto do abandono do crescimento”.

John L. Lewis, líder da United Mine Workers of America (UMA – União dos Mineiros da América) enxergou a greve de maneira similar. Como um dos primeiros biógrafos de Lewis, Saul Alinsky, escreveu em 1947, quando “o sangue correu [pelas ruas de] Minneapolis”, o robusto e idiossincrático líder do sindicato dos mineiros parou para pensar.

Lewis não era entusiasta da organização sindical militante e democrática, mas ele conseguia compreender que o moribundo sindicalismo da AFL precisava ser revitalizado. Dessa forma, o sindicalismo do Congress of Industrial Organization (CIO – Congresso da Organização Industrial), voltado à produção em massa, que Lewis em breve defenderia, nasceu das percepções e atividades dos líderes da CLA de Minneapolis e das lutas das bases militantes que eles mobilizaram.

A liderança revolucionária no tribunal

Apesar de todo o sucesso da revolta dos trabalhadores de Minneapolis em 1934, as suas conquistas não sobreviveriam na era posterior à Segunda Guerra Mundial. Trabalhadores seguindo a liderança de trotskistas, revidando contra os patrões e os burocratas sindicais e, em face da ameaça fascista, se armando em uma Union Defense Guard, certamente chamaram a atenção de poderosos oponentes.

Como esses mesmos trabalhadores levaram as lições de Minneapolis para a marcha organizativa interestadual da IBT de final dos anos 1930, o Departamento de Justiça, o Federal Bureau of Investigations (FBI), os empregadores, o recém-eleito governador republicano de Minnesota, a burocracia da IBT (com um jovem e posteriormente infame Jimmy Hoffa desempenhando papel central), e até mesmo rivais de esquerda como o Partido Comunista, entraram em conluio durante a Segunda Guerra Mundial para derrotar e deslocar os trotskistas da direção dos caminhoneiros de Minneapolis.

Servindo-se da notória Lei Smith de 1939, a qual sufocou o dissenso rotulando-o como traição, o Estado aproveitou o clima de guerra de 1940-1943 para levar 29 militantes do SWP e líderes dos caminhoneiros de Minneapolis aos tribunais com acusações forjadas; 18, incluindo muitos líderes do movimento trotskista dos Estados Unidos, foram mandados de trem para a prisão.

Tobin e a burocracia da IBT, confiando nos comitês de certificação de sindicatos do Estado, em contratos acordados com os empregadores para prejudicar aos trabalhadores, e em bandos de rufiões liderados por Hoffa, atacaram a Seção Local de Minneapolis nos tribunais e nas ruas. Conduzidos para fora da AFL e em direção ao CIO, e então forçados a reconhecer que não conseguiriam sustentar um sindicato contra empregadores recalcitrantes, o Estado e a burocracia oficial dos caminhoneiros, os trotskistas que haviam revigorado o sindicalismo em Minneapolis foram forçados a abdicar de suas posições de liderança em favor das forças de Tobin/Hoffa. Foi um desfecho lamentável.

Relembrando 1934

Aqueles que desejam reconstruir o movimento operário podem aprender – e, em alguns casos, aprenderam – com os eventos de 1934 em Minneapolis.

A greve dos professores de Chicago em 2012, por exemplo, se originou em um pequeno comitê organizativo de militantes que conseguiu levar um sindicato que evitava a luta de classes aberta desde 1987 a uma épica confrontação com um prefeito neoliberal. Não surpreendentemente, o Caucus of Rank-and-File Educators, no percurso dessa mobilização bem sucedida, sediou grupos de leitura para organizadores que se debruçaram nos relatos de Farrell Dobbs (1976) para as greves de 1934, Teamster Rebellion.

Do movimento Occupy aos protestos em Wisconsin, das vitórias do salário mínimo em Seattle e em outros lugares às lutas para organizar os funcionários do Walmart, os trabalhadores estão mostrando que são capazes de lutar para vencer e que a luta de classes está, novamente, na agenda.

Entretanto, a maioria dessas lutas atuais, a despeito de sua crucial importância, continua enfraquecida pela falta do tipo de liderança política que guiou as greves de 1934 em Minneapolis. Décadas depois, um membro do “Comitê de Greve dos 100” relembrou: “A base era realmente o poder de todo o movimento, mas ela ainda precisava de uma direção para guiá-la. Não importa a qualidade de um exército; sem um general, ele não serve para nada”. A luta pelo renascimento dos sindicatos na era do capitalismo neoliberal é simultaneamente a luta para reconstruir a esquerda revolucionária.

Os trotskistas de Minneapolis fornecem um exemplo da face que a esquerda deveria ter. Eles não estavam, ao contrário do que supunham as acusações de “comunismo” da Citizens’ Alliance, fazendo a “Revolução em Minneapolis” em 1934. O objetivo deles era muito mais modesto. Eles queriam construir um sindicalismo democrático e adequado à produção de massa, criando uma defesa para a classe trabalhadora contra os piores excessos da exploração capitalista e transcendendo a estreita concepção de organização dos trabalhadores baseada na reserva de mercado de Dan Tobin e sua laia.

Em sua recusa militante e principista a sucumbir ao sindicalismo de negócios, os líderes das greves de Minneapolis construíram pontes importantes para possibilidades radicais. Foi essa militância obstinada que impeliu o Estado e o capital, ajudados por sindicalistas conservadores, a atacar e marginalizar a liderança das greves de 1934 em Minneapolis e sua compreensão da forma pela qual o sindicalismo nos Estados Unidos deveria ser reconstruído.

Oitenta anos depois, essas greves, com suas lições sobre a capacidade dos trabalhadores de lutarem até mesmo em tempos difíceis, ainda vivem para nós como um possível caminho.

Colaborador

Bryan D. Palmer é autor de Revolutionary Teamsters: The Minneapolis Truckers' Strikes of 1934 e co-autor de Toronto's Poor: A Rebellious History, a ser lançado em breve.

9 de outubro de 2014

Os falsos amigos de Kobanî

O significado da luta em Kobanî não pode ser exagerada. Mas a solidariedade internacional real não virá na forma de intervenção militar.

Errol Babacan e Murat Çakir

Jacobin

Um combatente assírio no cemitério dos mártires perto de Hassake, uma cidade no nordeste da Síria. A série de fotos de acompanhamento foi produzida por Roman Kutzowitz em outubro de 2014 da região autônoma de Rojava.

Tradução / Por quase quatro meses, militantes fortemente armados do Estado Islâmico (EI) fizeram um cerco à cidade de Kobanî no Curdistão sírio (Rojava).

Inicialmente temeu-se um novo massacre orquestrado pelo Estado Islâmico. Mas as unidades caseiras de defesa de Kobanî, apesar do fato de que inevitavelmente seriam derrotadas militarmente, foram capazes de repelir as incursões do EI por um tempo surpreendentemente longo - e por grande parte deste tempo sem ajuda. Tratou-se de uma batalha campal que tomou repetidamente a forma de uma luta amarga casa a casa.

No entanto, com a questionável expansão cronometrada de assistência militar dos Estados Unidos e a abertura do território turco às forças Peshmerga do Curdistão iraquiano, a maré parece estar virando. A luta corpo a corpo dentro de Kobanî tem tudo para terminar, embora os arredores da cidade permaneçam ocupados pelo Estado Islâmico.

Depois da onda de manifestações de solidariedade para Kobanî em toda a Europa, em outubro e novembro, a atenção internacional sobre a região diminuiu visivelmente com a chegada dos reforços Peshmerga. No entanto, a situação ainda é militar e politicamente complexa, e a batalha sobre Kobanî permanece em parte uma batalha sobre os meios adequados de solidariedade internacional.

O debate sobre qual forma prática e concreta essa solidariedade deve assumir não está resolvido. Numa fase inicial da luta, alguns parlamentares da Esquerda Alemã (Die Linke) - apesar da rejeição de longa data do Partido a intervenções militares - propuseram uma operação internacional sob comando das Nações Unidas (ONU). Enquanto parlamentares da Die Linke saíram à frente, um público cético alemão viu-se novamente se questionando sobre qual posição tomar a respeito das operações militares internacionais.

Ao mesmo tempo, o secretário-geral da ONU, Ban Ki Moon, convocou aqueles que poderiam proteger a população civil de Kobanî a fazê-lo. Isso levantou mais questões, não apenas sobre quem exatamente poderia responder a esse apelo, mas também sobre o quão realista era a esperança de uma intervenção militar, cujo objetivo principal seria a proteção de civis e não a busca do poder. Diante de um incêndio se espalhando, o cuidado deve ser tomado para não pedir ajuda de quem ateou o fogo em primeiro lugar e, em seguida, encharcou-o com gasolina.

O papel da Turquia

A intervenção planejada de tropas terrestres turcas tem sido uma das propostas mais duvidosas. Esta foi, em qualquer caso, a suposição de um plano controverso; a França tinha declarado o seu apoio ao estabelecimento de uma zona de amortecimento (buffer zone) pela Turquia, enquanto a Grã-Bretanha e os EUA rejeitaram esta proposta, pelo menos em público.

Dado que tem sido relatado que os militantes do EI têm atravessado a fronteira turco-síria com facilidade, e no contexto de hostilidade de longa data da Turquia aos interesses curdos, ficou claro que um plano desse tipo equivaleria à raposa vigiando o galinheiro.

A transformação da opinião pública na Alemanha é igualmente notável. Algumas semanas antes do ataque dos militantes do EI em Kobane começar, o esmagador consenso na mídia alemã era de que a Turquia estava apoiando ativamente os atacantes do EI. Então, de repente, a Turquia deixou de ser considerada como uma participante ativa no conflito do lado do EI, e sim como uma observadora preocupada - acusada apenas por sua inércia ou incompetência. A Turquia mobilizou blindados pesados na fronteira, mas não chegou a “invadir”.

De fato, não foi apenas a mídia que apareceu de repente a fim de ver o papel da Turquia de forma mais caridosa. Até mesmo alguns políticos curdos pareciam nutrir expectativas positivas.

O co-presidente do Partido Curdo Sírio de Unidade Democrática (PYD), Salih Müslim, explicou isso desta forma: em conversas com a Turquia, havia sido prometido que um corredor ao longo da fronteira sírio-turca seria aberto para permitir que a ajuda pudesse chegar às cidades sitiadas em regiões curdas mais a leste, na Síria.

Confiando nesta mesma promessa, o movimento curdo na Turquia declarou publicamente que iria se abster de novas mobilizações de massa e afirmou seu firme compromisso com as assim-chamadas negociações de paz com o governo turco.

O precioso tempo voou. O cerco apertou em torno da cidade, e a promessa de um corredor de ajuda permaneceu não cumprida.

Desde que ficou perfeitamente claro que a Turquia não tinha intenção de fazer concessões em nome de Kobane, o movimento curdo declarou as negociações de paz um fracasso. Juntamente com organizações de esquerda, trouxe centenas de milhares de pessoas às ruas, e exigiu que o governo turco abrisse a fronteira para os voluntários que traziam a ajuda médica e logística.

A Turquia, no entanto, impediu essa ajuda através do lançamento de operações policiais violentas contra as milhares de pessoas, mantendo vigílias diárias na fronteira. O governo também reagiu aos protestos com violência policial, auxiliado por gangues islâmicas armadas. Muitas províncias do leste da Turquia foram colocadas sob toque de recolher, pela primeira vez em mais de dez anos. Em apenas um dia (08 de outubro), centenas de manifestantes ficaram feridos, e mais de uma dúzia foram mortos.

Ao contrário do que o governo turco alega, o movimento curdo não merece ser culpado por esta escalada e o consequente colapso das negociações de paz. É o próprio Governo turco que tem sido responsável por alimentar o conflito em seu próprio país, bem como em sua vizinhança.

No entanto, persiste a questão de por que esse tipo de credulidade sobre as intenções da Turquia continua vindo à tona. A prevenção ativa de ajuda da Turquia contradiz todas as promessas feitas no âmbito privado, bem como os pronunciamentos públicos do primeiro-ministro turco, Ahmet Davutoğlu, de que “Kobane não vai cair”. Isso por si só deveria ser suficiente para eliminar quaisquer dúvidas sobre a verdadeira natureza do governo turco.

A hostilidade contra Rojava

A suposição de que a Turquia pode ter qualquer interesse em intervir contra a EI em nome do povo de Kobane vira de cabeça para baixo todo o caráter dos acontecimentos políticos dos últimos anos entre o governo turco e o movimento curdo.

Na verdade, a hostilidade turca a Rojava está intimamente ligada aos seus próprios objetivos estratégicos – preservar influência regional, bem como soberania territorial – e ao aparente alinhamento de Rojava com uma resistência interna que historicamente tem ameaçado esses objetivos. Uma análise rápida do fundo dessa relação deve bastar aqui.

Pouco tempo após o início dos protestos contra o governo sírio em 2011, o PYD começou a construir estruturas de governo autônomas nas regiões de maioria curda do norte da Síria, e a reunir forças de autodefesa (YPG / YPJ) entre os cidadãos.

O PYD já tinha dado a conhecer que suas atividades eram independentes da oposição ampla síria. Quando ela começou a conferenciar com a Turquia e, com o apoio do Ocidente, pegou em armas contra o governo sírio e começou a pedir por intervenção militar estrangeira, o PYD manifestou-se contra tal intervenção externa e ressaltou que a Síria democrática só pode ser o projeto coletivo de todos os sírios.

Sob a liderança do PYD, as estruturas conselhistas democráticas foram erguidas em três regiões (Afrin, Kobane e Cizire) que são referidos como cantões. As Assembleias que regem, bem como as forças de autodefesa, são compostas por cotas de gênero e representação de todas as populações de acordo com a identificação étnica e religiosa (curda, árabe, cristã assíria). Os conselhos municipais, de bairro e regionais convidam e recebem a participação ativa da população na tomada de decisões.

Democraticamente se decidiu o controle de preços, um sistema de justiça constitucional, e a educação gratuita na língua materna de qualquer aluno, e estas são as características distintas complementares das estruturas igualitárias de Rojava. Em condições extremamente adversas, a região conseguiu manter seu povo na base de coletivos de produção auto-organizada.

Com a eclosão da guerra civil na Síria, os representantes da Rojava não se limitaram a rejeitar a intervenção militar externa. Nas negociações com a oposição síria, eles também defenderam a autonomia da região curda numa possível Síria do futuro. A oposição síria organizada sob a égide do Conselho Nacional da Sírio rejeitou categoricamente estas duas posições.

Representantes de Rojava foram posteriormente cada vez mais isolados pela oposição e seus apoiadores, o chamado “grupo de amigos da Síria”. Esse isolamento foi acompanhado por um embargo econômico que tem sido aplicado pela Turquia e pelo governo da região autônoma curda do Iraque (Governo Regional Curdo, ou GRC).

O governo turco, por sua vez, declarou que não iria tolerar essa “formação terrorista” em sua fronteira, tratando-a do mesmo como o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), contra o qual tem travado uma campanha de longo prazo de repressão com apoio estadunidense. E as rivalidades dentro de Rojava entre partidos menores Sírio-curdos e o PYD, o principal partido, levaram ao rompimento das relações com o Curdistão iraquiano.

Os partidos menores se aproximaram a tempo do GRC e em conjunto acusaram o PYD de monopolizar o poder político. Embora os apoios sociais desses partidos no Rojava fossem pequenos, a discórdia entre eles e o PYD tornou-se um pretexto para o GRC, em associação com a Turquia, enfraquecer Rojava por todos os meios possíveis.

Enquanto Rojava estava ocupada com os ataques de militantes do Estado Islâmico, a GRC construiu sua fronteira com Rojava e intensificou seu controle. Mesmo a entrega de suprimentos médicos de urgência foi bloqueado.

Uma liga contra Rojava começou a se formar logo no início, e foi reforçada pelo avanço de grupos de militantes apoiados pela Arábia Saudita, Qatar e Turquia. Embora combatentes desses grupos se movam livremente por trás e através da fronteira sírio-turca, a passagem foi negada aos refugiados de Rojava tanto na fronteira com a Turquia quanto na fronteira com o norte do Iraque. A estratégia é clara: fazer Rojava morrer de fome.

Destruindo a Autonomia Democrática

O que explica essa agressão? Para o governo turco, Rojava representa uma ameaça em vários níveis.

Primeiro de tudo, há o perigo do modelo de autonomia democrática de Rojava se tornar um exemplo para a população curda dentro da própria Turquia. Os cantões têm declarado que os recursos naturais da Rojava continuarão a ser propriedade coletiva dos povos da região, e os potenciais rendimentos a partir deles será investido de volta para as pessoas. As estruturas de conselho igualitárias e a coletivização dos recursos está diametralmente oposta ao conservadorismo confessional do Partido da Justiça e Desenvolvimento(Turquia) no poder e suas políticas neoliberais.

Além disso, Rojava é um obstáculo às ambições da Turquia de expandir sua influência regional. A orientação estratégica e econômica da Turquia está fundamentalmente em desacordo com o projeto de Rojava. Assim, toda a pré-história do conflito contradiz a expectativa de que o povo sírio-curdo possa receber apoio da Turquia.

Isto se dá similarmente em relação ao GRC. Coletivos auto-organizadas de produção, políticas de gênero progressistas e estruturas democráticas de conselho também se opõem à orientação básica do proto-Estado petróleo-rentista no norte do Iraque – embora quase todos os comentários sobre a situação atual possam sugerir o contrário.

Se isso não bastasse, Rojava e Kobane em particular têm uma importância estratégica para o EI. Se Kobanê caísse totalmente nas mãos do EI, seria ainda mais fácil para o grupo recrutar na Turquia, bem como o contrabando de armas e outros bens. Mais ainda, Kobane está no meio dos três cantões geograficamente. Os outros dois cantões seriam completamente deslocados uns dos outros sem Kobane, e sua defesa contra novos ataques por parte do EI ou outras milícias seria muito mais difícil.

A Turquia está tentando explorar esta situação e instrumentalizar a ofensiva a fim de tornar Rojava um problema internacional. As condições declaradas publicamente por Davutoğlu – de apenas permitir o uso de bases militares dos EUA na Turquia e o envio de tropas terrestres estadunidenses contra o EI se a queda do governo sírio também for um objetivo – são reveladoras.

Ele não poderia dizer isso de forma mais clara: o EI avança e o assassinato de sírios à céu aberto na fronteira com a Turquia não são motivos suficientes para agir, mesmo sob a forma das concessões relativamente menores demandadas pelo movimento curdo.

O conteúdo do projeto de lei turco autorizando a Guerra, recentemente aprovado pelo Parlamento turco, estão dando forma a esta realidade. Nesse documento, o PKK – na Turquia, tanto quanto em Rojava – e o EI são ambos chamados, no mesmo fôlego, de “organizações terroristas”. Ainda assim, confrontados com uma escolha entre o PKK / Rojava e o EI, fica clara a preferência do governo turco pelo último.

Teriam os ventos estratégicos mudado?

A Turquia e o GRC propositadamente enfraqueceram e isolaram Rojava. Consequentemente, eles expuseram Rojava ao ataque do EI e outras milícias afiliadas. A noção de que os mesmos poderes que ajudaram a criar esta situação devem se apressar para a ajuda de Rojava é um absurdo. Então, que conclusões podemos tirar a partir da expansão da assistência militar dos EUA e a abertura do território turco para os Peshmerga curdo-iraquianos?

Quando os EUA intensificaram seu bombardeio em torno de Kobane uma imensa simpatia internacional estava surgindo para com a cidade preparada para o combate, especialmente as guerreiras fotogênicas das Unidades de Proteção das Mulheres (YPJ). Mas antes disso, os EUA vinham demonstrando uma explícita indiferença em relação a Kobane, mesmo sabendo o que a cidade e a zona rural em torno dela estavam enfrentando. Assim, a tardia expansão de suas operações anti-EI para incluir Kobane levantam questões.

Foram frutíferos os apelos para os Estados Unidos e outras forças irem em defesa de Rojava? Essa idéia – amplamente compartilhada mesmo na esquerda – ressoa com o senso comum de que os Estados Unidos, que irão apoiar ou combater governos, sejam eles ditatoriais ou democráticos, baseados apenas nos seus próprios interesses, são capazes de mudar num instante a política no Oriente Médio. As milícias islâmicas, que às vezes agem sob o guarda-chuva do Exército Livre da Síria (FSA), receberam o apoio dos EUA e seus parceiros, enquanto eles aparentavam estar lutando contra o governo sírio.

As verdadeiras razões dessas mudanças ainda não são claras. É talvez concebível que os EUA tivessem de reagir à pressão pública, mas outras questões persistem. Por que mais armas não foram entregues diretamente às forças de auto-defesa do povo (YPG / YPJ)? Por que os EUA e outros membros da OTAN não usaram sua influência na Turquia para forçar mudar as políticas que têm resultado no cerco a Rojava? Como entender que os mesmos Peshmerga que ajudaram militarmente a impor um embargo econômico sobre Rojava, e fecharam sua seção da fronteira sírio-iraquiana para refugiados da região, apressaram-se agora para socorrer Rojava?

Sim, a Turquia abriu uma passagem para os Peshmerga, e os EUA tem coordenado seu bombardeio muito tardio com as unidades de defesa do YPG. No entanto, é importante notar que nem os EUA nem qualquer outro país tomaram medidas concretas para atender as demandas reais de Rojava que tornariam possível sua defesa autônoma.

Armas entregues pelo ar têm sido lançadas, mas esta solução não tem sido significantemente perseguida depois de alegações de que as entregas iniciais acabaram nas mãos de combatentes do EI. Em vez disso, a esperança foi depositada sobre as unidades Peshmerga e da FSA.

Não houve nenhuma pressão prolongada sobre os membros da OTAN na Turquia para abrir um corredor para reforços das próprias forças de autodefesa de Rojava mais à leste. Ainda há um amplo consenso, embora em grande parte não dito desde outubro, de que a Turquia estaria a apoiar milícias islâmicas, oferecendo-lhes espaço para reagrupamento e recrutamento; isso continua sem nenhuma conseqüência.

Enquanto isso veio recentemente a luz que, enquanto o EI executava seus ataques, negociações ocorreram na cidade iraquiana de Dohuk entre partidos sírio-curdos em disputa, mediadas pelo GRC. Foi no âmbito destas negociações que os Peshmerga foram enviado para Kobane. O conteúdo preciso das negociações não foi tornado público, e ambas as partes da negociação fizeram declarações contraditórias.

Suas declarações, no entanto, concordam que chegou-se a um acordo a respeito da distribuição do poder político em Rojava, que rivalidades foram superadas, e que a “Unidade Curda” foi restabelecida. Um conselho de coordenação será formado, com metade do PYD e a outra metade composta por associados ao GRC. Mas qual será a função ou autoridade desse conselho permanece algo obscuro.

O PYD declarou que isso deve ser discutido entre os cantões de Rojava. Fontes associadas ao GRC declararam, no entanto, que este conselho de coordenação funcionará como um governo central localizado acima dos cantões de Rojava – cujo status, por sua vez seria degradado para “províncias”. Também tem sido relatado que os parceiros associados ao GRC tem registrado “preocupações”, ainda não especificadas, sobre o contrato social de Rojava.

Esses murmúrios escassos escorrendo para fora de Dohuk servem como lembretes de que a ajuda real está vinculada às condições fundamentalmente disruptivas do projeto democrático e emancipador de Rojava. A instalação de um governo central hostil significaria o fim do auto-governo federal e democrático duramente conquistado em Rojava.

O governo do Curdistão iraquiano, que está intimamente ligado aos EUA tanto no presente quanto historicamente, e acaba de fechar um gigante negócio de petróleo com o governo central do Iraque, tem agora ganhado uma posição política forte em Rojava. Exatamente quais partes do contrato social de Rojava serão disputadas e, talvez, serão desfeitas, por enquanto, dependem em grande parte da disposição estratégica do Curdistão iraquiano.

O povo de Rojava, por isso, pode claramente não esperar uma ajuda substancial de outros estados, sem abandonar as suas próprias realizações.

É duvidoso que a derrota de Rojava esteja entre os principais objetivos dos EUA na região. Ainda assim, os EUA certamente não são amigos de Rojava, a qual recuou a todas as tentativas de ser instrumentalizada no decorrer das tentativas de derrubar o governo sírio. Os norte-americanos certamente não tem nenhuma simpatia pela política horizontal de Rojava. Somente a entreda em algumas alianças frouxas contra o EI deu-lhes razão para enviar apoio. Mas esta razão parece fraca demais para ignorar totalmente os interesses dos aliados dos EUA na região, a Turquia e o GRC em particular.

Que um membro da OTAN intervisse na fronteira turco-síria – contra a vontade de outro membro da OTAN, em auxílio a Rojava – é inconcebível. A parceria estratégica entre o Ocidente e o GRC, só recentemente expandida, diminui ainda mais as esperanças que o povo de Rojava possa ter de que o resgate virá por razões humanitárias do Ocidente.

A ampla mobilização na Turquia em outubro teve a intenção de aumentar o preço político interno de uma eventual derrota de Rojava e produzir concessões do AKP. Um objetivo importante destes protestos, pelo menos, foi alcançado: a prevenção da vontade turca de estabelecer uma “zona de amortecimento”, que seria o equivalente a uma invasão militar de Rojava.

No entanto, a imposição de toques de recolher, a mobilização dos militares em muitas cidades, incluindo Istambul, o fuzilamento de manifestantes e o incentivo das milícias fascistas armadas têm também mostrado que o governo turco irá aos extremos. Em uma oportunidade adequada, a Turquia pode mesmo reconsiderar a instalação de uma zona de segurança.

Solidariedade Internacional

À luz de tudo isto, e após a recente série de revoltas no Norte da África e no Oriente Médio – o que por uma série de razões internas e externas não produziram o que os esquerdistas esperavam – o significado de Rojava a partir da perspectiva da esquerda internacional não pode ser exagerado.

Os cantões governados por conselhos de cidadãos estão mostrando a todo o Oriente Médio que é possível construir um auto-governo pacífico, democrático e orientado para a justiça social que transcenda diferenças culturais. Rojava apresenta uma alternativa à polarização étnica e confessional endêmica na região. Que tal modelo tem, pelo menos até agora, sido capaz de sobreviver principalmente através de suas próprias forças de auto-defesa – em outras palavras, sem a proteção imperialista – é algo especial, para dizer o mínimo.

Ainda assim, é evidente que a existência de Rojava não pode ser mantida sem qualquer solidariedade internacional, tanto mais que a assistência militar e o envolvimento do GRC parecem estar igualmente vinculados a concessões fundamentais que reduziriam os aspectos mais emancipatórios do modelo.

Mas que tipo de “solidariedade” podemos praticar do Ocidente? Na Alemanha, um ponto de partida seria enfrentar os pedidos de alguns parlamentares de esquerda de uma intervenção militar comandada pelas Nações Unidas. Considerando-se as divisões manifestas no Conselho de Segurança, esses pedidos não são mais do que simbólicos, de qualquer maneira. Uma vez que tal mandato da ONU é completamente improvável de acontecer, o efeito único remanescente destes pedidos é o dano, mais uma vez, à plataforma básica de paz do Die Linke.

Demandar de outros exércitos o envio de armas para Rojava também não constitui solidariedade com Rojava, se estamos olhando a situação a partir da perspectiva de uma política de paz.

Sem dúvida, é claro, o chamado de Rojava pela ajuda militar, considerando a guerra de tudo-ou-nada que ocorre, são compreensíveis. Isso pode parecer contraditório, mas o problema para os políticos da plataforma de paz da Alemanha é diferente.

Pode a esquerda alemã garantir que a “avenida de legitimidade”, que eles estão abrindo para (ambos os alemães e não-alemães) operações militares estrangeiras e remessas de armas, não irá servir aos propósitos da direita? Uma vez que o equilíbrio político atual na Alemanha não permite à Die Linke nenhum poder necessário para controlar as operações militares ou carregamentos de armas, a resposta deve ser negativa.

Um exemplo disso no passado muito recente: quando o povo Yezidi nas montanhas iraquianas do Sinjar estavam enfrentando a carnificina do EI, eles foram deixados completamente desprotegidos pelos Peshmerga e pelo GRC.

As forças de Rojava e o PKK que correram para ajudar eram exatamente aquelas cuja já longa luta contra o EI tinha sido ativamente enfraquecida pelo GRC. Embora o papel indescritível do GRC permaneça explícito para que todos possam ver, foi o GRC que foi elogiado como o salvador dos Yezidis e recebeu os carregamentos de armas alemãs em violação das leis alemãs e da Carta das Nações Unidas.

Enquanto o GRC é assim encorajado e fortalecido na sua orientação política para Rojava, ninguém pode garantir que estas novas armas não vão algum dia ser apontadas para Rojava ou o PKK.

Portanto, em vez de trabalhar pela intervenção e pelos envios de armas militares – cuja operacionalização ela não pode influenciar significativamente – a esquerda alemã poderia exigir que os feitos do membro da OTAN, a Turquia, fossem expostos por aquilo que são: a entrega intencional do povo de Rojava para as mãos do EI.

As unidades do YPG / YPJ declararam que eles podem, em conjunto com o PKK, gerir a defesa de Rojava por conta própria. Ainda assim, a Turquia tem de abrir um corredor através do seu território para o reabastecimento militar e os recursos logísticos, e abandonar seu apoio de fato ao EI. O fim do embargo da Turquia sobre Rojava também ainda não foi atendido.

O governo alemão e outros governos ocidentais devem ser pressionados para forçar o membro da OTAN, a Turquia, a acabar com sua guerra indireta com a Síria, bem como a repressão dos protestos políticos. Os esquerdistas ocidentais poderiam também trabalhar por objetivos, tais como a remoção de soldados estrangeiros (bem como dos mísseis Patriot) estacionados na Turquia e demandar sanções contra a Turquia se esta continuar a apoiar o EI. Finalmente, a intervenção militar por parte da Turquia ou de outras forças imperialistas deve ser veementemente rejeitada, considerando que é necessária uma postura mais cética em relação aos objetivos dos governos ocidentais na região.

Campanhas para acabar com o envio de armas para todos os atores na região e por aumentos maciços na ajuda aos refugiados estão entre os projetos concretos mais importantes que os esquerdistas que buscam a paz devem priorizar.

4 de outubro de 2014

Em defesa dos gamers

Não culpem os gamers pelos pecados do capitalismo.

Peter Frase



Jim Sheaffer / Flickr

Tradução / Houve um tempo em que eu poderia dizer que era um “gamer” – ou seja, alguém que joga videogames, que reflete sobre eles e que os vê como uma forma cultural rica e cheia de potencial, tanto como arte quanto como esporte.

Hoje, no entanto, mesmo as pessoas que geralmente ignoram os jogos de videogame já foram apresentadas à figura do “gamer”, e ele é uma coisa totalmente diferente disso. O gamer se sente ameaçado por mulheres que compartilham seus gostos e as chama de “garotas geeks falsas” ou “falsas nerds”. O gamer reage às críticas de Anita Sarkeesian aos clichês sexistas nos videogames com um bombardeio de ameaças violentas contra ela e sua família. O gamer ataca a criadora de jogos feminista Zoe Quinn com abusos misóginos e alegações infundadas de corrupção em reação a uma postagem sórdida em um blog feita por um ex-namorado cheio de rancor.

Não é nenhuma novidade que os videogames costumam ser hostis às mulheres, tanto enquanto indústria quanto como cultura de fãs. Também não é novidade que há excelentes críticas feministas apontando isso na imprensa de jogos, como Leigh Alexander e Samantha Allen. No entanto, os debates sobre misoginia e games têm fervilhado com nova intensidade nas discussões entre consumidores e criadores de jogos, e também têm ultrapassado esses círculos. (O portal New Inquiry reuniu uma coleção de links sobre o tema.)

Evidentemente, nem todo mundo com um profundo interesse por jogos é um jovem amargo e reacionário que reage com uma violenta misoginia ao menor sinal de justiça social. Mas essa facção de “gamers” tem demonstrado sua capacidade descomunal de policiar os limites do debate e expulsar consumidores, criadores e críticos que os desafiem, com o consentimento de uma maioria silenciosa. Politicamente, o que representa esse grupo demográfico específico de extrema-direita?

A cultura dos videogames há muito tempo tem se mantido bastante provinciana – assim como, em maior ou menor grau, a “cultura geek” mais abrangente na qual ela está inserida, que também abarca fenômenos como Dungeons & Dragons, romances e filmes de ficção científica e fantasia, e histórias em quadrinhos. Todas essas formas possuem uma longa história de experimentação politicamente subversiva, socialista e feminista, mas, em suas formas comerciais que recebem mais financiamento e que são mais amplamente consumidas, elas atendem especialmente a certos tipos de garotos e homens socialmente desajeitados, lhes proporcionando alternativas aos padrões dominantes de masculinidade.

Ao mesmo tempo, porém, eles também cultivam uma misoginia alternativa, baseada no ressentimento de outros homens e no desejo de usurpar seu domínio patriarcal, e não de derrubar o patriarcado por completo. Consequentemente, a cultura geek é um terreno fértil para “Caras Bonzinhos” que se veem como párias perseguidos, mas que são incapazes de superar seu desejo de controlar as mulheres.

É impossível contestar que, em termos puramente econômicos, os jogos eletrônicos se tornaram um fenômeno de cultura de massa completamente convencional: os gastos dos consumidores em jogos agora rivalizam ou excedem os gastos com música e filmes. Ainda assim, esses gamers se agarram a uma identidade de oprimidos e marginalizados, até mesmo enquanto defendem as práticas existentes de sexismo, racismo e exploração de classe no interior da indústria de jogos.

Parte desse fenômeno tem a ver com a defasagem de tempo entre a aceitação econômica e a aceitação cultural. Os jogos podem ser uma mídia dominante enquanto indústria, mas ainda não alcançaram paridade cultural com outras mídias e outras formas de arte. Por conseguinte, ainda temos grandes críticos de cinema escrevendo ladainhas toscas e apaixonadas sobre por que os videogames não poderiam ser considerados arte, e o New York Times expressando admiração com a noção de que esportes competitivos possam ser mediados por computadores.

Isso não é algo inusitado para qualquer mídia jovem; o cinema e a televisão enfrentaram defasagens semelhantes. Eventualmente, pessoas que cresceram com os videogames estarão em posições de autoridade cultural, e a ideia dos jogos eletrônicos como uma mídia inferior ou efêmera desaparecerá.

A assimilação dos jogos eletrônicos na cultura mais ampla, entretanto, representa um problema para um segmento reacionário de gamers. Significa o engajamento com uma sociedade que, embora ainda seja capitalista, patriarcal e impregnada de racismo, também tem sido desafiada durante décadas por aqueles que ela tradicionalmente marginalizou. O envolvimento mais amplo inevitavelmente transforma os parâmetros da cultura geek, à medida que novas vozes e novas ideias vão sendo incorporadas.

Alguns gamers gostariam de ter as duas coisas: que todo mundo leve a sério a sua mídia, mas que ninguém desafie suas premissas políticas ou questione a forma como os jogos tratam as pessoas que não se parecem ou pensam como eles. Eles odeiam e temem um mundo onde os jogos sejam realmente feitos por e para todos, onde as mulheres constituem a maioria do público dos jogos eletrônicos e onde uma mulher trans domine um dos maiores eSports do mundo.

É importante chamar essas pessoas daquilo que elas são: não apenas idiotas anti-sociais e não apenas misóginos, mas, como diz Liz Ryerson, em geral a ala de direita (ou de extrema-direita) das pessoas envolvidas com os videogames. Não surpreende, portanto, que eles se assemelhem aos conservadores que lamentam com ressentimento o viés liberal progressista de Hollywood ou a condescendência de professores universitários elitistas. Não se trata de um problema com a cultura gamer, mas um problema com toda a nossa cultura e, especificamente, com as atitudes e comportamento de uma seção de direita, predominantemente branca e masculina dessa cultura.

Os gamers de direita projetam um senso de superioridade arrogante e se sentem no direito de ter acesso exclusivo a certos bens materiais e imateriais devido à sua condição, ao mesmo tempo em que constroem uma identidade baseada na marginalidade e vitimização. Nisso, entretanto, eles não são realmente tão diferentes de muitos movimentos revanchistas nas sociedades capitalistas. Eles se parecem bastante com a direita do Tea Party, que lamenta o desaparecimento da “América” que reconhece – isto é, os EUA onde os homens brancos heterossexuais são sistematicamente favorecidos.

Esse é um elemento básico da mente reacionária: uma oposição fundamental à igualdade como tal. O mesmo ocorre com esses gamers para os quais, como coloca Tim Colwill, “a pior coisa que pode acontecer aqui é a igualdade”. Esse grupo de gamers raivosos “já não reconhece mais o seu país”, por assim dizer, com todas essas mulheres, LGBTs e esquerdistas circulando por aí.

É por isso que é errado sugerir, como faz Ian Williams, que a cultura gamer estaria “manchada, da raiz às pontas dos galhos, por abraçar o consumismo como um modo de vida.” A ideia de que comunidades organizadas em torno do consumo cultural compartilhado seriam inerentemente reacionárias é tão ampla que chega a ser vazia e poderia se aplicar igualmente a cinéfilos, fãs de esportes ou mesmo aficionados por teoria marxista.

É possível que qualquer visão política, de esquerda ou de direita, se decante em meras escolhas de consumo. Só que esse não é o problema atualmente sendo exibido entre os gamers. Na verdade, o perigo surge de sua escolha de não apenas consumir passivamente, mas de realizar ataques em nome daquilo que acreditam que a verdadeira cultura gamer deveria ser.

Os ataques a pessoas como Anita Sarkeesian devem ser compreendidos como atos políticos coletivos, e os reacionários que os praticam devem ser entendidos como representantes ideológicos de uma tendência política específica entre aqueles que criam e jogam videogames, ao invés de se acenar contra eles com uma retórica moralizante como se fossem um bando de consumidores ingênuos.

Duas coisas ameaçam esses gamers: a noção de que os jogos eletrônicos não existam exclusivamente para reafirmar seus preconceitos misóginos, e o fato de que esses preconceitos possam ser contestados. Não apenas a cultura dos jogos está se ampliando, mas o segmento comercial de grande orçamento que mais atende às suas fantasias retrógradas está se contraindo em relação aos jogos independentes, para celular e na web.

Como aponta Leigh Alexander em sua sofisticada desconstrução da identidade gamer: “é difícil para eles ouvirem que não são mais donos de nada, que eles não são o grupo demográfico de consumidores mais especiais do mundo, que eles têm que compartilhar.” Troque as palavras “o grupo demográfico de consumidores” por “beneficiários de serviços públicos do Estado de bem-estar social” e você poderia estar falando sobre seguidores do Tea Party defendendo que os serviços públicos que utilizam sejam reservados a eles, ao mesmo tempo em que acusam pessoas (principalmente mulheres) mais pobres de serem “sanguessugas” dos programas do governo, que estariam fazendo filhos para receber auxílios e não precisar trabalhar.

Portanto, essa não é uma questão específica aos gamers; e, dentro dos limites do mundo dos jogos, também não se trata apenas de uma história sobre uma “cultura tóxica” entre os fãs de jogos, mas sim sobre uma indústria que é estrutural e sistematicamente reacionária e que cultiva os mesmos valores entre um segmento de seus consumidores. Não são apenas as turbas do 4chan aterrorizando roteiristas e designers de jogos, é todo um negócio de jogos que expulsa os trabalhadores que não se conformam com suas premissas políticas e estereótipos demográficos.

Famosos designers de jogos e proprietários de estúdios de desenvolvimento não endossam abertamente as ameaças e o terror realizado por trolls anônimos, mas esses trolls são as tropas de choque que ajudam a manter a elite existente no poder. Os respeitáveis homens de terno seguem contratando no mesmo clube do bolinha, enquanto inventam desculpas para explicar por que as mulheres simplesmente não se enquadrariam como programadoras, designers de jogos ou jornalistas na área. Mas as táticas fascistas de confronto pela brigada de trolls funcionam para manter o status quo da indústria.

Não se trata apenas de uma ferramenta útil para calar vozes dissidentes; a existência desses movimentos de nerds raivosos entre os fãs e consumidores também realiza aquilo que os movimentos fascistas sempre fazem: dividir a classe trabalhadora, fazendo com que alguns deles se identifiquem com o chefe. Nesse caso, por sua vez, essa identificação serve para escorar a indústria hiper-exploradora que Ian Williams descreveu anteriormente.

A existência de um esquadrão de vigilantes hostis e vociferantes calando os discursos divergentes torna mais fácil para os diretores de estúdio contratar nada além dos mesmos homens brancos e, em seguida, quase matá-los de tanto trabalho; para os administradores de fóruns reivindicar a liberdade de expressão e dar de ombros para o ódio vomitado em suas páginas; e para a indústria alegar que estão apenas satisfazendo “o público” quando reproduzem os mesmos estereótipos estreitos e preconceituosos, ano após ano. Enquanto isso, os “bons” geeks acabam sendo distraídos do evento principal enquanto brigam com os trolls, como skinheads SHARP e skinheads nazistas se digladiando em um show de porão.

O que não quer dizer que as ameaças de morte sejam uma bela vista para o pessoal de terno no topo da hierarquia da indústria de jogos. Os trolls podem às vezes sair fora de controle, assim como o establishment do partido republicano às vezes perde o controle do Tea Party, ou como os capitalistas industriais às vezes perdem o controle dos camisas-marrons nazistas. Mas isso não significa que eles não façam parte de um mesmo projeto político dialeticamente inter-relacionado. Os cossacos trabalham para o czar. As turbas em busca de confronto estão lá para policiar os limites do discurso, para expulsar à força qualquer um que desafie a hierarquia existente – mulheres, pessoas não brancas, LGBTs, e até mesmo aquele excêntrico homem branco considerado simpático demais às mulheres e aos comunistas.

Não é um problema sobre o ato de jogar videogames; é um problema do capitalismo. Em vez de vê-los simplesmente como babacas imorais ou consumistas iludidos, devemos levar a sério a ala avançada de trolls cheios de ódio entre os gamers como representantes das tropas de choque reacionárias que teremos de derrotar para construir uma sociedade mais igualitária – seja na indústria de jogos, ou em qualquer outro lugar.

Sobre o autor

Peter Frase está no conselho editorial de Jacobin e é autor do livro "Quatro futuro: a vida após o capitalismo".

3 de outubro de 2014

Uma guerra pelo poder

A "guerra ao terrorismo" é uma farsa. Mas a menos que façamos algo, a elite norte-americana a levará para sempre.

David Mizner


Cokaigne / Flickr

Tradução / O bombardeio do presidente Obama ao ISIS, na Síria, incitou a oposição de muitos liberais proeminentes, culminando no que acreditam ser uma estratégia fadada ao fracasso. “A política americana nessa questão foi, até agora, incompreensível e contraproducente”, escreve o jornalista Murtaza Hussain, do Intercept.

Mas isso somente é incompreensível e contraproducente quando se assume que o governo dos Estados Unidos está realmente tentando “erradicar” o ISIS. O pensamento padrão e liberal faz com que as elites americanas entrem em outra guerra, ignorando as conseqüências, agindo, inconscientemente, contra seus interesses.

Quanta morte e destruição os guerreiros americanos do terror precisam causar antes que seus adversários ostensivos rejeitem suas reivindicações de nobre intenção? Durante os treze anos da “guerra ao terror”, ações do governo dos Estados Unidos têm, consistente e previsivelmente, fortalecido grupos terroristas anti-americanos. Atribuir isso a pura estupidez – ao invés do imperialismo de regra – é escolher ignorância.

A “guerra ao terror” dos americanos tem sido magnífica para os grupos jihadistas. De acordo com o famoso interrogador do FBI Al Soufan, a Al Qaeda tinha cerca de 400 combatentes no 11 de setembro. Hoje, os números do grupo chegam a milhares, com a ascensão de afiliados em diversos países na Ásia, no Oriente Médio e na África. Seu primo rebelde, o Estado Islâmico, controla milhões de pessoas num território do tamanho do Reino Unido.

Não é preciso aceitar os avisos histéricos de políticos americanos para reconhecer que a ascensão do ISIS é um problema sério, especialmente para as pessoas do Iraque e da Síria. Usando o objetivo oficial como um exemplo, a “guerra ao terrorismo” é um desastre.

Isso não é novidade para os oficiais do governo americano, que têm acesso tanto aos relatórios de inteligência quanto ao Google. Dizer-lhes que sua guerra está criando um “blowback” – uma reação violenta, termo, aliás, cunhado pela CIA– não é dizer-lhes algo que já não saibam. Sem dúvidas, parte da Segurança e da Política acredita que a violência é a melhor forma de combater o terrorismo. Isso é quem eles são e o que eles fazem. Mas outras forças estão obviamente agindo.

Uma dessas forças é simples em seus interesses próprios. Como a suposta ameaça comunista de antes, o terrorismo oferece uma justificativa politicamente potente ao militarismo. Da perspectiva de quem se beneficia com a guerra, o ciclo de violência é um ciclo virtuoso. A guerra ao terrorismo, como Chris Floyd afirmou há alguns anos, é uma benção constante – imensamente recompensadora, em diversas maneiras diferentes, para quem produz ou auxilia, tanto no governo, como na mídia, Academia ou negócios”.

Chefões corporativos, especialistas pró-guerra e lideres políticos não se juntaram numa sala para conspirar a favor da guerra. Eles não precisaram; o processo se guia à medida que as elites conseguem o que querem.

“A guerra não é a solução”. Em resposta a este slogan, os que apóiam a guerra às vezes ironizam “Depende de qual é a questão.” Eles estão certos. A guerra é, de fato, a resposta, ou uma delas, se a questão for “Como o governo dos Estados Unidos busca manter o poder e dianteira nos seus próprios interesses econômicos?”

A capacitação ao terrorismo feita pelos Estados Unidos vai além da ação militar contra eles. A resposta americana às revoltas na Líbia e na Síria revela um governo disposto a dar poder a grupos terroristas na busca de seus objetivos centrais: acumular riqueza e combater o Irã, e o que também é uma grande prioridade econômica, já que o Irã é a principal ameaça à hegemonia americana nessa região rica em petróleo.

Muitos liberais reconhecem os imperativos econômicos em jogo, mesmo assim, isso raramente entra em suas análises da “guerra ao terrorismo”. Sem um alerta de motivo econômico – ou, se você preferir, de “geopolítica” – algumas estratégias militares dos Estados Unidos não fazem sentido.

Considere o envolvimento dos EUA na remoção de Qaddafi. Era previsível, e foi previsto, que uma mudança no regime fortaleceria grupos terroristas; a presença dos combatentes da Al-Qaeda entre as várias facções rebeldes não foiapenas um ponto àqueles que se opunham ao bombardeamento da OTAN. O governo também sabia que Líbia Oriental era um pandemônio extremista; a cidade de Dernah, por exemplo, foi uma fonte importante de combatentes estrangeiros no Iraque.

Mesmo assim, a administração de Obama ajudou a remover Qaddafi – por quê? Podemos dispensar a justificativa humanitária mesmo que alguns membros da administração acreditassem piamente nela. Os EUA não vão à guerra para tentar libertar as pessoas.

Alguns, como Seamas Milne, acreditam que “O Oriente aproveitou a chance de intervir na Líbia para assumir o controle das revoltas árabes.” De acordo com essa teoria, os Estados Unidos tomou conta dos protestos no propósito de acabar com eles. Mas se o objetivo era anular o elemento democrático, e certamente era, permitir que Qaddafi acabasse com a revolta não serviria ao mesmo propósito?

Outra teoria é a de que os EUA viram uma oportunidade de remover um governante imprevisível que vinha falando de nacionalizar a indústria do petróleo. O Wikileaks revela que o governo estava frustrado com a falta de entusiasmo no apoiode Qaddafi aos interesses corporativos americanos, então é seguro assumir que sua remoção era, ao menos, um objetivo auxiliar.

No entanto, mais persuasiva é a teoria de que os EUA bombardearam a Líbia como parte de uma maior expectativa militar. Nos últimos anos, as forças militares americanas expandiram muito sua presença na África. Essa leve ocupação corresponde a uma batalha entre China e Estados Unidos pelos espólios da África, que é rica em recursos naturais e possui seis das economias que mais crescem no mundo.

A pegada militar, que inclui as “alianças anti-terrorismo” de governos, permite aos Estados Unidos exercer influência e explorar oportunidades econômicas. O motivo para “se livrar” de Qaddafi e o motivo do Comando dos Estados Unidos para África (AFRICOM) não são mutuamente exclusivos; o governante Líbio, junto com outros líderes, resistiu ao crescimento do AFRICOM. A intervenção na Líbia permitiu uma expansão militar dos Estados Unidos, assim como o resultante ataque jihadista ao consulado americano em Benghazi, o que, diz o General Raymond Fox “mudou a AFRICOM para sempre.”

É difícil discernir a significância relativa desses motivos. O que é inegável é que o governo dos EUA – apesar de uma campanha de treze anos que transformou a sociedade americana, apesar do compromisso alegado de combater o terrorismo – agiu de modo a garantir um surto de poder dos grupos jidahistas. Qualquer que seja o motivo, impulsionar o esforço to para remover Qaddafi com 7.700 bombas não é o ato de um governo que estima a redução do terrorismo como uma prioridade predominante.

A razão pela qual os EUA fortaleceram os grupos jihadistas tentando destronar Assad é mais óbvia. O regime Sírio é um aliado do Irã. Apesar dos promotores de guerra americanos juntarem o Hezbollah e a Guarda Revolucionária com os grupos sunitas, o esforço americano de fiscalizar o Irã está em desacordo com a “guerra ao terror”. Só um pode ter prioridade.

Muitos anos atrás, o jornalista veterano Seymour Hersh denunciou o alarme da Administração Bush a respeito da nova proximidade do governo Iraquiano com seu vizinho e o esforço correspondente dos Estados Unidos em subordinar a “guerra ao terrorismo” para ocultar a guerra no Irã:

Para abalar o Irã, que é predominantemente xiita, a Administração Bush decidiu reconfigurar suas prioridades no Oriente Médio. No Líbano, a Administração tem cooperado com o governo da Arábia Saudita, que é sunita, em operações clandestinas, com a intenção de enfraquecer o Hezbollah, a organização xiita que é apoiada pelo Irã. Os Estados Unidos também participaram nas operações clandestinas direcionadas ao Irã e seu aliado, Síria. Um subproduto dessas atividades tem sido o reforço dos grupos sunitas extremistas que adotam uma visão militante do Islã e são hostis com a América e simpáticos a Al Qaeda.

A tentativa constante do presidente Obama de estabelecer um acordo nuclear, a fixação anti-Irã do governo americano persiste. Na pequena revolta contra Assad, os Estados Unidos e seus aliados viram uma chance para atacar o Irã. Combatentes estrangeiros apoiados por oponentes do Irã, logo vieram a dominar os rebeldes.

“A Liga Árabe e poderes imperiais tomaram conta das revoltas sírias no intuito de remover o regime de Assad.” Quando Joseph Massad escreveu isso há quase três anos, tais palavras foram consideradas controversas; hoje, no entanto, meios como NBC, Foreign Policy e o Daily Beast estão delatando o papel principal que os países do Conselho de Cooperação do Golfo – em particular, Arábia Saudita e Qatar – ocuparam na ascensão tanto do ISIS, quanto de seu rival-e-aliado, a Frente Al Nusra.

O governo dos EUA, que deu à luz ao ISIS com a destruição do Iraque, não era um espectador desinteressado enquanto seus aliados o transformavam numa força regional. No Atlantic, o jornalista Steve Clemons aponta que os EUA encorajaram a Arábia Saudita a apoiar o ISIS, e ele desenha o paralelo apropriado: “Como elementos da mujahideen, que beneficiou-se do apoio financeiro e militar dos Estados Unidos durante a guerra Soviética no Afeganistão e mais tarde se opôs ao Ocidente na forma da Al-Qaeda, o ISIS alcançou escala e consequência através do apóio Saudita.”

Os EUA brincaram com fogo, esperando que Assad fosse se queimar. Os horrores do ISIS no Iraque, que supostamente desencadearam a ação militar americana, tinham antecedentes na Síria. Mesmo assim, a administração de Obama, culpando virtualmente toda a brutalidade da guerra contra Assad, nada disse quando o ISIS levou adiante as decapitações em Raqqa e seqüestrou 150 crianças curdas no norte da Síria.

A Casa Branca também desdenhou da ascensão do ISIS no Iraque. “Essa é uma luta que pertence aos iraquianos,” disse o Secretário de Estado John Kerry, após a queda de Falluja. Não foi até a ameaça do ISIS contra Arbil, no Curdistão, uma capital de petróleo, que os Estados Unidos começaram a bombardear o ISIS. “Os americanos sempre dizem que são líderes contra o terrorismo, mas eles não levantaram um dedo quando o ISIS estava tomando partes do Iraque”, disseHassan AL-Fayath, o reitor da al-Nahrain University, em Bagdá. “O único momento em que os americanos se envolveram foi quando descobriram que isso estava ameaçando seus interesses ao chegar perto dos campos de petróleo e de Arbil.”

A esse ponto, tendo sido queimado pela mesma situação que ajudaram a criar, oficiais dos EUA querem enfraquecer, ou ao menos redirecionar o ISIS. Mas seu proclamado desejo de “erradicar” o grupo deveria ser questionado devido à sua recusa em fazer a única coisa que possa trazer seu fim: negociações de trégua que incluam o Irã e possibilitariam que Assad (ou um sucessor) permanecesse no poder.

Em contraste, oficiais americanos estão utilizando o argumento absurdo de que apenas se Assad for deposto, o ISIS pode ser derrotado. Uma mudança de regime na Síria ainda está nos planos, e a Administração Obama está considerando abertamente bombardear o Governo Assad. A guerra contra o Irã continua suprema.

Os promotores de guerra americanos – que fizeram tantas coisas para criar o terrorismo – alegam que os oponentes da guerra e do imperialismo são “suaves com o terrorismo”. E alguns liberais acreditam que esses que fizeram tanto para criar o terrorismo estão tentando lutar contra o mesmo. Compelidos pela lógica destrutiva do capitalismo, os promotores de guerra americanos estão jogando sujo e jogando sério, e mesmo assim, muitos dos seus principais “críticos” os retratam como Os Keystone Cops.

Como o blogueiro Kevin Dooley aponta, muitas análises desafiam o senso comum e permitem uma possibilidade de resistência: “A idéia que a elite dominante é tão estúpida a ponto de não saber quais seriam seus próprios interesses, muito menos como assegurá-los, é um absurdo histórico que só serve ao próprio poder.”

Os EUA mataram centenas de milhares de pessoas em nome de uma batalha contra o terrorismo. A guerra é real demais. Mas também é falsa. Não há choque de civilizações, não há batalha ideológica, não há grande esforço dos Estados Unidos para derrotar o terrorismo. Enquanto o terrorismo não ameaçar os reais interesses dos EUA, as elites contentam-se em permitir – e ajudar – seu crescimento. Eles não querem vencer essa guerra. Ela vai durar para sempre, a menos que façamos algo.

Colaborador

David Mizner is a novelist and freelance journalist who focuses on war and peace, human rights, and the security state.

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