21 de dezembro de 2015

As raízes da islamofobia

Donald Trump não é um lobo solitário. A islamofobia pode ser encontrada em todo o mainstream político.

Deepa Kumar



Tradução / Aparentemente, todos os dias desde os ataques terroristas em San Bernardino, surgem relatos de agressões verbais e físicas contra muçulmanos americanos. Os assassinatos em massa em Paris já haviam precipitado uma reação nos Estados Unidos e em outros lugares contra os refugiados sírios. Mas San Bernardino parece ter acrescentado ainda mais lenha na fogueira.

O mais preocupante, é claro, é a retórica de Donald Trump e sua laia. Mas, como Deepa Kumar nos lembra, simplesmente descartar Trump como um excêntrico ignora a difusão da islamofobia – que tem variantes conservadoras e liberais.

Então, como nós chegamos aqui? Quão ruim é o aumento da islamofobia em termos históricos? E como podemos combatê-la? Abaixo, Kumar, autor de Islamophobia and the Politics of Empire, aborda essas questões e muito mais.

Estamos vendo um crescimento perigoso da islamofobia, cujo ápice está na extrema direita, mas que tem extensões até a centro esquerda. Na mesma semana em que Donald Trump propôs fechar a entrada de muçulmanos, por exemplo, o escritor liberal Michael Tomasky lançou a ideia de convocar efetivamente todos os muçulmanos nos Estados Unidos para provar que são bons americanos. Como devemos nos comportar nesse ambiente? Devemos nos preocupar com o crescimento dessa retórica?

Devemos nos preocupar por duas razões. Em primeiro lugar, temos acompanhado uma escalada de islamofobia e de crimes de ódio que a acompanharam depois de Paris e San Bernardino. Glenn Greenwald compilou uma lista de ameaças e ataques a muçulmanos por apenas uma semana, e o resultado é alarmante. Sei de amigos que pela primeira vez desde o 11 de setembro estão usando coletes por baixo dos hijabs porque estão com medo de serem atacados por desconhecidos.

Ataques racistas e xenófobos não são novidades, mas estão se intensificando. Tivemos ondas de retrocesso desde o 11 de setembro, como durante a polêmica da “Mesquita do Ponto Zero” e da explosão na Maratona de Boston, para citar apenas dois momentos, e a cada novo incidente a retórica alcança patamares inéditos. É a nova realidade da “Guerra ao Terror”, com a islamofobia integrada
ao tecido social americano, pois ela serve para justificar o imperialismo e alimenta o Estado de Segurança Nacional.

A segunda razão para a nossa preocupação é o momento. Em primeiro lugar, vem na onda dos ataques a Paris, e do já polarizado clima internacional que os ataques criaram. Depois, trata-se de um ano de eleição, com os republicanos tomando carona na islamofobia para angariar vantagens políticas, como já fizeram em eleições anteriores.

A extrema direita e a muito bem estabelecida rede de islamofobia têm espalhado ideias descaradamente racistas já há algum tempo, mas sua retórica acaba transbordando para o status quo apenas quando políticos do status quo e personalidades ecoam seus pontos mais chamativos. O que assistimos desde os ataques a Paris é o fato de que as ideias da extrema direita produzidas por uma
rede de islamofobia global, ou o que tem sido chamado de “movimento contrajihadista”,
tem sido repetido e amplificado por vários candidatos republicanos à presidência, com Trump como o mais abusivo entre eles.

Um relatório recente de um grupo inglês sobre o movimento contra-jihadista documenta o alcance global desse movimento e como suas ideias passaram das margens para o mainstream. Pessoas como Trump desempenham um papel instrumental ao facilitar o processo.

No momento, muita gente está denunciando Trump por causa de seu comentário sobre proibir os muçulmanos de entrar nos Estados Unidos, inclusive os outros candidatos republicanos. O consenso geral no establishment politico, e entre os especialistas é que ele foi longe demais e deve ser impedido de concorrer à presidência.

Trump respondeu dizendo que seu plano em nada difere do que o presidente Roosevelt fez em 1942 após os ataques a Pearl Harbor, quando assinou uma ordem autorizando o confinamento de 110 mil americanos de ascendência japonesa (dos quais 60% tinha nascido nos Estados Unidos). Na verdade, Trump está certo ao afirmar que tanto democratas quanto republicanos usaram políticas racistas para ajudar a consolidar o Estado de Segurança Nacional e promover o imperialismo americano, da era da Guerra Fria à Guerra ao Terror. O fato é que se pode afirmar que a ligação entre esses dois fenômenos data da própria fundação do país.

Mas Trump não precisa voltar para 1942, ou antes ainda, para um precedente histórico. Sua proposta de confinamento já está em processo, ainda que de forma diferente, desde o 11 de setembro, com dezenas de milhares de imigrantes e cidadãos americanos muçulmanos indo parar no complexo prisional industrial do país.

Logo após o 11 de setembro mais ou menos 1.200 cidadãos e não-cidadãos muçulmanos foram sumariamente presos e interrogados pelo FBI e por várias agências locais estatais de segurança. Apesar do fato de que nem um sequer desses muçulmanos teve ligação com o terrorismo ou ligações com o 11 de setembro, os níveis de detenção e interrogatório apenas cresceram desde então. Mesquitas, centros comunitários, e até mesmo ligas de esportes infantis acabaram sujeitas à vigilância durante as presidências tanto de Bush quanto de Obama.

Quando Trump propôs um banco de dados para catalogar todos os muçumanos, Hillary Clinton tuitou que isso era um “discurso chocante”. Mas ela não citou o procedimento similar que está funcionando por mais de uma década, o Sistema de Registro de Entrada e Saída da Segurança Nacional de 2002, que tem suas origens na lei antiterrorismo de 1996, de seu marido. O sistema exige que imigrantes maiores de 16 anos vindos de 25 diferentes países sejam fotografados, entrevistados, tenham as digitais recolhidas e declarem sua condição financeira. Até o outono de 2003, mais de 83 mil imigrantes residentes foram registrados nesse sistema.

Então precisamos lembrar que estamos nessa situação hoje porque tanto republicanos quanto democratas contribuíram para ela. Donald Trump está desempenhando atualmente o tipo de papel que Enoch Powell desempenhou outrora na Inglaterra com seu infame discurso “Rios de sangue”, que inclui retórica racista e anti-imigração, e fez dele uma figura politicamente polarizadora.

A. Sivanandan descreveu da seguinte forma os resultados da fala de Powell: “O que Enoch Powel fala hoje, o Partido Conservador fala amanhã, e o Partido Trabalhista legisla no dia seguinte”. Estamos assistindo a uma dinâmica similar nos EUA desde o fim dos anos 1970, o que explica a estreiteza da discussão política no país. Por isso ninguém deve qualificar Trump de idiota ou lobo solitário com pouco impacto no sistema.

Quando Michael Tomasky solicitou que os americanos muçulmanos provassem sua lealdade, ele simplesmente reforçou o discurso do presidente Obama de 6 de dezembro. Obama disse que como “uma ideologia extremista se espalhou no interior de algumas comunidades muçulmanas”, é responsabilidade dos muçulmanos “enfrentar, sem desculpas” esse problema.

Presumivelmente, para as ideias de Obama, um exemplo de tal desculpa seria dizer que os muçulmanos não são mais culpados por San Bernardino do que os cristãos brancos pelas ações de Robert Dear, o atirador da Planned Parenthood. Mas sabemos que Dear é um evangélico cristão que idolatra o Army of God, um grupo antiaborto responsável por numerosos ataques a bomba e assassinatos, e que terroristas de direita são responsáveis por mais mortes desde o 11 de setembro do que os jihadistas.

Por que então os cristãos não são chamados pela extrema direita para “se responsabilizar”, e porque crimes como os de Dear chamam muito menos atenção do que os de San Bernardino? Quando Obama afirma que é “responsabilidade dos muçulmanos ao redor do mundo extirpar as ideias ruins que levam à radicalização”, ele está articulando uma versão liberal da islamofobia, segundo a qual o Islã é culpado pela violência cometida por muçulmanos, mesmo que a maioria dos muçulmanos seja de “pacifistas”. Portanto, apesar de toda a controvérsia, o escopo do debate permanece restrito às variantes liberal e de direita da islamofobia, mesmo com o aumento global da direita. Por isso, ainda que seja correto afirmar que as denúncias dos republicanos de que a retórica de Trump não tem valor são inválidas, dado o forte apoio deles próprios ao que sustenta essas propostas, o mesmo se aplica às denúncias que os democratas fazem aos republicanos, e pelas mesmas razões. Enquanto a direita vê todos os muçulmanos como um problema e como uma Quinta Coluna nas nações ocidentais, o status quo liberal parece mais racional pois diferencia terroristas da maioria dos muçulmanos. Mas no entanto mantém um grupo inteiro de pessoas como responsáveis. É que o establishment liberal acha que os “muçulmanos moderados” devem “tomar a responsabilidade” de denunciar os terroristas, que esquerdistas e antiracistas devem deixar sua correção política de lado, e que todo mundo deve se juntar a eles no apoio à Guerra ao Terror e às suas práticas de guerra, vigilância, detenção indefinida e ataques de drones.

Fica fora da discussão o contexto do império, ou seja, o que as intervenções imperialistas causam no exterior, como essas intervenções saem pela culatra em solo americano, o que elas significam para as vítimas de racismo, e todo o papel que o establishment político americano estabeleceu no avanço da intervenção imperialista, provocando violência interna e externa.

Qual o papel da mídia ao alimentar esse tipo de pânico e intolerância?

Há muita discussão hoje sobre como a retórica idiota de Trump se intensifica apenas porque os grandes grupos de mídia devotam muita atenção a ela. Com certeza há muita verdade nisso.

Os grandes grupos de mídia cobrem com avidez questões controversas e sensacionalistas porque elas trazem mais audiência e servem para aumentar os lucros. A retórica imbecil de Trump – ou seja, sua proposta de deportar milhões de imigrantes latinos ou retomar os afogamentos simulados – é por isso vista como notícias que valem a pena. As principais empresas de comunicação certamente têm interesse financeiro em encorajar o fenômeno Trump.

Mas seria um equívoco ver a escalada da islamofobia como simplesmente um produto de Donald Trump ou das próprias mídias corporativas. No meu livro sobre a islamofobia, examino o que chamo de “matriz da islamofobia”, que identifica as estruturas e instituições responsáveis por formar a ideologia e a prática anti-muçulmanas. Entre elas estão o establishment político (incluindo tanto republicanos quanto democratas), o aparato de segurança nacional, e as universidades e thinktanks – todos contribuindo para a produção de duas formas de islamofobia (liberal e conservadora).

A principal arena em que essas ideias são propagandas para o público é a mídia mainstream. Ela amplifica a retórica dessas outras instituições, mas também limita o escopo do debate entre os polos liberal e conservador. É apenas em raras ocasiões que alguém do grupo da esquerda aceita ocupar esse espaço, e essas ocasiões são quase sempre produto de protesto e movimentos sociais que são fortes o suficiente para forçar a mídia a alargar o alcance do debate (fenômeno que examinei no meu livro sobre a greve da UPS em 1997).

Como a mídia cobriu San Bernardino e outros ato de violência cometidos por muçulmanos americanos em comparação com os cometidos por não-muçulmanos?

Em primeiro lugar, quero falar algumas coisas sobre a violência armada, que, de qualquer forma, é algo tão americano quanto a torta de maçã. O Centro para o Controle de Doenças informou que 406.496 americanos foram mortos por armas de fogo em solo americano desde 2001, em comparação com os 3.380 mortos no mundo inteiro pelo terrorismo. Nos Estados Unidos, jihadistas mataram 45 pessoas desde o 11 de setembro – em outras palavras, uma taxa de quase 10 mil para 1 entre as mortes pela violência armada e pelo terrorismo.

Nos casos de tiroteios no interior de escolas ou outros tiroteios em massa, os perpetradores são na esmagadora maioria homens brancos e jovens. Mas quando um americano muçulmano está envolvido nessa que é a mais americana das tradições, como vimos acontecer em San Bernardino, aparece a ocasião para a justificativa da guerra, do imperialismo e do Estado de Segurança Nacional. Há duas diferentes explicações usadas para lidar com atos violentos nos EUA, um aplicada para os brancos e outra para os muçulmanos. No primeiro caso, as causas da violência são vistas como individuais (ou seja, produto de doença mental), sendo a solução a prisão do criminoso e a condução dele ou dela (quase sempre dele) à justiça.

No caso dos muçulmanos, a violência é explicada como um produto do “choque de civilizações”, para o qual a guerra contra grupos inteiros de pessoas é vista como a única resposta apropriada. É o que Albert Memmi, o filósofo francês, quis dizer quando falou sobre o “sentido de plural”, em que as ações do outro racializado são vistas como generalizáveis para grupos inteiros, enquanto as dos brancos são limitadas ao indivíduo.

Essa lógica não é verdadeira apenas para aqueles que chamamos de conservadores, mas também para os liberais. Liberais, que defendem direitos e liberdades individuais, há muito recusam a individualidade – e portanto os direitos – para o “outro” racializado, tanto na metrópole quanto na colônia.

Qual foi o impacto de San Bernardino e dos comentários de Donald Trump na política nacional?

O efeito Trump, como notei antes, é muito semelhante ao efeito Enoch Powell. Há uma relação de codependência entre os partidos democratas e republicanos.

Por um lado, a cumplicidade dos democratas com a Guerra ao Terror, a construção do Estado de Segurança Nacional, e a sistemática discriminação contra os muçulmanos não serve apenas para legitimar o próprio papel dos republicanos nessas questões, mas também dá a eles liberdade para adotar posições ainda mais extremas.

Por outro lado, enquanto os republicanos vão radicalizando suas posições de direita, os democratas podem não apenas esconder sua própria culpa ao apontar os dedos para o extremismo republicano, mas também eles próprios adotarem medidas extremistas, embora com retórica menos incendiária e acompanhada por garantias de que só vão atingir os “maus” muçulmanos.

Por tudo isso, Donald Trump é uma dádiva celestial para o establishment democrata, um bicho papão que eles podem usar para assustar o eleitor ao propor uma opção “qualquer-pessoa-menos-Trump” na eleição geral de 2016. 

Um exemplo claro disso é um recente editorial do New York Times, que identificou o perigoso fascismo que o racismo de Trump representa. Diante disso, não há nada no editorial a que uma pessoa razoável possa se opor. No entanto, colocar apenas os republicanos como únicos responsáveis por esse clima de islamofobia e pelo fantasma do fascismo, apenas por serem mais voltados à retórica incendiária, passa por cima da culpa dos democratas, cuja contribuição para esse clima não é menos decisiva.

A responsabilidade também é dos democratas, pois toda a noção de front unido contra o fascismo dá a eles uma liberdade maior para levar adiante sua agenda imperialista, livres de quaisquer críticas de sua própria esquerda.

Nada disso quer dizer, é lógico, que Trump não represente uma guinada temerária na política americana, mas é mais importante tentarmos entender a não menos temerária dinâmica política que torna Trump possível, uma dinâmica que é produto do sistema político em sua inteireza. É importante repetir que devemos entender esse fenômeno em termos sistêmicos – não como produto de um único indivíduo ou de apenas um partido político.

Também vale a pena notar como a fala anti-imigrante de Trump, se direcionada a mexicanos ou muçulmanos, se encaixa no padrão há muito estabelecido de bode expiatório. Como praticamente todos os membros de sua classe social, Trump entende que os imigrantes são uma fonte de trabalho barato já integrada à economia americana, o que é especialmente verdadeiro atualmente. Ele também sabe que mantê-los vulneráveis faz com que eles continuem baratos, e colocá-los na posição de bode expiatório faz com que não se note as lamentáveis condições da classe trabalhadora americana como um todo.

E aqui também não podemos ignorar o papel que as administrações americanas têm por muito tempo desempenhado em produzir deslocamento e imigração (por exemplo: NAFTA, os conflitos no Oriente Médio, as guerras contra as drogas ou a América Central) e em dedicar aos imigrantes um tratamento punitivo (como as políticas de deportação em massa de Obama).
Tudo isso é um lembrete de que o racismo é um produto de opressão de classe e dominação imperialista que são parte integrais da história do desenvolvimento capitalista.

A Frente Nacional, de extrema direita, que recentemente arrebanhou 28 por cento dos votos no primeiro turno das eleições regionais na França (apesar de por fim não conseguir o controle de nenhuma região), e outros partidos xenófobos estão em ascensão na Europa. Mas a extrema direita nos Estados Unidos tem há longo tempo sido um animal diferente de sua contraparte europeia. Como devemos pensar a islamofobia nos Estados Unidos como oposta à Europa, e nossas respectivas extrema direitas?

A relação da extrema direita com a islamofobia é realmente diferente na Europa. A principal diferença é que a Europa tem uma longa história colonial no Oriente Médio, norte da África e sul da Ásia. O que quer dizer que o discurso racista sobre os muçulmanos se estabelece tanto ideologicamente quanto na prática em vários países europeus.

No caso da França, a invasão napoleônica do Egito em 1798 e a posterior conquista da Argélia foram um instrumento na produção da retórica racista e orientalista. A França tem também criado uma discriminação sistemática por meio do Code de l’indigénat, um conjunto de leis aplicada em primeiro lugar na Argélia e depois nas colônias francesas, onde a população nativa era considerada inferior. Mesmo depois da descolonização, ideias e práticas racistas continuaram. O Front Nacional é um reflexo desse processo histórico mais longo.

Nos EUA, no entanto, a história da islamofobia é mais recente. É apenas quando o país começa a controlar os reinos imperiais da França e da Grã Bretanha no Oriente Médio e na África do Norte, depois da Segunda Guerra Mundial, que foi preciso enfrentar seriamente a região. O orientalismo e a islamofobia americanos foram também formatados pela relação muito próxima do país com Israel. A produção da “ameaça terrorista” começou nos anos 1970, com a Revolução Iraniana de 1979 desempenhando um papel central nessa construção. Como afirmei em outra ocasião, a aliança com o neoconservador Likud construiu a “ameaça islâmica” nos anos 1980.

Dessa forma, foi apenas na década de 1990 que a extrema direita nos EUA começou a se meter com a islamofobia, e mesmo assim foi só depois do 11 de setembro que ela começou a dar impulso. Isso ocorre porque a retórica antiimigrante nos EUA não se alinha com os imigrantes muçulmanos como na Europa. Aqui nos EUA são os imigrantes latinos que são em primeiro lugar tratados como bode expiatórios. Isso significa que a extrema direita dos EUA aprende e colabora com sua contraparte europeia e vice versa no movimento contra-jihadista global.

A extrema direita na Europa tem tido também muito mais sucesso eleitoral usando uma retórica anti-muçulmana do que sua contraparte norte-americana. O ponto fundamental de virada foi 2010, quando partidos de extrema direita na Europa, usando retórica anti-muçulmana e anti-imigração tiveram ganhos eleitorais sem precedentes tanto nas eleições locais quanto nas eleições do Parlamento Europeu.

O Partido Nacional Britânico, que tem suas raízes nos antigos partidos fascistas, conseguiu quase um milhão de votos e suas duas primeiras cadeiras no Parlamento Europeu. O Partido para a Liberdade, de GeertWilders, na Holanda, também teve resultados significativos. Mesmo em países considerados liberais, como a própria Holanda e a Suécia, partidos de extrema-direita tiveram vitórias. Na Suécia, os Democratas Suecos obtiveram poder no parlamento com uma campanha marcadamente anti-muçulmanos. O líder deles, Jimmie Akesson, pediu por restrições à imigração e afirmava que o Islã é a principal ameaça à nação sueca.

A extrema direita europeia tem tido ganhos no contexto de uma crise econômica prolongada, o que mais uma vez mostra a conexão entre condições precárias de vida da classe trabalhadora e a intensificação dos apelos racistas. A resposta dos governos europeus foi a imposição de medidas de austeridade e o ataque aos mais vulneráveis. Infelizmente, partidos tradicionais de esquerda não conseguiram oferecer uma alternativa. Nesse vácuo político, a direita tem
alimentado a ansiedade dos eleitores ao usar os imigrantes muçulmanos como bodes expiatórios.

Em 2010, o senado francês votou quase por unanimidade o banimento da burca. Quando o voto passou na câmara, os partidos de esquerda (socialistas, verdes e comunistas) se abstiveram. Em vez de colocar-se por princípio em defesa dos muçulmanos e tentar derrubar a medida, decidiram deixar a votação de lado. O Partido Socialista então voltou atrás e afirmou que também tinha objeções ao véu, mas não apoiou medidas constitucionais para bani-lo. Essa resposta patética da esquerda só fortaleceu a extrema direita.

A Europa é o espelho do que pode acontecer nos EUA no que diz respeito ao mainstream político se a extrema direita não for contida. Mas a Europa também oferece lições para a direita norte-americana.

Como essas similaridades e diferenças afetam a nossa maneira de nos organizar contra o racismo e a islamofobia? O que a esquerda deve fazer nos Estados Unidos e no resto do mundo para combater o avanço da islamofobia? 

A primeira lição a aprender da Europa é que não é possível combater a direita a partir do centro. Diante da retórica hiperbólica que demonize assustadoramente os muçulmanos, uma resposta tímida como a tentativa de fazer moderação só dará mais força à extrema direita.

A segunda lição é que a direita está enfrentando resistência de pessoas comuns, às vezes organizadas por pequenos grupos de extrema esquerda que unem a anti-austeridade ao anti-racismo. A esquerda fora do mainstream tem em muitos países europeus uma memória histórica de como combater a direita.
Por exemplo, a Liga Anti-Nazismo na Inglaterra tem com sucesso combatido a Frente Nacional fascista, precursora do Partido Nacional Britânico, organizando-se em duas frentes. Em primeiro lugar, articularam como princípio uma defesa contra o racismo. Em segundo lugar articularam uma política de amplo alcance, que situava o racismo no interior da economia política, com isso colocando adiante uma crítica sistemática e uma alternativa progressiva. 

É fundamental ter sempre em mente que a islamofobia é serva do império. As coisas não vão mudar sozinhas. Argumentei que o diálogo inter-religioso e a educação sobre o Islã não são suficientes. Temos que organizar passeatas, debates, e outras ações para tornar nossas vozes coletivas mais presentes.
Mas precisamos de uma estratégia que não apenas lide com as ameaças imediatas colocadas pela extrema direita representada pelos Donald Trumps da vida, mas também direcionada às raízes que fazem essas (e outras) ameaças possíveis. Em outras palavras, precisamos aprender como assobiar e chupar cana ao mesmo tempo, desenvolvendo táticas de curto prazo que mirem o presente, mas sem minar as possibilidades de mudança em longo prazo e depois sermos obrigados a fazer um confronto ainda mais longo e com ataques mais frequentes. Por muito tempo, essa tem sido a principal fraqueza da esquerda – muito frequentemente optando por táticas de curto prazo que surgem do medo e são afastadas de qualquer percepção clara de como viemos parar aqui, muito menos de como para onde iremos e como conseguiremos chegar lá.

Portanto, para combater a islamofobia, ou mais amplamente o racismo, é preciso ter objetivos maiores do que se unir em oposição a suas principais manifestações chocantes (seja um indivíduo ou um partido político individual).  É muito mais importante desmantelar as fundações estruturais e institucionais sobre as quais a islamofobia está assentada e que dá sustentação para suas manifestações liberais e conservadoras.

Em outras palavras, uma resposta radical que vai às raízes do problema é necessária, e que significa no mínimo colocar um fim na Guerra ao Terror, desmantelar o Estado de Segurança Nacional e retirar o poder da classe que mantém esse aparato. Isso por sua vez exige uma política em que o fortalecimento dos movimentos sociais de massa e a democratização do nosso sistema político seja o norte.

Pode parecer um objetivo muito grande, mas se nos voltarmos para algo menor, vamos subestimar tanto as ameaças reais que nós e o resto do mundo enfrentamos nesse momento, quanto as melhores maneiras de enfrentá-las.

Sobre o autor

Deepa Kumar é autora de Islamophobia and the Politics of Empire.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Guia essencial para a Jacobin

A Jacobin tem divulgado conteúdo socialista em ritmo acelerado desde 2010. Eis aqui um guia prático para algumas das obras mais importantes ...