28 de julho de 2023

Abdias do Nascimento relata sua experiência na prisão em livro essencial

Intelectual brasileiro antecipa Angela Davis em décadas ao perceber efeito do encarceramento sobre as pessoas

Juliana Borges
Escritora, livreira e coordenadora na Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas. É autora de "Encarceramento em Massa" (Jandaíra) e "Prisões: Espelhos de Nós" (Todavia)

Folha de S.Paulo

A leitura de "Submundo: Cadernos de um Penitenciário", em que Abdias do Nascimento anuncia a subvida no Centro de Detenção do Carandiru, é obrigatória.

O escritor Abdias do Nascimento, que tem seus escritos resgatados em 'Submundo' - Elisa Larkin Nascimento/Divulgação

"Aqui estou no território dos proscritos, podridões, escombros repelentes da sociedade, mundo de dor que eu vi, mundo de agonia, mundo submerso no maior de todos os sofrimentos."

Trechos como esse tornam inevitável a relação com a produção de Angela Davis, publicada seis décadas depois do encarceramento do brasileiro, em "Estarão as Prisões Obsoletas?", no qual ela afirma de forma direta e violenta de que "as prisões são os depósitos dos detritos do capitalismo".

Mais do que um espaço intencional, mesmo que pouco funcional, de correção, as prisões se mostram como o espaço no qual visamos esconder tudo o que queremos negar, até em nós mesmos.

O texto de Abdias é ora autobiografia, ora ensaio, ora literário, sempre com a magistralidade da dramaturgia que se impõe como rasgo preciso sobre a experiência desumanizante que é o cárcere.

O autor intermedeia primeira e terceira pessoas, compartilhando a sua voz espelhada na de outros detentos para daí descortinar imaginários criminalizantes da figura do negro na sociedade brasileira, pondo em xeque o racismo científico e o lombrosianismo. Inclusive, dá luz a uma importante reflexão que a sociedade daquele período e a de hoje insistem em adiar: há regeneração necessária?

O autor de "Submundo" destrincha a ideia de regeneração e prova que ela é falha e inatingível em um ambiente embrutecedor. E esse momento da leitura traz à memória um experimento que causou espanto na comunidade científica, realizado em 1971 e conhecido como "Experimento de Stanford".

Na Faculdade de Psicologia daquela universidade, o professor Philip Zimbardo levantou uma pergunta: as pessoas mudariam seus comportamentos conforme o contexto no qual estão inseridas? Para isso, selecionou 24 estudantes e os dividiu em dois grupos: o de prisioneiros e o de carcereiros.

No porão da faculdade foi construída uma falsa prisão, na qual os carcereiros tinham controle total. A observação tinha como objetivo responder à pergunta norteadora e notar uma possível mudança de comportamento em pessoas sem problemas psicológicos que estavam submetidas a um ambiente hostil e divididas entre as que detinham poder e as destituídas dele.

O experimento teve início sem aviso prévio aos estudantes participantes: em um domingo, policiais prenderam os alunos sob a alegação de roubo. Estes foram algemados, fichados, vendados e presos. Na "prisão", passaram por procedimentos humilhantes, comuns nas celas: limpeza com banho frio, medicação para piolho, corte de cabelo e vestimentas padronizadas, que não respeitavam seus tamanhos. A única orientação aos estudantes-carceireiros era agir sem cometer agressões e de forma impessoal.

Não durou muito. Se as agressões não podiam ser físicas, isso não significava ausência de violência —os "carcereiros" passaram a humilhar e submeter os presos a torturas psicológicas. Ridicularizações com a sexualidade, privação de sono, exercícios extenuantes, solitária sem roupa.

Em cerca de 36 horas, os estudantes-detentos começaram a apresentar transtornos psicológicos e comportamentais, e os estudantes-carcereiros apresentavam total descontrole sádico do uso do poder. O experimento teve que ser interrompido no sexto dia.

Isso tudo aparece nas reflexões do livro de Abdias do Nascimento, incluindo a questão de gênero que, mesmo com problemas e estereótipos usados pelo autor, se coloca como eixo estruturador do cárcere que desumaniza a todos. Inclusive a nós, que não estamos vivendo as prisões, mas nos alimentamos cotidianamente da sanha punitivista e corroboramos a violência executada dia após dia.

Um ponto a ser destacado é a criação do Teatro do Sentenciado por Abdias, que pode ser lido como uma experiência embrionária e alimentadora do Teatro Experimental do Negro.

Ashley Lucas lançou no ano passado a tradução de seu livro "Teatro em Prisão e a Crise Global do Encarceramento", um estudo sobre as experiências da dramaturgia em prisões de vários pontos do mundo. Fica evidente ali que o teatro é como uma infiltração naquela tessitura violenta, que propicia reposicionamento, frestas do exercício da liberdade e da colaboração, rompimentos táticos que possibilitam reinvenções.

A grandeza de Abdias do Nascimento reside aí: estar atento e perceber, à frente de seu tempo, essas nuances ainda tão jovem, carregando-as consigo por todo o seu percurso intelectual e militante.

Assim como Angela Davis, Martin Luther King, Carlos Marighella, Preta Ferreira e Dexter, Abdias toma a experiência do cárcere para uma formulação intelectual sobre as engrenagens de reprodução das desigualdades. Da vivência à experiência política, esses intelectuais e militantes questionam o modelo de Justiça criminal constituído pelo punitivismo como uma ferramenta do capitalismo.

A resposta deles é radical: é preciso romper com esse modelo e caminhar em firme propósito da liberdade como última fronteira. "À Justiça parece interessar somente condenar", disse um dos detentos a Abdias. E a sociedade parece se deliciar do tormento ao qual seres humanos são submetidos cotidianamente. A pergunta que fica é: até quando?


Preço R$ 64,90 (320 págs.); R$ 39,90 (ebook) Autoria Abdias Nascimento Editora Zahar

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