1 de novembro de 1985

Como extirpar os pobres da nossa consciência

John Kenneth Galbraith


November 1985

Gostaria de refletir sobre um dos mais antigos exercícios humanos, o processo pelo qual ao longo dos anos, e na verdade ao longo dos séculos, nos temos encarregado de ignorar os pobres.

Ricos e pobres têm vivido juntos, sempre inconfortavelmente e por vezes perigosamente, desde o princípio dos tempos. Plutarco chegou a dizer: "Um desequilíbrio entre os ricos e os pobres é a mais antiga e a mais fatal enfermidade das repúblicas". E os problemas que decorrem da contínua co-existência de riqueza e pobreza – e particularmente o processo pelo qual a boa fortuna justifica-se na presença do infortúnio dos outros – tem sido uma preocupação intelectual durante séculos. Continuam a ser na nossa própria época.

Começa-se com a solução proposta na Bíblia: os pobres sofrem neste mundo mas são maravilhosamente premiados no além. A pobreza é um infortúnio temporário; se eles forem pobres e também dóceis acabarão por herdar a terra. Isto é, sob certos aspectos, uma solução admirável. Permite que os ricos desfrutem a sua riqueza enquanto invejam a futura fortuna dos pobres no além.

Muito, muito mais tarde, nos vinte ou trinta anos que se seguiram à publicação de A Riqueza das Nações, em 1776, no alvorecer da Revolução Industrial na Grã-Bretanha – o problema e a sua solução começou a tomar a sua forma moderna. Jeremy Bentham, um quase contemporâneo de Adam Smith, propôs a fórmula que durante talvez uns cinquenta anos influenciou extraordinariamente os britânicos e, em algum grau, também o pensamento americano. Esta foi o utilitarismo. "Pelo princípio da utilidade", disse Bentham em 1789, "é preciso entender que a razão principal que aprova ou desaprova qualquer ação que seja está em função da sua tendência a aumentar ou diminuir a felicidade da parte cujo interesse está em jogo". A virtude é, na verdade deve ser, autocentrada. Enquanto houver pessoas com uma grande boa fortuna e muitas mais com grande má fortuna, o problema social estava resolvido desde que, mais uma vez na palavras de Bentham, "o maior bem para o maior número". A sociedade fazia o melhor que podia para o maior número possível de pessoas; tinha-se de aceitar que o resultado podia ser tristemente desagradável para os muitos cuja felicidade não era atendida.

Na década de 1830 uma nova fórmula, sempre atual, tornou-se disponível para retirar os pobres da consciência pública. Esta é associada aos nomes de David Ricardo (1772-1823), um corretor de bolsa, e Thomas Robert Malthus (1776-1834), um teólogo protestante. O essencial da mesma é familiar: a pobreza dos pobres era culpa dos pobres. E isso porque era o resultado da sua excessiva fecundidade: a sua luxúria lamentavelmente descontrolada levava-os a proliferar até os limites da subsistência disponível.

Isto foi o malthusianismo. Se a pobreza era causada na cama isso significava que os ricos não eram responsáveis nem pela sua criação nem pela sua diminuição. Contudo, o próprio Malthus não estava isento de um certo sentimento de responsabilidade: ele urgia a que a cerimônia de casamento contivesse uma advertência contra o inter-curso sexual indevido e irresponsável – uma advertência que, é justo dizer, não tem sido aceita como um método plenamente efetivo de controle de nascimentos. Em tempos mais recentes, Ronald Reagan disse que a melhor forma de controle da população emerge do mercado. (Casais apaixonados deveriam reparar na R. H. Macy's, não nos seus quartos). Malthus, deve-se dizer, pelo menos era relevante.

Nos meados do século XIX, uma nova forma de negação ganhou grande influência, especialmente nos Estados Unidos. A nova doutrina, associada ao nome de Herbert Spencer (1820-1903), era o Darwinismo Social. Na vida econômica, tal como no desenvolvimento biológico, a regra predominante era a sobrevivência do mais apto. Esta frase – "sobrevivência do mais apto" – veio, de fato, não de Charles Darwin mas sim de Spencer e exprimia a sua visão da vida econômica. A eliminação dos pobres constitui o meio utilizado pela natureza para melhorar a raça. Sendo expulsos os fracos e infelizes, a qualidade da família humana sai fortalecida.

Um dos mais notáveis porta-vozes americanos do Darwinismo Social foi John D. Rockefeller – o primeiro Rockefeller – que declara num discurso famoso: "A variedade de rosa American Beauty pode ser produzida no esplendor e fragrância que provoca aplauso naqueles que a contemplam só através do sacrifício dos primeiros botões que crescem em torno dela. E assim é na vida econômica. Isto é meramente o desenvolvimento de uma lei da natureza e uma lei de Deus".

No decurso do século XX, contudo, o Darwinismo Social veio a ser considerado um tanto cruel. Ele declinou em popularidade e as referências ao mesmo adquiriram um tom condenatório. Passamos para a negação mais amorfa da pobreza associada aos presidentes Calvin Coolidge (1923-1929) e Herbert Hoover (1929-1933). Para eles, toda assistência aos pobres interferia com a operação efetiva do sistema econômico e tal assistência era incompatível com um projeto econômico que servia muito bem a maior parte do povo. A noção de que há algo economicamente danoso em ajudar os pobres permanece conosco nestes dias como um dos modos pelos quais nós os expulsamos da nossa consciência.

Com a revolução de Roosevelt (assim como anteriormente com a de Lloyd George na Grã-Bretanha), o governo assumiu uma responsabilidade específica pelo povo menos afortunado na república. Roosevelt e os presidentes que o seguiram aceitaram uma medida substancial de responsabilidade para com os idosos através da Seguridade Social, para com os desempregados através do seguro de desemprego, para com os imprestáveis e mutilados através do alívio direto e para com os doentes através do Medicare e do Medicaid. Isto foi realmente uma grande mudança e, por algum tempo, a antiga tendência de evitar pensar sobre os pobres deu lugar ao sentimento de que precisávamos tentar – que estávamos, na verdade, fazendo alguma coisa em relação a eles.

Em anos recentes, contudo, ficou claro que a busca de um meio para extirpar os pobres da nossa consciência não havia acabado; fora apenas suspensa. E assim empenhamo-nos mais uma vez nesta busca de um modo altamente enérgico. Tornou-se outra vez uma grande preocupação filosófica, literária e retórica, bem como um empreendimento não economicamente insatisfatório.

Dos quatro, talvez cinco, métodos atuais que temos para extirpar os pobres da nossa consciência, o primeiro decorre do fato inescapável de que a maior parte das coisas que devem ser feitas em prol dos pobres tem de ser feita de um modo ou de outro pelo governo. Tem sido argumentado que o governo é incompetente por inerência, exceto no que respeita à concepção e compra de armas e à administração geral do Pentágono. Sendo incompetente e ineficaz, não lhe deve ser pedido para socorrer os pobres; ele apenas estragará as coisas ou as tornará piores.

A alegação da incompetência governamental está associada nos nossos tempo à condenação geral do burocrata – mais uma vez excluindo aqueles associados à defesa nacional. A única forma de discriminação que ainda é permissível – isto é, ainda encorajada oficialmente nos Estados Unidos de hoje – é a discriminação contra pessoas que trabalham para o governo federal, especialmente em atividades de bem-estar social. Temos grandes burocracias corporativas repletas de burocratas corporativos, mas eles são bons; só a burocracia e os servidores do governo são maus. De fato temos nos Estados Unidos um serviço público extraordinariamente bom – constituído por pessoas talentosas e dedicadas que são esmagadoramente honestas e só raramente dispostas a pagar demasiado por alicates, lanternas de bolso, máquinas de café e assentos de toilet. (Quando ocorreram estas aberrações foram, surpreendentemente, todas no Pentágono). Quase abolimos a pobreza entre os idosos, democratizamos muito os cuidados de saúde, asseguramos direitos civis de minorias e promovemos amplamente oportunidades educacionais. Tudo isto pareceria uma façanha considerável para pessoas incompetentes e além disso ineficazes. Devemos reconhecer que a atual condenação do governo e da administração governamental é realmente parte da concepção contínua de evitar responsabilidade para com os pobres.

A segunda concepção nesta grande tradição secular é argumentar que qualquer forma de ajuda pública ao pobre apenas o prejudica. Destrói a moral. Estimula pessoas a afastarem-se do emprego proveitoso. Rompe casamentos, pois as mulheres podem obter bem-estar para si próprias e os seus filhos quando ficarem sem maridos. Não existe absolutamente nenhuma prova de que estes danos sejam superiores àqueles que implicariam a supressão dos apoios públicos. Entretanto, o argumento segundo o qual eles prejudicam gravemente os deserdados é constantemente relançado e, o que é mais grave, acreditado. Esta é, sem dúvida, a mais influente das nossas fantasmagorias.

A terceira concepção, estreitamente relacionada, para nos aliviar da responsabilidade para com os pobres é o argumento de que medidas de assistência têm um efeito adverso ao incentivo. Elas transferem rendimento do diligente para o ocioso e irresponsável, reduzindo portanto o esforço do diligente e encorajando a ociosidade do preguiçoso. A manifestação moderna disto é a teoria econômica do lado da oferta (supply-side economics). A teoria econômica da oferta sustenta que os ricos nos Estados Unidos não estão trabalhando porque têm muito pouco rendimento. Assim, ao tomar dinheiro dos pobres e dá-los aos ricos, aumentamos o esforço e estimulamos a economia. Pode-se realmente acreditar que um número considerável de pobres prefira a ajuda social a um bom emprego? Ou que homens de negócios – executivos de corporações, as figuras chave do nosso tempo – estejam desperdiçando o seu tempo devido à insuficiência do seu pagamento? Isto é uma acusação escandalosa contra os homens de negócios americanos, um notável árduo trabalhador. A crença pode ser o servidor da verdade – mas ainda mais da comodidade.

A quarta concepção para extirpar os pobres da nossa consciência é apontar os presumidos efeitos adversos à liberdade o assumir de responsabilidades para com eles. A liberdade consiste no direito de gastar um máximo de dinheiro próprio à vontade de si próprio e ver um mínimo tomado e gasto pelo governo. (Mais uma vez, a despesa com a defesa nacional é excetuada). Nas palavras definitivas do professor Milton Friedman, as pessoas devem ser "livres para escolher".

Esta é possivelmente a mais transparente de todas as concepções. Quando se trata de pobres, habitualmente não é feita qualquer menção à relação entre o seu rendimento e a sua liberdade. (O professor Friedman é uma exceção aqui; através do imposto de rendimento negativo, ele asseguraria a todos um rendimento básico). Não há, certamente podemos concordar, qualquer forma de opressão que seja tão grande, nenhuma construção do pensamento e esforço tão abrangente, como o que decorre de não ter qualquer dinheiro de todo. Embora ouçamos muito acerca da limitação à liberdade do rico quando o seu rendimento é reduzido através de impostos, nunca ouvimos nada sobre a extraordinária promoção da liberdade do pobre por ter algum dinheiro seu para gastar. Mas a perda de liberdade da tributação para o rico é uma coisa pequena quando comparada com o ganho em liberdade de proporcionar algum rendimento ao empobrecido. Certamente aplaudimos a liberdade. Mas ao aplaudi-la não deveríamos utilizá-la como encobrimento para negar liberdade àqueles em necessidade.

Finalmente, quando tudo falha, recorremos à simples negação psicológica. Isto é uma tendência psíquica que em várias manifestações é comum a todos nós. Leva-nos a evitar pensar acerca da morte. Leva um grande número de pessoas a evitar pensar sobre corrida armamentista e a consequente pressão rumo a uma extinção altamente provável. Quer estejamos na Etiópia, no Bronx Sul ou mesmo no Eliseu ou em Los Angeles, resolvemos mantê-la fora das nossas mentes. Pense, somos frequentemente aconselhados, em algo agradável.

Estas são as concepções modernas pelas quais escapamos de preocupações para com os pobres. Todas, salvo talvez a última, testemunham uma grande criatividade na linha de Bentham, Malthus e Spencer. Ronald Reagan e seus colegas estão claramente numa tradição notável – no fim de uma longa história de esforço para escapar à responsabilidade pelos semelhantes. Assim são os filósofos agora celebrados em Washington: George Gilder, uma figura muito favorecida do passado recente, conta com muito aplauso que os pobres devem ter o cruel incentivo do seu próprio sofrimento a fim de garantir esforço; Charles Murray, o qual, com maiores aplausos, contempla "sucatear todo o programa de bem-estar federal e a estrutura de apoio ao rendimento para trabalhadores e pessoas idosas, incluindo a ajuda a famílias com filhos dependentes, Medicaid, tickets de alimentação, seguro de desemprego, indenização por acidente de trabalho, habitação subsidiada, seguro de incapacidade e, acrescenta ele, "o resto. Corte o nó, pois não há meio de desatá-lo". Através de uma triagem, os valiosos seriam selecionados para sobreviver, a perda do resto é a penalidade que deveríamos pagar. Murray é a voz de Spencer no nosso tempo; ele está desfrutando, como indicado, de popularidade sem paralelo em altos círculos de Washington.

A compaixão, juntamente com o esforço público associado, é o menos confortável, o menos cômodo, curso de comportamento e ação no nosso tempo. Mas permanece o único que é compatível com uma vida totalmente civilizada. Também é, no fim, o curso mais verdadeiramente conservador. Não há paradoxo aqui. O descontentamento civil e suas consequências não vem de pessoas satisfeitas – um ponto óbvio pois na medida em que podemos tornar a satisfação quase tão universal quanto possível, preservamos e ampliamos a tranquilidade social e política pela qual os conservadores deveriam, acima de tudo, ansiar.

1 de abril de 1985

A controvérsia sobre Marx e o conceito de justiça

Norman Geras

New Left Review

NLR I/150 • MAR/APR 1985

Tradução / Nesse ensaio farei uma análise de um setor da recente literatura sobre Marx que tem crescido rapidamente e da controvérsia que tem alimentado seu crescimento. Ao longo da última década, aproximadamente, o grande interesse sobre o conceito de justiça dentro da filosofia moral e política deixou sua marca na discussão filosófica da obra marxiana. Isso ocorreu no formato da seguinte questão: Marx condenou o capitalismo como injusto? Há aqueles que argumentam energicamente que não e tantos outros que, da mesma maneira, insistem que sim — essa é uma divisão suficientemente objetiva, apesar das variações de abordagem que existem em cada um dos lados. Para evitar equívocos, é importante destacar logo de início que a questão a ser tratada não é se Marx realmente condenava o capitalismo, ao invés de ter apenas analisado, descrito e explicado sua natureza e suas tendências. Todos os lados envolvidos nessa disputa concordam que sim, ou seja, concordam que existe uma dimensão normativa desse tipo no pensamento marxiano (e, francamente, penso que a negação disso não merece ser levada a sério). A questão aqui é mais específica: Marx condena o capitalismo à luz de algum princípio de justiça?

Irei examinar a posição que sustenta que não e a que sustenta que sim; além da evidência textual aduzida por ambas as posições e os argumentos de apoio apresentados em nome de cada uma delas. Dada a extensão da literatura a ser examinada — são cerca de três dúzias de itens, dos quais apenas um apareceu antes de 1970, e de procedência amplamente, na verdade esmagadoramente, norte-americana (21 dos 24 autores aqui citados escrevem ou vêm desse continente) — cada posição apresentada aqui é uma espécie de combinação híbrida. Nenhum de seus defensores necessariamente utiliza todos os textos e argumentos que eu elencarei, e às vezes eles enfatizam ou interpretam de maneira diferente mesmo aquelas referências que utilizam em comum. Mesmo assim, apresentarei aqui o que espero ser um cuidadoso mapeamento geral dessa disputa, para depois me arriscar em direção a minha própria análise sobre o assunto. Assim, o principal desse ensaio se divide em três partes. Primeiro, eu revisarei os textos e argumentos trazidos por aqueles que negam que Marx condenava o capitalismo como injusto. Segundo, eu revisarei os textos e argumentos trazidos por aqueles que alegam que Marx, sim, condenava-o como injusto. Tentarei nessas duas seções apresentar cada posição de maneira ampla, com o mínimo de comentários críticos. Em terceiro lugar, irei propor algumas conclusões e argumentarei em defesa delas[1].

Antes de começar, porém, é indispensável fazer um breve esboço de parte do pano de fundo teórico desse debate, que são os traços gerais da análise de Marx sobre a exploração capitalista. Nesse sentido, pode-se falar de seus "dois lados" discerníveis na relação salarial. O primeiro e mais benigno deles se encontra na esfera da circulação, onde há, de acordo com Marx, uma troca de valores equivalentes: salários, de um lado, e força de trabalho, de outro. Os trabalhadores vendem sua mercadoria — sua capacidade de trabalhar — e do capitalista eles recebem em troca, na forma de salário, o valor da mercadoria que eles venderam, ou seja, o valor daquilo que entra na produção dela, das coisas que os trabalhadores consomem em função dos meios de subsistência historicamente definidos. O que eles recebem do capitalista, Marx insiste em sublinhar, é o equivalente integral do valor daquilo que venderam, de modo que não há trapaça ali. No entanto, o segundo, e mais feio, lado da relação se revela na esfera da produção. Aqui os trabalhadores, cujo trabalho é em si mesmo a fonte do valor que as mercadorias contêm, terão que trabalhar mais tempo do que o necessário para reproduzir o valor de sua própria força de trabalho, mais do que o necessário para repor o valor do salário que receberam. Ou seja, eles irão realizar trabalho excedente, e o mais-valor criado por eles será apropriado pelo capitalista na forma de lucro. A força de trabalho em ação cria um valor maior do que o valor pelo qual ela é vendida e que ela mesma incorpora. Esses dois lados revelam alternadamente suas características contrastantes nas páginas de O capital, são aspectos contrastantes da relação salarial: na esfera da circulação, uma troca de equivalentes livremente contratada; na esfera da produção, a obrigação de se trabalhar horas sem remuneração. Essa é a natureza da exploração capitalista.

Porém, Marx a considera injusta?

(i) Uma primeira e, em decorrência disso, atraente evidência contra a suposição de que Marx considera o capitalismo injusto é o fato de que ele mesmo efetivamente o disse. Uma vez que a compra da força de trabalho foi efetivada, de acordo com Marx, essa mercadoria pertence ao capitalista de pleno direito e, sendo assim, o mesmo se passa com o seu uso e com os produtos de seu uso (1976, p. 292, 303; 1968, p. 315).[2] Ou, expresso do ponto de vista do trabalhador, "mal seu trabalho tem início efetivamente e a força de trabalho já deixou de lhe pertencer" (MARX, 1976, p. 677).[3] O capitalista, Marx afirma na passagem mais freqüentemente citada a esse respeito, pagou pelo valor da força de trabalho, e o fato de que o uso dela terminou por criar um valor maior "é, certamente, uma grande vantagem para o comprador, mas de modo algum uma injustiça para com o vendedor" (1976, p. 301).[4] Igualmente, o fato de que essa mercadoria particular, a força de trabalho, tenha o valor de uso peculiar de fornecer trabalho e, portanto, de criar valor, não pode alterar em nada a lei geral da produção de mercadorias. Portanto, se a quantia de valor adiantada em salário não ressurge no produto pura e simplesmente, mas sim aumentada de um mais-valor, isso não resulta de que se tenha ludibriado o vendedor, pois este recebeu efetivamente o valor de sua mercadoria, mas do consumo dessa mercadoria pelo comprador (1976, p. 731)[5].

(ii) Em conformidade com sua negação de que a relação salarial é injusta, Marx também se coloca contra os socialistas que tentam recorrer a considerações sobre justiça. O episódio mais bem conhecido é sua polêmica, na Crítica do programa de Gotha, contra a noção de uma justa distribuição dos produtos do trabalho. "O que é 'distribuição justa'?", ele pergunta com severidade, os burgueses não consideram que a atual distribuição é 'justa'? E não é ela a única distribuição justa tendo como base o atual modo de produção? As relações econômicas são reguladas por conceitos jurídicos ou, ao contrário, são as relações jurídicas que derivam das relações econômicas? Os sectários socialistas não têm eles também as mais diferentes concepções de distribuição 'justa'? (Marx; Engels, 1970b, p. 16)

Logo depois ele se refere a tais noções como "restolhos ideológicos ultrapassados" e "disparates ideológicos, jurídicos e outros gêneros, tão em voga entre os democratas e os socialistas franceses" — sua posição geral parece bastante clara (MARX; ENGELS, 1970b, p. 19).[6] Novamente, em uma carta de 1877, ele escreve desdenhosamente sobre um grupo de estudantes imaturos e doutores diplomados super-sábios que querem dar ao socialismo uma orientação ‘mais alta, idealista’, ou seja, substituir sua base materialista (que demanda o estudo sério e objetivo por parte de quem queira usá-la) pela mitologia moderna, com suas deusas Justiça, Liberdade, Igualdade e Fraternidade (n. d., p. 375- 376)[7] Na única ocasião em que o próprio Marx faz uso de referências a direitos e justiça — em sua Mensagem Inaugural da Associação Internacional dos Trabalhadores e no preâmbulo de seu Estatuto — ele se explica cautelosamente em uma carta a Engels: “eu fui obrigado a inserir duas frases sobre ‘dever’ e ‘direito’ no preâmbulo do Estatuto, e também sobre ‘verdade, moral e justiça’, mas elas estão colocadas de uma maneira tal que não vão fazer mal” (n.d., 182).[8]

(iii) O que motiva a polêmica acima referida, bem como a negação de Marx de que haveria injustiça na relação salarial, talvez já esteja evidente. É o que muitos, inclusive esses cuja interpretação estamos esboçando no presente momento, entendem ser sugerido por outra formulação presente na Crítica do programa de Gotha, a saber, que “o direito não pode ultrapassar a forma econômica e o desenvolvimento cultural, por ela condicionado, da sociedade” (MARX; ENGELS, 1970b, p. 19).[9] Critérios de justiça, pode-se depreender daí, são relativos, ou internos, a modos de produção historicamente específicos. Não se trata apenas do fato de que aqueles são gerados por esses — que as relações jurídicas, e as “formas de consciência social” a elas correspondentes, “se originam nas condições materiais de vida” (MARX, 1971, p. 20)[10] — mas que, além disso, as noções de justiça só são aplicáveis e válidas dentro de cada modo de produção. Os únicos princípios de justiça que são apropriados para se julgar um modo de produção particular são aqueles que de fato lhe “correspondem” e são funcionais para sustentá-lo e legitimá-lo. Conforme uma outra passagem bastante citada: Não faz sentido falar aqui de justiça natural, como faz Gilbart [a respeito do pagamento de juros sobre empréstimos — NG]. A justiça das transações que se realizam entre os agentes da produção repousa no fato de que essas transações derivam das relações de produção como uma conseqüência natural. As formas jurídicas, nas quais essas transações econômicas aparecem como atos de vontade dos envolvidos, como exteriorizações de sua vontade comum e como contratos cuja execução pode ser imposta às partes pelo Estado, não podem determinar, como meras formas que são, esse conteúdo. Elas podem apenas expressá-lo. Quando corresponde ao modo de produção, quando lhe é adequado, esse conteúdo é justo; quando o contradiz, é injusto. A escravidão, sobre a base do modo de produção capitalista, é injusta, assim como a fraude em relação à qualidade da mercadoria (MARX, 1981, p. 178, 460-461)

Se por relativismo nós entendermos uma concepção segundo a qual determinar o que é justo é simplesmente uma questão de ponto de vista subjetivo, então se pode dizer que a concepção de Marx não é relativista. Ao contrário, ela tem uma base firmemente objetiva, uma vez que compreende que os padrões de justiça apropriados a qualquer tipo sociedade se estabelecem como tais em virtude da função social real que eles exercem (WOOD, 1980a, p. 18-19; 1981a, p. 131-132). Ela se mostra relativista, contudo, no sentido em que vincula todo princípio de justiça a um modo de produção específico tal como descrito, tornando assim os princípios em si incapazes de providenciar uma base para um juízo trans-histórico. Desse modo, não há como existir um parâmetro de justiça independente, que seja externo ao capitalismo e, ao mesmo tempo, apropriado para julgá-lo. Não pode haver nenhum princípio que transcende épocas históricas a partir do qual Marx seria capaz de condenar o capitalismo como injusto.

(iv) É possível apresentar o mesmo argumento de outro ângulo. Normas e noções morais estão embutidas na bússola da teoria da ideologia de Marx. Portanto, não apenas as ideias sobre justiça mas também a moralidade em um sentido geral pertencem à superestrutura da qualquer formação social. Conforme posto em A ideologia alemã, “a moral, a religião, a metafísica e qualquer outra ideologia, bem como as formas de consciência a elas correspondentes, são privadas, aqui, da aparência de autonomia que até então possuíam” (MARX; ENGELS, 1975, p. 36-37). Assim, a ideia de que Marx consideraria a sociedade capitalista injusta segundo o critério de princípios de justiça historicamente gerais não é consistente com suas noções sobre ideologia (BRENKERT, 1980, p. 90; 1983, p. 154- 155).

Reformismo

(v) Uma vez que a justiça é essencialmente um valor relativo à distribuição argumenta-se, ademais, que atribuir a Marx uma preocupação com ela significa modificar sua crítica ao capitalismo em um sentido que ele explicitamente repudiou e, por esse caminho, se chegar a uma conclusão reformista que ele não aprovava. Essa perspectiva [sobre justiça distributiva] foca a atenção de modo demasiadamente estreito na questão da distribuição de renda e suas diferenciações internas: a parcela do produto social recebida pelos trabalhadores e o nível inadequado de sua remuneração. Além disso, ela sugere que a exploração deve ser eliminada pela alteração e regulação dessa esfera, isso é, por meio de reformas na distribuição de renda. Entretanto, como sabemos, para Marx a exploração reside na própria natureza do capitalismo, sendo parte constitutiva de suas relações de produção, das quais depende em larga medida a distribuição de renda. A preocupação dele é com a questão mais fundamental das relações de produção e a necessidade de uma revolução completa nelas. Assim, por mais importante que sejam, reformas relativas aos níveis salariais simplesmente não podem levar à abolição da exploração3 . Por isso Marx esbraveja contra os autores do Programa de Gotha por criarem confusão em torno da “assim chamada distribuição”. A distribuição dos meios de consumo não pode ser tratada independentemente da dos meios de produção (MARX; ENGELS, 1970b). Assim, também em Salário, preço e lucro, ele fala “daquele radicalismo falso e superficial que aceita as premissas e tenta se esquivar das conclusões”, e continua: “reivindicar uma retribuição igual ou mesmo equânime tendo por base o sistema de trabalho assalariado é o mesmo que reivindicar liberdade com base no sistema escravagista. A questão é a seguinte: o que é necessário e inevitável dentro de um determinado sistema de produção?” Depois, na mesma obra, Marx proclama, “em vez do lema conservador ‘um salário justo para uma jornada de trabalho justa’ eles [os trabalhadores — NG] devem colocar em suas bandeiras a palavra de ordem revolucionária ‘Abolição do sistema de trabalho assalariado!’”(MARX; ENGELS, 1970a, p. 56-57).

(vi) O enfoque voltado à justiça distributiva, há quem argumente, também é reformista em outro sentido. Ele faz o projeto marxiano de buscar as tendências revolucionárias reais que irão derrubar a ordem capitalista retroceder em direção a projetos de esclarecimento moral e reforma jurídica. Como coloca um comentador, esse enfoque “direciona a atenção para ideais abstratos de justiça e a desvia de objetivos revolucionários concretos” (BUCHANAN, 1979, p. 134). A ideia aqui é que, para Marx, é uma forma de idealismo acreditar que o progresso histórico ocorre por meio de aperfeiçoamentos na moral ou nas ideias jurídicas. Tais mudanças são secundárias, derivada das transformações operadas nas relações de produção da sociedade. O que conta, portanto, é identificar as verdadeiras tendências históricas que contribuem para esse tipo de transformação e as forças sociais e movimentos capazes de consumá-la. Em relação a essa tarefa materialista, uma crítica do capitalismo em nome da justiça representa um retrocesso — servindo no máximo para preparar o pretenso revolucionário, por mais determinado e impetuoso que seja, para “fazer o discurso principal na próxima Convenção do Partido Democrata” (WOOD, 1980a, p. 30)4 .

(vii) Princípios de justiça são, de qualquer modo, precisamente princípios jurídicos. E, como tais, eles se encontram dentro daquele conjunto de instrumentos institucionais do Estado, da lei, das penas, etc., por meio dos quais modos de conduta são impostos aos membros de uma ordem social. De acordo com Marx, no entanto, uma sociedade comunista não terá esse tipo de mecanismo. Nela, o Estado se dissolverá. O comunismo, conforme concebido por ele, não pode ser visto como a realização de um princípio jurídico tal como a justiça distributiva, como se o comunismo representasse o estabelecimento e a institucionalização dela e o capitalismo fosse criticado por violá-la (WOOD, 1980a, p. 26-27; LUKES, 1982, p. 198).

Para além da escassez

(viii) Uma sociedade comunista, conforme Marx a concebe, é de fato uma sociedade que se encontra para além da justiça. Isso é o que defendem os comentadores cuja posição estamos apresentando, e a principal referência textual para tanto é a mesma seção da Crítica do Programa de Gotha que citamos acima, na qual Marx dá sua opinião sobre a “distribuição justa” e sobre “direitos”. Nesse contexto, ele também antecipa dois tipos de critérios de distribuição para as diferentes fases de uma sociedade pós-capitalista e os discute de uma maneira que esses comentadores acreditam provar seu ponto de vista. Por uma questão de conveniência, me referirei daqui em diante aos dois princípios como o princípio da contribuição e o princípio das necessidades. O primeiro deles terá vigência, Marx acredita, durante um período inicial de emergência do comunismo, “trazendo as marcas [...] da velha sociedade de cujo ventre ela saiu”. Depois de algumas deduções necessárias feitas sobre a produção social total — para finalidades infraestruturais e de interesse coletivo e para o fornecimento de bens públicos — cada indivíduo receberá dali, na forma de bens de consumo pessoal, uma quantidade proporcional à contribuição de trabalho providenciada por ele ou ela. Cada um será recompensado, desse modo, de acordo com um padrão igual de medida, constituindo uma situação de “igual direito”. Trata-se, porém, diz Marx, de um igual direito que “continua marcado por uma limitação burguesa”. Embora ele não mais admita diferenciações ou privilégios de classe, ao medir as pessoas apenas de acordo com o trabalho por elas fornecido o princípio permite que aqueles relativamente dotados de mais recursos, sejam eles físicos ou intelectuais, se beneficiem da contribuição maior que poderão fazer. Daí se segue também, reciprocamente, que os indivíduos com necessidades ou responsabilidades relativamente maiores serão atingidos por desvantagens e ônus maiores que os outros: segundo seu conteúdo, portanto, ele é, como todo direito, um direito da desigualdade. O direito, por sua natureza, só pode consistir na aplicação de um padrão igual de medida; mas os indivíduos desiguais (e eles não seriam indivíduos diferentes se não fossem desiguais) só podem ser medidos segundo um padrão igual de medida quando observados do mesmo ponto de vista, quando tomados apenas por um aspecto determinado, por exemplo, quando no caso em questão, são considerados apenas como trabalhadores e neles não se vê nada além disso, todos os outros aspectos são desconsiderados. (MARX; ENGELS, 1970b, p. 16)

Tal abordagem unilateral, que, por assim dizer, nivela a complexa individualidade das pessoas, é, segundo Marx, inevitável no estágio inicial do comunismo. Apenas em uma etapa ulterior será possível implementar o princípio das necessidades, que é mais apto a se adequar à individualidade de cada um: numa fase superior da sociedade comunista, quando tiver sido eliminada a subordinação escravizadora dos indivíduos à divisão do trabalho e, com ela, a oposição entre trabalho intelectual e manual; quando o trabalho tiver deixado de ser mero meio de vida e tiver se tornado a primeira necessidade vital; quando, juntamente com o desenvolvimento multifacetado dos indivíduos, suas forças produtivas também tiverem crescido e todas as fontes da riqueza coletiva jorrarem em abundância, apenas então o estreito horizonte jurídico burguês poderá ser plenamente superado e a sociedade poderá escrever em sua bandeira: ‘De cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades!’(MARX; ENGELS, 1970b, p. 16-19)

Argumenta-se, à luz dessas passagens, que o princípio das necessidades — apresentado aqui como “De cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades!” — não é um princípio de justiça distributiva; e que na fase superior do comunismo da qual Marx fala as próprias circunstâncias de escassez e conflito que fazem tais princípios necessários não mais existirão. Segundo esse argumento, tal fórmula não foi planejada por Marx como um princípio de justiça, uma vez que fica claro que ele entende que esses princípios, e os conceitos de direitos a eles associados, são inadequados por natureza, incapazes, em sua generalidade e formalismo (ou seja, incapazes devido a seu igualitarismo), de levar em conta a individualidade específica de cada pessoa. O princípio das necessidades não é uma regra geral ou formal, pois ele não submete as pessoas a um igual parâmetro ou ponto de vista mas as considera em sua especificidade e variedade. Alguns chegam a sugerir que não se trata nem mesmo de um princípio, mas de uma mera descrição de como as coisas eventualmente serão. Portanto, quando Marx fala da superação do “estreito horizonte jurídico burguês”, nós deveríamos interpretá-lo no sentido de que são considerações sobre direitos e justiça como tais que são transcendidas e deixadas para trás; “no sentido de que não apenas não haverá direito burguês, mas que não haverá mais Recht, não existirão mais regras jurídicas e morais” (LUKES, 1982, p. 200). Essa possibilidade se baseia na hipótese de um desaparecimento progressivo daquelas condições que tornam necessárias as codificações legais e as normas de justiça distributiva. Isso é, ela se fundamenta na eliminação da escassez e de outras fontes de conflito entre os homens, ou, pelo menos, na sua redução a um ponto de insignificância. Com uma produtividade material crescente gerando abundância de recursos, com qualidades e atitudes interpessoais mais generosas e compreensivas, com relações mais harmoniosas e cooperativas, aquilo que de Hume a Rawls foi visto como “as circunstâncias da justiça” não estará mais presente. Se Marx vê essa sociedade comunista como “superior” a todas as formas sociais precedentes, então obviamente, levando em conta o que vimos acima, isso não pode significar que ele a considera mais justa. Ao contrário, ela é superior de acordo com algum outro parâmetro de valor5 .

(ix) Marx, pois, — para finalizar nosso exame desse lado da controvérsia — está comprometido com outros valores. Como foi deixado claro desde o começo, ninguém nega que ele condenava o capitalismo, e ele o fazia à luz de outros valores que não a justiça: o mais comumente mencionado a esse respeito é a liberdade; mas também a auto-realização, o bem-estar e o senso de comunidade6 . Diferentemente das normas de justiça, sustenta-se que esses princípios não são inteiramente relativos ou internos a modos de produção historicamente específicos, de modo que eles podem servir como critérios universais de avaliação. Há uma disputa específica “desse lado das barricadas” sobre se esses critérios são valores morais ou valores de um tipo não-moral, mas eu ignorarei essa questão de importância secundária em função da posição que adotarei na última seção desse ensaio ao tocar no principal ponto de discordância. II.

Marx a favor da Justiça

(i) Se Marx não vê injustiça ou fraude no salário pago pelo capitalista ao trabalhador, isso assim se passa porque esses dois, como ele insiste, trocam valores inteiramente equivalentes. Entretanto, — dizem em resposta os representantes do segundo grupo — é apenas na perspectiva estreita e inicial do processo de circulação que ele trata a relação de trabalho assalariado como uma troca de equivalentes. Somente na esfera da troca, onde as mercadorias são compradas e vendidas, e apenas de acordo com o seu critério interno, com a lei do valor que governa a compra e venda de mercadorias, é que Marx coloca a relação nesses termos. Uma vez que ele avança para além do contrato de trabalho, para lidar com o trabalho excedente que é fornecido pelo trabalhador ao capitalista no processo de produção, e uma vez que ele coloca essa relação particular no seu contexto de classe mais amplo, com a classe capitalista defrontando os trabalhadores e explorando-os repetida e continuamente, ele passa a representar a relação de trabalho assalariado como não sendo uma troca de equivalentes, como não sendo de modo algum uma troca genuína. Marx agora afirma que é “apenas ilusório” e uma “mera aparência” ou “forma” (1973, p. 458) que o capitalista adianta algo em troca da força de trabalho. É uma “fachada”, uma “mera simulação” (1968, p. 92-93). Não há verdadeira equivalência na troca, pois o trabalhador deve trabalhar mais do que o necessário para repor o valor de seu salário; daí que Marx fala do trabalho excedente como algo feito “de graça” para o capitalista, como algo “sem retribuição”, ou simplesmente o chama de “trabalho não pago” (1976, p. 346, 680) . De qualquer modo, a troca é apenas aparente, já que o capitalista apenas adianta aquilo que foi apropriado — gratuitamente — do produto do trabalho de outros trabalhadores. Conforme Marx coloca em O capital, a troca de equivalentes, que aparecia como a operação original, torceuse ao ponto de que agora a troca se efetiva apenas na aparência, pois, em primeiro lugar, a própria parte do capital trocada por força de trabalho não é mais do que uma parte do produto do trabalho alheio, apropriado sem equivalente; em segundo lugar, seu produtor, o trabalhador, não só tem de repô-la, como tem de fazê-lo com um novo excedente. A relação de troca entre o capitalista e o trabalhador se converte, assim, em mera aparência pertencente ao processo de circulação, numa mera forma, estranha ao próprio conteúdo e que apenas o mistifica. A contínua compra e venda da força de trabalho é a forma. O conteúdo está no fato de que o capitalista troca continuamente uma parte do trabalho alheio já objetivado, do qual ele não cessa de se apropriar sem equivalente, por uma quantidade maior de trabalho vivo alheio (1976, p. 729-730)

Pode-se perceber aqui um paralelo entre como Marx trata a aparente equivalência no contrato de trabalho e como ele trata a liberdade do trabalhador de escolher entrar nesse contrato. Pois o trabalhador parece fazê-lo de modo completamente voluntário, e a esfera da circulação parece ser, portanto, “um verdadeiro Éden dos direitos inatos dos homens [...] O reino exclusivo da liberdade, da igualdade, da propriedade e de Bentham” (1976, p. 280). Mas a realidade é outra e, de novo, não tão bondosa: o trabalhador “livre”, escreve Marx, “aceita livremente, isto é, é socialmente coagido a vender a totalidade de seu tempo de atividade de vida, até mesmo sua própria capacidade de trabalho”; e “o tempo de que livremente dispõe para vender sua força de trabalho é o tempo em que é forçado a vendê-la” (1976, p. 382, 415). Assim como, em um caso, a apropriação unilateral do trabalho alheio é a realidade por trás de uma aparência de troca igual, no outro, a coação é o conteúdo real da aparência do contrato voluntário: o capital [...] extrai determinada quantidade de mais-trabalho dos produtores diretos ou dos trabalhadores, mais-trabalho que o capitalista recebe sem equivalente e que, conforme sua essência, continua sempre a ser trabalho forçado, por mais que possa aparecer como resultado de um contrato livremente consentido” (1981, p. 957-958).

A pretensa justiça da relação de trabalho assalariado é comparável, então, à liberdade do trabalhador dentro dela. Trata-se de uma aparência cujo conteúdo real, ou essência, é radicalmente diferente. Ela é provisoriamente afirmada por Marx no contexto do processo de circulação, no qual capitalista e trabalhador se relacionam exclusivamente enquanto indivíduos, mas depois, no devido tempo, ela é revelada como uma mera aparência, considerando-se a perspectiva das relações de (e na) produção, uma perspectiva que, ao contrário, enxerga a relação de classe com classe7 .

Exploração como roubo

(ii) Mas se Marx, por assim dizer, volta atrás em sua afirmação de que há equivalência no contrato de trabalho, será que ele também claramente volta atrás em sua negação de que ali haveria injustiça? Estaria ele, de fato, dizendo, em sentido contrário a suas próprias reprimendas contra outros socialistas, que o conteúdo real de exploração da relação de trabalho assalariado é injusto ou está violando os direitos de alguém? Nas suas palavras explicitas, a resposta é não, mas — os proponentes dessa interpretação sustentam — na verdade, sim. Pois ele com freqüência se refere à apropriação de mais-valor por parte dos capitalistas nos termos de “roubo”, “saqueio”, etc., o que é equivalente a dizer que o capitalista não tem direito de se apropriá-lo e que fazê-lo seria, assim, errado ou injusto. Nesse sentido, Marx se refere ao produto excedente como o “tributo anualmente arrancado da classe trabalhadora pela classe capitalista”, e continua dizendo que quando esta última, com uma parte do tributo, compra força de trabalho adicional da primeira – ainda que lhe pague seu preço integral, de tal modo que seja trocado equivalente por equivalente –, ela continua a agir segundo o velho procedimento do conquistador que compra as mercadorias dos vencidos com o dinheiro que roubou destes últimos (1976, p. 728)

Essa não é uma escolha de palavras qualquer por parte de Marx. Ao contrário. Ele também se refere à produção excedente como “um tributo anualmente arrancado da classe trabalhadora sem que nada seja dado em troca”, e diz que “todo progresso da agricultura capitalista é um progresso na arte de saquear não só o trabalhador, mas também o solo” (1976, p. 761). Ele se refere ao “saque extraído dos trabalhadores” e do “mais-valor total sugado dos trabalhadores” como “butim coletivo” e “pilhagem do trabalho alheio” (1976, p. 743; 1980, p. 312-313). A perspectiva da abolição da propriedade capitalista é por ele descrita como “a expropriação dos expropriadores” (1976, p. 930). E a riqueza produzida sob o capitalismo, ele afirma, é “baseada no roubo do tempo de trabalho alheio” (1973, p. 705)8 . Note-se que, sem dúvida, é perfeitamente possível se fazer uso do vocabulário sobre roubo sem que se pretenda com isso fazer uma acusação de injustiça. Ele pode ser usado simplesmente para se evocar, e não para se endossar, algum parâmetro predominante ou convencional de propriedade legítima. Nesse sentido, Robin Hood roubava dos ricos para ajudar os pobres, por exemplo. Mas o argumento central aqui é que de acordo com Marx, como já deve estar claro a essa altura, não é que a exploração seja roubo segundo algum parâmetro predominante ou convencional, ou seja, errada de acordo com as normas da própria sociedade capitalista. Esse argumento foi bem apresentado por Jerry Cohen: uma vez que [...] Marx não pensava que o capitalista rouba de acordo com critérios capitalistas, e uma vez que ele pensava que o capitalista rouba, ele deve ter querido dizer que ele rouba em um sentido apropriadamente não-relativista. E, uma vez que roubar significa, em geral, tirar do outro o que é dele por direito, então roubar é cometer uma injustiça, portanto, um sistema ‘baseado no roubo’ é baseado na injustiça (COHEN, 1983, p. 443).

Além disso, alguns acham significativo que Marx, em sua discussão sobre a acumulação primitiva no final do primeiro volume de O capital, tenha enfatizado, dentre outro métodos violentos e sangrentos, o roubo que também marcou esse processo — roubo de “todos os meios de produção” dos produtores diretos, saqueio da terra e do povo (1976, p. 875-895). Não foram a justeza e o trabalho [os motores do estabelecimento do capitalismo], conforme se dá na a visão idílica dos economistas políticos, pois “na história real, como se sabe, o papel principal é desempenhado pela conquista, a subjugação, o assassínio para roubar, em suma, a violência” (1976, p. 874). Essa história real pode não ser determinante de um ponto de vista puramente teórico, uma vez que mesmo que se conceba um capitalismo com origens virtuosas, ou pelo menos mais virtuosas que essa, o fato é que a condenação de injustiça de Marx recai sobre o capitalismo em geral, sobre sua própria natureza, independentemente do quão honestas, ou não, tenham sido suas origens. Mesmo assim, se ele destacou o roubo que de fato aconteceu ele o fez a fim de chamar atenção para a injusta formação histórica do capitalismo. E, considerando que o contexto 8 Para uma passagem mais ambígua e disputada ver Marx (1975, p. 186). dessa condenação é precisamente um período de transição entre modos de produção, isso mostra certamente, contra o que foi argumentado pelo lado contrário, que nem todo parâmetro de justiça era, para ele, interno a um modo de produção em particular9 .

(iii) A partir daquilo que Marx afirma sobre o roubo capitalista podemos, portanto, perceber um compromisso com critérios de justiça independentes e transcendentes, e mais evidências sobre isso são fornecidas na sua caracterização dos dois princípios de distribuição que ele antecipa para uma sociedade pós-capitalista. Eu apresentarei — no ponto II (viii) — uma interpretação do segundo deles, o princípio das necessidades, que responderá às afirmações do outro grupo de comentadores sobre ele. Porém o que importa aqui é que Marx classifica esses princípios tanto em relação àquilo que os precede historicamente quanto em relação um ao outro. O princípio da contribuição, segundo o qual a distribuição de bens deve ser baseada exclusivamente no trabalho feito pelos indivíduos, é designado por Marx como um “avanço”. Esse princípio — sob o qual “ninguém pode dar nada além de seu trabalho e [...] nada pode ser apropriado pelos indivíduos fora dos meios individuais de consumo” — é, portanto, superior às normas capitalistas de distribuição. Mas, por outro lado, como foi explicado acima, por não levar em conta os diferentes talentos individuais ou as diferentes necessidades, Marx também diz que ele possui “defeitos” em relação ao princípio das necessidades que eventualmente o substituirá, de modo que devemos entender esse último como um princípio superior. Em outras palavras, Marx propõe uma hierarquia de princípios distributivos; e como eles não são classificados por ele de acordo com algum parâmetro valorativo extrínseco, é razoável supor que ele simplesmente compreenda alguns princípios como intrinsecamente mais justos do que outros de acordo com um parâmetro de justiça trans-histórico10.

Realismo moral

(iv) As afirmações aparentemente relativistas de Marx nesse campo não são, na verdade, o que muitos acham ser. Elas são afirmações não de relativismo moral, mas de, por assim dizer, realismo moral. O fato de que, para ele, os parâmetros normativos são socialmente fundados, ou determinados, significa que as normas às quais as pessoas obedecem e acreditam são fortemente influenciadas pela natureza da sociedade da qual fazem parte, bem como pela sua posição de classe, e assim por diante. Mais precisamente, isso significa que o tipo de parâmetro normativo que pode de fato ser efetivamente adotado e implementado depende da estrutura econômica e dos recursos de uma dada sociedade. Mas não significa que os critérios usados para se analisar ou avaliar uma sociedade devem necessariamente ser limitados a essa configuração econômica; ou que os únicos critérios válidos de avaliação são aqueles predominantes, ou seja, aqueles que se encontram em harmonia com o modo de produção11. A questão aqui é a afirmação de Marx de que o direito não pode ser “superior à estrutura econômica”. Seu contexto deixa claro que a abordagem de Marx é realista, e não relativista. Primeiro ele se refere ao princípio da contribuição como um avanço em relação ao capitalismo, depois ele explica porque esse princípio é, ainda assim, imperfeito, afirmando que seus defeitos são inevitáveis durante a primeira fase do comunismo. Então ele apresenta a afirmação em questão e assevera imediatamente depois que as condições diferentes propiciadas pela fase superior do comunismo permitirá a implementação do princípio das necessidades. Colocada nesse contexto, a declaração de Marx está plausivelmente relacionada com os pré-requisitos reais para que se alcance progressivamente parâmetros normativos superiores ou mais avançados. Assim, obviamente ele não está declarando que não há superior ou inferior nesse tema em função do fato de cada parâmetro ser relativo a uma estrutura econômica apropriada (MARX; ENGELS, 1970b, 18-19).

(v) O argumento continua com a afirmação de que não há nada reformista, ou contrário ao pensamento de Marx, na preocupação sobre a distribuição em si. Marx de fato se opõe ao enfoque excessivamente restrito sobre a divisão social da renda, mas isso se dá porque ele a vê, em certa medida, como uma conseqüência das relações de produção, e seria um equívoco político, e um disparate teórico, condenar os efeitos sem criticar a sua causa. Ao se tomar qualquer perspectiva mais ampla sobre a distribuição, no entanto, vê-se que Marx está claramente preocupado com ela: com a distribuição do tempo livre, de oportunidades para atividades enriquecedoras, de trabalho desagradável e maçante; com a distribuição de bem-estar em um sentido geral, de vantagens e desvantagens socioeconômicos. E ele está preocupado, particularmente e acima de tudo, com a distribuição de recursos de produção, dos quais, de acordo com ele, essa distribuição mais ampla depende. Isso está claro mesmo na passagem da Crítica do Programa de Gotha a partir da qual se costuma derivar a suposta posição antidistributiva de Marx. Pois, ao insistir que a distribuição dos meios de consumo não pode ser vista como independente do modo de produção, Marx se refere ao próprio modo de produção como um tipo mais básico de distribuição: “a distribuição das condições de produção” (MARX; ENGELS, 1970b, 18-19). Portanto, seu menosprezo do “alvoroço” sobre a distribuição é direcionado para a interpretação demasiadamente estreita da distribuição, e não para a distribuição em geral. A atenção que ele mesmo dá às relações de produção é precisamente uma preocupação com a distribuição, com aquela que para ele é a mais importante de todas, nomeadamente, a distribuição dos meios de produção. Nesse sentido, essa preocupação é revolucionária par excellence (VAN DER VEER, 1973, p. 376; HUSAMI, 1980, p. 75; COHEN, 1973, p. 13-14; ARNESON, 1981, 222-225; VAN DER VEEN, 1978, p. 455). (vi) Da mesma maneira, do ponto de vista de Marx, não há nada reformista ou idealista, no fato da crítica ao capitalismo recorrer a normas ou ideais éticos, como justiça. É verdade que se esses ideais são tomados como o fundamento único e autossuficiente, ou até mesmo principal, para um debate crítico sobre o capitalismo, ele será insuficiente. Mas embora argumentos de ordem moral sejam claramente considerados por Marx inadequados enquanto motor ou instrumento da transformação revolucionária, eles não são, em nenhum sentido, incompatíveis com o tipo de análise materialista — das tendências históricas reais em direção à revolução — que ele via como indispensável. Considerada em conjunto com tal análise, e com o movimento e lutas dos trabalhadores contra o capitalismo e as transformações socioeconômicas que essas lutas e outros elementos ocasionarão, uma crítica normativa é perfeitamente cabível, e a negação disso é apenas uma forma daquilo que se chama de economicismo. Argumentos morais sem dúvida acompanham e constituem uma contribuição relativamente independente para processos de constituição da agência humana em direção à mudança revolucionária, para a formação do desejo e da consciência a favor do socialismo (HOLMSTROM, 1977, p. 368; HUSAMI, 1980, p. 53-54; RYAN, 1980, p. 516; ELSTER, 1985). (vii) Então, seja qual for a força de categorizar os princípios de justiça e de direito como jurídicos, a categorização é inaceitavelmente estreita se eles forem vinculados indissoluvelmente à existência do direito, em um sentido estritamente positivista. Eles estão, obviamente, como Marx sabia, incorporados nos códigos legais, sustentados pelo aparato coercitivo que é parte do Estado. Entretanto, tais princípios também pode ser, em uma primeira instância, apenas princípios éticos que se referem ao o que constitui, ou não, uma distribuição de vantagens e desvantagens moralmente defensível; e é possível a sua efetivação sem a parafernália da coerção estatal. Se isso não implica em uma concepção jurídica de justiça, então Marx tem, ou melhor, também tem, uma concepção não-jurídica de justiça (HUSAMI, 1980, p. 78-79; SHAW, 1981, p. 41-42; RILEY, 1983, p. 49-50).

O princípio das necessidades

(viii) “De cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades!”, é a isso que o princípio se refere. Trata-se, em sua essência, de um princípio de justiça distributiva, mesmo que sua realização seja concebida junto com a morte do Estado. Existem algumas diferenças relevantes sobre a maneira em que isso é argumentado entre os autores cuja interpretação está sendo esboçada aqui, mas o ponto em comum é que eles entendem que Marx, conscientemente ou não, conserva uma noção de direitos mesmo para a fase superior do comunismo. Por mais severa que a Crítica do Programa de Gotha seja em relação a um certo tipo de formalismo exemplificado pelo princípio da contribuição, essas críticas não acarretam uma rejeição de todos os tipos de direito ou regras gerais. Na verdade, elas simplesmente revelam quais regras e direitos Marx acha moralmente inadequados. Conforme posto por um comentador, “é apenas o horizonte do direito burguês, e não do direito em si, que é superado na transição a um estágio superior” (ARNESON, 1981, p. 216). De fato, a regra geral planejada para esse estágio superior é a satisfação das necessidades individuais, e a generalização do direito de, entre outras coisas, aos meios de desenvolvimento pessoal e autorrealização. Seu complemento (expresso na primeira metade do famoso slogan) é que cada pessoa realize um esforço proporcional a suas habilidade ao se encarregar de uma parte das tarefas comuns. Se esses critérios conseguem corrigir os defeitos do princípio que substituem — o qual, por só reconhecer a magnitude da contribuição de trabalho de cada um, confere mais recompensas para aqueles com maiores capacidades e talentos — isso não ocorre por eles estarem supostamente livres de certas características dos direitos como a generalidade ou a força prescritiva. Isso se dá apenas porque Marx obviamente considera o esforço e a necessidade critérios de distribuição mais apropriados, em resumo, mais justos, do que os talentos individuais. Por qual outra razão ele diria que o princípio da contribuição “reconhece tacitamente a desigualdade dos talentos individuais como privilégios naturais e, por conseguinte, a desigual capacidade dos trabalhadores” (MARX; ENGELS, 1970b, 18), e ao mesmo tempo, com sua defesa do princípio das necessidades, admitiria o reconhecimento de necessidades desiguais (e, portanto, renuncia, a esse respeito, qualquer discussão sobre privilégios)? Marx claramente não considera que o elemento de pura sorte relativa à posse de habilidades distintas ou excepcionais mereça uma recompensa maior do que aquela que é inerente ao próprio exercício e gozo delas. O fato de Marx ver o princípio das necessidades como menos formal, ou mais concreto, do que o princípio que substitui, além de mais sintonizado (em um sentido moral) com a individualidade específica de cada pessoa, de modo algum anula a sua generalidade enquanto princípio normativo.

É justamente por causa da ideia de que o princípio das necessidades é mais sensível à especificidade de cada indivíduo que alguns dos autores que o vêem como um parâmetro de direito e justiça, conforme elaborado acima, concordam com aqueles que rejeitam essa mesma perspectiva quando afirmam que não se trata de um princípio de igualdade: pois para ele os indivíduos são considerados desiguais por definição (RILEY, 1983, p. 39-43; HUSAMI, 1980, p. 61). No entanto, outros desses autores (a maioria) discordam disso. Marx, eles argumentam, deve ser entendido como o proponente de uma igualdade melhor, ou mais verdadeira, que tomaria o lugar de uma igualdade falsa. Pois, a única acusação feita por ele contra o princípio da contribuição e seus limites é, essencialmente, que esse princípio produz desigualdades injustificáveis, recompensas desiguais baseadas em diferenças de habilidade individual que não têm relevância moral. O que Marx prevê, em seu lugar, é a igualdade não no sentido do direito a recompensas iguais para quantidades iguais de trabalho, nem mesmo no sentido do direito de cada pessoa a exatamente as mesmas coisas ou a uma parcela idêntica da riqueza social; ao contrário, o que ele prevê é a igualdade em relação à autorrealização — o direito igual, para todos, aos meios de desenvolvimento de si mesmos (HANCOCK, 1971, p. 69-70; ARNESON, 1981, p. 214; REIMAN, 1981, p. 316-317; ELSTER, 1983, p. 296; GREEN, 1983, p. 438-442). Quanto à perspectiva de uma eventual abundância de recursos, ela é tomada como a condição prévia para a efetivação do princípio das necessidades, embora obviamente não seja incompatível com a interpretação dele como um princípio de justiça distributiva. Apenas um autor tratou explicitamente (e outro o fez implicitamente) a suposição da abundância incondicional como uma premissa problemática12.

(ix) Por fim, a alegação de que a condenação do capitalismo feita por Marx se baseia em valores como liberdade e realização pessoal, mas não em uma concepção de justiça, envolve um uso inconsistente de seus textos. Se esses outros valores são considerados como parte de uma ética (“da liberdade”), ou moralidade (“da emancipação”), ou são vistos, ao contrário, como bens não-morais13, isso não faz diferença. Tal alegação cria uma distinção no pensamento marxiano entre dois tipos de valores: de um lado aqueles, que têm a ver com direitos e justiça, e que são necessariamente dependentes e relativos a formações sociais historicamente particulares (e, portanto, inadequados para a crítica revolucionária); de outro lado, valores que, como liberdade e autorrealização, que não são tão dependentes ou relativos e, portanto, são mais apropriados para a utilização crítica. Tal distinção não tem fundamento. Pois, na medida em que Marx postula que os valores são ideologicamente limitados ou relativos, sua teoria da ideologia é perfeitamente geral no que diz respeito a seu alcance, englobando todo tipo de conceito normativo e não apenas as ideias sobre justiça. Há ali uma sociologia da ideias normativas que tenta explicar as bases históricas de diferentes valores; isso, porém, não é incompatível com o fato de o próprio Marx ter feitos juízos de valor com pretensão universal. Marx, claro, condena o capitalismo em função da opressão, da coerção e da falta de liberdade, mas ele também o condena por sua injustiça. E, mesmo que, por outro lado, ele de fato identifique princípios de justiça que são internos e funcionais ao modo capitalista de produção, ele também identifica concepções de liberdade e autodesenvolvimento que são, da mesma maneira, historicamente relativas14. Levar em consideração apenas os textos nos quais aparece o primeiro caso é uma arbitrariedade interpretativa (YOUNG, 1981, p. 266-268; ARNESON, 1981, p. 219-220; HUSAMI, 1980, p. 52-53).

III. Marx contra Marx

Diante de duas interpretações tão divergentes sobre o pensamento de um único autor, cada uma delas aparentemente sustentada por uma miríade de citações diretas e raciocínios dedutivos derivados de suas obras, provavelmente seria bom começar colocando-se categoricamente a questão sobre se é possível resolver definitivamente essa controvérsia apenas fazendo-se referência aos textos de Marx. Penso que existem razões para se duvidar que isso é possível. Eu mencionarei duas, sendo uma delas uma consideração mais geral e a outra um argumento teórico mais específico.

A primeira consideração é que Marx não era um filósofo moral e é mais do que provável que apareçam incoerências dentro daquilo que ele fala sobre o assunto. Na verdade, dizer que ele não era um filósofo moral é uma forma de minimizar a questão, pois não se trata de dizer que ele era, acima de tudo, alguma outra coisa (um historiador científico, um crítico da economia política, um teórico da revolução proletária, ou o que quer que seja), em outras palavras, não basta dizer que ele não era um praticante da  filosofia moral, como se tivesse uma disposição neutra em relação a ela. Pois Marx, como é sabido, era bastante desdenhoso e impaciente com reflexões explicitamente teóricas sobre questões normativas, e raramente aceitava envolver-se com elas. Ele era hostil, e não neutro, em relação à elaboração de uma teoria ética socialista; ele desprezava nesse campo o tipo de análise rigorosa de problemas e conceitos que ele valorizava em outras áreas. Ao mesmo tempo, e apesar disso, assim como todo mundo, ele era inclinado a fazer juízos morais. Perspectivas normativas se encontram dentro, ou logo abaixo da superfície, de seus escritos, e lá estão em abundância, ainda que de forma assistemática. Sendo assim, inconsistências (que podem até mesmo ser significativas) da parte de Marx ao tratar desse tema devem ser consideradas. Os detalhes de nossas duas interpretações antitéticas no mínimo sugerem essa possibilidade.

A segunda razão precisa de exposição mais extensa. Ela tem a ver com o que eu chamarei de “jogo dialético” colocado por Marx acerca da questão de se a relação de trabalho assalariado configura uma troca de equivalentes. A resposta é sim e não. Vista como uma troca de mercadorias no mercado, sim. O capitalista paga pelo valor da força de trabalho; o trabalhador dá essa mercadoria e recebe, em troca, um salário de igual valor. Mas, vista como uma relação no âmbito da produção, a relação salarial não é uma troca de equivalentes. Pois aqui o trabalhador ainda deve dar algo: não no sentido de vender, uma vez que a venda já foi consumada, mas no sentido de esforço pessoal; e esse esforço pessoal é a substância do valor que é maior que o valor do salário. A mesma coisa pode ser expressa em outros termos. A acumulação de valor e capital ocorrida resulta do trabalho do capitalista? Sim e não. O trabalho que é sua fonte pertence ao capitalista, pois foi comprado e pago por ele; mas não é o trabalho do próprio corpo dele (ou, mais raramente, dela), não é resultado do suor da testa dele (ou dela). Trata-se, por assim dizer, de um trabalho que o capitalista possui, mas que não é o seu próprio. Porém, não há nada de misterioso sobre tudo isso (deixemos de lado se a teoria do valor da qual essa interpretação depende está certa), o processo é explicado por Marx de maneira clara e os leitores cuidadosos d’O capital não têm problema em compreendê-lo. Considerado de outro ponto de vista, a relação salarial não é uma troca de equivalentes, e a acumulação de capital se deve ao trabalho do trabalhador. Os dois pontos de vista são precisamente isso: dois ângulos diferentes de enfoque sobre o mesmo fenômeno. Eles se vinculam a dois sentidos diferentes acerca do quê conta como uma troca de equivalentes. Tais sentidos não são de modo algum contraditórios, mas partes mutuamente consistentes da doutrina que afirma que o trabalho é a fonte de todo valor: da ideia que a força de trabalho, que é vendida pelo seu valor enquanto mercadoria, ao entrar em ação, cria algo que vale mais que ela mesma.

Uma dialética ambígua

Qual é então, no presente contexto, o ponto de vista apropriado para se olhar para a controvérsia entre Marx e o conceito de justiça? Aqueles segundo os quais Marx não vê injustiça na relação salarial privilegiam a primeira posição, de que existe ali uma troca de equivalentes. Muitos (porém não todos) daqueles segundo os quais Marx considera a relação salarial como injusta privilegiam a segunda posição, qual seja, de que não há troca de equivalentes. Com efeito, o que cada lado está dizendo é “esse é o único ponto de vista relevante para se pensar a questão de se o capitalismo era injusto para Marx”15. Mas e para o próprio Marx? Ora, Marx segue pelos dois caminhos, e essa é pelo menos uma das raízes do problema. Perceba-se aqui que o problema não é que ele afirma ambos os pontos de vista, pois, como foi dito, os dois são partes mutuamente consistente da mesma doutrina. O problema é que ele não deixa claro qual ponto de vista é relevante para a questão moral, de modo que é legítimo que cada um dos lados da disputa, tendo duas perspectivas diferentes, alegue que “Marx realmente quer que nós adotemos essa perspectiva aqui”. Marx de fato diz que, na medida em que estamos falando de justiça, o que importa é que a troca se dá entre valores iguais, de acordo com as leis da produção de mercadorias. Ele ratifica, portanto, a perspectiva de um dos lados da disputa. Entretanto, por meio de um ato de feitiçaria dialética feito no Capítulo 24 (MARX, 1976, p. 725-734) do primeiro livro d’O capital, ele mostra essas mesmas leis transformando-se em seu oposto. Em suas próprias palavras, “a lei da apropriação ou lei da propriedade privada, fundada na produção e circulação de mercadorias, transforma-se, obedecendo a sua dialética própria, interna e inevitável, em seu direto oposto”. Ele fala aqui, de maneira similar, da ocorrência de uma “inversão dialética”. A troca de equivalentes, consequentemente, se tornou apenas aparência, ou seja, não é uma troca de equivalentes mas, de fato, roubo. Uma passagem dos Grundrisse fala, no mesmo sentido, que “o direito de propriedade passa por uma inversão dialética, de modo que do lado do capital ele se torna o direito à produção de outrem” (1973, p. 458). Se as leis da produção de mercadorias e do intercâmbio realmente se transformaram em seus opostos, então isso autoriza a perspectiva do outro lado da disputa, qual seja, de que no final das contas não há reciprocidade ou equivalência genuínas aqui.

Contudo, essa transformação em opostos é apenas um artifício lógico, ou talvez, para sermos mais generosos, a apreciação de uma curiosidade, de um paradoxo intelectual. É um jogo com os dois sentidos diferentes da equivalência. Nada, de fato, se torna seu oposto aqui. Tudo continua como é. Na medida em que as leis da produção de mercadorias exigem que valores iguais sejam trocados no mercado, assim as coisas ocorrem, e isso continua valendo quando a força de trabalho é vendida como mercadoria. E na medida em que essas leis permitem que a força de trabalho seja vendida — ou seja, alienada — como mercadoria, elas permitem ab initio a existência de uma relação diferente (porém compatível) da troca de equivalentes no mercado, uma relação em que o capitalista usa o trabalhador para conseguir lucro sobre o salário e em que o trabalhador (ou a trabalhadora) simplesmente trabalha, fornecendo a parte de valor que o outro toma para si. O direito de propriedade aqui presente consiste no direito das pessoas de usarem aquilo que possuem, ou seja, aquilo pelo que pagaram o valor na troca; mas também, ao mesmo tempo, consiste no direito de lucrar sobre o trabalho dos outros. Tanto a equivalência, ou reciprocidade, e a falta delas estão presentes do começo ao fim. Marx sabe disso — afinal, trata-se de sua própria teoria —, e o afirma ao expor a “inversão dialética”. No entanto, como geralmente é o caso, aqui a dialética acaba apenas gerando confusão, pois uma coisa não pode ser seu próprio oposto. Se a relação salarial consiste em uma troca de equivalentes e é justa, então, definitivamente, é isso o que ela é, e isso pode ser sustentado, mesmo a um ponto de extrema teimosia16, diante de passagens em que Marx diz claramente o contrário. Mas se a relação salarial, de fato, transforma-se em seu exato oposto, então ela, finalmente, não pode ser uma troca nem equivalente nem justa, e, se assim for, Marx não quis dizer o que disse quando afirmou que ela é justa. A confusão entre seus comentadores é, portanto, culpa dele mesmo, de sua ambigüidade sobre qual perspectiva, a da equivalência ou a da não-equivalência, realmente deve valer aqui; de sua vontade e capacidade de asseverar, com suas próprias palavras, tanto que a relação salarial não é injusta quanto que ela é um roubo. Há outras, e talvez até mais importantes, causas para a confusão de Marx, às quais voltarei em breve. Mas o caminho certamente é suavizado pela sua utilização da linguagem da dialética nesse contexto.

Tendo em vista essas considerações, qualquer tentativa de se resolver a questão central em disputa deve fornecer algum tipo de reconstrução que vá além da mera exegese; e defenderei, de minha parte, que a reconstrução mais convincente está com aqueles que reivindicam abertamente que Marx considerava o capitalismo injusto. Eles fornecem o melhor argumento. O procedimento exige que se seja o mais fiel possível ao espírito de todos os textos pertinentes, tanto àqueles já apresentados por cada um dos lados e por aqueles que serão citados a seguir. Não se deve negar os elementos de confusão e inconsistência presentes neles, uma tentação comum porém não universal nesse debate. Deve-se, na verdade, a partir do reconhecimento de sua presença ali, buscar entender melhor seu sentido. Uma reconstrução nessas condições, contudo, reivindica amplamente a visão de que Marx pensava que o capitalismo era injusto porque ela é mais capaz de explicar a aparente evidência em contrário do que aqueles que tomam a posição oposta. O problema, em minha opinião, gira em torno de duas questões, sendo que cada uma delas se revela muito inconveniente para a posição que apresentarei aqui e nenhuma delas suscitou uma reposta satisfatória de seus proponentes. Partindo do princípio de que um bom teste de qualquer postura teórica são as respostas que ela pode dar às questões mais exigentes que lhe podem ser colocadas, a visão de que Marx não condenava o capitalismo como injusto não é convincente, apesar de todas as passagens de seu trabalho que aparentemente depõem a favor dela. De qualquer modo, eu abordarei as duas questões cruciais alternadamente, interpondo, porém, entre elas o que eu penso que deve ser considerado nessas passagens. Primeiro, contra tentativas inadequadas de afastar tal ideia de Marx, eu subscrevo a noção de que, ao caracterizar a exploração como roubo, Marx estava questionando a justiça da dela. Segundo, eu qualifico essa noção à luz da própria reprovação de Marx de uma crítica ao capitalismo em nome da justiça. Terceiro, eu defendo que o contra-argumento, segundo o qual a crítica dele era, ao contrário, feita em nome da liberdade e auto-desenvolvimento, contém uma falha lógica: feito isso, ali se revela uma preocupação com a justiça distributiva.

“Explicações”

Antes de tudo, por que Marx usaria o termo “roubo”, ou expressões similares, para descrever a realidade do capitalismo senão para demonstrar que a considera injusta? A força dessa pergunta não é ignorada por aqueles que negam que Marx pensa assim e, em geral, eles não hesitam em respondê-la17. De fato, eles oferecem uma quantidade surpreendente de respostas. Identificarei suas sugestões aqui: (1) Em alguns usos do termo, Marx teria em mente o roubo não do mais-valor, mas da saúde ou do tempo do trabalhador; (2) No tocante ao roubo particularmente praticado na acumulação primitiva do capital, aqui ele teria o sentido direto de que algumas pessoas tomaram para si o que não lhe pertencia: uma injustiça, portanto, de acordo com os padrões predominantes de propriedade legítima, mas que não representa uma acusação de injustiça por parte do próprio Marx. (3) Igualmente, mas agora em relação à exploração capitalista em geral, ela só poderia ser vista como roubo de acordo com as concepções de justiça próprias da sociedade burguesa, mas não segundo algum parâmetro que o próprio Marx cultivaria. Para esse argumento, “parece” que as passagens debatidas podem ser consideradas nesse sentido. (4) A referência de Marx aqui talvez seja algo próximo de uma pilhagem mais ou menos frequente, como a conquista sobre um povo conquistado, e, nesse caso, “não é tão claro” que o roubo é injusto, uma vez que, sendo freqüente, tal pilhagem deve estar ancorada em possibilidades materiais que correspondem, por sua vez, a um dado modo de produção, e se ela corresponde ao modo de produção, então ela é justa de acordo com a concepção de Marx. (5) A noção de roubo estaria destinada à coerção oculta (ou simplesmente à coerção em si, seja ela aberta ou dissimulada) e não à injustiça da exploração capitalista. (6) Ou talvez ela seja “pura e simples retórica”, “Marx falando figurativamente” ou “falsamente”, o que deturparia a visão deles sobre as coisas. (7) De qualquer modo, não se pode equalizar a crítica de Marx a uma alegação de injustiça baseada em um princípio que transcende o capitalismo, pois suas noções sobre ideologia o proíbem de fazer isso18.

O segredo dessas tentativas de explicações se encontra na última delas. Pode parecer que a abundância numérica delas garante que a interpretação que fazem de Marx é solida e segura, capaz de se defender de críticas potencialmente prejudiciais. Isso, porém, apenas atesta a fraqueza de cada uma delas. Se os textos apontassem para uma explicação clara e óbvia, seria de se esperar que os autores das sugestões comentadas acima convergissem a atenção nela. Mas na falta de tal explicação, eles fazem o melhor que podem para explicar cada um a sua própria maneira. As três primeiras sugestões merecem alguns comentários específicos. As outras podem ser dispensadas com um tratamento mais breve e geral.

Em relação a (1), Marx de fato afirma às vezes que o capital rouba o tempo e a saúde dos trabalhadores, ou que ele os “usurpa” (1976). Mas essa explicação dá conta apenas parcialmente de uma ou duas das passagens em disputa nesse debate, o que pode ser o suficiente para leitores de mente aberta. O ponto principal dessas passagens é o roubo de trabalho excedente e de mais-valor. Porém, mais importante ainda, é que mesmo quando é o tempo e a saúde que estão sendo tematizados, isso não significaria, como observou um comentador, “que na visão de Marx a produção capitalista essencialmente envolve o roubo do tempo e da saúde do trabalho e seria injusta pelo menos por essa razão?” (YOUNG, 1981, p. 256-258). Quanto ao argumento (2), há ali tem certo poder lógico mas ele é, ainda assim, falho. É possível que, ao escrever sobre o roubo que marcou o alvorecer da sociedade capitalista, Marx quisesse apenas registrar a violação dos direitos de propriedades pré-existentes e não exatamente condená-la; ou seja, assinalar uma injustiça não de acordo com os seus próprios critérios, mas de acordo com aqueles então prevalecentes. Considerada abstratamente, portanto, a circunstância de que ele estava lidando com a transição entre modos de produção não prova definitivamente que ele adotava algum princípio de justiça trans-histórico. Talvez ele estivesse apenas se referindo a direitos positivos de propriedade. Mas o que nos leva a crer que essa possibilidade abstrata é um fato — ou seja, que Marx quis realmente dizer aquilo que talvez tenha dito? A resposta é nada, absolutamente nada em seus textos relevantes. Pelo contrário, a paixão com que trata a acumulação primitiva indica o oposto, que a descrição que faz desse processo é também uma denúncia dos métodos brutais ali empregados. Nenhuma razão nos é oferecida para que concluamos que sua referência a roubo não é feita em seu próprio nome — a não ser que a inconsistência com a visão de que ele não considerava o capitalismo injusto possa ser contada como uma razão. O argumento é, em outras palavras, meramente uma explicação feita por conveniência. Ele responde a uma condição que precisa cumprida para se sustentar tal visão, mas não tem fundamento textual independente.

O mesmo vale para o argumento (3), segundo o qual Marx, ao chamar a exploração de “roubo”, implicitamente utiliza critérios de justiça internos ao capitalismo e leva em conta a injustiça somente de acordo com eles. Porém, uma vez que ele nunca afirma explicitamente que a exploração é injusta, seja fazendo referência a critérios internos ou externos ao capitalismo, como saber que o sentido das passagens sobre roubo é o alegado? Não há como saber. Apenas “parece que” elas podem ser consideradas dessa maneira. Entretanto, para outros, o que parece é apenas o próprio Marx dizendo que o capitalista rouba o trabalhador, e como as passagens não sugerem que ele esteja recorrendo a normas de justiça alheias, conclui-se que ele o afirma por conta própria. Novamente, o argumento está fundamentado não nos textos, mas nas necessidades postas pela própria interpretação. Farei uma breve digressão para destacar que isso é parte de uma divergência menor entre aqueles que concordam que Marx não considera o capitalismo injusto. Alguns desses intérpretes alegam que Marx o vê como injusto pelo menos de acordo com os próprios critérios do capitalismo19. É verdade que ele busca expor uma ideologia burguesa segundo a qual os trabalhadores e trabalhadoras são recompensados integralmente pelo valor que a força de trabalho deles ou delas cria. O trabalhador, Marx sustenta, recebe o equivalente a apenas um tanto desse valor, a uma parte igual ao valor da própria força de trabalho. No entanto, isso é tudo que o se exige que o capitalista pague de acordo com as leis da produção e troca de mercadorias, e são essas leis que Marx claramente toma como o verdadeiro parâmetro do direito burguês. Se, portanto, a ideologia é um engano ou uma dissimulação, a relação entre capitalista e trabalhador ainda satisfaz aquilo que para Marx são, com efeito, as únicas normas jurídicas da troca capitalista (RYAN, 1980, p. 510; BRENKERT, 1980, p. 139-140). Sendo assim, a alegação não é convincente. Mas mesmo se o fosse não faria diferença, pois ela não dá conta de comprovar que do fato de Marx se referir à exploração repetidamente (sem qualificação) como “roubo”, “furto” e “fraude”, ao maisvalor como “saqueio” ou “pilhagem” e aos capitalistas como “usurpadores”, não decorre que a exploração seja uma injustiça de acordo com o próprio Marx (independentemente de ela ser certa ou errada pelos critérios da sociedade burguesa). Tal alegação falha em demonstrá-lo, exceto por meio da pura suposição de que a exploração não pode ser uma injustiça por causa de outras coisas que Marx afirma, o que ainda deixa em aberto a questão sobre o que o uso desses termos acima significa.

Dupla contagem

Aqui se encontra o ponto crucial. O que encontramos aqui, precisamente, são tentativas ad hoc de caráter especulativo que tentam se desvencilhar de qualquer material que dificulte a interpretação sobre Marx que esses autores preferem. Trata-se de tentativas especulativas porque não há nada nas passagens sobre roubo, ou no contexto delas, que confirme que elas de fato têm o sentido que lhes é atribuído pelas explicações sugeridas. A apreciação detalhada de cada uma das explicações restantes envolveria repetição infundada. A (7) apenas afirma que a referência ao roubo é incapaz de conter uma alegação de injustiça, tendo por fundamento uma suposta consistência. A (6) sem dúvida se funda sobre a mesma base e, muito convenientemente, igualmente dispensa a questão do roubo ao vê-la como artifício retórico ou como autoengano. A (5) faz uma confusão um tanto arbitrária; pois “roubo” tem sentido diferente de “coerção” e não há razão para acreditar que Marx ignorava essa distinção ou que ele decidiu desconsiderá-la. E a inadequação tautológica da explicação (4) é clara. Ela essencialmente afirma, ainda que com certa hesitação devido a sua própria inadequação, que “não é muito claro que” Marx considera essa forma particular de roubo injusta, pois sabemos que ela não é injusta se ela corresponde, tal como a pilhagem regular necessariamente corresponderia, ao modo de produção em vigor. Mas a questão permanece: por que, então, ele a caracteriza como roubo? Essa tentativa de resposta, como todas as outras, se baseia em uma espécie de contagem dupla interpretativa: deve haver alguma explicação para isso, pois já sabemos que Marx diz que a exploração capitalista não é injusta e, portanto, ele não pode realmente querer dizer que ela é roubo. Da mesma maneira poder-se-ia raciocinar, como alguns de fato o fazem, que já sabemos que ele pensa que a exploração é roubo, então ele não pode realmente querer dizer que ela não é injusta. De qualquer modo, tal raciocínio produz uma leitura forçada e conjectural de algumas passagens da obra de Marx, uma leitura incompatível com as evidências internas delas.

Obviamente, a suposição de consistência é um princípio racional de interpretação textual. Quando a obra de um autor revela um comprometimento claro com certa posição intelectual e, mesmo assim, se encontram nela formulações que parecem contradizer tal posição, a boa vontade interpretativa exige que nós pesquisemos se a inconsistência é meramente aparente ou busquemos outra forma de explicar as formulações em questão. Eu mesmo, por exemplo, argumentei alhures que Marx obviamente tem um conceito de “natureza humana” e que a única, e ambígua, passagem que encorajou muitos a pensarem o contrário merece e é passível de tal tratamento. O mesmo se aplica a uma frase, relativa à “revolução permanente”, encontrada nos textos de Lenin antes de 1917, frase que é frequentemente usada para deturpar o sentido de sua concepção da revolução russa até aquele ano20. No entanto, a suposição de consistência tem seus limites. Ela não pode ser absoluta. Pois, do contrário, pode-se acabar presumindo coerência teórica completa onde ela não existe. Quando não apenas uma ou algumas formulações, mas todo um corpo de formulações, argumentos, conceitos, contraria um dos notórios compromissos intelectuais de um pensador, a suposição de consistência total deixa de ser racional ou justificável. A seção II desse ensaio, e a literatura ali compilada, testemunham o fato de que esse é o caso quando se refere à negação de Marx de qualquer crítica à injustiça do capitalismo. Nessas circunstâncias, não é um bom argumento afirmar que ele não poderia sustentar tal visão por ela ser inconsistente com outra visão que ele defende.

Portanto, na ausência de alguma resposta convincente à questão de por que teria Marx chamado a exploração de “roubo” senão porque ela a considera injusta, devemos aceitar a interpretação mais natural das passagens onde ele assim a caracteriza, que é que ele a considerava mesmo injusta. Tratar a exploração como roubo é tratar da apropriação de mais-valor e, com isso, ver os direitos de propriedade capitalistas como injustiças. Que essa era a visão de Marx sobre as coisas é, porém, uma alegação que precisa ser aprimorada — e isso nos traz à segunda parte de meu argumento. Ora, não se pode ignorar o material que contraria essa alegação, assim como não se pode ignorar aquilo que contraria a visão oposta. Pois ele nega explicitamente que existe injustiça na relação entre capitalista e trabalhador, evita e ridiculariza qualquer defesa do socialismo feito na linguagem dos direitos e da justiça, e parece, no geral, subscrever uma concepção na qual os critérios de justiça são meramente relativos a cada modo de produção. Alguns comentadores ficaram tentados a propor que, na verdade, é esse tipo de material que não deve ser levado ao pé da letra: que a negação de Marx de qualquer injustiça na relação salarial é feita de maneira “não séria”, ou com intenções satíricas ou “irônicas”; que com isso ele quer simplesmente indicar algo que é tomado como justo, ou que é justo pelos critérios capitalistas, ou que é apenas uma aparência de justiça na medida em que a troca com a qual se relaciona é ela mesma uma mera aparência; e que, da mesma maneira, o objeto da impaciência de Marx com os apelos socialistas a noções de justiça é apenas a retórica da justiça e não seu conteúdo (HOLMSTROM, 1977, p. 368; HUSAMI, 1980, p. 45; ARNESON, 1981, p. 217-218; YOUNG, 1978, p. 441-446; VAN DER VEER, 1973, p. 369-370). Em outras palavras, ao fazer essas afirmações, Marx ou não está falando literalmente, e seriamente, ou não está falando com sua própria voz. Como já sugeri acima, a utilização desse tipo de recurso é um equívoco, pois se trata de uma imagem espelhada do procedimento daqueles que tentam desconsiderar as afirmações de Marx sobre roubo, com a diferença de que agora se inverte os valores daquilo que Marx quis dizer, de modo que se ignora, tal como o faz a posição contrária, aquilo que não pode ser facilmente acomodado na interpretação defendida (nesse caso, não a acusação de roubo mas o discurso relativizante sobre justiça).

Um pensamento não considerado

Essa maneira de proceder é igualmente pouco convincente a esse respeito. De acordo com a evidência textual interna, Marx fala sobre esse assunto de maneira séria e com sua própria voz. Sem dúvida, é verdade que é de acordo com critérios internos ao capitalismo que ele baseia seu juízo sobre a relação salarial. Porém, se assim for, de acordo com as únicas declarações diretas e explícitas de Marx sobre a justiça, é precisamente e apenas nesse sentido interno (e, portanto, relativo) que os critérios para se decidir o que é ou não é justo são relevantes. Se a relação é justa de acordo com os parâmetros capitalistas, então ela também é justa na única concepção explícita de justiça que o próprio Marx apresenta. Aqui não há, de forma alguma, nenhuma ironia envolvida — exceto se, como critiquei acima, se presume simplesmente que tem de haver, em função de outros elementos. No que diz respeito a seus próprios propósitos, Marx deve ser interpretado no sentido de que o contrato de trabalho não é injusto de acordo com os critérios próprios, internos, da sociedade burguesa e também — portanto! —no sentido de que o contrato não é injusto para o próprio Marx, ou seja, de acordo com a definição relativista de justiça com qual ele expressamente se compromete. Diante disso, deve estar claro que, em minha visão, não é aceitável que se descarte tudo aquilo que denominei de discurso relativizante de Marx por meio da afirmação de que ele é apenas uma aparência e, na realidade, quer dizer outra coisa. Pode até ser verdade que algumas de suas declarações comumente tomadas como relativistas não o sejam de fato. Em particular, o argumento segundo o qual a proposição “o direito não pode ser superior à estrutura econômica da sociedade” é uma amostra de sóbrio realismo moral me parece convincente, considerando o contexto da frase, e não é menos plausível que a comum interpretação relativista dessas palavras. De modo mais geral, tal noção de realismo moral é sem dúvida uma dimensão importante do pensamento de Marx e, desse modo, também do problema sob discussão; voltarei a ela mais adiante. Mesmo assim, penso ser infrutífero esperar liquidar, com apelo a essa ou outras considerações, aquilo que é, no mínimo, uma forte tendência em Marx, uma que permeia seus escritos maduros, independentemente do que ele também faça ou diga em desacordo com ela: a tendência de relativizar o status das normas e valores, cuja manifestação mais incontroversa é o tratamento desses como ideologia, ou seja, elementos superestruturais e derivados, sem validade autônoma ou alcance trans-histórico.

Haveria, então, alguma maneira de se resolver o conflito entre as declarações explícitas de Marx que são produtos e reflexos dessa tendência e sua acusação implícita de que o capitalismo é injusto (afirmada por, entre outras coisas, seu uso da terminologia sobre roubo)? Eu acredito que há, embora minha proposta tenha em si um ar paradoxal. Contudo, ela não apenas é perfeitamente coerente, mas é também praticamente a conclusão necessária diante de todas as evidências textuais relevantes. A proposta é a seguinte: Marx pensava que o capitalismo é injusto mas não sabia que o pensava21. Isso porque na medida em que ele, de fato, pensava diretamente e formulava qualquer opinião sobre justiça, o que ele fazia apenas de modo intermitente, ele se expressava subscrevendo uma noção extremamente estreita de justiça. A concepção é estreita em dois sentidos: primeiro, em sua associação, de feição mais ou menos juspositivista, da justiça com a as normas jurídicas convencionais ou predominantes, os parâmetros internos a cada ordem social; e, segundo, em sua associação dela com a distribuição de bens de consumo, ou, como estamos falando do capitalismo, a distribuição de renda e, portanto, com um foco demasiadamente parcial no processo de trocas no mercado. Essa dupla associação é evidente no material citado acima de I(i) a I(v) . E é óbvio o porquê de, com base nele, se defender que Marx não tratava o contrato de trabalho como injusto e nem tratava a justiça como uma noção revolucionária. São essas duas associações conceituais, junto com a “inversão dialética” discutida acima, as fontes de sua confusão.

Na verdade, nenhuma dessas associações são necessárias para se considerar a justeza de uma dada sociedade, o que quer dizer que existem concepções de justiça distributiva mais amplas do que a determinada por elas. Pode-se considerar o que é correto de acordo com um certo conjunto de direitos morais (e não legais ou convencionais) — o conteúdo racional de noções de direito natural — e pode-se, ao mesmo tempo, levar em conta a distribuição de vantagens e desvantagens de modo amplo, incluindo aqui, consequentemente, a distribuição do controle sobre as atividades produtivas. E é exatamente isso o que Marx com freqüência faz, ainda que, quando o faça, não tenha o conceito de “justiça” em mente e nem o mencione explicitamente em sua escrita. Não estando presos às mencionadas associações conceituais, podemos, portanto, legitimamente afirmar que, na medida em que Marx obviamente acha a distribuição de vantagens e desvantagens sob o capitalismo moralmente condenável, o que o faz contestar o direito do capitalista à sua posição, ele considera o capitalismo injusto. Em sua obra implicitamente se encontra uma concepção de justiça mais ampla do que aquela que ele de fato formula, mesmo que ele nunca a identifique como tal. Não se trata aqui de atribuir a Marx algo alheio a seu próprio modo de pensar. Ao contrário, é ele que claramente, (ainda que malgré lui) questiona a justeza moral dos padrões de distribuição do capitalismo — distribuição tomada aqui, note-se, no sentido mais amplo possível. O fato de ele não perceber que, ao fazê-lo, ele está precisamente criticando o capitalismo como injusto, é meramente uma confusão de sua parte sobre o potencial alcance do conceito de justiça, o que o leva a considerá-lo, portanto, irrelevante a esse respeito. A crítica, por sua própria natureza, não pode ser nada senão uma crítica da injustiça. Vimos isso em relação à questão do roubo: dizer que os capitalistas o praticam é (desde que não se tenha uma explicação alternativa bem fundamentada para seu significado) o mesmo que questionar o direito deles àquilo que apropriam, logo, questionar a justiça dessa apropriação. Podemos agora, na sequência, apresentar outros argumentos para corroborar a validade da solução que propus para a presente controvérsia ao examinar um terceiro tópico de discussão: o compromisso de Marx com os valores de liberdade e autodesenvolvimento.

A distribuição da liberdade

Lembremos que aqueles negam o envolvimento de Marx com considerações sobre justiça encontram no compromisso de Marx com a liberdade o fundamento real de sua crítica do capitalismo. Mas trata-se de uma concepção que parte de falsas alternativas, como fica claro ao procedermos à segunda das duas questões embaraçosas que podem ser feitas aos autores que defendem essa posição. Quando se fala de liberdade e autorealização estamos falando da liberdade e autorealização de quem? Para Marx, a resposta a essa questão é, a princípio, de todos. Dizemos a princípio porque é claro que para ele a liberdade universal só pode vir a ser por meio da luta de classes, da ditadura do proletariado, de uma formação econômica transitória etc., ao longo dos quais deve acontecer uma permanente ampliação da liberdade e das oportunidades para o autodesenvolvimento individual (mas isso apenas com o tempo e diante de obstáculos sociais e materiais). Por outro lado, falamos de todos porque, no final das contas, Marx anseia e deseja liberdade e autodesenvolvimento universais. E isso quer dizer que a questão para ele se dá sobre a distribuição da liberdade e não apenas sobre sua quantidade global, por assim dizer. Uma das razões em função das quais a sociedade comunista seria, aos olhos de Marx, uma sociedade melhor do que a capitalista é por causa da maneira pela qual aquela disponibiliza tais “bens” a todos, enquanto essa os aloca de maneira grosseiramente desigual. Em outras palavras, sua preocupação com a distribuição em sentido amplo adota os mesmos valores que ele afirma o distanciarem do interesse pela justiça, de modo que esses valores não estão apartados de sua crítica do capitalismo. A crítica de Marx feita à luz da liberdade e do autodesenvolvimento é ela mesma uma crítica à luz de uma concepção de justiça distributiva. E, ainda que apenas parcialmente, considerando o fato de que Marx claramente acredita que o comunismo providenciará maiores liberdades do que qualquer outra formação social precedente22, essa identidade não deixa de ser real ou importante.

É surpreendente, considerando a centralidade lógica desse tópico para toda a controvérsia, que ele tenha sido tão pouco debatido na literatura aqui revisada. Pois ele invalida uma alegação fundamental feita pela interpretação “anti-justiça”. O fato de Marx efetivamente ter se preocupado com a distribuição no sentido amplo é algo que, como já deixei claro, já foi argumentado pelos oponentes dessa visão. Mas a lacuna teórica, a incoerência, que é revelada nessa interpretação a partir do momento em que os valores de liberdade e autodesenvolvimento são vistos como pertencentes ao âmbito da distribuição é algo notado por poucos comentadores e, ainda assim, apenas superficialmente23. De qualquer modo, a dimensão distributiva da abordagem de Marx sobre esses valores deve agora ficar registrada. Apontarei a seguir referências relevantes tanto para a questão da distribuição de vantagens e desvantagens, em geral, quanto para a distribuição de liberdade e autodesenvolvimento, em particular.

Em A ideologia alemã, Marx se refere ao proletariado como “uma classe que tem de suportar todos os fardos da sociedade sem desfrutar de suas vantagens”. Um tipo de vantagem que ele tem em mente é evidente em um trecho da mesma obra: todas as libertações que ocorreram até agora tiveram como base forças produtivas limitadas, cuja produção insuficiente para a totalidade da sociedade só possibilitava o desenvolvimento na medida em que uns satisfaziam suas necessidades à custa de outros e, assim, adquiriam - a minoria - o monopólio do desenvolvimento, enquanto os outros - a maioria -, devido à luta constante pela satisfação das necessidades mais essenciais (isto é, até a criação de forças produtivas novas, revolucionárias), viam-se excluídos de todo desenvolvimento” (MARX, 1975, p. 431-432) Tal disparidade também está registrada em seus escritos econômicos maduros. Em dado momento Marx, por exemplo, fala sobre a “contradição entre aqueles que têm que trabalhar demasiadamente e aqueles que vivem do ócio” e da potencial superação dela com o fim do capitalismo (1968, p. 256). Aprofundando esse tópico em O capital, ele escreve: dadas a intensidade e a força produtiva do trabalho, a parte da jornada social de trabalho necessária para a produção material será tanto mais curta e, portanto, tanto mais longa a parcela de tempo disponível para a livre atividade intelectual e social dos indivíduos quanto mais equitativamente o trabalho for distribuído entre todos os membros capazes da sociedade e quanto menos uma camada social puder esquivar-se da necessidade natural do trabalho, lançando-a sobre os ombros de outra camada. O limite absoluto para a redução da jornada de trabalho é, nesse sentido, a generalização do trabalho. Na sociedade capitalista, produz-se tempo livre para uma classe transformando todo o tempo de vida das massas em tempo de trabalho (MARX, 1976, p. 667)

Alguns leitores, diante do modo que Marx apresenta as coisas, pensarão ter detectado aqui vestígios de uma avaliação definitiva sobre o desequilíbrio distributivo por ele descrito; e estarão certos de pensar isso. Note-se que essa interpretação é motivada não tanto por algo que o próprio Marx diz, mas pelas inclinações intelectuais dos próprios intérpretes (e minhas, no caso), porém, ainda assim, é possível indicar outras passagens do mesmo tipo nas quais a acusação de imoralidade não é apenas sugerida lateralmente, mas colocada explicitamente. Assim, em um parágrafo de síntese no qual fala dos processos cumulativos do desenvolvimento capitalista, Marx diz inter alia: “com a diminuição constante do número de magnatas do capital, que usurpam e monopolizam todas as vantagens desse processo de transformação, aumenta a massa da miséria, da opressão, da servidão, da degeneração, da exploração” (1976, p. 929). Note-se: os capitalistas não apenas monopolizam todas as vantagens, mas também as usurpam, o que é o mesmo que dizer que eles não têm direito àquilo que monopolizam. E, incluído sob a rubrica da usurpação de vantagens está, novamente, o autodesenvolvimento. Nos Grundrisse Marx escreve: “como todo tempo livre é tempo para o livre desenvolvimento, o capitalista usurpa o tempo livre criado pelo trabalhador para a sociedade” (1973, p. 634). Sendo assim, a distribuição de vantagens (dentre as quais o tempo livre e o livre desenvolvimento) e desvantagens é moralmente ilegítima, e tal consideração implica um compromisso com uma distribuição mais aceitável e justa de ambas.

Que Marx de fato se compromete a um modelo de justiça distributiva diferente e melhor do que o predominante sob o capitalismo é algo que aparece de modo claro em uma passagem do terceiro volume d’O capital que fala sobre a vocação “civilizadora” do capitalismo. Ele começa afirmando que “o capital tem como um de seus aspectos civilizadores o fato de extrair esse mais-trabalho de maneira e sob condições mais favoráveis ao desenvolvimento das forças produtivas, das relações sociais e à criação dos elementos para uma nova formação, superior às formas anteriores da escravidão, da servidão etc.”. Depois, ao elaborar sobre essa observação, Marx assevera imediatamente depois que “isso conduz, por um lado, a uma fase em que desaparecem a coerção e a monopolização do desenvolvimento social (inclusive de suas vantagens materiais e intelectuais) por uma parte da sociedade à custa da outra” (1981, p. 958). Ele não poderia ser mais direto. A formação social almejada é “superior”, e o é em parte porque a coerção desaparece, mas também porque o mesmo se ocorre com a monopolização do desenvolvimento social por alguns à custa de outros. O princípio positivo de distribuição que aqui está implícito é esboçado por Marx em outro lugar. Ele se refere, no primeiro volume d’O capital, à “criação de condições materiais de produção que constituem as únicas bases reais possíveis de uma forma superior de sociedade, cujo princípio fundamental seja o pleno e livre desenvolvimento de cada indivíduo” (1976, p. 739). Ou, na celebrada fórmula do Manifesto comunista, “no lugar da antiga sociedade burguesa, com suas classes e antagonismos de classes, surge uma associação na qual o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos” (MARX; ENGELS, 1975, p. 506).

Justiça e interesses de classe

Portanto, tão logo o âmbito da “distribuição” é ampliado no sentido de cobrir a totalidade das vantagens sociais, especialmente no que diz respeito à disponibilidade do tempo livre — tempo que é em si, considerando-se o desenvolvimento individual autônomo, um componente crucial da concepção marxiana de liberdade — fica evidente que a crítica de Marx ao capitalismo é motivada por, entre outras razões, questões distributivas. Aqueles que alegam que ele não considerava o capitalismo injusto têm alguma resposta convincente diante dessa clara evidência contra sua posição? Nenhuma, até onde sei. Na verdade, em geral eles nem chegam a tentar responder o problema, deixando-o de lado ou desconsiderando-o. Contudo, se tomamos aqueles que têm algo a dizer sobre isso podemos acabar rapidamente ignorando (pelo fato de ser algo que não merece atenção séria diante dos textos citados acima) a afirmação simples de um autor que diz que a “liberdade marxista” não deveria ser considerada como um bem social a ser distribuído. Creio que os textos mencionados são suficientes para demonstrar o contrário. Podemos lidar, de maneira igualmente rápida, com o argumento desse mesmo autor segundo o qual, considerando que o capitalista, assim como o trabalhador, em certo sentido não será livre enquanto o capitalismo perdurar, então o alvo da crítica de Marx não é criticar que aquele goza de liberdades que esse não desfruta24. É, sem dúvida, verdade, de acordo com a teoria da alienação, que todas as pessoas em algum grau carecem de liberdade no capitalismo. Porém, as passagens que citei acima demonstram igualmente que também faz parte da crítica de Marx ao capitalismo o fato de que essa sociedade privilegia alguns com vantagens e oportunidades para livre desenvolvimento que são negadas a outros (em contraste com o que ele concebe como o princípio de uma sociedade comunista).

Devemos nos deter com mais detalhe na única tentativa considerável de contraargumento sobre essa questão. Ela se encontra em um recente ensaio de Allen Wood, cujos artigos anteriores desempenharam um papel bastante importante para animar todo esse debate. Wood admite que Marx “claramente se opõe à distribuição predominante de elementos tais como o controle efetivo dos meios de produção, tempo livre, e a oportunidade de se conseguir educação e desenvolver habilidades”; mas tal oposição, ele argumenta, não pode ser tomada como uma crítica ao capitalismo em termos de injustiça, uma vez que para que ela o fosse ela teria que ser baseada em “considerações imparciais ou desinteressadas”, o que não seria consistente com o que Wood chama de “tese dos interesses de classe”, que deveria ser a base da oposição de Marx. A tese dos interesses de classe, um componente do materialismo histórico, é apresentada da seguinte maneira: “Marx acredita que nossas ações são efetivas historicamente apenas na medida em que elas envolvem a persecução de interesses de classe, e que o significado histórico de nossas ações é definido pelo sua função em relação à luta entre tais interesses”. Para um agente histórico racional ou autoconsciente, Wood (1984) argumenta, o reconhecimento prático dessa tese é incompatível com a consideração da justiça, no sentido de princípios distributivos imparcialmente fundamentados, como uma preocupação primária.

Duas coisas podem ser ditas em resposta ao argumento de Wood. A primeira é que a incompatibilidade que ele alega está aberta a questionamentos. Marx, sem dúvida, acreditava que onde existem classes e luta de classes a consideração imparcial ou desinteressada dos interesses de todos não passa de uma ilusão ideológica; e ele inequivocamente se alinha com um conjunto de interesses, que é o do proletariado contra o de seus exploradores. Além disso, Marx trata o comunismo como algo que é de interesse do proletário e que está absolutamente fora dos interesses do capitalista enquanto tal, e considera que ele não pode ser efetivamente atingido senão a partir dos interesses do proletariado e do movimento social e político que luta por eles. Contudo, limitar o “significado histórico” desse tipo ação à sua função dentro do conflito tal como caracterizado, como se fosse apenas um interesse parcial contra outro, é reduzir e empobrecer radicalmente o sentido que Marx, o tempo todo, confere a ela. Pois, por mais parcial e “interessada” que ela seja, como Marx abertamente admite, essa ação tem um aspecto universal em virtude do caráter do seu objetivo histórico, daquilo pelo que luta o proletariado. Essa universalidade, conforme já afirmei antes, é tendencial; não pode ser imediata. Certos interesses sociais genuínos, de pessoas reais, mas acima de tudo o interesse dos que se beneficiam da exploração e querem sua continuidade, não têm valor moral segundo a consideração de Marx. Essa é a parte verdadeira do argumento de Wood. Porém, se a luta do proletariado pelos seus próprios interesses ainda pode ser vista como tendo significado universal, isso ocorre apenas porque o objetivo dessa luta (o “livre desenvolvimento de todos”), considerado de um ponto de vista imparcial e desinteressado, é para Marx um avanço moral em relação ao monopólio privado dos bens sociais que o capitalismo promove. Afinal, a ideia de que, na busca de uma organização justa, os interesses de alguns na preservação de injustiças das quais eles se beneficiam devem ser anulados é uma característica que só existe na perspectiva intelectual de Marx? Dificilmente. Ao devolver a uma pessoa o que pertence a ela de direito, pode-se, na medida em que apenas a justiça está em questão, legitimamente desconsiderar qualquer interesse que outros tenham em impedir isso. Também não há nada de extraordinário acerca do fato de que o objetivo ou o ideal histórico que Marx delineia é visto por ele como algo que não é imediatamente e diretamente realizável, mas que é mediado por obstáculos, contestado por interesses; algo, portanto, pelo qual se deve lutar por meio de um longo e difícil processo que inevitavelmente será influenciado por outras “causas” diferentes do ideal em questão. Isso está na natureza de muitos projetos políticos e é um problema para todos, embora alguns se dão o luxo de fazer de conta que não25.

A segunda coisa a dizer é que mesmo que — diferentemente do que faço — não contestemos a incompatibilidade que Wood alega existir entre a chamada tese dos interesses de classe e a preocupação com princípios de justiça imparciais, e aceitemos suas implicações desse raciocínio a fim de considerar todas as possibilidades interpretativas, isso ainda não é suficiente para defender sua posição. Pois ele apenas consegue demonstrar que caso Marx tenha manifestado um compromisso com princípios distributivos imparciais ele o fez de modo incompatível com outras convicções que tinha. Porém, ele não consegue mostrar que Marx não mantinha, de fato, tal compromisso, porque a verdade é que ele o matinha, como é evidente a partir da evidência textual exposta acima. Em certo sentido, o próprio Wood reconhece a existência dessa evidência. Em suas palavras, Marx com freqüência descreve as consequências da revolução comunista em termos que sugerem que se a descrição é aceita então há razões para considerar essas consequências como imparciais ou desinteressadamente boas. Por exemplo, Marx afirma que a revolução fará desaparecer a alienação, que ela possibilitará que todo membro da sociedade desenvolva suas capacidades, que ela promoverá a comunhão e a solidariedade entre as pessoas, e que ela facilitará a expansão dos poderes produtivos humanos e a satisfação universal das necessidades humanas. (WOOD, 1984)

Entretanto, as passagens de Marx nas quais essas alegações são feitas são rapidamente descartadas como “a liturgia que o pretenso ‘humanismo marxista’ nunca cansa de cantar”. São observações mordazes, mas qual sua justificativa? O que, em outras palavras, impede que Wood dê o devido peso às passagens que ele mesmo caracteriza adequadamente? Ora, a resposta é apenas a tese dos interesses de classe e outras passagens que são vistas como conseqüência dela, e que ele (erroneamente, mas deixaremos essa passar) considera evidência do desprezo de Marx pelo humanismo. Exegeticamente, contudo, não é legítimo deixar de lado o primeiro grupo de passagens por não se conciliar com o segundo, assim como não seria legítimo fazer o inverso. Se o objetivo é, como Wood enfaticamente afirma ser, entender o pensamento do próprio Marx, então a única maneira adequada de se proceder seria registrar aqui uma grande inconsistência. Simplesmente decidir que a clara evidência de uma preocupação desinteressada com a distribuição dos bens (e Wood afirma que é isso que os textos em questão sugerem) não é realmente o que parece ser é recair na dupla contagem que já expusemos e afastamos quando tratamos da questão do roubo.

Tanto naquela questão quanto nessa, os defensores da interpretação “anti-justiça” fracassam. Eles não são capazes de responder satisfatoriamente às questões necessárias, nem de explicar as evidências contrárias, para que a interpretação que eles propõem se torne plausível. A leitura que eles fazem de Marx, conclui-se, está equivocada.

A parte negativa de minha crítica se encerra aqui, restando a ser feita, a seguir, a caracterização positiva do conteúdo da concepção de justiça que está implícita em seus escritos. Os contornos dela já apareceram na discussão feita até aqui, agora trata-se de tentar esboçá-la de maneira mais clara.

As condições da produção

É fundamental para essa concepção a ideia de que sobre a propriedade e o controle privado dos recursos produtivos não recai qualquer tipo de direito moral26. Ao tratar a exploração como roubo, Marx desafia a legitimidade de algumas pessoas estarem em uma posição que permite a apropriação do produto excedente do trabalho social; portanto, ele desafia a legitimidade do sistema de direitos de propriedade cuja conseqüência é tal apropriação. Os direitos de propriedade incorporados na legalidade capitalista são, desse modo, condenados como injustos diante de um direito moral generalizado — o controle sobre os meios de produção — que, para Marx, tem precedência sobre aqueles. Sem dúvida, algumas pessoas irão achar um tanto surpreendente que eu atribua a Marx o que, com efeito, é uma noção de direito natural, e isso é compreensível tendo em vista sua hostilidade aberta em relação à tradição do jusnaturalismo. Consideremos, no entanto, como ele trata a propriedade privada da terra: Do ponto de vista de uma formação econômica superior da sociedade, a propriedade privada do globo terrestre nas mãos de indivíduos isolados parecerá tão absurda quanto a propriedade privada de um ser humano sobre outro ser humano. Mesmo uma sociedade inteira, uma nação, ou, mais ainda, todas as sociedades contemporâneas reunidas não são proprietárias da Terra. São apenas possuidoras, usufrutuárias dela, e, como boni patres familias [bons pais de famílias], devem legá-la melhorada às gerações seguintes (MARX, 1981, p. 911)

O que ele pode estar querendo dizer aqui? Que ninguém possui ou pode possuir terra? Mas Marx sabe muito bem que os indivíduos não só podem, mas de fato a possuem privadamente, de modo que os direitos positivos de propriedade dessas pessoas não são mistério para ele. Estaria ele dizendo, então, que ninguém, independentemente de seus direitos legais, pode verdadeiramente ser proprietário da terra, no sentido de ter um direito a ela que legitimamente exclui os outros? É exatamente isso. Ele está dizendo, nem mais nem menos, que os proprietários não tem um direito moral ao uso exclusivo aos recursos produtivos da Terra; está dizendo que a propriedade privada desses recursos é uma injustiça. O que mais ele poderia estar querendo dizer? Existe até mesmo de acordo com o trecho citado (“devem legá-la melhorada às gerações seguintes [...]”) uma obrigação moral em relação às gerações futuras. Os mesmos juízos aparecem no conteúdo de outros textos similares. Assim, ao falar sobre renda da terra, Marx discorre sobre o poder descomunal que essa propriedade fundiária proporciona quando, reunida nas mesmas mãos com o capital industrial, praticamente habilita este último a excluir da Terra, enquanto sua moradia, os trabalhadores em luta pelo salário. Uma parte da sociedade exige da outra um tributo em troca do direito de habitar a Terra. (MARX, 1981, p. 908)

E sobre a agricultura capitalista ele afirma: “o cultivo racional e consciente do solo como propriedade perene da comunidade, condição inalienável da existência e da reprodução das gerações humanas que se substituem umas às outras, cedem lugar à exploração e o desperdício das forças da Terra (MARX, 1981, p. 948-949, grifo do autor).

Passagens como essas, tomadas em conjunto com as referências a usurpação e roubo, confirmam, para além de qualquer dúvida, a convicção de Marx de que a “distribuição das condições de produção” na sociedade capitalista é injusta27. Como eu havia afirmado, porém, ainda que essa convicção seja basilar para sua concepção de justiça, ela não a esgota. O princípio normativo que ela envolve (o do controle democrático sobre os recursos de produção) deve ser complementado por outro, o princípio das necessidades, que trata, em termos gerais, da distribuição do bem-estar individual, sendo que esse segundo princípio é visto por Marx como uma consequência eventual da realização do primeiro. Além disso, não concordo com a sugestão, que apareceu nos dois lados do debate, de que não é o conteúdo particular do princípio das necessidades, ou de qualquer outro princípio distributivo, que irá definir o acesso ao bem-estar individual em uma sociedade sem classes, mas apenas o fato que esse princípio será um produto da decisão democrática coletiva28. Não concordo com isso porque é fácil imaginar regras ou práticas de distribuição que, ainda que apoiadas nos procedimentos mais democráticos de uma coletividade, sejam moralmente repreensíveis. Para ser curto e grosso: uma maioria estável, qualquer que seja a sua autodefinição, arbitrariamente, regularmente e ao longo de um período prolongado, criará vantagens para seus membros e desvantagens relativas para os membros de alguma minoria, independentemente da base de identificação dessa29. Obviamente, Marx não concebia a possibilidade de que uma soceidade sem classes pudesse combinar o controle coletivo sobre as condições de produção com a pura arbitrariedade moral na distribuição do bem-estar. Se isso era apenas um sinal de otimismo utópico de sua parte, como alguns nãosocialistas e talvez até mesmo alguns socialistas possam pensar, ou uma evidência de realismo ousado e perspicaz, trata-se de um problema que deve ser deixado de lado, pois a questão aqui é outra. A questão é que se Marx sustenta o princípio do controle coletivo sobre recursos com a clara expectativa de que sua implementação terá como consequência um certo tipo de distribuição dos bens humanos básicos e não outro, então é um estranho capricho abstrair dessa expectativa em relação às consequencias distributivas e imputar a ele uma concepção ética na qual é apenas o controle coletivo que importa, independentemente da natureza dos resultados distributivos ulteriores. Tais resultados devem certamente fazer parte da definição do valor que ele atribui a uma futura sociedade comunista. De qualquer modo, o fato é que ele expressamente formula um princípio para lidar com eles.

Sendo assim, eu tomo o princípio que ele formula, “de cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades!”, também como parte essencial de sua noção de uma sociedade justa; e quero dizer algo a mais sobre os argumentos trazidos no ponto II (viii) em defesa do tratamento desse princípio como um parâmetro de justiça distributiva. Contra isso, existem basicamente duas razões contrárias. Elas afirmam: (A) que o princípio das necessidades não é um parâmetro de igualdade, mas, ao contrário, é destinado a lidar com a individualidade única de cada pessoa, com a variedade das características e necessidades pessoais, de modo que configura uma fórmula para tratar as pessoas diferenciadamente; e (B) que, ao antecipar uma época em que “todas as fontes da riqueza coletiva jorram em abundância”, Marx visualiza um fim para a escassez e, portanto às próprias circunstâncias que exigem princípios de justiça30.

Necessidades e igualdade

Em relação ao argumento (A), devemos prestar atenção em outro texto que é de interesse sobre esse assunto, embora negligenciado nos debates sobre o que Marx quis dizer na Crítica do programa de Gotha. Há uma passagem em A ideologia alemã que, de uma perspectiva próxima do princípio das necessidades, questiona uma versão do princípio da contribuição, criticando a visão segundo a qual “a ‘posse’ e a ‘fruição’ de cada um se orientaria pelo seu ‘trabalho’”. Ocorre, porém, que um dos princípios mais fundamentais do comunismo, pelo qual este se diferencia de qualquer socialismo reacionário, consiste no parecer empírico, fundado na natureza do homem, de que as diferenças relativas à cabeça e às capacidades intelectuais em geral não condicionam as diferenças relativas ao estômago e às necessidades físicas; ou seja, a proposição falsa ‘a cada um conforme suas capacidades’, baseada nas condições atualmente vigentes, deve ser reformulada, na medida em que se refere à fruição em sentido mais estrito, para: a cada um conforme a necessidade; em outras palavras, a diversidade na atividade, nos trabalhos, não fundamenta nenhuma desigualdade, nenhuma prerrogativa de posse e de fruição (MARX; ENGELS, 1975, p. 537-538)

A ideia criticada por essa passagem é rejeitada precisamente sob o argumento de que ela justifica a desigualdade; portanto, o princípio das necessidades (que, por contraste, é ali defendido) não pode razoavelmente ser considerado outra coisa que não um parâmetro de igualdade. Esse trecho, no entanto, provavelmente foi escrito por Moses Hess, e não por Marx e Engels, que são considerados como os editores do capítulo d’A ideologia alemã onde o trecho se encontra (MARX; ENGELS, 1975, p. 586). Além disso, ali as necessidades são entendidas em um sentido explicitamente estreito, como necessidades físicas, e, conforme argumentarei brevemente, não se pode tomar esse sentido como se fosse o de Marx na Crítica do programa de Gotha. Devemos, portanto, ser cautelosos sobre o que é legítimo fazer com essa passagem no presente contexto. Seria manifestamente errado pular diretamente à conclusão de que, em função do teor manifestamente igualitário das palavras escritas por outra pena cerca de trinta anos antes, as formulações similares de Marx no texto mais tardio devem ter sentido idêntico. Mas se tal postulação apressada é, por um lado, injustificada, é justo que perguntemos como a postulação diametralmente oposta é justificável por parte daqueles que defendem que o princípio trazido por Marx não é um princípio de igualdade. A necessidade de cautela aqui opera em ambas as direções. E esses comentadores, é importante destacar, simplesmente ignoram a passagem acima referida d’A ideologia alemã.

Munidos de toda a cautela e atenção, podemos, não obstante, fazer duas observações sobre ela. Primeiro, não há outro trecho nas obras de Marx e Engels que tem relação tão óbvia com o famoso slogan da Crítica do programa de Gotha como esse, a despeito do problema relativo à sua provável autoria. Segundo, ele providencia um salutar lembrete de que o mote “a cada um segundo suas necessidades” já fazia parte do discurso da tradição socialista antes do próprio Marx empregá-lo. Terceiro, a passagem mostra que esse mote era entendido por outros como um princípio de igualdade, tanto que um antigo colaborador de Marx o apresentou abertamente como tal em uma obra que era destinada a ter o nome de Marx. Esses três pontos devem certamente ser o suficiente para abrir a cabeça de qualquer um à existência de, no mínimo, uma possibilidade razoável (e não afirmemos mais do que isso, por enquanto) de que Marx adotava o princípio em questão em função de uma preocupação igualitária. De qualquer modo, decisivamente, em quarto lugar, pode-se ver que entre a passagem d’A ideologia alemã e o texto da Crítica do programa de Gotha há uma semelhança interna inegável, que confirma que tal possibilidade é um fato. Pois, assim como o fundamento da primeira é que “diferenças relativas [...] às capacidades intelectuais” e, portanto, do “trabalho” não podem justificar a “desigualdade” ou “privilégios”, o fundamento da última é indicar insuficiências do princípio da contribuição porque ele “reconhece tacitamente a desigualdade dos talentos individuais como privilégios naturais e, por conseguinte, a desigual capacidade dos trabalhadores” e acaba se resumindo a “um direito da desigualdade” (MARX; ENGELS, 1970b, p. 18).

A consideração da passagem anterior, portanto, serve apenas para destacar o fato de que quando Marx fala dos “defeitos” do princípio da contribuição ele está claramente sugerindo que as desigualdades geradas por esse princípio são, a seu ver, moralmente inaceitáveis. O fato de Marx pensar isso, como agora podemos perceber, em conformidade com uma tradição preexistente de argumentos dá suporte à alegação de que o princípio das necessidades, tal como ele o apresenta, é um princípio da igualdade. Por outro lado, é obviamente verdade que esse princípio, ao visar o tratamento igual de todos, sob um ponto de vista, acaba necessariamente admitindo o tratamento desigual segundo outros pontos de vista. Todas as pessoas, igualmente, serão capazes de satisfazer suas necessidades. Porém, os meios de consumo não serão divididos em partes exatamente iguais; e mesmo quantidades iguais de trabalho não (pelo menos não necessariamente) corresponderão a partes de mesmo tamanho (não são todos, mas apenas aqueles que precisam, que terão acesso a medicamentos caros ou tratamento médico, e assim por diante). Não há nada fora do comum nisso, aliás. O mesmo se aplica a absolutamente toda concepção substantiva de justiça social ou de princípio de igualdade. Se a distribuição for feita de acordo com um critério de necessidade, então as pessoas que contribuem com o mesmo tanto de trabalho ou, digamos, pessoas que têm a mesma altura, ou que nasceram sob o mesmo signo astrológico, podem acabar não recebendo recursos equivalentes. Mas, do mesmo modo, se a distribuição for feita de acordo com um critério de conquista ou mérito, então aqueles com necessidades idênticas, ou que se esforçaram na mesma medida podem acabar se encontrando em uma situação em que suas necessidades não foram igualmente satisfeitas ou em que seus esforços não foram igualmente recompensados, conforme o caso. É um truísmo da análise filosófica sobre a igualdade e a justiça que o princípio formal aqui presente — “tratar casos iguais igualmente, e casos desiguais de acordo com suas diferenças” — é praticamente inútil sem que se especifique antes os critérios substantivos sobre qual tipo de semelhança e de diferença são moralmente relevantes; em outras palavras, qual tipo de igualdade é que importa. A posição de Marx se estabelece a favor da necessidade, e contra os “talentos individuais”, como critério decisivo. Não há dúvida de que, ao assim se posicionar, o próprio Marx enfatiza como a adoção desse critério — que tem que responder às necessidades específicas de cada indivíduo — deve, em alguns sentidos, envolver o tratamento desigual dos indivíduos. Seria um erro, contudo, se deixar levar por essa ênfase feita por Marx, como fazem muitos dos envolvidos nesse debate. Pois ele não conseguem, por meio simples decreto verbal, determinar que não há nenhum sentido no qual a igualdade de consideração e tratamento estão envolvidos. Esse sentido existe de fato, e Marx mostra que está ciente disso quando critica o princípio da contribuição. As necessidades de todos, independentemente dos talentos individuais e também de tantas outras características diferenciadoras que possam ser consideradas moralmente irrelevantes, devem ser igualmente atendidas.

Abundância comunista

Podemos agora nos voltar para o argumento (B), segundo o qual, uma vez que a expectativa de abundância de uma sociedade comunista irá “permitir que as necessidades de todos sejam plenamente satisfeitas” (WOOD, 1981b, p. 211), princípios de justiça distributiva tornar-se-ão obsoletos. Segundo esse raciocínio, não haverá mais nenhuma necessidade de normas ou regras impositivas para determinar que tipo de distribuição é justo, de modo que não haverá lugar para o princípio das necessidades, tal como proposto por Marx. Esse argumento não se sustenta diante de um exame mais minucioso. Assim, algumas reflexões críticas sobre o conceito de “abundância”, e também sobre o conceito de “necessidade”, mostrarão o que há de errado com ele. Para esse fim, a seguinte passagem providencia um pano de fundo para o pensamento de Marx sobre esse assunto. “O homem se diferencia de todos os outros animais pela natureza flexível e ilimitada de suas necessidades. Mas é igualmente verdade que nenhum animal é capaz de restringir suas necessidades no mesmo inacreditável grau e diminuir suas condições de vida ao mínimo absoluto” (1976, p. 1068)31. Então, quando Marx antecipa que as fontes da riqueza jorrarão “abundantemente”, qual é sua ideia de abundância? Ele não a descreve de maneira direta. De fato, não há evidência de que ele tenha dado à questão uma análise muito rigorosa. Desse modo, ao tentar respondêla, somos forçados a identificar o que pode ser inferido a partir de qualquer texto que seja relevante — no sentido das minhas observações anteriores sobre a necessidade de fazer a melhor reconstrução possível. Porém, de qualquer modo, existem apenas três diferentes “possibilidades” pertinentes aqui, e o trecho acima citado nos dá um enquadramento conveniente para entendermos quais elas são. (a) Existe abundância relativa a uma definição de necessidades como “mínimo absoluto”, como simples existência física. (b) Existe, no extremo oposto, abundância relativa a uma noção de necessidade “flexível e ilimitada”; isso é, da possibilidade de todos serem capazes de ter ou fazer o que quer que seja que concebam como uma necessidade. (c) Existe abundância relativa a algum critério de “razoabilidade” (poderia, inclusive, haver mais de um critério), o que configuraria um meio-termo entre (a) e (b).

Podemos afastar a leitura (a) com base no fato de que há muita evidência textual de que ela não é a noção que Marx tem de uma sociedade comunista. Afinal, ele pensa não em termos de um padrão mínimo, mas na expansão das necessidades individuais (MARX, 1981, p. 959, 986-987, 1015-1016), e ele tem em mente particularmente as necessidades para a autorrealização individual. Isso é evidente, entre muitas obras que poderiam ser citadas, em sua referência na Crítica do programa de Gotha sobre o “desenvolvimento multifacetado do indivíduo” e também no contraste que ele faz em O capital quando se refere a um “modo de produção em que o trabalhador serve às necessidades de valorização de valores existentes, em vez de a riqueza objetiva servir às necessidades de desenvolvimento do trabalhador” (MARX, 1976, p. 772). O princípio das necessidades, tal como Marx o entende, não é diferente do outro princípio que verificamos que ele enuncia — nomeadamente, o princípio do “livre desenvolvimento” de cada um e de todos — mas o engloba e, portanto, não deve ser tomado em um sentido minimalista. Por outro lado, podemos afastar a interpretação (b), em razão de ela ser absurda; não se trata realmente de uma possibilidade. Pois necessidades “flexíveis” são uma coisa, mas necessidades “ilimitadas” é algo bastante diferente. Se, como meio para o autodesenvolvimento, você precisa de um violino e eu preciso de uma bicicleta de corrida, isso, é de se supor, está certo. Mas se eu precisar de uma de uma área incrivelmente grande, como, por exemplo, a Austrália, para poder perambular ou simplesmente usar do modo que eu quiser sem ser perturbado pela presença de outras pessoas, isso obviamente não estará certo. Nenhuma abundância concebível poderia satisfazer necessidades de autodesenvolvimento dessa magnitude, e não é difícil pensar em necessidades menos exageradas para as quais o mesmo se aplica. Então, se, por um lado, não basta simplesmente tomar como óbvio que Marx não tenha cogitado tal absurdo, por outro, também não é legítimo imputar essa visão a ele sem alguma fundamentação textual; e tal fundamentação não existe. As reflexões de Marx no terceiro livro d’O capital quando fala sobre a persistência do “reino da necessidade” revelam uma visão muito mais sóbria sobre a abundância no comunismo (1981, p. 959).

Devemos, por consequência, concluir a favor da interpretação (c), segundo a qual a abundância é relativa a um critério de necessidades “razoáveis” que, por mais generosas e amplas que sejam, não atingirão qualquer fantasia de abundância sem limites. Pode ser argumentado, contra o raciocínio pelo qual cheguei a essa conclusão, que o próprio fato de que o princípio em discussão é um princípio que diz respeito a necessidades já exclui de antemão o tipo de exigências individuais extravagantes e fantásticas que imaginamos no parágrafo anterior. Afinal, Marx está falando precisamente sobre necessidades, e não sobre quaisquer desejos ou extravagâncias. Mas essa observação não muda nada; é apenas uma rota diferente para a mesma conclusão. Pois, desde que a noção de necessidade envolva mais do que o “mínimo absoluto” (e, como vimos, para Marx ela de fato envolve), a distinção entre o que pode devidamente ser considerado como necessidades das mulheres e dos homens no comunismo e o que são meras vontades, caprichos ou extravagâncias irá requerer um parâmetro de diferenciação. Não faz diferença se esse parâmetro irá distinguir necessidades razoáveis das não razoáveis, ou as necessidades tout court das vontades. A essência é a mesma: continua sendo necessário certo critério para se lidar com a abundância.

Se nos perguntarmos como um critério de “razoabilidade” vis-à-vis à satisfação de necessidades pode ser sustentado sem conflito aberto, há duas posições que podemos rejeitar seguramente: (i) a de que o princípio poderia ser coercitivamente imposto por um órgão ou instituição de controle social similar a um Estado. Nós sabemos que não era isso o que Marx imaginava. (ii) A de que o critério, se é que podemos chamá-lo assim nessas circunstâncias, poderia ser simplesmente algo espontâneo e irrefletido. Ou seja, poderia simplesmente “acontecer” que as necessidades de diferentes indivíduos sejam, em todos os lugares e em todo momento, todas satisfazíveis de uma maneira harmônica. Penso que há boas razões para duvidar de que essa é a visão de Marx sobre o assunto. Uma delas é que isso não condiz com a ideia de uma economia sujeita a regulação consciente, com o uso e distribuição de recursos planejados. Outra razão é que a própria ideia de espontaneidade aqui está aberta a questionamentos. Afinal, esses indivíduos serão “indivíduos sociais”, de modo que suas necessidades gerais não podem simplesmente ser se afirmar automaticamente. De qualquer modo, a perspectiva de nunca haver qualquer conflito potencial entre as necessidades de autodesenvolvimento individual é dificilmente imaginável. E tanto pior para uma concepção de comunismo que dependa disso. Há, por fim, (iii) a suposição de que embora não venha a existir uma coordenação ou harmonia automática entre as necessidades individuais e embora elas possam inclusive ser objeto de potencial conflito, haverá normas sociais impositivas, incluindo normas de distribuição, que as pessoas aceitarão mais ou menos voluntariamente. Ainda que demasiadamente utópica para muitos, essa é uma suposição mais realista que faz do princípio marxiano exposto na Crítica do programa de Gotha efetivamente um princípio de justiça distributiva. Ela é sustentada ao menos pelos seguintes aspectos do pensamento de Marx: a ideia de que embora o Estado, no sentido marxista desse termo, irá desvanecer, instituições públicas por meio das quais a comunidade deliberará coletivamente sobre os assuntos comuns continuarão a existir; e a noção de que embora o trabalho se torne a “primeira necessidade vital”, ainda vai existir um “reino da necessidade”, em outras palavras, algum tipo de trabalho que não é criação livre ou autorrealização, mas “determinado pela necessidade pela adequação a finalidades externas”, uma responsabilidade que Marx explicitamente considera que deve ser compartilhada por todos — com as exceções óbvias dos muito jovens, dos muito velhos, dos doentes e assim por diante (MARX, 1981, p. 959, 986-987, 1015-1016) — mesmo se repartida apenas de acordo com a capacidade relativa de cada um.

Por fim, a alegação de que a frase “de cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades!” não pode ser algum tipo de norma, visto que é apenas uma descrição do futuro32, não é muito plausível diante do fato de que Marx usa a frase como uma das bandeiras da sociedade comunista, colocando, inclusive, nesse sentido, um ponto de exclamação no fim dela.

Conclusão

O ponto de vista criticado nesse ensaio pode ser considerado como uma falsa solução para um problema genuíno presente no pensamento de Marx. Tal problema é uma inconsistência, ou paradoxo33, em sua posição diante de questões normativas. Ainda que hajam momentos em que ele energicamente ridiculariza o recurso a ideais ou valores, ao mesmo tempo Marx faz juízos críticos de caráter normativo de maneira bastante livre, pois é o autor de um discurso que é repleto de sinais de um intenso compromisso moral. A interpretação “anti-justiça” tenta suavizar essa contradição ao representar os dois lados dela como aplicáveis a coisas diferentes: como se o que Marx renegasse e ridicularizasse fossem as ideias de justiça e direitos; e os ideais de liberdade, autorrealização e comunidade fossem por ele afirmados e reivindicados. Mas essa é uma solução espúria. O obstáculo não pode ser removido tão facilmente. Tanto na juventude quanto na maturidade, os juízos negativos de Marx sobre esse assunto (isso é, seus esforços de, por assim dizer, repressão da dimensão normativa de suas próprias ideias) são bastante abrangentes. Assim, n’A ideologia alemã ele afirma que “o comunismo não é para nós um estado de coisas que deve ser instaurado, um Ideal para o qual a realidade deverá se direcionar. Chamamos de comunismo o movimento real que supera o estado de coisas atual” (MARX; ENGELS, 1975, p. 49). No mesmo sentido, 25 anos depois, n’A guerra civil na França, Marx coloca que os trabalhadores “não têm nenhum ideal a realizar, mas sim querem libertar os elementos da nova sociedade dos quais a velha e agonizante sociedade burguesa está grávida” (MARX. ENGELS, 1970a, p.224). Note-se que aqui não se trata de que o ideal de liberdade ou autorrealização se encontra em oposição ao ideal de justiça: o que Marx afirma é que não há ideais a realizar, mas tão somente o movimento imanente da realidade. A abrangência dessa negação acerta, de fato, um ponto crucial levantado por certos comentadores, frustrando a validade da disjunção que fazem. No Manifesto comunista, um oponente hipotético acusa o comunismo de “abolir as verdades eternas, abolir a religião e a moral”. E a resposta a essa acusação não é uma rejeição dela, mas o reconhecimento de que a revolução comunista é a ruptura mais radical com as relações tradicionais de propriedade; não admira, portanto, que no curso de seu desenvolvimento se rompa, do modo mais radical, com as ideias tradicionais”. Mas quais são essas verdades eternas que são, junto com “toda moral”, mencionadas como candidatas à abolição? Cito: “a liberdade, a justiça etc. (MARX; ENGELS, 1975, p. 504)

A impaciência de Marx com o discurso sobre normas e valores tem abrangência global. E, ainda assim, ele manifestamente condena o capitalismo por suas opressões, faltas de liberdade e, como argumentou-se nesse ensaio, por suas injustiças. Seus próprios compromissos éticos, ainda que negados em público e reprimidos, continuam reaparecendo: os valores da liberdade, autodesenvolvimento, bem-estar e felicidade; o ideal de uma sociedade justa em que esses elementos sejam adequadamente distribuídos. Pode-se talvez, de alguma forma, explicar essa contradição persistente, mas fazer isso não é resolvê-la ou justificá-la. Ela deve, ao contrário, ser reconhecida como uma inconsistência real e profunda da parte de Marx, uma que não trouxe resultados muito felizes. Alguns desses resultados podem ter sido inocentes: muitos socialistas simplesmente seguiram Marx no sentido do ofuscamento da questão, confundindo ao mesmo tempo a si mesmos e aos outros ao negarem em uma frase o ponto de vista normativo que claramente utilizam na próxima. Contudo, não tão inocente, dentro do complexo de causas históricas dos crimes e tragédias que desgraçaram o socialismo, é o cinismo moral que por vezes se reveste da autoridade dos pronunciamentos “anti-ética”. Os marxistas devem parar de continuar a propagar a confusão e a autocontradição nessa área, mas devem também responder abertamente por suas posições éticas, expô-las, defendê-las e refiná-las. Uma concepção marxista de justiça devidamente elaborada, para falar apenas do exemplo mais relevante do presente debate, seria bem-vinda.

Ainda assim, certo impulso salutar pode ser detectado, e parcialmente reconhecido, no repúdio de Marx a todo compromisso com princípios éticos. É ao que me referi acima como a noção de realismo moral. Expressa negativamente por meio de uma rejeição à fácil retórica moral, meramente moralista, que não leva em consideração o conhecimento objetivo sobre a realidade histórica, o núcleo positivo dessa noção é a convicção de que ideais, por si só, são uma ferramenta insuficiente para a libertação humana, e o conseqüente empenho em tentar compreender as precondições materiais para esse fim (incluindo aqui as formas de alienação historicamente inevitáveis, faltas de liberdades e injustiças), bem como os agentes sociais capazes de realizá-lo. Tal compreensão histórica, e tudo que se segue dela na obra marxiana, não é insignificante: ela é, na verdade, a força de Marx, sua grandeza. Essa força, é necessário repetir, não resolve ou justifica a inconsistência mencionada. Análises e juízos normativos podem ser colocados em seu devido lugar, ainda que esse seja um espaço necessariamente circunscrito, sem que sejam objetos de rejeição exagerada ou de desprezo. Mas é importante, não obstante, destacar a força de Marx em conjunto com sua deficiência. Pois não há falta de filosofia moral que, ignorando a particular insuficiência de Marx a esse respeito (e geralmente satisfeita por poder evidenciá-lo) é culpada de uma irresponsabilidade ainda maior: fazer análise isolada sobre o certo, o bom, o justo, e todo o resto, de modo tranquilo e distante das multidões agitadas, da história marcada pelas cicatrizes de labuta e conforto, poder e protesto, esperança e luta. O atual debate que se dá precisamente sobre o conceito de justiça fornece amplo material ilustrativo: as várias concepções de arranjos sociais justos são apresentadas em conjunto com praticamente nenhuma reflexão (às vezes com, de fato, nada) sobre como esses arranjos podem ser realizados. O último e maior paradoxo aqui é que Marx, apesar de tudo, demonstrava um maior compromisso com a criação de uma sociedade justa do que a maioria dos que se interessam em analisar o que a justiça é.

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Notas

1 Por uma questão de conveniência, detalhes bibliográficos da literatura analisada serão reunidos aqui. Muitos dos artigos aqui citados fazem parte das seguintes coleções: COHEN, M.; NAGEL, T.; SCANLON, T. (eds.). Marx, Justice, and History. Princeton: 1980; NIELSEN, K.; PATTEN, S. C (eds). Marx and Morality. Canadian Journal of Philosophy Supplementary, v. 7, 1981; e PENNOCK, J. R.; CHAPMAN, J. W. (eds.). Marxism: Nomos XXVI. New York: New York University Press, 1983. Os autores que colaboraram com o debate podem ser agrupados da seguinte maneira: I) Aqueles segundos os quais Marx não criticou o capitalismo como injusto: D. P. H. Allen, G. G. Brenkert, A. Buchanan, L. Crocker, S. Lukes, R. W. Miller, R. C. Tucker, A. W. Wood, e D. H. Ruben. II) Aqueles segundo os quais Marx criticou o capitalismo como injusto: R. J. Arneson, G. A. Cohen, J. Elster, M. Green, R. Hancock, I. Husami, P. Riley, C. C. Ryan, H. van der Linden, D. van de Veer, e G. Young. II*) Um grupo não completamente distinto do grupo II, porém com mais reservas de um tipo ou de outro sobre a interpretação do grupo I, sem no entanto o questionar diretamente: N. Holmstrom, W. L. McBride, J. H. Reiman, W. H. Shaw e R. J. van der Veen.
2 Ver também as Notas sobre Adolph Wagner (MARX, 1975, p. 216).
3 Ver Tucker (1970, p. 50-1); Wood (1980a, p. 27); Buchanan (1979, p. 134; 1982, p. 56-7)
4 Ver também (Wood, 1980b, p. 133; 1981a, p. 143) Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 9, N.1, 2018, p. 504-562.
5 Ver Tucker (1970, p. 48), Brenkert (1980, p. 91; 1983, p. 153, 162), Buchanan (1979, p. 139; 1982, p. 57-59), Lukes (1982, p. 198-203; 1983), (Wood, 1980b, p. 131; 1981a, p. 138-139; 1981b, 203-211), Miller (1981, p. 338- 339) e Allen (1974, p. 609).
6 Ver Tucker (1970, p. 50), Wood (1980a, p. 34-41; 1980b, p. 119-128; 1981a, p. 125-130), Brenkert (1980, p. 81- 6; 1983, p. 155-157), Allen (1974, p. 609-611), Lukes (1982, p. 201) e Miller (1984).
7 Esse é o argumento de Holmstrom (1977, p. 366-368), Husami (1980, p. 66-67), Young (1978, p. 441-450), Ryan (1980; p. 512-513), Arneson (1981, p. 218-219) e que também utilizo (Geras, 1971, p. 80-84).
8 Para uma passagem mais ambígua e disputada ver Marx (1975, p. 186).
9 Ver Arneson (1981, p. 204), Cohen (1981, p. 15) e Young (1981, p. 262-263). 
10 Ver Marx (1970b, p. 18-19), Hancock (1971, p. 66); Van der Veer (1973, p. 373); Husami (1980, p. 58); Arneson (1981, p. 214-215); Riley (1983, p. 39-42) e Elster (1983, p. 290-291). Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 9, N.1, 2018, p. 504-562.
11 Ver Van der Veer (1973, p. 371-373), Holmstrom (1977, p. 368), Husami (1980, p. 49-51), Arneson (1981, p. 216), Shaw (1981, p. 28) e Hancock (1971, p. 66-67). Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 9, N.1, 2018, p. 504-562.
12 Os autores são, respectivamente, Elster e Reiman. 
13 Expressões de, respectivamente, Brenkert, Lukes e Wood.
14 Ver Marx e Engels (1975, p. 464, 499-500) e Marx (1973, p. 487-488).
15 Ver, por exemplo, Allen (1981, p. 234-237) e Young (1981, p. 263-266).
16 Ver, por exemplo, Wood (1981a, p. 256) e o comentário de Cohen (1983, p. 443). Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 9, N.1, 2018, p. 504-562. 
17 Ver Tucker (1970, p. 46) Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 9, N.1, 2018, p. 504-562. 
18 Ver, para (1), Allen (1981, p. 248); para (2), Brenkert (1983, p. 148); para (3) Buchanan (1982, p. 187-188); para (4) Wood (1980b, p. 117-118); para (5) Wood (1980b, p. 119) e Brenkert (1983, p. 147-148); para (6), Allen (1981, p. 246-249); para (7), Brenkert (1983, 149-150). Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 9, N.1, 2018, p. 504-562. 
19 Ver Allen (1974, p. 603-607) e Buchanan (1979, p. 138). Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 9, N.1, 2018, p. 504-562.
20 Ver Geras (1983, 1976).
21 Dois outros autores apresentam esse argumento: Cohen (1983, p. 443-444) e Elster (1983, p. 289-290). Curiosamente, Steven Lukes, que se localiza no outro lado do debate, também o faz. Entretanto, seu ensaio sobre o assunto reduz o argumento, mencionando apenas em uma nota de rodapé que a convicção de Marx de que o capitalismo é injusto e declarando-a “não-oficial”. Embora seu livro prestes a ser publicado pareça dar mais espaço a essa visão “não-oficial”, essa aparência é enganosa, pois Lukes não aceita a conclusão que realmente importa aqui: a de que a convicção de Marx demonstra sua adoção de critérios não-relativistas sobre justiça. Ver Lukes (1982, p. 197).
22 Aqui discordo de Arneson (1981, p. 220-221). 
23 Ver Arneson (1981, p. 220-221), Riley (1983, p. 50) e Hancock (1971, p. 68-69).
24 Ver Brenkert (1980, p. 158) para ambos os argumentos.
25 Ver Geras (1976).
26 Ver Cohen (1981, p. 13) e Ryan (1980, p. 521).
27 A afirmação segundo a qual (novamente) “parece que” as críticas de Marx ao capitalismo não são baseadas em nenhuma concepção de justiça “produtiva-distributiva” — e por esse termo o autor dessa afirmação quer dizer exatamente o que tenho argumentado nesse ensaio — é ela mesma aparentemente baseada na resistência do autor de explicar as passagens de Marx aqui citadas. Ver Buchanan (1982, p. 59-60). E, francamente, não passa de um ardil intelectual desesperado dizer que — ver Brenkert (1983, p. 162) —sendo a propriedade coletiva “uma instituição qualitativamente diferente” da propriedade privada, ela deve ser vista simplesmente como algo radicalmente novo, não como uma redistribuição diferente dos meios de produção. Esse discurso da ”transição” pura e sem restrições se encontra longe da concepção de Marx sobre as continuidades históricas, o que, apesar de todas inovações e mudanças, e do crescimento das capacidades produtivas dos homens, faz da análise comparativa das instituições sociais um esforço racional. A “distribuição das condições de produção” é, sem nenhum problema, uma categoria trans-histórica para Marx. 
28 Ver Crocker (1972, p. 207) e Ryan (1980, p. 521-522) 
29 Um exemplo menos “extremo” é dado por Arneson (1981, p. 226)
30 Ver a seção I (viii) acima.
31
32 Ver a seção I (viii).
33 Ver Lukes (1983) para uma apreciação clara do paradoxo e para uma proposta de solução para ele. 

Sobre o autor 

Norman Geras Professor de Teoria Política na Universidade de Manchester (UK), falecido em outubro de 2013.

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