New York Review of Books
Edição de 19 de novembro de 1998 |
A última palavra
por Thomas Nagel
Oxford University Press, 147 pp.
Oxford University Press, 147 pp.
1.
Esta discussão dirá respeito a uma questão que percorre praticamente todas as áreas de pesquisa e que invadiu até a cultural geral — onde chegam ao fim a compreensão e a justificação? Chegam ao fim com princípios objetivos cuja validade é independente do nosso ponto de vista, ou chega ao fim no seio do nosso ponto de vista — individual ou partilhado — de modo que, em última análise, mesmo os princípios mais aparentemente objetivos e universais derivam a sua validade ou autoridade da perspectiva e prática de quem os adota?
Tradução / Esta é a questão que Thomas Nagel levanta em A Última Palavra, e a resposta que lhe dá neste livro subtil, compacto e vigoroso situa-se firme e eloquentemente no primeiro campo — é uma resposta “racionalista”, contra respostas a que chama ora “subjectivistas”, ora “relativistas”, ora “naturalistas”. Temos, a maior parte de nós, um perfil moral liberal (em termos muito latos): apoiamos os direitos humanos universais e favorecemos a tolerância. Outros, alhures, não têm este perfil, tal como a maior parte das pessoas do passado. Favorecemos a medicina dos médicos em detrimento da dos curandeiros, e pensamos que temos razões científicas para fazê-lo; os curandeiros têm uma perspectiva diferente. Nagel quer vindicar a nossa racionalidade, e as justificações que oferecemos para as nossas crenças, contra as pessoas que dizem que estas maneiras de pensar são simplesmente aquelas a que estamos culturalmente habituados e que por acaso favorecemos.
Algumas das pessoas que o dizem, os relativistas de Nagel, deixam as coisas nesse pé: “Esta é a nossa maneira de ver as coisas, mas quem somos nós para dizer que essas outras estão erradas?” Aqueles de nós que são subjectivistas vão um pouco mais longe, e dizem que quem discorda connosco está errado; mas estão muito impressionados com a ideia de que não há qualquer ponto objectivo a partir do qual se possa resolver a discordância. Outros, ainda mais cépticos, consideram que podemos prescindir completamente de “verdadeiro”, “errado”, e assim por diante, excepto como decoração ou retórica, e incitam-nos a ver estas discordâncias e argumentos simplesmente como um género ou outro de política.
Nagel quer mostrar, contra todas estas posições, que “a compreensão e a justificação chegam ao fim [...] com princípios objectivos cuja validade é independente do nosso ponto de vista”. Ele quer dizer que se o argumento entre posições ou interpretações conflituantes fosse levado suficientemente longe, e se os participantes fossem completamente racionais, teriam de aceitar uma ou outra das resoluções do debate, ou pelo menos concordar entre eles que por razões mutuamente inteligíveis o debate não poderia ser resolvido. Não poderiam recuar limitando-se a explicar o perfil de cada um em termos psicológicos, sociais ou políticos.
Ao avançar estas ideias, Nagel considera que está a abordar uma questão intelectual e cultural importante, e está. Mas deve-se dizer desde já que A Última Palavra é uma obra de reflexão filosófica, e não uma diatribe. O livro é um contributo significativo para as guerras culturais do nosso tempo, em particular para as disputas recorrentes e desorganizadas sobre até que ponto a compreensão e o argumento objectivos podem ser resgatados da suspeita céptica (que sustenta que um pensador sofisticado não deve acreditar em praticamente coisa alguma) e, igualmente, de um relativismo promíscuo (que permite acreditar em praticamente seja o que for de que se goste). Mas no texto de Nagel não há grande coisa que mostre como se relaciona com qualquer controvérsia particular. Praticamente os únicos exemplos que dá do que está em causa são uma citação apropriadamente auto-refutante de Richard Rorty (a que chegarei) e, em questões de ética, algumas opiniões minhas. Os leitores que estavam à espera de ver os seus amigos ou inimigos vilificados ficarão desapontados.
***
Nestas discussões, quem somos “nós”? Será toda a afirmação de que as nossas compreensões são relativas a “nós” igualmente ameaçadora? Quando reflectimos no que “nós” acreditamos, em particular com respeito a questões culturais e éticas, temo-nos muitas vezes em mente (como os relativistas) como membros de sociedades industriais modernas, ou de um grupo ainda mais restrito, em contraste com outros seres humanos de outros tempos e lugares. Esse “nós” é, como dizem os linguistas, “contrastante” — escolhe-nos a “nós” em oposição aos outros. Mas “nós” pode ser entendido de maneira inclusiva, para abraçar seja quem for que partilha, ou poderá partilhar, a actividade de investigar o mundo. Alguns filósofos sugeriram que no nosso pensamento está sempre suposto um “nós” deste tipo inclusivo; segundo eles, quando os cosmologistas fazem afirmações sobre como é o universo “em si”, não estão a abstrair completamente da experiência possível, mas antes implicitamente a falar do modo como as coisas pareceriam aos investigadores que fossem pelo menos suficientemente como nós para que os reconhecêssemos, em princípio, como investigadores.
Se esses filósofos têm ou não razão ao pensar que todas as nossas concepções são relativas a um “nós” entendido desta maneira abstractamente inclusiva, é certamente uma questão importante em metafísica. Mas terá importância para as guerras da cultura e para as disputas acerca do relativismo e do subjectivismo que constituem a verdadeira preocupação de Nagel? Afirma ele que está atacando a ideia de que não podemos em última análise ir além de uma concepção do mundo tal como nos parece a nós. Contudo, o que é realmente perturbador acerca dos relativistas e subjectivistas não é certamente esta ideia em si, mas antes a sua insistência em entender-nos a “nós” de uma maneira muito local e paroquial. As suas sugestões — feitas pelo menos pelos mais radicais — de que todas as nossas ideias, incluindo as nossas teorias em cosmologia, são apenas formações culturais locais, e que não há uma “verdade da questão” acerca de coisas como a história, são realmente desencorajantes e têm implicações culturais profundas porque sugerem que não há padrões partilhados na base dos quais nós como seres humanos possamos compreendermo-nos uns aos outros — que não há qualquer “nós” inclusivo, mas apenas o contrastante.
***
Estes problemas acerca do alcance da compreensão humana, como muitos outros na filosofia moderna, remontam a Kant. Este filósofo ficou correctamente impressionado pela ideia de que caso perguntemos se temos uma concepção correcta do mundo, não podemos sair inteiramente das concepções e teorias que efectivamente temos para compará-las com um mundo que não esteja de algum modo conceptualizado, um “seja o que for que há” sem adornos. Concluiu que não podemos ir além de conceber o mundo como poderia aparecer a criaturas parecidas connosco pelo menos na medida em que sejam observadores inteligentes, de modo que pertencem ao “nós” maximamente inclusivo. No pensamento moral, contudo, Kant suponha que a situação era diferente. Não considerava que a moralidade fosse uma questão de conhecimento. Tratava, ao invés, de princípios práticos que obrigam qualquer pessoa racional ao lidar com outras pessoas racionais, e isto conduz ao resultado, à primeira vista surpreendente, de que para Kant a moralidade está menos relativizada aos modos como o mundo nos afecta do que a ciência. A moralidade de Kant aplica-se-nos apenas porque somos criaturas racionais. O “nós” da moralidade é potencialmente mais lato do que o grupo que poderia partilhar a ciência.
Nagel é simpático à perspectiva kantiana desavergonhadamente racionalista da ética, mas pensa que a revolução de Kant na compreensão da ciência e do nosso conhecimento quotidiano do mundo foi o princípio da decadência.1 Mais do que qualquer outra pessoa, Kant é o “moderno” do “pós-moderno”, e há uma longa história (que Nagel não conta aqui) de como, depois de Kant, a reflexão crítica sobre as nossas relações com o mundo acabaram por varrer as garantias do próprio Kant acerca do que podemos saber e do que devemos fazer. As afirmações morais, as disciplinas humanísticas da história e da crítica, e a própria ciência natural, passaram a parecer a alguns críticos alheias ao assentimento razoável de todos os seres humanos. São ao invés vistas como produtos de grupos no seio da humanidade, exprimindo as perspectivas desses grupos. Há quem considere que a autoridade do discurso supostamente racional é em si mera autoridade, um constructo de forças sociais.
Noutra reviravolta ainda, a reflexão acerca desta situação pode levar a um relativismo que dá um passo atrás perante quaisquer perspectivas e as vê a todas à mesma distância — são todas verdadeiras, nenhuma o é, cada qual é verdadeira para os seus próprios partidários. Acabamos então por chegar ao tipo de encantamento produzido por quem, citado por Alan Sokal numa reunião em Nova Iorque acerca do seu embuste, insiste que não há qualquer questão de facto sobre se os nativos americanos chegaram originalmente ao continente atravessando o Estreito de Bering, ou se ascenderam do centro da Terra; ambas as perspectivas são verdadeiras (para alguém, ou algo assim).
Isto é o tipo de entulho que se encontra nas praias mais distantes daquilo a que Nagel se opõe, mas ele é igualmente contra seja o que for que se encontre nessa direcção; isto é, seja o que for que considera que as crenças ou afirmações, que é de entender que versam directamente sobre o modo como as coisas são, não passam de afirmações que dependem de “nós” — quer “nós” queira dizer os seres humanos e quaisquer seres que possamos compreender, como no caso de Kant; quer queira dizer apenas os seres humanos; quer queira dizer nós aqui e agora; ou talvez alguns de nós aqui e agora, como em várias interpretações pós-modernas. Nagel não está muito interessado nas diferenças entre os entendimentos mais latos e mais restritos de “nós”, tal como não está muito interessado em identificar teóricos particulares de tendência relativista ou subjectivista. Quer livrar-se da ideia de que as verdades aparentemente objectivas dependem em qualquer sentido de “nós”. Ele pensa que tem um conjunto de considerações inteiramente gerais e abstractas que o fazem, e que nos irá persuadir de que a razão e a objectividade devem ter a “Última Palavra” que surge no título.
2.
A ideia básica de Nagel é que seja qual for o tipo de afirmação da qual se diz que é apenas localmente válida e que é produto de forças sociais particulares — seja a moralidade que está a ser criticada deste modo, ou a história, ou a ciência — o relativista ou subjectivista que oferece esta crítica terá de fazer outra afirmação qualquer, que terá em si de ser entendida como algo que não é meramente local mas antes como algo que é objectivamente válido. Além disso, em todos os casos que interessam, esta afirmação adicional terá de ser do mesmo tipo das que as que estão sendo criticadas: a crítica da moralidade por parte dos relativistas tem de comprometê-los com afirmações de moralidade objectiva, as suas tentativas de mostrar que a ciência consiste em preconceito local tem de fazer apelo à ciência objectiva e assim por diante.
Regressaremos a alguns detalhes da ideia básica de Nagel, e como se sai na prática. Primeiro, contudo, há algumas questões acerca desta abordagem e acerca do estilo de argumento muito geral que ele usa. Se ele tiver razão quanto a esta abordagem, consegue pôr fim ao ataque subjectivista e relativista antes de este se aproximar muito de qualquer alvo em particular. Isto tem a mesma vantagem do proposto sistema de defesa chamado Star Wars:2 se funcionar, as explosões ocorrem na estratosfera e nada do que nos importa fica danificado. Mas tem a mesma desvantagem: se não funcionar e não houver a garantia de a intercepção ocorrer, não há maneira de saber quantas das coisas que nos importam irão sobreviver.
Esta é uma das razões pelas quais esta estratégia me parece mal concebida: nem tudo o que é ameaçado pelo subjectivismo, ou pelo relativismo, ou pelo naturalismo, está na mesma situação. Alguns dos tipos de ideias que têm sido postas em causa destas maneiras têm menos hipóteses de enfrentar o ataque do que outras. Partes da nossa moralidade, por exemplo, ou das nossas narrativas históricas de mais longa duração, ou dos nossos modelos de compreensão pessoal de nós próprios, estão mais abertos à suspeita, estão mais sujeitos a que se mostre de um modo inquietante que dependem de um “nós” restrito e paroquial, do que a nossa ciência ou a nossa lógica. Caso as coisas sejam assim, não pode ser devido a razões inteiramente gerais que se aplicam tanto a estes como a outros tipos de ideias. Será devido a razões específicas delas. Além disso, pode ser por razões específicas delas neste momento: como acontece com outras doenças, não é provável que os diagnósticos que ignoram a sua história sejam bem-sucedidos.
Além disso, são as nossas próprias doenças. Outra razão pela qual, ao que me parece, a estratégia de Nagel é inadequada é que instala um sistema de defesa de longa distância, muitíssimo poderoso e de total abrangência para entrar no que na verdade é uma guerra de guerrilha. Os irracionalistas ou relativistas ou cépticos estão entre nós. Não tenho em mente a situação de Invasion of the Body Snatchers sugerida por alguns conservadores fantasistas da universidade, que parecem pensar que os departamentos de literatura receberam secretamente casulos que deram origem a criaturas que tomaram o lugar dos académicos. Tenho em mente que as sementes do cepticismo estão prontas a germinar seja em quem for que pense seriamente acerca da nossa situação intelectual e cultural, tal como é agora. Nagel tem perfeitamente razão quando diz que estes tipos de cepticismo não podem tornar-se totais, deste lado da insanidade. Para que pensemos de todo em todo, não podemos considerar que a lógica, ou a ciência, ou a história, são apenas fantasias locais. Mas a questão difícil é até onde o cepticismo ou o relativismo podem ir sem sair do lado certo da insanidade, e (para mudar a metáfora militar) a política de Nagel eles não irão passar! não me parece ser uma ajuda suficiente para lhe dar uma resposta.
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Nagel exprime a sua ideia básica dizendo que há algumas ideias “da quais não podemos sair”. Para nos entendermos, e mais em particular, para chegar à conclusão de que alguns dos nossos pensamentos ou crenças ou experiências são meras “aparências”, uma função do que somos e não do que as coisas são, há outros juízos que temos de pensar “directamente” — ou seja, de um modo que nos compromete com a sua verdade objectiva. Se pudermos considerar que algumas das nossas ideias são meras aparências, isto implica que temos uma perspectiva objectiva do mundo ao qual pertencemos — um mundo que está realmente aí — juntamente com essas aparências. Na medida em que depende de assumir uma “perspectiva externa de nós mesmos”, “desacreditar afirmações universais da razão por serem meramente subjectivas ou relativas tem em si limites inevitáveis”. Há, diz Nagel,
alguns tipos de pensamentos que não podemos simplesmente evitar ter — que é estritamente impossível considerar apenas a partir de fora, porque entram inevitável e directamente em qualquer processo em que nos consideremos a partir de fora, permitindo-nos construir a concepção de um mundo em que, em termos de facto objectivo, nós estamos inseridos, juntamente com as nossas impressões subjectivas. [itálicos de Nagel]
Há, insiste Nagel, limites à abrangência da crítica aos nossos pensamentos que podemos levar a cabo de um ponto de vista desalojado. Podemos de facto chegar à conclusão de que algumas das nossas crenças aparentemente objectivas são expressão de uma qualquer peculiaridade local:
Uma pessoa que tenha sido educada para acreditar que é errado as mulheres exporem os seus peitos pode vir a dar-se conta a certo ponto de que isto é uma convenção da sua cultura, e não uma verdade moral sem restrições. Claro que pode continuar a insistir, depois de examinar as provas antropológicas, históricas e sociológicas, que é errado em si que as mulheres exponham os seus peitos [...] Mas é improvável que esta reacção sobreviva ao confronto; não tem base suficiente em que se apoiar [...]
Se a crença original desaparecer nesse caso, a mudança terá sido produzida por meio de outroargumento moral. De modo que as reflexões deste género não poderiam possivelmente reduzir toda a crença e argumento morais a conjuntos de peculiaridades locais. O mesmo se aplica, pensa Nagel, a todas as áreas de pensamento que ele toma em consideração. Não se pode em última análise sair destes géneros de pensamento. Temos de continuar da mesma maneira. No fim, seja quem for que tente defender a objectividade numa dada área, acabará por fazer afirmações nessa área que, uma vez mais, têm de ser entendidas como objectivas.
***
Um caso que ilustra os méritos da ideia de Nagel, mas também os limites desta abordagem totalmente geral, é o da objectividade da ciência. Ele põe esta questão em termos de uma escolha entre duas perspectivas igualmente abstractas. Uma é a atitude “realista” assumida pela maior parte das pessoas, incluindo muitos cientistas, segundo a qual há um mundo cuja existência é independente de todos nós, e que tem um carácter determinado que as teorias dos cientistas tentam captar. A outra é a “tentativa de reconstruir a imagem ordenada do mundo como uma projecções mental da nossa parte”. (Esta reconstrução, presumo, pode assumir ou não uma forma relativista, dependendo de como se entende “nossa”, mas Nagel não está muito preocupado com o relativismo neste caso.) Esta segunda perspectiva, defende Nagel,
naufraga na necessidade de nos colocarmos no mundo que foi ordenado desse modo. Ao tentar dar sentido a esta relação, somos inevitavelmente levados a usar o mesmo tipo de raciocínio, baseado na procura da ordem. Mesmo que decidamos que algumas das nossas apreensões de ordem são ilusões ou erros, isso será porque uma teoria melhor, pelos mesmos padrões, pode eliminá-los explicativamente.
Neste nível muitíssimo geral, Nagel tem de ter razão. É impossível que alguém saia completamente, ou “localize”, ou repudie por ser paroquial o pensamento realista acerca do mundo, ou na verdade as tentativas de compreendê-lo por meio de alguns princípios de ordem. Quem o tenta, para defender o que quer, terá de assumir os compromissos de pensar e falar das maneiras que está a tentar pôr de lado.
Contudo, não é claro o que nos diz isto exactamente. Escreveram-se muitas coisas sobre o realismo científico e as suas alternativas. Tem havido e sem dúvida há ainda autores, na sua maior parte ignorantes de ciência, que parecem pensar que a ciência é apenas inventada, ou determinada por forças ideológicas. Porém, são pouquíssimos os que sabem alguma coisa da área que o pensam.3 O que está em causa é, ao invés, que a ciência é uma actividade social complexa, e o facto de alguns ramos da ciência num dado momento se fixarem em certas teorias ou modelos em vez de outros não é um resultado directamente determinado pela percepção do mundo, mas antes pelos hábitos e práticas dos cientistas, incluindo as maneiras que têm de seleccionar e interpretar as observações. Este não é um aspecto filosófico abstracto; é a conclusão de estudos históricos detalhados.4
O próprio Nagel, de facto, parece disposto a aceitar isto; não tem inclinação para pensar que o mundo, com um tudo-nada de encorajamento experimental, se insere a si próprio nas revistas científicas. Mas não enfrenta a questão de onde exactamente nos deixa isso. Dados os limites do que Nagel afirma aqui, poderíamos concordar com Lichtenberg que “a nobre simplicidade da natureza repousa demasiadas vezes na simplicidade nada nobre de quem pensa que a viu”.5 Se esta ordem de ideias for correcta, quem ou o quê exactamente tem a “última palavra”? A nossa ciência ocupa-se do mundo, mas isso deixa espaço para a reflexão de que contudo é muito mais uma função de “nós” do que ingenuamente se supõe. Como acontece amiúde com estas questões — como as imagens que temos do passado ou a compreensão das outras pessoas — a questão não é se apreendemos algo objectivamente, mas quanto o apreendemos, e a resposta pode ser tão obscura que nos deixa com alguma da ansiedade que, penso, a estratégia de Nagel pretende dissipar.
***
Seja como for, Nagel mostra realmente que ninguém pode repudiar completamente o discurso científico; se alguém disser, por exemplo, que a ciência não é senão a nossa mitologia local, precisará de uma imagem do mundo que contém pessoas e as suas mitologias, e para poder manter essa imagem terá de dirigir-se à ciência. Nagel denuncia também com eficácia um estilo conhecido de tentativa de repudiar um certo tipo de discurso ao mesmo tempo que se tenta ficar no seu seio. Richard Rorty gosta muito deste tipo de afirmação. Escreve ele, por exemplo:
O que pessoas como Kuhn, Derrida e eu acreditamos é que é irrelevante perguntar se há realmente montanhas ou se é apenas conveniente falar delas [...] Dado que é vantajoso falar delas, como certamente o é, uma das verdades óbvias acerca das montanhas é que já estavam aqui antes de falarmos delas. Se o leitor não acredita nisso, provavelmente não sabe jogar os jogos de linguagem habituais que usam a palavra “montanha”. Mas a utilidade desses jogos de linguagem não tem coisa alguma a ver com a questão de a Realidade Tal Como É Em Si ter montanhas, sem ter em consideração a vantagem para os seres humanos de descrevê-la desse modo.6
Nagel insiste com razão que Rorty e os seus amigos fariam melhor em clarificar as coisas (mais do que nesta passagem) acerca das montanhas. Sem dúvida que é prático para os seres humanos ter palavras para montanhas, mas é muito difícil explicar por que razão isso acontece sem mencionar o facto de haver montanhas. É revelador, também — e Nagel poderia ter acrescentado isto como ilustração do seu argumento geral — que Rorty aceita sem questionar que vale a pena falar acerca de montanhas. Não se limita a dizer que vale a pena falar acerca de valer a pena falar acerca de montanhas.
Talvez devido ao mesmo escrúpulo que o faz não citar grande parte daquilo a que se opõe, Nagel mantém-se a alguma distância dos argumentos de Rorty. Não aprova os seus erros. Mas Rorty não se limita a cair em erro; coloca-se nele. E vale a pena ver mais de perto a sua retórica. As letras maiúsculas que Rorty outorga à “Realidade Tal Como É Em Si” sugere a ideia metafísica de um mundo ainda não conceptualizado, com o qual se supõe que iremos comparar os nossos conceitos — a ideia que Kant viu que era inútil. Mas como se relaciona esta ideia metafísica da Realidade com a realidade quotidiana, com letra minúscula, como as montanhas que estão realmente aí?
Esta é uma questão que foi enfrentada por muita filosofia depois de Kant. Rorty, entrando e saindo de referências a uma Realidade com letra maiúscula, recusa-se a responder-lhe, e é isto que está em causa: ele quer, como diz frequentemente, mudar o assunto. Ora, Rorty não está enganado quando pensa que a filosofia progride, as mais das vezes, mudando o assunto; como Bertrand Russell afirmou uma vez acerca da bruxaria, nunca se provou que não existia; deixou apenas de ser interessante. O erro de Rorty é pensar que a maneira de mudar o assunto é aparecer alguém que se limita a anunciar que o assunto mudou.
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A perspectiva algo ligeira de Rorty acerca dos elementos da mudança de paisagem intelectual é um problema dele. Mas há aqui igualmente um problema para Nagel. Por que razão, do ponto de vista de Nagel, as perspectivas do subjectivismo, do relativismo e assim por diante ganharam tanto terreno? Por que razão as coisas estão tão mal quanto ele o diz? É difícil encontrar a sua resposta no livro. Ele parece pensar apenas que por negligência e preguiça e talvez um desejo de ganhar fama as pessoas não pensam muito bem acerca destas coisas. Há nisto uma sugestão de moralismo desencantado, que por vezes dá um tom algo pomposo à sua escrita. Ele argumenta contra os seus oponentes (em grande parte não identificados) partindo de onde se situa, ao invés de ver para onde essas pessoas poderão dirigir-se e o que as atrai aí. O perigo nisto é poder não se dar conta de que as questões que discute mudaram realmente, em alguma medida. A filosofia quer tornar as coisas claras. Infelizmente, poucas coisas que sejam realmente interessantes começam por ser claras: o que precisa de ser clarificado, esta coisa nova, não pode habitualmente ser escolhido usando apenas as categorias previamente disponíveis. Isto significa que para localizar o que tem de ser compreendido, precisamos de perguntar como surgiu, e esta é uma razão pela qual a filosofia precisa da história.
A abordagem de Nagel é, claro, configurada pela história da filosofia, em grande medida pela história da filosofia recente, mas o modo como formula o que precisa de ser discutido e explicado permanece resolutamente intocado pela história. Isto está muito profundamente ligado à sua própria posição, e ao seu objectivo muito ambicioso, que na realidade não é nada menos do que fazer o relógio andar para trás em toda a filosofia moderna. Nagel resiste à tentativa de Kant de fazer a filosofia começar por uma reflexão acerca dos poderes e limites de observadores como nós. Quando Kant introduziu esta filosofia, chamou-lhe crítica. O processo de crítica a que Kant deu início acabou depois por reverter grande parte da sua própria filosofia, e entre os resultados deste processo estão as estratégias e ideias do relativismo e do subjectivismo agora comuns que Nagel encara com alarme e desagrado. É difícil continuar a partir daqui como se nada disto tivesse acontecido. Não devemos esquecer que Kant chamou dogmático ao estilo de filosofia a que conscientemente opunha a sua crítica, querendo dizer que aceitava os supostos ditames da razão pelo que parecem, sem se perguntar como se fundavam na estrutura do pensamento e da experiência humanos.
A filosofia de Nagel não é certamente dogmática em tom nem nas maneiras intelectuais: é paciente, honestamente receptiva, atenta aos argumentos e disposta a continuar a discussão com quaisquer objectores moderadamente racionais. Também não é dogmática no sentido de invocar o dogma de qualquer outra pessoa; o livro pretende-se uma defesa da razão. Contudo, no espírito da distinção de Kant, é dogmática porque não se interessa suficientemente pelas explicações. Traça limites arbitrários, pelo que me parece, às questões de reflexão que se permite que a filosofia formule.
3.
Regressemos ao princípio de Nagel de que não podemos “sair” de várias formas de pensamento e discurso. No caso da lógica, a crítica está condenada a usar a lógica até para formular uma crítica; nas ciências da natureza, como vimos, o crítico está comprometido com formas de investigação que acabam por levá-lo de volta aos argumentos que aceitam conclusões das ciências da natureza. Estas são defesas muito boas, mas é preciso perguntar: o que mostra exactamente o facto de não podermos “sair” de um dado tipo de discurso ou raciocínio, e em que medida o mostra?
Suponha-se que consideramos um mundo sem seres humanos nem as suas percepções. Algumas das descrições que, tal como as coisas são, baseamos nas nossas percepções aplicamo-las directamente a esse mundo: dizemos que os dinossauros se deslocavam entre folhas verdes, mesmo que tenham sido insensíveis às cores. Estaremos provavelmente menos dispostos a dizer que uma desventura risível de um dinossauro era (realmente) engraçada, apesar de eles, porque não tinham sentido de humor, não se deram conta. É mais provável que digamos que algumas coisas são engraçadas para nós, mas que nada era engraçado para um dinossauro. Adoptamos mais facilmente o tom relativista com respeito ao humor do que às cores. Contudo, é muito significativo que, com respeito a outros seres humanos, não é sempre assim que falamos nem sequer com respeito ao humor. Muitos dos leitores de Nagel irão pensar que grande parte do que as pessoas consideravam engraçado no passado, aquelas partidas traquinas de humilhação e brutalidade, não tinham (realmente) graça alguma.
Qual é a base destas diferenças, e quão profundas são elas? Os nossos conceitos de verdura e de comicidade estão ambos, certamente, enraizados na nossa sensibilidade e nas nossas maneiras de responder ao mundo. Em nenhum dos casos conseguimos livrar-nos completamente da ideia; não podemos dizer e pensar exactamente o que dizemos e pensamos acerca da verdura e da comicidade sem usar esses conceitos, ou outros como eles. Nesse sentido, é verdadeiro em ambos os casos que temos “de continuar como antes”: não podemos situar-nos inteiramente no seu exterior. Contudo, isso em si não parece dizer-nos seja o que for de muito profundo acerca da objectividade.
Quando considera casos destes, Nagel preocupa-se antes de mais com a redução — ou seja, com a questão de sermos capazes de nos livrarmos completamente dos nossos conceitos comuns para os substituir por conceitos que não tenham as características típicas da nossa experiência. “As reduções comportamentais e as suas descendentes”, escreve,
não são operativas na filosofia da mente porque as características fenomenológicas e intencionais que são evidentes a partir do interior da mente não são adequadamente explicadas da perspectiva puramente externa a que as teorias redutoras se limitam, devido à impressão errada de que só uma perspectiva externa é compatível com uma mundividência científica.
Podemos concordar com Nagel, contra alguns programas cientificistas de filosofia da mente, que a redução nesta forma forte não é possível para qualquer aspecto da nossa experiência que levante tais questões. De modo que o próprio facto de o reducionismo ser malsucedido não vai dizer-nos se alguns destes vários tipos de experiência são mais “objectivos” do que outros. É mais proveitoso pensar em termos de explicação do que de redução. Se perguntarmos por que razão quase todos os seres humanos consideram umas coisas ou outras engraçadas, ainda que não coincidam todos no que consideram engraçado, podemos não ter uma ideia muito boa de qual será a resposta, mas estamos razoavelmente seguros de que não incluirá considerar que há coisas engraçadas antes de as descobrirmos — coisas engraçadas em qualquer caso, como se poderia dizer.
Nagel põe também um certo peso na questão de falarmos ou não de facto de maneira relativista. Mas não é claro se se segue grande coisa de falarmos ou não dessa maneira. O caso da comicidade sugere que se em alguns casos mas não noutros preferimos a linguagem do facto e do erro objectivos à linguagem do relativismo, isso pode reflectir mais as nossas atitudes do que o conteúdo do mundo. (Talvez haja afinal algo na posição de Rorty de que pode fazer parte do nosso jogo de linguagem negar que seja uma questão de jogo de linguagem.) Reflexões semelhantes, se bem que mais complexas, estarão envolvidas quando pensamos sobre o juízo estético, que Nagel, surpreendentemente, não discute.
Quando reconhecemos que as nossas capacidades para ter vários tipos de ideias podem ser explicadas de diferentes maneiras, isto pode afectar as maneiras como entendemos as nossas discordâncias com os outros. Na medida em que a nossa disposição local para considerar algumas coisas engraçadas ou hediondas mas não outras pode ser explicada sem considerar (seriamente) que o mundo contém coisas que já são engraçadas ou hediondas, podemos também ser capazes de compreender por que outros seres humanos não coincidem necessariamente no que consideram engraçado ou hediondo. Claro que nem toda a gente concorda quanto ao que conta como explicação, ou quanto ao que precisa de explicação. Isto é importante, e irei sugerir que, em particular no caso da ética, o facto notável de Nagel estar tão seguro das suas objectividades quando outros estão tão estabelecidos nas suas suspeitas da objectividade emana em si de uma discordância acerca do que precisa de explicação.
***
Por vezes, o interesse restrito de Nagel pelas explicações parece deixá-lo desnecessariamente a pensar que algo é inexplicável. Há uma secção intrigante acerca da nossa compreensão do infinito. “Parece que ficamos com uma pergunta”, escreve, ”que não tem qualquer resposta imaginável: como é possível que seres finitos como nós tenham pensamentos infinitos [...]?” “Se há algo como a razão, é uma actividade local de criaturas finitas que de algum modo lhes permite contactar com verdades universais, muitas vezes de âmbito infinito”; um exemplo simples é o nosso conhecimento de que os números naturais são infinitos. Há uma tentação reducionista de negar que possamos apreender verdades infinitas, mas o reducionismo é inapropriado. “A ideia de reduzir o aparentemente infinito ao finito é consequentemente excluída: ao invés, o aparentemente finito tem de ser explicado em termos do infinito”.
Descartes usou um argumento mais ou menos como este para provar a existência de Deus. Raciocinou ele: “Sou um ser finito, mas tenho a ideia de um Ser infinito. Tal ideia não poderia vir de qualquer fonte finita, como eu próprio. De modo que terá de ter vindo precisamente de um Ser infinito, e o facto de eu ter esta ideia mostra que Deus existe”. Ninguém pensa que isto é um argumento muito convincente. Uma razão é que usa um princípio explicativo muito simples: qualquer pensamento com conteúdo infinito tem de ter uma causa infinita. Foi por razões semelhantes a este princípio (e que fazem parte da sua história) que Platão pensava que se reflectirmos nas nossas capacidades para o conhecimento da geometria, podemos ver que não viemos ao mundo completamente nus: há um domínio de verdade geométrica que tivemos de ter (digamos) visitado.
Há uma sugestão de algo como isto em Nagel, também, numa expressão reveladora que ele usa numa passagem que já citei: “[...] lhes permite contactar com verdades universais [...]” (itálico meu). Sejam quais forem as explicações disponíveis da capacidade humana para fazer matemática, não irão envolver verdades matemáticas da maneira extraterrestre que esta expressão sugere. Poderá realmente acontecer que só por pensar acerca da natureza da matemática podemos excluir à partida a perspectiva de que poderá haver algumas explicações biológicas, em termos latos, da nossa capacidade para pensar matematicamente? Apesar de o tema da matemática ter, é claro, uma história cultural, as capacidades básicas envolvidas têm de ser o produto da evolução pela selecção natural, ou o subproduto de outra capacidade que surgiu desse modo. (Uma coisa que as explicações evolucionistas terão de fazer é tornar claras quais são essas capacidades.)
Nagel parece negar, com efeito, que uma explicação dessas possa existir: não irá certamente “explicar o aparentemente finito em termos do infinito”, como ele exige. Nagel pressupõe, penso, que qualquer explicação científica de capacidades matemáticas teria de ser reducionista no sentido drástico de eliminar completamente das ideias matemáticas o seu conteúdo infinito, de modo que acabaríamos por negar que todo o número natural tem um sucessor e que não há um número primo maior do que todos os outros.
Qualquer explicação que tivesse essa consequência seria certamente má. Mas nada do que Nagel diz mostra que não poderia haver uma explicação melhor que ligasse as capacidades matemáticas de uma maneira iluminante com outras características que os seres humanos têm em resultado da evolução. Isto seria uma explicação naturalista, num sentido mais lato do que Nagel, pelo menos neste caso, reconhece. O que queremos, tanto aqui como noutros casos, é um naturalismo sem reducionismo. Não queremos negar as capacidades que indubitavelmente temos, mas antes explicá-las; o objectivo de explicá-las é tornar inteligível que podem ser as capacidades de criaturas como nós, que têm uma certa história evolutiva e uma etologia muito especial, que envolve cultura e uma história autoconsciente.
4.
A questão de como as explicações das nossas ideias poderão afectar a nossa compreensão delas e de nós próprios assume uma forma muito diferente e bastante urgente, quando chegamos à ética. Nagel permite em princípio que possa haver explicações nada lisonjeadoras das ideias éticas liberais:
Para usar alguns exemplos grosseiros mas conhecidos, a única resposta possível à acusação de que uma moralidade dos direitos individuais não é senão uma carga de ideologia burguesa, ou um instrumento de dominação masculina, ou que a exigência de amar o próximo é afinal uma expressão de medo do próximo, ódio e ressentimento, é considerar de novo, à luz destas sugestões, se as razões para respeitar os direitos individuais ou para cuidar dos outros podem ser sustentadas, ou se disfarçam algo que não é de modo algum uma razão. E esta é outra questão moral. Não se pode pura e simplesmente sair do domínio da reflexão moral: está simplesmente aí. Tudo o que podemos fazer é levá-la por diante à luz de sejam quais forem as novas provas históricas ou psicológicas disponíveis. É o mesmo em todo o lado. Os desafios à objectividade da ciência só podem ser enfrentados usando mais raciocínio científico, os desafios à objectividade da história só pela história, e assim por diante. [Itálicos de Nagel]
Esta é a versão ética do tema de que não podemos sair de um tipo de pensamento, de que temos de “prosseguir do mesmo modo”. Mas levanta de novo a questão do quanto se resolve com essas fórmulas. Pois o que é “do mesmo modo”? Quão diversificadas podem as “razões morais” ser? A relevância das explicações culturais, psicológicas ou económicas para os valores éticos não consiste apenas em serem desafios a todos, colectivamente. O argumento de Nagel pode dar adequadamente conta desse desafio, mas ao fazê-lo derrota na melhor das hipóteses o niilismo ético, e não entra em contacto com as preocupações dos relativistas e subjectivistas. Entre outras, as explicações culturais das crenças éticas ajudam-nos a não esquecer que estas variam de lugar para lugar e, além disso, que as nossas próprias crenças têm uma história peculiar e provavelmente também uma psicologia peculiar. Essas considerações deveriam fazer-nos pensar de maneira diferente e mais reflexiva não apenas acerca do conteúdo das nossas crenças mas também acerca do estilo que usamos para argumentar a seu favor.
Em particular, há a questão de como pensamos acerca das nossas diferenças éticas relativamente a outras culturas, como aqueles povos do passado que não partilham o nosso liberalismo; escreve Nagel:
Perante o facto de os valores [liberais] se terem tornado comuns só recentemente e não em todo o lado, é preciso ainda decidir se são correctos — se devemos continuar a cultivá-los [...] Persiste a questão [...] de eu estar ou não errado caso tivesse aceitado como natural, e consequentemente justificado, as desigualdades de uma sociedade de castas [...]
Mas quanto tenho de decidir? Há aqui uma distinção crucial. Nagel está coberto de razão ao dizer que o liberal, se o for realmente, tem de aplicar o seu liberalismo ao mundo que o rodeia, e o conhecimento de que poucas pessoas na história do mundo foram liberais não é em si uma razão para abandonar o liberalismo. Se há razões para isso, terão de ser o género de considerações que sugerem que há algo melhor, mais convincente, ou mais inspirador em que acreditar. Nisto, concordo inteiramente com Nagel — ainda que se deixe de fora uma questão interessante, a de saber por que razão as pessoas tendem a perder as suas convicções deste modo, tema a que regressarei.
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Assim, o liberal tem de levar as suas ideias a sério e considerar que se aplicam ao mundo. Mas a quanto do mundo? Segue-se, como Nagel diz, que “perante a descrição de uma sociedade tradicional de castas, tenho de me perguntar se as suas desigualdades hereditárias têm justificação [...]”? A maior parte de nós concordará que se nos for apresentada uma sociedade assim, como facto real, temos de nos fazer aquela pergunta. Mas será o mesmo se nos for apresentada uma descrição de uma sociedade assim, do passado distante, suponha-se, pertencente ao mundo antigo? Claro que ao pensar acerca desta sociedade antiga posso levantar a questão de Nagel, mas será verdadeiro que a força da razão exige que tenha de fazê-lo, e o que quer essa questão dizer? “Teria eu estado errado se tivesse aceitado que as suas desigualdades têm justificação?” — Mas quem estaria errado? Tenho de pensar que estou a visitar em juízo todos os recantos da história? Claro que podemos imaginar-nos como Kant na corte do Rei Artur, condenando as suas injustiças, mas que tracção tem isto exactamente no nosso pensamento ético?
Em particular, será realmente possível que se faça esta viagem imaginária só com a bagagem mínima da razão? Concedendo o facto notável de que ninguém tinha a mundividência liberal nessa altura, o viajante ético do tempo tem de levar consigo implicitamente a experiência histórica que fez dele o liberal que é, e essa experiência não pertence ao lugar que está visitando.
A ideia básica de que vemos as coisas como vemos devido à nossa situação histórica ficou ao longo de duzentos anos tão profundamente inserida na nossa perspectiva que é ao invés o pressuposto universalista de Nagel que pode parecer estranho, a ideia de que, de modo auto-evidente, o juízo moral tem de ter toda a gente em todo o lado igualmente como objecto. Parece igualmente estranho quando pensamos em viajar na direcção oposta. “Raciocinar é pensar sistematicamente de maneira tal que qualquer pessoa olhando por cima do meu ombro possa reconhecer que é correcta”, afirma Nagel perto do início do livro. Qualquer pessoa? Aqui estou raciocinando, com Nagel, de maneira liberal, e Luís XIV está olhando por cima dos nossos ombros. Ele não reconhecerá que os nossos pensamentos são correctos. Deveria fazê-lo? Ou, mais precisamente, deveria tê-lo feito quando estava no seu próprio mundo e ainda não tinha enfrentado a tarefa de tentar dar sentido ao nosso?
Somos reenviados à exigência de explicações. Se o liberalismo for correcto e caso se baseie na razão humana universal, como Nagel parece pensar, por que razão noutros tempos não o teve em consideração nem o aceitou? Kant tinha uma resposta na sua teoria do progresso e do iluminismo: os seres humanos tinham ultrapassado um longo período de tutelagem, e pela primeira vez podiam decidir racionalmente como haveriam de viver. Hegel e Marx deram respostas relacionadas, se bem que mais conflituosas, formuladas em termos históricos e económicos.
Nagel não sugere qualquer resposta e não parece querer uma resposta. Eu diria que Nagel não tem uma “teoria do erro” do que ele denomina correcção moral, mas quer o formule desse modo quer não, é certo que não tem uma explicação de algo que claramente o exige. Ele não pode dar como garantido que as explicações de várias crenças éticas irão no máximo mudar os seus conteúdos, do modo ilustrado pelo exemplo anódino dos peitos descobertos que já mencionei. Se viermos a compreender histórica e psicologicamente como as nossas próprias ideias éticas, assim como as dos outros, surgiram, isto pode mudar a maneira como pensamos acerca do estatuto das nossas ideias, e acerca da relação que têm com as das outras pessoas. Negligenciar esta possibilidade parece-me constituir uma forma de dogmatismo no sentido de Kant, uma recusa do tipo de crítica que fez da filosofia moderna (incluindo as deformações que Nagel correctamente rejeita) o que ela é.
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Os leitores do livro de Nagel irão procurar pistas da perspectiva subjacente que o apoia nesta abordagem. Com respeito à ética, estou impressionado com dois dos seus pressupostos. Um deles é que se não considerarmos que a nossa moralidade é universalmente aplicável a toda a gente, não podemos aplicá-la com confiança onde temos na verdade de a aplicar, às questões do nosso próprio tempo. Afirmei que algumas pessoas parecem pensar que se o liberalismo é uma ideia recente e as pessoas do passado não eram liberais, elas próprias deveriam perder confiança no liberalismo aplicado ao mundo moderno. Isto, afirma Nagel, é um erro. Mas por que razão o liberal sem confiança o comete? Suspeito que é precisamente porque concorda com o universalismo de Nagel: pensa que se uma moralidade é correcta, tem de aplicar-se a toda a gente. De modo que se o liberalismo for correcto, tem de aplicar-se a todas aquelas pessoas do passado que não eram liberais.
Por que razão elas mesmas não o pensaram? Há quem diga que é porque eram colectivamente malévolas e egoístas; o liberal sem confiança pensa (correctamente) que isso é uma tolice que não explica coisa alguma. Há também quem acredite no progresso iluminado e que pense que era porque as pessoas do passado não dispunham de informação de qualidade, eram supersticiosas, etc. Mas o liberal sem confiança perdeu a fé nas ideias de progresso iluminado, e (muito razoavelmente) não consegue ver como os avanços na ciência e na tecnologia revelaram a verdade acerca do liberalismo. Ele fica com menos certezas de que o liberalismo se aplique a essas pessoas do passado, afinal de contas. De modo que começa a pensar que o liberalismo não pode estar correcto. Essa não é a conclusão que deveria tirar; o que deveria fazer é abandonar a crença universalista que partilha com Nagel. Isto não quer dizer que temos de ir dar a uma posição de ironia, sustentando o liberalismo como liberais, mas afastando-nos dele como críticos reflectidos. Esta posição está ela mesma ainda sob a sombra do universalismo. Só temos de reconhecer que novos tempos acarretam novas necessidades e novos poderes. Em muitos aspectos importantes, não somos como quaisquer outras pessoas do passado, e um desses aspectos é que temos ideias liberais, e maneiras de viver a que essas ideias se aplicam.
Uma segunda razão a favor da posição de Nagel na ética é, penso, o seu rígido entendimento do que é “continuar da mesma maneira”. Ele menciona, a certo ponto, a possibilidade de toda uma actividade ou maneira de continuar poder ser racionalmente rejeitada: dá o exemplo quase desafiadoramente trivial da leitura de folhas de chá. Ele pensa presumivelmente que essas coisas são apropriadamente rejeitadas porque são operações primitivas do pensamento que estão na mesma linha de actividade da ciência, e que a ciência se sai melhor. Mas quem disse que esta era a linha de actividade relevante? Como os antropólogos insistem, há outras maneiras de olhar para práticas como o augúrio. O que determina qual de várias práticas diferentes conta como “a mesma maneira de continuar”? Uma coisa é clara: os praticantes não podem simplesmente determiná-lo por si. O oráculo idoso entre os Azende diz: “É isto que conta como oráculo, e eu não considero que o que estes recém-chegados fazem seja o mesmo”. Mas apesar disso os seus clientes talvez se mudem para o novo hospital.
De modo que Nagel diz: o conteúdo da minha moralidade pode ser modificada por novas descobertas, mas esta maneira de argumentar, esta empresa universalista e racional, é exactamente o que conta como moralidade. Isto determina o que é continuar da mesma maneira. Então os oponentes de Nagel, os naturalistas e os herdeiros insatisfeitos da crítica de Kant, respondem: você não consegue pura simplesmente determinar o que conta como o mesmo. Dizemos que a sua moralidade peculiar tem propósitos: sem mencionar os menos amigáveis, tenta ajudar-nos a viver juntos, a formular imagens de uma vida que valha a pena viver, a dar sentido aos nossos desejos em relação aos desejos e necessidades das outras pessoas, e assim por diante. Tem havido outras maneiras de fazer estas coisas, e haverá sem dúvida outras no futuro. Porque o compreendemos, somos nós que num sentido mais abrangente continuamos da mesma maneira, vivendo o melhor que conseguimos orientando-nos pelo que faz sentido agora, sem esquecer que nem sempre fez sentido, tentando pôr a descoberto pistas de coisas novas que ninguém pode ainda compreender. O que você chama “continuar da mesma maneira” representa apenas um estilo de pensamento ético, estilo esse, em particular, que tenta esquecer que tem uma história.
Claro que quem pensa nestes termos não pode determinar, tal como Nagel também não pode fazê-lo, o que conta — o que terá contado — como continuar da mesma maneira ética. Nada pode fazê-lo, em última análise, exceto o próprio futuro. A Última Palavra, como sempre, está no que efetivamente surgir.
Notas
1. Nagel tem uma secção (p. 92 ss.) sobre o “idealismo transcendental” de Kant, defendendo que não pode evitar ser uma teoria empírica (inacreditável). Isto é certamente contrário às intenções de Kant. Pode-se compreendê-lo de uma maneira mais caridosa como alguém que não nega a ideia de que o mundo é, como ele próprio diz, “empiricamente real”, investigando ao invés qual é conteúdo que essa mesma ideia tem de ter, e como somos capazes de pensá-la.
2. Trata-se de um projecto de defesa balística norte-americana que permitiria, em teoria, eliminar quaisquer mísseis lançados contra os EUA. O sistema nunca passou do papel porque nunca se mostrou exequível. N. do T.
3. Por exemplo, mesmo Barry Barnes, David Bloor e John Henry, que estão associados ao denominado “programa forte” na sociologia do conhecimento científico, que dá ênfase aos factores sociais na formação e aceitação de teorias, rejeitam o “idealismo”, e insistem que uma explicação sociológica tem de pressupor as interacções entre a ciência e a realidade. Veja-se Scientific Knowledge: A Sociological Analysis (Londres: Athlone, 1906), pp. 1, 32.
4. Como o de Andrew Pickering, Constructing Quarks (Edinburgh University Press, 1984). Como o título leva a esperar, o próprio Pickering diz por vezes coisas como “[...] a realidade dos quarks foi o resultado da prática dos físicos de partículas [...]”, que não é uma maneira prudente de exprimir a sua conclusão (a década de setenta do século XX é um pouco tardia para o aparecimento dos quarks no universo), mas deve encorajar-nos a pensar noutras maneiras melhores de o exprimir. (Agradeço aqui a Ian Hacking, que discute estas matérias no seu próximo livro, The Social Construction of What? (Harvard University Press, 1999).
5. Citado por Pickering, p. 414.
6. Richard Rorty, “Does Academic Freedom Have Philosophical Presuppositions?” Academe (Novembro–Dezembro de 1994), pp. 56–57; citado por Nagel, pp. 29-30.
Algumas das pessoas que o dizem, os relativistas de Nagel, deixam as coisas nesse pé: “Esta é a nossa maneira de ver as coisas, mas quem somos nós para dizer que essas outras estão erradas?” Aqueles de nós que são subjectivistas vão um pouco mais longe, e dizem que quem discorda connosco está errado; mas estão muito impressionados com a ideia de que não há qualquer ponto objectivo a partir do qual se possa resolver a discordância. Outros, ainda mais cépticos, consideram que podemos prescindir completamente de “verdadeiro”, “errado”, e assim por diante, excepto como decoração ou retórica, e incitam-nos a ver estas discordâncias e argumentos simplesmente como um género ou outro de política.
Nagel quer mostrar, contra todas estas posições, que “a compreensão e a justificação chegam ao fim [...] com princípios objectivos cuja validade é independente do nosso ponto de vista”. Ele quer dizer que se o argumento entre posições ou interpretações conflituantes fosse levado suficientemente longe, e se os participantes fossem completamente racionais, teriam de aceitar uma ou outra das resoluções do debate, ou pelo menos concordar entre eles que por razões mutuamente inteligíveis o debate não poderia ser resolvido. Não poderiam recuar limitando-se a explicar o perfil de cada um em termos psicológicos, sociais ou políticos.
Ao avançar estas ideias, Nagel considera que está a abordar uma questão intelectual e cultural importante, e está. Mas deve-se dizer desde já que A Última Palavra é uma obra de reflexão filosófica, e não uma diatribe. O livro é um contributo significativo para as guerras culturais do nosso tempo, em particular para as disputas recorrentes e desorganizadas sobre até que ponto a compreensão e o argumento objectivos podem ser resgatados da suspeita céptica (que sustenta que um pensador sofisticado não deve acreditar em praticamente coisa alguma) e, igualmente, de um relativismo promíscuo (que permite acreditar em praticamente seja o que for de que se goste). Mas no texto de Nagel não há grande coisa que mostre como se relaciona com qualquer controvérsia particular. Praticamente os únicos exemplos que dá do que está em causa são uma citação apropriadamente auto-refutante de Richard Rorty (a que chegarei) e, em questões de ética, algumas opiniões minhas. Os leitores que estavam à espera de ver os seus amigos ou inimigos vilificados ficarão desapontados.
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Nestas discussões, quem somos “nós”? Será toda a afirmação de que as nossas compreensões são relativas a “nós” igualmente ameaçadora? Quando reflectimos no que “nós” acreditamos, em particular com respeito a questões culturais e éticas, temo-nos muitas vezes em mente (como os relativistas) como membros de sociedades industriais modernas, ou de um grupo ainda mais restrito, em contraste com outros seres humanos de outros tempos e lugares. Esse “nós” é, como dizem os linguistas, “contrastante” — escolhe-nos a “nós” em oposição aos outros. Mas “nós” pode ser entendido de maneira inclusiva, para abraçar seja quem for que partilha, ou poderá partilhar, a actividade de investigar o mundo. Alguns filósofos sugeriram que no nosso pensamento está sempre suposto um “nós” deste tipo inclusivo; segundo eles, quando os cosmologistas fazem afirmações sobre como é o universo “em si”, não estão a abstrair completamente da experiência possível, mas antes implicitamente a falar do modo como as coisas pareceriam aos investigadores que fossem pelo menos suficientemente como nós para que os reconhecêssemos, em princípio, como investigadores.
Se esses filósofos têm ou não razão ao pensar que todas as nossas concepções são relativas a um “nós” entendido desta maneira abstractamente inclusiva, é certamente uma questão importante em metafísica. Mas terá importância para as guerras da cultura e para as disputas acerca do relativismo e do subjectivismo que constituem a verdadeira preocupação de Nagel? Afirma ele que está atacando a ideia de que não podemos em última análise ir além de uma concepção do mundo tal como nos parece a nós. Contudo, o que é realmente perturbador acerca dos relativistas e subjectivistas não é certamente esta ideia em si, mas antes a sua insistência em entender-nos a “nós” de uma maneira muito local e paroquial. As suas sugestões — feitas pelo menos pelos mais radicais — de que todas as nossas ideias, incluindo as nossas teorias em cosmologia, são apenas formações culturais locais, e que não há uma “verdade da questão” acerca de coisas como a história, são realmente desencorajantes e têm implicações culturais profundas porque sugerem que não há padrões partilhados na base dos quais nós como seres humanos possamos compreendermo-nos uns aos outros — que não há qualquer “nós” inclusivo, mas apenas o contrastante.
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Estes problemas acerca do alcance da compreensão humana, como muitos outros na filosofia moderna, remontam a Kant. Este filósofo ficou correctamente impressionado pela ideia de que caso perguntemos se temos uma concepção correcta do mundo, não podemos sair inteiramente das concepções e teorias que efectivamente temos para compará-las com um mundo que não esteja de algum modo conceptualizado, um “seja o que for que há” sem adornos. Concluiu que não podemos ir além de conceber o mundo como poderia aparecer a criaturas parecidas connosco pelo menos na medida em que sejam observadores inteligentes, de modo que pertencem ao “nós” maximamente inclusivo. No pensamento moral, contudo, Kant suponha que a situação era diferente. Não considerava que a moralidade fosse uma questão de conhecimento. Tratava, ao invés, de princípios práticos que obrigam qualquer pessoa racional ao lidar com outras pessoas racionais, e isto conduz ao resultado, à primeira vista surpreendente, de que para Kant a moralidade está menos relativizada aos modos como o mundo nos afecta do que a ciência. A moralidade de Kant aplica-se-nos apenas porque somos criaturas racionais. O “nós” da moralidade é potencialmente mais lato do que o grupo que poderia partilhar a ciência.
Nagel é simpático à perspectiva kantiana desavergonhadamente racionalista da ética, mas pensa que a revolução de Kant na compreensão da ciência e do nosso conhecimento quotidiano do mundo foi o princípio da decadência.1 Mais do que qualquer outra pessoa, Kant é o “moderno” do “pós-moderno”, e há uma longa história (que Nagel não conta aqui) de como, depois de Kant, a reflexão crítica sobre as nossas relações com o mundo acabaram por varrer as garantias do próprio Kant acerca do que podemos saber e do que devemos fazer. As afirmações morais, as disciplinas humanísticas da história e da crítica, e a própria ciência natural, passaram a parecer a alguns críticos alheias ao assentimento razoável de todos os seres humanos. São ao invés vistas como produtos de grupos no seio da humanidade, exprimindo as perspectivas desses grupos. Há quem considere que a autoridade do discurso supostamente racional é em si mera autoridade, um constructo de forças sociais.
Noutra reviravolta ainda, a reflexão acerca desta situação pode levar a um relativismo que dá um passo atrás perante quaisquer perspectivas e as vê a todas à mesma distância — são todas verdadeiras, nenhuma o é, cada qual é verdadeira para os seus próprios partidários. Acabamos então por chegar ao tipo de encantamento produzido por quem, citado por Alan Sokal numa reunião em Nova Iorque acerca do seu embuste, insiste que não há qualquer questão de facto sobre se os nativos americanos chegaram originalmente ao continente atravessando o Estreito de Bering, ou se ascenderam do centro da Terra; ambas as perspectivas são verdadeiras (para alguém, ou algo assim).
Isto é o tipo de entulho que se encontra nas praias mais distantes daquilo a que Nagel se opõe, mas ele é igualmente contra seja o que for que se encontre nessa direcção; isto é, seja o que for que considera que as crenças ou afirmações, que é de entender que versam directamente sobre o modo como as coisas são, não passam de afirmações que dependem de “nós” — quer “nós” queira dizer os seres humanos e quaisquer seres que possamos compreender, como no caso de Kant; quer queira dizer apenas os seres humanos; quer queira dizer nós aqui e agora; ou talvez alguns de nós aqui e agora, como em várias interpretações pós-modernas. Nagel não está muito interessado nas diferenças entre os entendimentos mais latos e mais restritos de “nós”, tal como não está muito interessado em identificar teóricos particulares de tendência relativista ou subjectivista. Quer livrar-se da ideia de que as verdades aparentemente objectivas dependem em qualquer sentido de “nós”. Ele pensa que tem um conjunto de considerações inteiramente gerais e abstractas que o fazem, e que nos irá persuadir de que a razão e a objectividade devem ter a “Última Palavra” que surge no título.
2.
A ideia básica de Nagel é que seja qual for o tipo de afirmação da qual se diz que é apenas localmente válida e que é produto de forças sociais particulares — seja a moralidade que está a ser criticada deste modo, ou a história, ou a ciência — o relativista ou subjectivista que oferece esta crítica terá de fazer outra afirmação qualquer, que terá em si de ser entendida como algo que não é meramente local mas antes como algo que é objectivamente válido. Além disso, em todos os casos que interessam, esta afirmação adicional terá de ser do mesmo tipo das que as que estão sendo criticadas: a crítica da moralidade por parte dos relativistas tem de comprometê-los com afirmações de moralidade objectiva, as suas tentativas de mostrar que a ciência consiste em preconceito local tem de fazer apelo à ciência objectiva e assim por diante.
Regressaremos a alguns detalhes da ideia básica de Nagel, e como se sai na prática. Primeiro, contudo, há algumas questões acerca desta abordagem e acerca do estilo de argumento muito geral que ele usa. Se ele tiver razão quanto a esta abordagem, consegue pôr fim ao ataque subjectivista e relativista antes de este se aproximar muito de qualquer alvo em particular. Isto tem a mesma vantagem do proposto sistema de defesa chamado Star Wars:2 se funcionar, as explosões ocorrem na estratosfera e nada do que nos importa fica danificado. Mas tem a mesma desvantagem: se não funcionar e não houver a garantia de a intercepção ocorrer, não há maneira de saber quantas das coisas que nos importam irão sobreviver.
Esta é uma das razões pelas quais esta estratégia me parece mal concebida: nem tudo o que é ameaçado pelo subjectivismo, ou pelo relativismo, ou pelo naturalismo, está na mesma situação. Alguns dos tipos de ideias que têm sido postas em causa destas maneiras têm menos hipóteses de enfrentar o ataque do que outras. Partes da nossa moralidade, por exemplo, ou das nossas narrativas históricas de mais longa duração, ou dos nossos modelos de compreensão pessoal de nós próprios, estão mais abertos à suspeita, estão mais sujeitos a que se mostre de um modo inquietante que dependem de um “nós” restrito e paroquial, do que a nossa ciência ou a nossa lógica. Caso as coisas sejam assim, não pode ser devido a razões inteiramente gerais que se aplicam tanto a estes como a outros tipos de ideias. Será devido a razões específicas delas. Além disso, pode ser por razões específicas delas neste momento: como acontece com outras doenças, não é provável que os diagnósticos que ignoram a sua história sejam bem-sucedidos.
Além disso, são as nossas próprias doenças. Outra razão pela qual, ao que me parece, a estratégia de Nagel é inadequada é que instala um sistema de defesa de longa distância, muitíssimo poderoso e de total abrangência para entrar no que na verdade é uma guerra de guerrilha. Os irracionalistas ou relativistas ou cépticos estão entre nós. Não tenho em mente a situação de Invasion of the Body Snatchers sugerida por alguns conservadores fantasistas da universidade, que parecem pensar que os departamentos de literatura receberam secretamente casulos que deram origem a criaturas que tomaram o lugar dos académicos. Tenho em mente que as sementes do cepticismo estão prontas a germinar seja em quem for que pense seriamente acerca da nossa situação intelectual e cultural, tal como é agora. Nagel tem perfeitamente razão quando diz que estes tipos de cepticismo não podem tornar-se totais, deste lado da insanidade. Para que pensemos de todo em todo, não podemos considerar que a lógica, ou a ciência, ou a história, são apenas fantasias locais. Mas a questão difícil é até onde o cepticismo ou o relativismo podem ir sem sair do lado certo da insanidade, e (para mudar a metáfora militar) a política de Nagel eles não irão passar! não me parece ser uma ajuda suficiente para lhe dar uma resposta.
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Nagel exprime a sua ideia básica dizendo que há algumas ideias “da quais não podemos sair”. Para nos entendermos, e mais em particular, para chegar à conclusão de que alguns dos nossos pensamentos ou crenças ou experiências são meras “aparências”, uma função do que somos e não do que as coisas são, há outros juízos que temos de pensar “directamente” — ou seja, de um modo que nos compromete com a sua verdade objectiva. Se pudermos considerar que algumas das nossas ideias são meras aparências, isto implica que temos uma perspectiva objectiva do mundo ao qual pertencemos — um mundo que está realmente aí — juntamente com essas aparências. Na medida em que depende de assumir uma “perspectiva externa de nós mesmos”, “desacreditar afirmações universais da razão por serem meramente subjectivas ou relativas tem em si limites inevitáveis”. Há, diz Nagel,
alguns tipos de pensamentos que não podemos simplesmente evitar ter — que é estritamente impossível considerar apenas a partir de fora, porque entram inevitável e directamente em qualquer processo em que nos consideremos a partir de fora, permitindo-nos construir a concepção de um mundo em que, em termos de facto objectivo, nós estamos inseridos, juntamente com as nossas impressões subjectivas. [itálicos de Nagel]
Há, insiste Nagel, limites à abrangência da crítica aos nossos pensamentos que podemos levar a cabo de um ponto de vista desalojado. Podemos de facto chegar à conclusão de que algumas das nossas crenças aparentemente objectivas são expressão de uma qualquer peculiaridade local:
Uma pessoa que tenha sido educada para acreditar que é errado as mulheres exporem os seus peitos pode vir a dar-se conta a certo ponto de que isto é uma convenção da sua cultura, e não uma verdade moral sem restrições. Claro que pode continuar a insistir, depois de examinar as provas antropológicas, históricas e sociológicas, que é errado em si que as mulheres exponham os seus peitos [...] Mas é improvável que esta reacção sobreviva ao confronto; não tem base suficiente em que se apoiar [...]
Se a crença original desaparecer nesse caso, a mudança terá sido produzida por meio de outroargumento moral. De modo que as reflexões deste género não poderiam possivelmente reduzir toda a crença e argumento morais a conjuntos de peculiaridades locais. O mesmo se aplica, pensa Nagel, a todas as áreas de pensamento que ele toma em consideração. Não se pode em última análise sair destes géneros de pensamento. Temos de continuar da mesma maneira. No fim, seja quem for que tente defender a objectividade numa dada área, acabará por fazer afirmações nessa área que, uma vez mais, têm de ser entendidas como objectivas.
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Um caso que ilustra os méritos da ideia de Nagel, mas também os limites desta abordagem totalmente geral, é o da objectividade da ciência. Ele põe esta questão em termos de uma escolha entre duas perspectivas igualmente abstractas. Uma é a atitude “realista” assumida pela maior parte das pessoas, incluindo muitos cientistas, segundo a qual há um mundo cuja existência é independente de todos nós, e que tem um carácter determinado que as teorias dos cientistas tentam captar. A outra é a “tentativa de reconstruir a imagem ordenada do mundo como uma projecções mental da nossa parte”. (Esta reconstrução, presumo, pode assumir ou não uma forma relativista, dependendo de como se entende “nossa”, mas Nagel não está muito preocupado com o relativismo neste caso.) Esta segunda perspectiva, defende Nagel,
naufraga na necessidade de nos colocarmos no mundo que foi ordenado desse modo. Ao tentar dar sentido a esta relação, somos inevitavelmente levados a usar o mesmo tipo de raciocínio, baseado na procura da ordem. Mesmo que decidamos que algumas das nossas apreensões de ordem são ilusões ou erros, isso será porque uma teoria melhor, pelos mesmos padrões, pode eliminá-los explicativamente.
Neste nível muitíssimo geral, Nagel tem de ter razão. É impossível que alguém saia completamente, ou “localize”, ou repudie por ser paroquial o pensamento realista acerca do mundo, ou na verdade as tentativas de compreendê-lo por meio de alguns princípios de ordem. Quem o tenta, para defender o que quer, terá de assumir os compromissos de pensar e falar das maneiras que está a tentar pôr de lado.
Contudo, não é claro o que nos diz isto exactamente. Escreveram-se muitas coisas sobre o realismo científico e as suas alternativas. Tem havido e sem dúvida há ainda autores, na sua maior parte ignorantes de ciência, que parecem pensar que a ciência é apenas inventada, ou determinada por forças ideológicas. Porém, são pouquíssimos os que sabem alguma coisa da área que o pensam.3 O que está em causa é, ao invés, que a ciência é uma actividade social complexa, e o facto de alguns ramos da ciência num dado momento se fixarem em certas teorias ou modelos em vez de outros não é um resultado directamente determinado pela percepção do mundo, mas antes pelos hábitos e práticas dos cientistas, incluindo as maneiras que têm de seleccionar e interpretar as observações. Este não é um aspecto filosófico abstracto; é a conclusão de estudos históricos detalhados.4
O próprio Nagel, de facto, parece disposto a aceitar isto; não tem inclinação para pensar que o mundo, com um tudo-nada de encorajamento experimental, se insere a si próprio nas revistas científicas. Mas não enfrenta a questão de onde exactamente nos deixa isso. Dados os limites do que Nagel afirma aqui, poderíamos concordar com Lichtenberg que “a nobre simplicidade da natureza repousa demasiadas vezes na simplicidade nada nobre de quem pensa que a viu”.5 Se esta ordem de ideias for correcta, quem ou o quê exactamente tem a “última palavra”? A nossa ciência ocupa-se do mundo, mas isso deixa espaço para a reflexão de que contudo é muito mais uma função de “nós” do que ingenuamente se supõe. Como acontece amiúde com estas questões — como as imagens que temos do passado ou a compreensão das outras pessoas — a questão não é se apreendemos algo objectivamente, mas quanto o apreendemos, e a resposta pode ser tão obscura que nos deixa com alguma da ansiedade que, penso, a estratégia de Nagel pretende dissipar.
***
Seja como for, Nagel mostra realmente que ninguém pode repudiar completamente o discurso científico; se alguém disser, por exemplo, que a ciência não é senão a nossa mitologia local, precisará de uma imagem do mundo que contém pessoas e as suas mitologias, e para poder manter essa imagem terá de dirigir-se à ciência. Nagel denuncia também com eficácia um estilo conhecido de tentativa de repudiar um certo tipo de discurso ao mesmo tempo que se tenta ficar no seu seio. Richard Rorty gosta muito deste tipo de afirmação. Escreve ele, por exemplo:
O que pessoas como Kuhn, Derrida e eu acreditamos é que é irrelevante perguntar se há realmente montanhas ou se é apenas conveniente falar delas [...] Dado que é vantajoso falar delas, como certamente o é, uma das verdades óbvias acerca das montanhas é que já estavam aqui antes de falarmos delas. Se o leitor não acredita nisso, provavelmente não sabe jogar os jogos de linguagem habituais que usam a palavra “montanha”. Mas a utilidade desses jogos de linguagem não tem coisa alguma a ver com a questão de a Realidade Tal Como É Em Si ter montanhas, sem ter em consideração a vantagem para os seres humanos de descrevê-la desse modo.6
Nagel insiste com razão que Rorty e os seus amigos fariam melhor em clarificar as coisas (mais do que nesta passagem) acerca das montanhas. Sem dúvida que é prático para os seres humanos ter palavras para montanhas, mas é muito difícil explicar por que razão isso acontece sem mencionar o facto de haver montanhas. É revelador, também — e Nagel poderia ter acrescentado isto como ilustração do seu argumento geral — que Rorty aceita sem questionar que vale a pena falar acerca de montanhas. Não se limita a dizer que vale a pena falar acerca de valer a pena falar acerca de montanhas.
Talvez devido ao mesmo escrúpulo que o faz não citar grande parte daquilo a que se opõe, Nagel mantém-se a alguma distância dos argumentos de Rorty. Não aprova os seus erros. Mas Rorty não se limita a cair em erro; coloca-se nele. E vale a pena ver mais de perto a sua retórica. As letras maiúsculas que Rorty outorga à “Realidade Tal Como É Em Si” sugere a ideia metafísica de um mundo ainda não conceptualizado, com o qual se supõe que iremos comparar os nossos conceitos — a ideia que Kant viu que era inútil. Mas como se relaciona esta ideia metafísica da Realidade com a realidade quotidiana, com letra minúscula, como as montanhas que estão realmente aí?
Esta é uma questão que foi enfrentada por muita filosofia depois de Kant. Rorty, entrando e saindo de referências a uma Realidade com letra maiúscula, recusa-se a responder-lhe, e é isto que está em causa: ele quer, como diz frequentemente, mudar o assunto. Ora, Rorty não está enganado quando pensa que a filosofia progride, as mais das vezes, mudando o assunto; como Bertrand Russell afirmou uma vez acerca da bruxaria, nunca se provou que não existia; deixou apenas de ser interessante. O erro de Rorty é pensar que a maneira de mudar o assunto é aparecer alguém que se limita a anunciar que o assunto mudou.
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A perspectiva algo ligeira de Rorty acerca dos elementos da mudança de paisagem intelectual é um problema dele. Mas há aqui igualmente um problema para Nagel. Por que razão, do ponto de vista de Nagel, as perspectivas do subjectivismo, do relativismo e assim por diante ganharam tanto terreno? Por que razão as coisas estão tão mal quanto ele o diz? É difícil encontrar a sua resposta no livro. Ele parece pensar apenas que por negligência e preguiça e talvez um desejo de ganhar fama as pessoas não pensam muito bem acerca destas coisas. Há nisto uma sugestão de moralismo desencantado, que por vezes dá um tom algo pomposo à sua escrita. Ele argumenta contra os seus oponentes (em grande parte não identificados) partindo de onde se situa, ao invés de ver para onde essas pessoas poderão dirigir-se e o que as atrai aí. O perigo nisto é poder não se dar conta de que as questões que discute mudaram realmente, em alguma medida. A filosofia quer tornar as coisas claras. Infelizmente, poucas coisas que sejam realmente interessantes começam por ser claras: o que precisa de ser clarificado, esta coisa nova, não pode habitualmente ser escolhido usando apenas as categorias previamente disponíveis. Isto significa que para localizar o que tem de ser compreendido, precisamos de perguntar como surgiu, e esta é uma razão pela qual a filosofia precisa da história.
A abordagem de Nagel é, claro, configurada pela história da filosofia, em grande medida pela história da filosofia recente, mas o modo como formula o que precisa de ser discutido e explicado permanece resolutamente intocado pela história. Isto está muito profundamente ligado à sua própria posição, e ao seu objectivo muito ambicioso, que na realidade não é nada menos do que fazer o relógio andar para trás em toda a filosofia moderna. Nagel resiste à tentativa de Kant de fazer a filosofia começar por uma reflexão acerca dos poderes e limites de observadores como nós. Quando Kant introduziu esta filosofia, chamou-lhe crítica. O processo de crítica a que Kant deu início acabou depois por reverter grande parte da sua própria filosofia, e entre os resultados deste processo estão as estratégias e ideias do relativismo e do subjectivismo agora comuns que Nagel encara com alarme e desagrado. É difícil continuar a partir daqui como se nada disto tivesse acontecido. Não devemos esquecer que Kant chamou dogmático ao estilo de filosofia a que conscientemente opunha a sua crítica, querendo dizer que aceitava os supostos ditames da razão pelo que parecem, sem se perguntar como se fundavam na estrutura do pensamento e da experiência humanos.
A filosofia de Nagel não é certamente dogmática em tom nem nas maneiras intelectuais: é paciente, honestamente receptiva, atenta aos argumentos e disposta a continuar a discussão com quaisquer objectores moderadamente racionais. Também não é dogmática no sentido de invocar o dogma de qualquer outra pessoa; o livro pretende-se uma defesa da razão. Contudo, no espírito da distinção de Kant, é dogmática porque não se interessa suficientemente pelas explicações. Traça limites arbitrários, pelo que me parece, às questões de reflexão que se permite que a filosofia formule.
3.
Regressemos ao princípio de Nagel de que não podemos “sair” de várias formas de pensamento e discurso. No caso da lógica, a crítica está condenada a usar a lógica até para formular uma crítica; nas ciências da natureza, como vimos, o crítico está comprometido com formas de investigação que acabam por levá-lo de volta aos argumentos que aceitam conclusões das ciências da natureza. Estas são defesas muito boas, mas é preciso perguntar: o que mostra exactamente o facto de não podermos “sair” de um dado tipo de discurso ou raciocínio, e em que medida o mostra?
Suponha-se que consideramos um mundo sem seres humanos nem as suas percepções. Algumas das descrições que, tal como as coisas são, baseamos nas nossas percepções aplicamo-las directamente a esse mundo: dizemos que os dinossauros se deslocavam entre folhas verdes, mesmo que tenham sido insensíveis às cores. Estaremos provavelmente menos dispostos a dizer que uma desventura risível de um dinossauro era (realmente) engraçada, apesar de eles, porque não tinham sentido de humor, não se deram conta. É mais provável que digamos que algumas coisas são engraçadas para nós, mas que nada era engraçado para um dinossauro. Adoptamos mais facilmente o tom relativista com respeito ao humor do que às cores. Contudo, é muito significativo que, com respeito a outros seres humanos, não é sempre assim que falamos nem sequer com respeito ao humor. Muitos dos leitores de Nagel irão pensar que grande parte do que as pessoas consideravam engraçado no passado, aquelas partidas traquinas de humilhação e brutalidade, não tinham (realmente) graça alguma.
Qual é a base destas diferenças, e quão profundas são elas? Os nossos conceitos de verdura e de comicidade estão ambos, certamente, enraizados na nossa sensibilidade e nas nossas maneiras de responder ao mundo. Em nenhum dos casos conseguimos livrar-nos completamente da ideia; não podemos dizer e pensar exactamente o que dizemos e pensamos acerca da verdura e da comicidade sem usar esses conceitos, ou outros como eles. Nesse sentido, é verdadeiro em ambos os casos que temos “de continuar como antes”: não podemos situar-nos inteiramente no seu exterior. Contudo, isso em si não parece dizer-nos seja o que for de muito profundo acerca da objectividade.
Quando considera casos destes, Nagel preocupa-se antes de mais com a redução — ou seja, com a questão de sermos capazes de nos livrarmos completamente dos nossos conceitos comuns para os substituir por conceitos que não tenham as características típicas da nossa experiência. “As reduções comportamentais e as suas descendentes”, escreve,
não são operativas na filosofia da mente porque as características fenomenológicas e intencionais que são evidentes a partir do interior da mente não são adequadamente explicadas da perspectiva puramente externa a que as teorias redutoras se limitam, devido à impressão errada de que só uma perspectiva externa é compatível com uma mundividência científica.
Podemos concordar com Nagel, contra alguns programas cientificistas de filosofia da mente, que a redução nesta forma forte não é possível para qualquer aspecto da nossa experiência que levante tais questões. De modo que o próprio facto de o reducionismo ser malsucedido não vai dizer-nos se alguns destes vários tipos de experiência são mais “objectivos” do que outros. É mais proveitoso pensar em termos de explicação do que de redução. Se perguntarmos por que razão quase todos os seres humanos consideram umas coisas ou outras engraçadas, ainda que não coincidam todos no que consideram engraçado, podemos não ter uma ideia muito boa de qual será a resposta, mas estamos razoavelmente seguros de que não incluirá considerar que há coisas engraçadas antes de as descobrirmos — coisas engraçadas em qualquer caso, como se poderia dizer.
Nagel põe também um certo peso na questão de falarmos ou não de facto de maneira relativista. Mas não é claro se se segue grande coisa de falarmos ou não dessa maneira. O caso da comicidade sugere que se em alguns casos mas não noutros preferimos a linguagem do facto e do erro objectivos à linguagem do relativismo, isso pode reflectir mais as nossas atitudes do que o conteúdo do mundo. (Talvez haja afinal algo na posição de Rorty de que pode fazer parte do nosso jogo de linguagem negar que seja uma questão de jogo de linguagem.) Reflexões semelhantes, se bem que mais complexas, estarão envolvidas quando pensamos sobre o juízo estético, que Nagel, surpreendentemente, não discute.
Quando reconhecemos que as nossas capacidades para ter vários tipos de ideias podem ser explicadas de diferentes maneiras, isto pode afectar as maneiras como entendemos as nossas discordâncias com os outros. Na medida em que a nossa disposição local para considerar algumas coisas engraçadas ou hediondas mas não outras pode ser explicada sem considerar (seriamente) que o mundo contém coisas que já são engraçadas ou hediondas, podemos também ser capazes de compreender por que outros seres humanos não coincidem necessariamente no que consideram engraçado ou hediondo. Claro que nem toda a gente concorda quanto ao que conta como explicação, ou quanto ao que precisa de explicação. Isto é importante, e irei sugerir que, em particular no caso da ética, o facto notável de Nagel estar tão seguro das suas objectividades quando outros estão tão estabelecidos nas suas suspeitas da objectividade emana em si de uma discordância acerca do que precisa de explicação.
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Por vezes, o interesse restrito de Nagel pelas explicações parece deixá-lo desnecessariamente a pensar que algo é inexplicável. Há uma secção intrigante acerca da nossa compreensão do infinito. “Parece que ficamos com uma pergunta”, escreve, ”que não tem qualquer resposta imaginável: como é possível que seres finitos como nós tenham pensamentos infinitos [...]?” “Se há algo como a razão, é uma actividade local de criaturas finitas que de algum modo lhes permite contactar com verdades universais, muitas vezes de âmbito infinito”; um exemplo simples é o nosso conhecimento de que os números naturais são infinitos. Há uma tentação reducionista de negar que possamos apreender verdades infinitas, mas o reducionismo é inapropriado. “A ideia de reduzir o aparentemente infinito ao finito é consequentemente excluída: ao invés, o aparentemente finito tem de ser explicado em termos do infinito”.
Descartes usou um argumento mais ou menos como este para provar a existência de Deus. Raciocinou ele: “Sou um ser finito, mas tenho a ideia de um Ser infinito. Tal ideia não poderia vir de qualquer fonte finita, como eu próprio. De modo que terá de ter vindo precisamente de um Ser infinito, e o facto de eu ter esta ideia mostra que Deus existe”. Ninguém pensa que isto é um argumento muito convincente. Uma razão é que usa um princípio explicativo muito simples: qualquer pensamento com conteúdo infinito tem de ter uma causa infinita. Foi por razões semelhantes a este princípio (e que fazem parte da sua história) que Platão pensava que se reflectirmos nas nossas capacidades para o conhecimento da geometria, podemos ver que não viemos ao mundo completamente nus: há um domínio de verdade geométrica que tivemos de ter (digamos) visitado.
Há uma sugestão de algo como isto em Nagel, também, numa expressão reveladora que ele usa numa passagem que já citei: “[...] lhes permite contactar com verdades universais [...]” (itálico meu). Sejam quais forem as explicações disponíveis da capacidade humana para fazer matemática, não irão envolver verdades matemáticas da maneira extraterrestre que esta expressão sugere. Poderá realmente acontecer que só por pensar acerca da natureza da matemática podemos excluir à partida a perspectiva de que poderá haver algumas explicações biológicas, em termos latos, da nossa capacidade para pensar matematicamente? Apesar de o tema da matemática ter, é claro, uma história cultural, as capacidades básicas envolvidas têm de ser o produto da evolução pela selecção natural, ou o subproduto de outra capacidade que surgiu desse modo. (Uma coisa que as explicações evolucionistas terão de fazer é tornar claras quais são essas capacidades.)
Nagel parece negar, com efeito, que uma explicação dessas possa existir: não irá certamente “explicar o aparentemente finito em termos do infinito”, como ele exige. Nagel pressupõe, penso, que qualquer explicação científica de capacidades matemáticas teria de ser reducionista no sentido drástico de eliminar completamente das ideias matemáticas o seu conteúdo infinito, de modo que acabaríamos por negar que todo o número natural tem um sucessor e que não há um número primo maior do que todos os outros.
Qualquer explicação que tivesse essa consequência seria certamente má. Mas nada do que Nagel diz mostra que não poderia haver uma explicação melhor que ligasse as capacidades matemáticas de uma maneira iluminante com outras características que os seres humanos têm em resultado da evolução. Isto seria uma explicação naturalista, num sentido mais lato do que Nagel, pelo menos neste caso, reconhece. O que queremos, tanto aqui como noutros casos, é um naturalismo sem reducionismo. Não queremos negar as capacidades que indubitavelmente temos, mas antes explicá-las; o objectivo de explicá-las é tornar inteligível que podem ser as capacidades de criaturas como nós, que têm uma certa história evolutiva e uma etologia muito especial, que envolve cultura e uma história autoconsciente.
4.
A questão de como as explicações das nossas ideias poderão afectar a nossa compreensão delas e de nós próprios assume uma forma muito diferente e bastante urgente, quando chegamos à ética. Nagel permite em princípio que possa haver explicações nada lisonjeadoras das ideias éticas liberais:
Para usar alguns exemplos grosseiros mas conhecidos, a única resposta possível à acusação de que uma moralidade dos direitos individuais não é senão uma carga de ideologia burguesa, ou um instrumento de dominação masculina, ou que a exigência de amar o próximo é afinal uma expressão de medo do próximo, ódio e ressentimento, é considerar de novo, à luz destas sugestões, se as razões para respeitar os direitos individuais ou para cuidar dos outros podem ser sustentadas, ou se disfarçam algo que não é de modo algum uma razão. E esta é outra questão moral. Não se pode pura e simplesmente sair do domínio da reflexão moral: está simplesmente aí. Tudo o que podemos fazer é levá-la por diante à luz de sejam quais forem as novas provas históricas ou psicológicas disponíveis. É o mesmo em todo o lado. Os desafios à objectividade da ciência só podem ser enfrentados usando mais raciocínio científico, os desafios à objectividade da história só pela história, e assim por diante. [Itálicos de Nagel]
Esta é a versão ética do tema de que não podemos sair de um tipo de pensamento, de que temos de “prosseguir do mesmo modo”. Mas levanta de novo a questão do quanto se resolve com essas fórmulas. Pois o que é “do mesmo modo”? Quão diversificadas podem as “razões morais” ser? A relevância das explicações culturais, psicológicas ou económicas para os valores éticos não consiste apenas em serem desafios a todos, colectivamente. O argumento de Nagel pode dar adequadamente conta desse desafio, mas ao fazê-lo derrota na melhor das hipóteses o niilismo ético, e não entra em contacto com as preocupações dos relativistas e subjectivistas. Entre outras, as explicações culturais das crenças éticas ajudam-nos a não esquecer que estas variam de lugar para lugar e, além disso, que as nossas próprias crenças têm uma história peculiar e provavelmente também uma psicologia peculiar. Essas considerações deveriam fazer-nos pensar de maneira diferente e mais reflexiva não apenas acerca do conteúdo das nossas crenças mas também acerca do estilo que usamos para argumentar a seu favor.
Em particular, há a questão de como pensamos acerca das nossas diferenças éticas relativamente a outras culturas, como aqueles povos do passado que não partilham o nosso liberalismo; escreve Nagel:
Perante o facto de os valores [liberais] se terem tornado comuns só recentemente e não em todo o lado, é preciso ainda decidir se são correctos — se devemos continuar a cultivá-los [...] Persiste a questão [...] de eu estar ou não errado caso tivesse aceitado como natural, e consequentemente justificado, as desigualdades de uma sociedade de castas [...]
Mas quanto tenho de decidir? Há aqui uma distinção crucial. Nagel está coberto de razão ao dizer que o liberal, se o for realmente, tem de aplicar o seu liberalismo ao mundo que o rodeia, e o conhecimento de que poucas pessoas na história do mundo foram liberais não é em si uma razão para abandonar o liberalismo. Se há razões para isso, terão de ser o género de considerações que sugerem que há algo melhor, mais convincente, ou mais inspirador em que acreditar. Nisto, concordo inteiramente com Nagel — ainda que se deixe de fora uma questão interessante, a de saber por que razão as pessoas tendem a perder as suas convicções deste modo, tema a que regressarei.
***
Assim, o liberal tem de levar as suas ideias a sério e considerar que se aplicam ao mundo. Mas a quanto do mundo? Segue-se, como Nagel diz, que “perante a descrição de uma sociedade tradicional de castas, tenho de me perguntar se as suas desigualdades hereditárias têm justificação [...]”? A maior parte de nós concordará que se nos for apresentada uma sociedade assim, como facto real, temos de nos fazer aquela pergunta. Mas será o mesmo se nos for apresentada uma descrição de uma sociedade assim, do passado distante, suponha-se, pertencente ao mundo antigo? Claro que ao pensar acerca desta sociedade antiga posso levantar a questão de Nagel, mas será verdadeiro que a força da razão exige que tenha de fazê-lo, e o que quer essa questão dizer? “Teria eu estado errado se tivesse aceitado que as suas desigualdades têm justificação?” — Mas quem estaria errado? Tenho de pensar que estou a visitar em juízo todos os recantos da história? Claro que podemos imaginar-nos como Kant na corte do Rei Artur, condenando as suas injustiças, mas que tracção tem isto exactamente no nosso pensamento ético?
Em particular, será realmente possível que se faça esta viagem imaginária só com a bagagem mínima da razão? Concedendo o facto notável de que ninguém tinha a mundividência liberal nessa altura, o viajante ético do tempo tem de levar consigo implicitamente a experiência histórica que fez dele o liberal que é, e essa experiência não pertence ao lugar que está visitando.
A ideia básica de que vemos as coisas como vemos devido à nossa situação histórica ficou ao longo de duzentos anos tão profundamente inserida na nossa perspectiva que é ao invés o pressuposto universalista de Nagel que pode parecer estranho, a ideia de que, de modo auto-evidente, o juízo moral tem de ter toda a gente em todo o lado igualmente como objecto. Parece igualmente estranho quando pensamos em viajar na direcção oposta. “Raciocinar é pensar sistematicamente de maneira tal que qualquer pessoa olhando por cima do meu ombro possa reconhecer que é correcta”, afirma Nagel perto do início do livro. Qualquer pessoa? Aqui estou raciocinando, com Nagel, de maneira liberal, e Luís XIV está olhando por cima dos nossos ombros. Ele não reconhecerá que os nossos pensamentos são correctos. Deveria fazê-lo? Ou, mais precisamente, deveria tê-lo feito quando estava no seu próprio mundo e ainda não tinha enfrentado a tarefa de tentar dar sentido ao nosso?
Somos reenviados à exigência de explicações. Se o liberalismo for correcto e caso se baseie na razão humana universal, como Nagel parece pensar, por que razão noutros tempos não o teve em consideração nem o aceitou? Kant tinha uma resposta na sua teoria do progresso e do iluminismo: os seres humanos tinham ultrapassado um longo período de tutelagem, e pela primeira vez podiam decidir racionalmente como haveriam de viver. Hegel e Marx deram respostas relacionadas, se bem que mais conflituosas, formuladas em termos históricos e económicos.
Nagel não sugere qualquer resposta e não parece querer uma resposta. Eu diria que Nagel não tem uma “teoria do erro” do que ele denomina correcção moral, mas quer o formule desse modo quer não, é certo que não tem uma explicação de algo que claramente o exige. Ele não pode dar como garantido que as explicações de várias crenças éticas irão no máximo mudar os seus conteúdos, do modo ilustrado pelo exemplo anódino dos peitos descobertos que já mencionei. Se viermos a compreender histórica e psicologicamente como as nossas próprias ideias éticas, assim como as dos outros, surgiram, isto pode mudar a maneira como pensamos acerca do estatuto das nossas ideias, e acerca da relação que têm com as das outras pessoas. Negligenciar esta possibilidade parece-me constituir uma forma de dogmatismo no sentido de Kant, uma recusa do tipo de crítica que fez da filosofia moderna (incluindo as deformações que Nagel correctamente rejeita) o que ela é.
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Os leitores do livro de Nagel irão procurar pistas da perspectiva subjacente que o apoia nesta abordagem. Com respeito à ética, estou impressionado com dois dos seus pressupostos. Um deles é que se não considerarmos que a nossa moralidade é universalmente aplicável a toda a gente, não podemos aplicá-la com confiança onde temos na verdade de a aplicar, às questões do nosso próprio tempo. Afirmei que algumas pessoas parecem pensar que se o liberalismo é uma ideia recente e as pessoas do passado não eram liberais, elas próprias deveriam perder confiança no liberalismo aplicado ao mundo moderno. Isto, afirma Nagel, é um erro. Mas por que razão o liberal sem confiança o comete? Suspeito que é precisamente porque concorda com o universalismo de Nagel: pensa que se uma moralidade é correcta, tem de aplicar-se a toda a gente. De modo que se o liberalismo for correcto, tem de aplicar-se a todas aquelas pessoas do passado que não eram liberais.
Por que razão elas mesmas não o pensaram? Há quem diga que é porque eram colectivamente malévolas e egoístas; o liberal sem confiança pensa (correctamente) que isso é uma tolice que não explica coisa alguma. Há também quem acredite no progresso iluminado e que pense que era porque as pessoas do passado não dispunham de informação de qualidade, eram supersticiosas, etc. Mas o liberal sem confiança perdeu a fé nas ideias de progresso iluminado, e (muito razoavelmente) não consegue ver como os avanços na ciência e na tecnologia revelaram a verdade acerca do liberalismo. Ele fica com menos certezas de que o liberalismo se aplique a essas pessoas do passado, afinal de contas. De modo que começa a pensar que o liberalismo não pode estar correcto. Essa não é a conclusão que deveria tirar; o que deveria fazer é abandonar a crença universalista que partilha com Nagel. Isto não quer dizer que temos de ir dar a uma posição de ironia, sustentando o liberalismo como liberais, mas afastando-nos dele como críticos reflectidos. Esta posição está ela mesma ainda sob a sombra do universalismo. Só temos de reconhecer que novos tempos acarretam novas necessidades e novos poderes. Em muitos aspectos importantes, não somos como quaisquer outras pessoas do passado, e um desses aspectos é que temos ideias liberais, e maneiras de viver a que essas ideias se aplicam.
Uma segunda razão a favor da posição de Nagel na ética é, penso, o seu rígido entendimento do que é “continuar da mesma maneira”. Ele menciona, a certo ponto, a possibilidade de toda uma actividade ou maneira de continuar poder ser racionalmente rejeitada: dá o exemplo quase desafiadoramente trivial da leitura de folhas de chá. Ele pensa presumivelmente que essas coisas são apropriadamente rejeitadas porque são operações primitivas do pensamento que estão na mesma linha de actividade da ciência, e que a ciência se sai melhor. Mas quem disse que esta era a linha de actividade relevante? Como os antropólogos insistem, há outras maneiras de olhar para práticas como o augúrio. O que determina qual de várias práticas diferentes conta como “a mesma maneira de continuar”? Uma coisa é clara: os praticantes não podem simplesmente determiná-lo por si. O oráculo idoso entre os Azende diz: “É isto que conta como oráculo, e eu não considero que o que estes recém-chegados fazem seja o mesmo”. Mas apesar disso os seus clientes talvez se mudem para o novo hospital.
De modo que Nagel diz: o conteúdo da minha moralidade pode ser modificada por novas descobertas, mas esta maneira de argumentar, esta empresa universalista e racional, é exactamente o que conta como moralidade. Isto determina o que é continuar da mesma maneira. Então os oponentes de Nagel, os naturalistas e os herdeiros insatisfeitos da crítica de Kant, respondem: você não consegue pura simplesmente determinar o que conta como o mesmo. Dizemos que a sua moralidade peculiar tem propósitos: sem mencionar os menos amigáveis, tenta ajudar-nos a viver juntos, a formular imagens de uma vida que valha a pena viver, a dar sentido aos nossos desejos em relação aos desejos e necessidades das outras pessoas, e assim por diante. Tem havido outras maneiras de fazer estas coisas, e haverá sem dúvida outras no futuro. Porque o compreendemos, somos nós que num sentido mais abrangente continuamos da mesma maneira, vivendo o melhor que conseguimos orientando-nos pelo que faz sentido agora, sem esquecer que nem sempre fez sentido, tentando pôr a descoberto pistas de coisas novas que ninguém pode ainda compreender. O que você chama “continuar da mesma maneira” representa apenas um estilo de pensamento ético, estilo esse, em particular, que tenta esquecer que tem uma história.
Claro que quem pensa nestes termos não pode determinar, tal como Nagel também não pode fazê-lo, o que conta — o que terá contado — como continuar da mesma maneira ética. Nada pode fazê-lo, em última análise, exceto o próprio futuro. A Última Palavra, como sempre, está no que efetivamente surgir.
Notas
1. Nagel tem uma secção (p. 92 ss.) sobre o “idealismo transcendental” de Kant, defendendo que não pode evitar ser uma teoria empírica (inacreditável). Isto é certamente contrário às intenções de Kant. Pode-se compreendê-lo de uma maneira mais caridosa como alguém que não nega a ideia de que o mundo é, como ele próprio diz, “empiricamente real”, investigando ao invés qual é conteúdo que essa mesma ideia tem de ter, e como somos capazes de pensá-la.
2. Trata-se de um projecto de defesa balística norte-americana que permitiria, em teoria, eliminar quaisquer mísseis lançados contra os EUA. O sistema nunca passou do papel porque nunca se mostrou exequível. N. do T.
3. Por exemplo, mesmo Barry Barnes, David Bloor e John Henry, que estão associados ao denominado “programa forte” na sociologia do conhecimento científico, que dá ênfase aos factores sociais na formação e aceitação de teorias, rejeitam o “idealismo”, e insistem que uma explicação sociológica tem de pressupor as interacções entre a ciência e a realidade. Veja-se Scientific Knowledge: A Sociological Analysis (Londres: Athlone, 1906), pp. 1, 32.
4. Como o de Andrew Pickering, Constructing Quarks (Edinburgh University Press, 1984). Como o título leva a esperar, o próprio Pickering diz por vezes coisas como “[...] a realidade dos quarks foi o resultado da prática dos físicos de partículas [...]”, que não é uma maneira prudente de exprimir a sua conclusão (a década de setenta do século XX é um pouco tardia para o aparecimento dos quarks no universo), mas deve encorajar-nos a pensar noutras maneiras melhores de o exprimir. (Agradeço aqui a Ian Hacking, que discute estas matérias no seu próximo livro, The Social Construction of What? (Harvard University Press, 1999).
5. Citado por Pickering, p. 414.
6. Richard Rorty, “Does Academic Freedom Have Philosophical Presuppositions?” Academe (Novembro–Dezembro de 1994), pp. 56–57; citado por Nagel, pp. 29-30.
Bernard Williams (1929-2003) was Deutsch Professor of Philosophy at the University of California, Berkeley, and a Fellow of All Souls College, Oxford. His books include Problems of the Self, Moral Luck, Ethics and the Limits of Philosophy, and Truth and Truthfulness.