19 de novembro de 1998

O fim da explicação?

Bernard Williams

New York Review of Books

Edição de 19 de novembro de 1998

A última palavra
por Thomas Nagel
Oxford University Press, 147 pp.

1.

Esta discussão dirá respeito a uma questão que percorre praticamente todas as áreas de pesquisa e que invadiu até a cultural geral — onde chegam ao fim a compreensão e a justificação? Chegam ao fim com princípios objetivos cuja validade é independente do nosso ponto de vista, ou chega ao fim no seio do nosso ponto de vista — individual ou partilhado — de modo que, em última análise, mesmo os princípios mais aparentemente objetivos e universais derivam a sua validade ou autoridade da perspectiva e prática de quem os adota?

Tradução / Esta é a questão que Thomas Nagel levanta em A Última Palavra, e a resposta que lhe dá neste livro subtil, compacto e vigoroso situa-se firme e eloquentemente no primeiro campo — é uma resposta “racionalista”, contra respostas a que chama ora “subjectivistas”, ora “relativistas”, ora “naturalistas”. Temos, a maior parte de nós, um perfil moral liberal (em termos muito latos): apoiamos os direitos humanos universais e favorecemos a tolerância. Outros, alhures, não têm este perfil, tal como a maior parte das pessoas do passado. Favorecemos a medicina dos médicos em detrimento da dos curandeiros, e pensamos que temos razões científicas para fazê-lo; os curandeiros têm uma perspectiva diferente. Nagel quer vindicar a nossa racionalidade, e as justificações que oferecemos para as nossas crenças, contra as pessoas que dizem que estas maneiras de pensar são simplesmente aquelas a que estamos culturalmente habituados e que por acaso favorecemos.

Algumas das pessoas que o dizem, os relativistas de Nagel, deixam as coisas nesse pé: “Esta é a nossa maneira de ver as coisas, mas quem somos nós para dizer que essas outras estão erradas?” Aqueles de nós que são subjectivistas vão um pouco mais longe, e dizem que quem discorda connosco está errado; mas estão muito impressionados com a ideia de que não há qualquer ponto objectivo a partir do qual se possa resolver a discordância. Outros, ainda mais cépticos, consideram que podemos prescindir completamente de “verdadeiro”, “errado”, e assim por diante, excepto como decoração ou retórica, e incitam-nos a ver estas discordâncias e argumentos simplesmente como um género ou outro de política.

Nagel quer mostrar, contra todas estas posições, que “a compreensão e a justificação chegam ao fim [...] com princípios objectivos cuja validade é independente do nosso ponto de vista”. Ele quer dizer que se o argumento entre posições ou interpretações conflituantes fosse levado suficientemente longe, e se os participantes fossem completamente racionais, teriam de aceitar uma ou outra das resoluções do debate, ou pelo menos concordar entre eles que por razões mutuamente inteligíveis o debate não poderia ser resolvido. Não poderiam recuar limitando-se a explicar o perfil de cada um em termos psicológicos, sociais ou políticos.

Ao avançar estas ideias, Nagel considera que está a abordar uma questão intelectual e cultural importante, e está. Mas deve-se dizer desde já que A Última Palavra é uma obra de reflexão filosófica, e não uma diatribe. O livro é um contributo significativo para as guerras culturais do nosso tempo, em particular para as disputas recorrentes e desorganizadas sobre até que ponto a compreensão e o argumento objectivos podem ser resgatados da suspeita céptica (que sustenta que um pensador sofisticado não deve acreditar em praticamente coisa alguma) e, igualmente, de um relativismo promíscuo (que permite acreditar em praticamente seja o que for de que se goste). Mas no texto de Nagel não há grande coisa que mostre como se relaciona com qualquer controvérsia particular. Praticamente os únicos exemplos que dá do que está em causa são uma citação apropriadamente auto-refutante de Richard Rorty (a que chegarei) e, em questões de ética, algumas opiniões minhas. Os leitores que estavam à espera de ver os seus amigos ou inimigos vilificados ficarão desapontados.

***

Nestas discussões, quem somos “nós”? Será toda a afirmação de que as nossas compreensões são relativas a “nós” igualmente ameaçadora? Quando reflectimos no que “nós” acreditamos, em particular com respeito a questões culturais e éticas, temo-nos muitas vezes em mente (como os relativistas) como membros de sociedades industriais modernas, ou de um grupo ainda mais restrito, em contraste com outros seres humanos de outros tempos e lugares. Esse “nós” é, como dizem os linguistas, “contrastante” — escolhe-nos a “nós” em oposição aos outros. Mas “nós” pode ser entendido de maneira inclusiva, para abraçar seja quem for que partilha, ou poderá partilhar, a actividade de investigar o mundo. Alguns filósofos sugeriram que no nosso pensamento está sempre suposto um “nós” deste tipo inclusivo; segundo eles, quando os cosmologistas fazem afirmações sobre como é o universo “em si”, não estão a abstrair completamente da experiência possível, mas antes implicitamente a falar do modo como as coisas pareceriam aos investigadores que fossem pelo menos suficientemente como nós para que os reconhecêssemos, em princípio, como investigadores.

Se esses filósofos têm ou não razão ao pensar que todas as nossas concepções são relativas a um “nós” entendido desta maneira abstractamente inclusiva, é certamente uma questão importante em metafísica. Mas terá importância para as guerras da cultura e para as disputas acerca do relativismo e do subjectivismo que constituem a verdadeira preocupação de Nagel? Afirma ele que está atacando a ideia de que não podemos em última análise ir além de uma concepção do mundo tal como nos parece a nós. Contudo, o que é realmente perturbador acerca dos relativistas e subjectivistas não é certamente esta ideia em si, mas antes a sua insistência em entender-nos a “nós” de uma maneira muito local e paroquial. As suas sugestões — feitas pelo menos pelos mais radicais — de que todas as nossas ideias, incluindo as nossas teorias em cosmologia, são apenas formações culturais locais, e que não há uma “verdade da questão” acerca de coisas como a história, são realmente desencorajantes e têm implicações culturais profundas porque sugerem que não há padrões partilhados na base dos quais nós como seres humanos possamos compreendermo-nos uns aos outros — que não há qualquer “nós” inclusivo, mas apenas o contrastante.

***

Estes problemas acerca do alcance da compreensão humana, como muitos outros na filosofia moderna, remontam a Kant. Este filósofo ficou correctamente impressionado pela ideia de que caso perguntemos se temos uma concepção correcta do mundo, não podemos sair inteiramente das concepções e teorias que efectivamente temos para compará-las com um mundo que não esteja de algum modo conceptualizado, um “seja o que for que há” sem adornos. Concluiu que não podemos ir além de conceber o mundo como poderia aparecer a criaturas parecidas connosco pelo menos na medida em que sejam observadores inteligentes, de modo que pertencem ao “nós” maximamente inclusivo. No pensamento moral, contudo, Kant suponha que a situação era diferente. Não considerava que a moralidade fosse uma questão de conhecimento. Tratava, ao invés, de princípios práticos que obrigam qualquer pessoa racional ao lidar com outras pessoas racionais, e isto conduz ao resultado, à primeira vista surpreendente, de que para Kant a moralidade está menos relativizada aos modos como o mundo nos afecta do que a ciência. A moralidade de Kant aplica-se-nos apenas porque somos criaturas racionais. O “nós” da moralidade é potencialmente mais lato do que o grupo que poderia partilhar a ciência.

Nagel é simpático à perspectiva kantiana desavergonhadamente racionalista da ética, mas pensa que a revolução de Kant na compreensão da ciência e do nosso conhecimento quotidiano do mundo foi o princípio da decadência.1 Mais do que qualquer outra pessoa, Kant é o “moderno” do “pós-moderno”, e há uma longa história (que Nagel não conta aqui) de como, depois de Kant, a reflexão crítica sobre as nossas relações com o mundo acabaram por varrer as garantias do próprio Kant acerca do que podemos saber e do que devemos fazer. As afirmações morais, as disciplinas humanísticas da história e da crítica, e a própria ciência natural, passaram a parecer a alguns críticos alheias ao assentimento razoável de todos os seres humanos. São ao invés vistas como produtos de grupos no seio da humanidade, exprimindo as perspectivas desses grupos. Há quem considere que a autoridade do discurso supostamente racional é em si mera autoridade, um constructo de forças sociais.

Noutra reviravolta ainda, a reflexão acerca desta situação pode levar a um relativismo que dá um passo atrás perante quaisquer perspectivas e as vê a todas à mesma distância — são todas verdadeiras, nenhuma o é, cada qual é verdadeira para os seus próprios partidários. Acabamos então por chegar ao tipo de encantamento produzido por quem, citado por Alan Sokal numa reunião em Nova Iorque acerca do seu embuste, insiste que não há qualquer questão de facto sobre se os nativos americanos chegaram originalmente ao continente atravessando o Estreito de Bering, ou se ascenderam do centro da Terra; ambas as perspectivas são verdadeiras (para alguém, ou algo assim).

Isto é o tipo de entulho que se encontra nas praias mais distantes daquilo a que Nagel se opõe, mas ele é igualmente contra seja o que for que se encontre nessa direcção; isto é, seja o que for que considera que as crenças ou afirmações, que é de entender que versam directamente sobre o modo como as coisas são, não passam de afirmações que dependem de “nós” — quer “nós” queira dizer os seres humanos e quaisquer seres que possamos compreender, como no caso de Kant; quer queira dizer apenas os seres humanos; quer queira dizer nós aqui e agora; ou talvez alguns de nós aqui e agora, como em várias interpretações pós-modernas. Nagel não está muito interessado nas diferenças entre os entendimentos mais latos e mais restritos de “nós”, tal como não está muito interessado em identificar teóricos particulares de tendência relativista ou subjectivista. Quer livrar-se da ideia de que as verdades aparentemente objectivas dependem em qualquer sentido de “nós”. Ele pensa que tem um conjunto de considerações inteiramente gerais e abstractas que o fazem, e que nos irá persuadir de que a razão e a objectividade devem ter a “Última Palavra” que surge no título.

2.

A ideia básica de Nagel é que seja qual for o tipo de afirmação da qual se diz que é apenas localmente válida e que é produto de forças sociais particulares — seja a moralidade que está a ser criticada deste modo, ou a história, ou a ciência — o relativista ou subjectivista que oferece esta crítica terá de fazer outra afirmação qualquer, que terá em si de ser entendida como algo que não é meramente local mas antes como algo que é objectivamente válido. Além disso, em todos os casos que interessam, esta afirmação adicional terá de ser do mesmo tipo das que as que estão sendo criticadas: a crítica da moralidade por parte dos relativistas tem de comprometê-los com afirmações de moralidade objectiva, as suas tentativas de mostrar que a ciência consiste em preconceito local tem de fazer apelo à ciência objectiva e assim por diante.

Regressaremos a alguns detalhes da ideia básica de Nagel, e como se sai na prática. Primeiro, contudo, há algumas questões acerca desta abordagem e acerca do estilo de argumento muito geral que ele usa. Se ele tiver razão quanto a esta abordagem, consegue pôr fim ao ataque subjectivista e relativista antes de este se aproximar muito de qualquer alvo em particular. Isto tem a mesma vantagem do proposto sistema de defesa chamado Star Wars:2 se funcionar, as explosões ocorrem na estratosfera e nada do que nos importa fica danificado. Mas tem a mesma desvantagem: se não funcionar e não houver a garantia de a intercepção ocorrer, não há maneira de saber quantas das coisas que nos importam irão sobreviver.

Esta é uma das razões pelas quais esta estratégia me parece mal concebida: nem tudo o que é ameaçado pelo subjectivismo, ou pelo relativismo, ou pelo naturalismo, está na mesma situação. Alguns dos tipos de ideias que têm sido postas em causa destas maneiras têm menos hipóteses de enfrentar o ataque do que outras. Partes da nossa moralidade, por exemplo, ou das nossas narrativas históricas de mais longa duração, ou dos nossos modelos de compreensão pessoal de nós próprios, estão mais abertos à suspeita, estão mais sujeitos a que se mostre de um modo inquietante que dependem de um “nós” restrito e paroquial, do que a nossa ciência ou a nossa lógica. Caso as coisas sejam assim, não pode ser devido a razões inteiramente gerais que se aplicam tanto a estes como a outros tipos de ideias. Será devido a razões específicas delas. Além disso, pode ser por razões específicas delas neste momento: como acontece com outras doenças, não é provável que os diagnósticos que ignoram a sua história sejam bem-sucedidos.

Além disso, são as nossas próprias doenças. Outra razão pela qual, ao que me parece, a estratégia de Nagel é inadequada é que instala um sistema de defesa de longa distância, muitíssimo poderoso e de total abrangência para entrar no que na verdade é uma guerra de guerrilha. Os irracionalistas ou relativistas ou cépticos estão entre nós. Não tenho em mente a situação de Invasion of the Body Snatchers sugerida por alguns conservadores fantasistas da universidade, que parecem pensar que os departamentos de literatura receberam secretamente casulos que deram origem a criaturas que tomaram o lugar dos académicos. Tenho em mente que as sementes do cepticismo estão prontas a germinar seja em quem for que pense seriamente acerca da nossa situação intelectual e cultural, tal como é agora. Nagel tem perfeitamente razão quando diz que estes tipos de cepticismo não podem tornar-se totais, deste lado da insanidade. Para que pensemos de todo em todo, não podemos considerar que a lógica, ou a ciência, ou a história, são apenas fantasias locais. Mas a questão difícil é até onde o cepticismo ou o relativismo podem ir sem sair do lado certo da insanidade, e (para mudar a metáfora militar) a política de Nagel eles não irão passar! não me parece ser uma ajuda suficiente para lhe dar uma resposta.

***

Nagel exprime a sua ideia básica dizendo que há algumas ideias “da quais não podemos sair”. Para nos entendermos, e mais em particular, para chegar à conclusão de que alguns dos nossos pensamentos ou crenças ou experiências são meras “aparências”, uma função do que somos e não do que as coisas são, há outros juízos que temos de pensar “directamente” — ou seja, de um modo que nos compromete com a sua verdade objectiva. Se pudermos considerar que algumas das nossas ideias são meras aparências, isto implica que temos uma perspectiva objectiva do mundo ao qual pertencemos — um mundo que está realmente aí — juntamente com essas aparências. Na medida em que depende de assumir uma “perspectiva externa de nós mesmos”, “desacreditar afirmações universais da razão por serem meramente subjectivas ou relativas tem em si limites inevitáveis”. Há, diz Nagel,

alguns tipos de pensamentos que não podemos simplesmente evitar ter — que é estritamente impossível considerar apenas a partir de fora, porque entram inevitável e directamente em qualquer processo em que nos consideremos a partir de fora, permitindo-nos construir a concepção de um mundo em que, em termos de facto objectivo, nós estamos inseridos, juntamente com as nossas impressões subjectivas. [itálicos de Nagel]

Há, insiste Nagel, limites à abrangência da crítica aos nossos pensamentos que podemos levar a cabo de um ponto de vista desalojado. Podemos de facto chegar à conclusão de que algumas das nossas crenças aparentemente objectivas são expressão de uma qualquer peculiaridade local:

Uma pessoa que tenha sido educada para acreditar que é errado as mulheres exporem os seus peitos pode vir a dar-se conta a certo ponto de que isto é uma convenção da sua cultura, e não uma verdade moral sem restrições. Claro que pode continuar a insistir, depois de examinar as provas antropológicas, históricas e sociológicas, que é errado em si que as mulheres exponham os seus peitos [...] Mas é improvável que esta reacção sobreviva ao confronto; não tem base suficiente em que se apoiar [...]

Se a crença original desaparecer nesse caso, a mudança terá sido produzida por meio de outroargumento moral. De modo que as reflexões deste género não poderiam possivelmente reduzir toda a crença e argumento morais a conjuntos de peculiaridades locais. O mesmo se aplica, pensa Nagel, a todas as áreas de pensamento que ele toma em consideração. Não se pode em última análise sair destes géneros de pensamento. Temos de continuar da mesma maneira. No fim, seja quem for que tente defender a objectividade numa dada área, acabará por fazer afirmações nessa área que, uma vez mais, têm de ser entendidas como objectivas.

***

Um caso que ilustra os méritos da ideia de Nagel, mas também os limites desta abordagem totalmente geral, é o da objectividade da ciência. Ele põe esta questão em termos de uma escolha entre duas perspectivas igualmente abstractas. Uma é a atitude “realista” assumida pela maior parte das pessoas, incluindo muitos cientistas, segundo a qual há um mundo cuja existência é independente de todos nós, e que tem um carácter determinado que as teorias dos cientistas tentam captar. A outra é a “tentativa de reconstruir a imagem ordenada do mundo como uma projecções mental da nossa parte”. (Esta reconstrução, presumo, pode assumir ou não uma forma relativista, dependendo de como se entende “nossa”, mas Nagel não está muito preocupado com o relativismo neste caso.) Esta segunda perspectiva, defende Nagel,

naufraga na necessidade de nos colocarmos no mundo que foi ordenado desse modo. Ao tentar dar sentido a esta relação, somos inevitavelmente levados a usar o mesmo tipo de raciocínio, baseado na procura da ordem. Mesmo que decidamos que algumas das nossas apreensões de ordem são ilusões ou erros, isso será porque uma teoria melhor, pelos mesmos padrões, pode eliminá-los explicativamente.


Neste nível muitíssimo geral, Nagel tem de ter razão. É impossível que alguém saia completamente, ou “localize”, ou repudie por ser paroquial o pensamento realista acerca do mundo, ou na verdade as tentativas de compreendê-lo por meio de alguns princípios de ordem. Quem o tenta, para defender o que quer, terá de assumir os compromissos de pensar e falar das maneiras que está a tentar pôr de lado.

Contudo, não é claro o que nos diz isto exactamente. Escreveram-se muitas coisas sobre o realismo científico e as suas alternativas. Tem havido e sem dúvida há ainda autores, na sua maior parte ignorantes de ciência, que parecem pensar que a ciência é apenas inventada, ou determinada por forças ideológicas. Porém, são pouquíssimos os que sabem alguma coisa da área que o pensam.3 O que está em causa é, ao invés, que a ciência é uma actividade social complexa, e o facto de alguns ramos da ciência num dado momento se fixarem em certas teorias ou modelos em vez de outros não é um resultado directamente determinado pela percepção do mundo, mas antes pelos hábitos e práticas dos cientistas, incluindo as maneiras que têm de seleccionar e interpretar as observações. Este não é um aspecto filosófico abstracto; é a conclusão de estudos históricos detalhados.4

O próprio Nagel, de facto, parece disposto a aceitar isto; não tem inclinação para pensar que o mundo, com um tudo-nada de encorajamento experimental, se insere a si próprio nas revistas científicas. Mas não enfrenta a questão de onde exactamente nos deixa isso. Dados os limites do que Nagel afirma aqui, poderíamos concordar com Lichtenberg que “a nobre simplicidade da natureza repousa demasiadas vezes na simplicidade nada nobre de quem pensa que a viu”.5 Se esta ordem de ideias for correcta, quem ou o quê exactamente tem a “última palavra”? A nossa ciência ocupa-se do mundo, mas isso deixa espaço para a reflexão de que contudo é muito mais uma função de “nós” do que ingenuamente se supõe. Como acontece amiúde com estas questões — como as imagens que temos do passado ou a compreensão das outras pessoas — a questão não é se apreendemos algo objectivamente, mas quanto o apreendemos, e a resposta pode ser tão obscura que nos deixa com alguma da ansiedade que, penso, a estratégia de Nagel pretende dissipar.

***

Seja como for, Nagel mostra realmente que ninguém pode repudiar completamente o discurso científico; se alguém disser, por exemplo, que a ciência não é senão a nossa mitologia local, precisará de uma imagem do mundo que contém pessoas e as suas mitologias, e para poder manter essa imagem terá de dirigir-se à ciência. Nagel denuncia também com eficácia um estilo conhecido de tentativa de repudiar um certo tipo de discurso ao mesmo tempo que se tenta ficar no seu seio. Richard Rorty gosta muito deste tipo de afirmação. Escreve ele, por exemplo:

O que pessoas como Kuhn, Derrida e eu acreditamos é que é irrelevante perguntar se há realmente montanhas ou se é apenas conveniente falar delas [...] Dado que é vantajoso falar delas, como certamente o é, uma das verdades óbvias acerca das montanhas é que já estavam aqui antes de falarmos delas. Se o leitor não acredita nisso, provavelmente não sabe jogar os jogos de linguagem habituais que usam a palavra “montanha”. Mas a utilidade desses jogos de linguagem não tem coisa alguma a ver com a questão de a Realidade Tal Como É Em Si ter montanhas, sem ter em consideração a vantagem para os seres humanos de descrevê-la desse modo.6

Nagel insiste com razão que Rorty e os seus amigos fariam melhor em clarificar as coisas (mais do que nesta passagem) acerca das montanhas. Sem dúvida que é prático para os seres humanos ter palavras para montanhas, mas é muito difícil explicar por que razão isso acontece sem mencionar o facto de haver montanhas. É revelador, também — e Nagel poderia ter acrescentado isto como ilustração do seu argumento geral — que Rorty aceita sem questionar que vale a pena falar acerca de montanhas. Não se limita a dizer que vale a pena falar acerca de valer a pena falar acerca de montanhas.

Talvez devido ao mesmo escrúpulo que o faz não citar grande parte daquilo a que se opõe, Nagel mantém-se a alguma distância dos argumentos de Rorty. Não aprova os seus erros. Mas Rorty não se limita a cair em erro; coloca-se nele. E vale a pena ver mais de perto a sua retórica. As letras maiúsculas que Rorty outorga à “Realidade Tal Como É Em Si” sugere a ideia metafísica de um mundo ainda não conceptualizado, com o qual se supõe que iremos comparar os nossos conceitos — a ideia que Kant viu que era inútil. Mas como se relaciona esta ideia metafísica da Realidade com a realidade quotidiana, com letra minúscula, como as montanhas que estão realmente aí?

Esta é uma questão que foi enfrentada por muita filosofia depois de Kant. Rorty, entrando e saindo de referências a uma Realidade com letra maiúscula, recusa-se a responder-lhe, e é isto que está em causa: ele quer, como diz frequentemente, mudar o assunto. Ora, Rorty não está enganado quando pensa que a filosofia progride, as mais das vezes, mudando o assunto; como Bertrand Russell afirmou uma vez acerca da bruxaria, nunca se provou que não existia; deixou apenas de ser interessante. O erro de Rorty é pensar que a maneira de mudar o assunto é aparecer alguém que se limita a anunciar que o assunto mudou.

***

A perspectiva algo ligeira de Rorty acerca dos elementos da mudança de paisagem intelectual é um problema dele. Mas há aqui igualmente um problema para Nagel. Por que razão, do ponto de vista de Nagel, as perspectivas do subjectivismo, do relativismo e assim por diante ganharam tanto terreno? Por que razão as coisas estão tão mal quanto ele o diz? É difícil encontrar a sua resposta no livro. Ele parece pensar apenas que por negligência e preguiça e talvez um desejo de ganhar fama as pessoas não pensam muito bem acerca destas coisas. Há nisto uma sugestão de moralismo desencantado, que por vezes dá um tom algo pomposo à sua escrita. Ele argumenta contra os seus oponentes (em grande parte não identificados) partindo de onde se situa, ao invés de ver para onde essas pessoas poderão dirigir-se e o que as atrai aí. O perigo nisto é poder não se dar conta de que as questões que discute mudaram realmente, em alguma medida. A filosofia quer tornar as coisas claras. Infelizmente, poucas coisas que sejam realmente interessantes começam por ser claras: o que precisa de ser clarificado, esta coisa nova, não pode habitualmente ser escolhido usando apenas as categorias previamente disponíveis. Isto significa que para localizar o que tem de ser compreendido, precisamos de perguntar como surgiu, e esta é uma razão pela qual a filosofia precisa da história.

A abordagem de Nagel é, claro, configurada pela história da filosofia, em grande medida pela história da filosofia recente, mas o modo como formula o que precisa de ser discutido e explicado permanece resolutamente intocado pela história. Isto está muito profundamente ligado à sua própria posição, e ao seu objectivo muito ambicioso, que na realidade não é nada menos do que fazer o relógio andar para trás em toda a filosofia moderna. Nagel resiste à tentativa de Kant de fazer a filosofia começar por uma reflexão acerca dos poderes e limites de observadores como nós. Quando Kant introduziu esta filosofia, chamou-lhe crítica. O processo de crítica a que Kant deu início acabou depois por reverter grande parte da sua própria filosofia, e entre os resultados deste processo estão as estratégias e ideias do relativismo e do subjectivismo agora comuns que Nagel encara com alarme e desagrado. É difícil continuar a partir daqui como se nada disto tivesse acontecido. Não devemos esquecer que Kant chamou dogmático ao estilo de filosofia a que conscientemente opunha a sua crítica, querendo dizer que aceitava os supostos ditames da razão pelo que parecem, sem se perguntar como se fundavam na estrutura do pensamento e da experiência humanos.

A filosofia de Nagel não é certamente dogmática em tom nem nas maneiras intelectuais: é paciente, honestamente receptiva, atenta aos argumentos e disposta a continuar a discussão com quaisquer objectores moderadamente racionais. Também não é dogmática no sentido de invocar o dogma de qualquer outra pessoa; o livro pretende-se uma defesa da razão. Contudo, no espírito da distinção de Kant, é dogmática porque não se interessa suficientemente pelas explicações. Traça limites arbitrários, pelo que me parece, às questões de reflexão que se permite que a filosofia formule.

3.

Regressemos ao princípio de Nagel de que não podemos “sair” de várias formas de pensamento e discurso. No caso da lógica, a crítica está condenada a usar a lógica até para formular uma crítica; nas ciências da natureza, como vimos, o crítico está comprometido com formas de investigação que acabam por levá-lo de volta aos argumentos que aceitam conclusões das ciências da natureza. Estas são defesas muito boas, mas é preciso perguntar: o que mostra exactamente o facto de não podermos “sair” de um dado tipo de discurso ou raciocínio, e em que medida o mostra?

Suponha-se que consideramos um mundo sem seres humanos nem as suas percepções. Algumas das descrições que, tal como as coisas são, baseamos nas nossas percepções aplicamo-las directamente a esse mundo: dizemos que os dinossauros se deslocavam entre folhas verdes, mesmo que tenham sido insensíveis às cores. Estaremos provavelmente menos dispostos a dizer que uma desventura risível de um dinossauro era (realmente) engraçada, apesar de eles, porque não tinham sentido de humor, não se deram conta. É mais provável que digamos que algumas coisas são engraçadas para nós, mas que nada era engraçado para um dinossauro. Adoptamos mais facilmente o tom relativista com respeito ao humor do que às cores. Contudo, é muito significativo que, com respeito a outros seres humanos, não é sempre assim que falamos nem sequer com respeito ao humor. Muitos dos leitores de Nagel irão pensar que grande parte do que as pessoas consideravam engraçado no passado, aquelas partidas traquinas de humilhação e brutalidade, não tinham (realmente) graça alguma.

Qual é a base destas diferenças, e quão profundas são elas? Os nossos conceitos de verdura e de comicidade estão ambos, certamente, enraizados na nossa sensibilidade e nas nossas maneiras de responder ao mundo. Em nenhum dos casos conseguimos livrar-nos completamente da ideia; não podemos dizer e pensar exactamente o que dizemos e pensamos acerca da verdura e da comicidade sem usar esses conceitos, ou outros como eles. Nesse sentido, é verdadeiro em ambos os casos que temos “de continuar como antes”: não podemos situar-nos inteiramente no seu exterior. Contudo, isso em si não parece dizer-nos seja o que for de muito profundo acerca da objectividade.

Quando considera casos destes, Nagel preocupa-se antes de mais com a redução — ou seja, com a questão de sermos capazes de nos livrarmos completamente dos nossos conceitos comuns para os substituir por conceitos que não tenham as características típicas da nossa experiência. “As reduções comportamentais e as suas descendentes”, escreve,

não são operativas na filosofia da mente porque as características fenomenológicas e intencionais que são evidentes a partir do interior da mente não são adequadamente explicadas da perspectiva puramente externa a que as teorias redutoras se limitam, devido à impressão errada de que só uma perspectiva externa é compatível com uma mundividência científica.

Podemos concordar com Nagel, contra alguns programas cientificistas de filosofia da mente, que a redução nesta forma forte não é possível para qualquer aspecto da nossa experiência que levante tais questões. De modo que o próprio facto de o reducionismo ser malsucedido não vai dizer-nos se alguns destes vários tipos de experiência são mais “objectivos” do que outros. É mais proveitoso pensar em termos de explicação do que de redução. Se perguntarmos por que razão quase todos os seres humanos consideram umas coisas ou outras engraçadas, ainda que não coincidam todos no que consideram engraçado, podemos não ter uma ideia muito boa de qual será a resposta, mas estamos razoavelmente seguros de que não incluirá considerar que há coisas engraçadas antes de as descobrirmos — coisas engraçadas em qualquer caso, como se poderia dizer.

Nagel põe também um certo peso na questão de falarmos ou não de facto de maneira relativista. Mas não é claro se se segue grande coisa de falarmos ou não dessa maneira. O caso da comicidade sugere que se em alguns casos mas não noutros preferimos a linguagem do facto e do erro objectivos à linguagem do relativismo, isso pode reflectir mais as nossas atitudes do que o conteúdo do mundo. (Talvez haja afinal algo na posição de Rorty de que pode fazer parte do nosso jogo de linguagem negar que seja uma questão de jogo de linguagem.) Reflexões semelhantes, se bem que mais complexas, estarão envolvidas quando pensamos sobre o juízo estético, que Nagel, surpreendentemente, não discute.

Quando reconhecemos que as nossas capacidades para ter vários tipos de ideias podem ser explicadas de diferentes maneiras, isto pode afectar as maneiras como entendemos as nossas discordâncias com os outros. Na medida em que a nossa disposição local para considerar algumas coisas engraçadas ou hediondas mas não outras pode ser explicada sem considerar (seriamente) que o mundo contém coisas que já são engraçadas ou hediondas, podemos também ser capazes de compreender por que outros seres humanos não coincidem necessariamente no que consideram engraçado ou hediondo. Claro que nem toda a gente concorda quanto ao que conta como explicação, ou quanto ao que precisa de explicação. Isto é importante, e irei sugerir que, em particular no caso da ética, o facto notável de Nagel estar tão seguro das suas objectividades quando outros estão tão estabelecidos nas suas suspeitas da objectividade emana em si de uma discordância acerca do que precisa de explicação.

***

Por vezes, o interesse restrito de Nagel pelas explicações parece deixá-lo desnecessariamente a pensar que algo é inexplicável. Há uma secção intrigante acerca da nossa compreensão do infinito. “Parece que ficamos com uma pergunta”, escreve, ”que não tem qualquer resposta imaginável: como é possível que seres finitos como nós tenham pensamentos infinitos [...]?” “Se há algo como a razão, é uma actividade local de criaturas finitas que de algum modo lhes permite contactar com verdades universais, muitas vezes de âmbito infinito”; um exemplo simples é o nosso conhecimento de que os números naturais são infinitos. Há uma tentação reducionista de negar que possamos apreender verdades infinitas, mas o reducionismo é inapropriado. “A ideia de reduzir o aparentemente infinito ao finito é consequentemente excluída: ao invés, o aparentemente finito tem de ser explicado em termos do infinito”.

Descartes usou um argumento mais ou menos como este para provar a existência de Deus. Raciocinou ele: “Sou um ser finito, mas tenho a ideia de um Ser infinito. Tal ideia não poderia vir de qualquer fonte finita, como eu próprio. De modo que terá de ter vindo precisamente de um Ser infinito, e o facto de eu ter esta ideia mostra que Deus existe”. Ninguém pensa que isto é um argumento muito convincente. Uma razão é que usa um princípio explicativo muito simples: qualquer pensamento com conteúdo infinito tem de ter uma causa infinita. Foi por razões semelhantes a este princípio (e que fazem parte da sua história) que Platão pensava que se reflectirmos nas nossas capacidades para o conhecimento da geometria, podemos ver que não viemos ao mundo completamente nus: há um domínio de verdade geométrica que tivemos de ter (digamos) visitado.

Há uma sugestão de algo como isto em Nagel, também, numa expressão reveladora que ele usa numa passagem que já citei: “[...] lhes permite contactar com verdades universais [...]” (itálico meu). Sejam quais forem as explicações disponíveis da capacidade humana para fazer matemática, não irão envolver verdades matemáticas da maneira extraterrestre que esta expressão sugere. Poderá realmente acontecer que só por pensar acerca da natureza da matemática podemos excluir à partida a perspectiva de que poderá haver algumas explicações biológicas, em termos latos, da nossa capacidade para pensar matematicamente? Apesar de o tema da matemática ter, é claro, uma história cultural, as capacidades básicas envolvidas têm de ser o produto da evolução pela selecção natural, ou o subproduto de outra capacidade que surgiu desse modo. (Uma coisa que as explicações evolucionistas terão de fazer é tornar claras quais são essas capacidades.)

Nagel parece negar, com efeito, que uma explicação dessas possa existir: não irá certamente “explicar o aparentemente finito em termos do infinito”, como ele exige. Nagel pressupõe, penso, que qualquer explicação científica de capacidades matemáticas teria de ser reducionista no sentido drástico de eliminar completamente das ideias matemáticas o seu conteúdo infinito, de modo que acabaríamos por negar que todo o número natural tem um sucessor e que não há um número primo maior do que todos os outros.

Qualquer explicação que tivesse essa consequência seria certamente má. Mas nada do que Nagel diz mostra que não poderia haver uma explicação melhor que ligasse as capacidades matemáticas de uma maneira iluminante com outras características que os seres humanos têm em resultado da evolução. Isto seria uma explicação naturalista, num sentido mais lato do que Nagel, pelo menos neste caso, reconhece. O que queremos, tanto aqui como noutros casos, é um naturalismo sem reducionismo. Não queremos negar as capacidades que indubitavelmente temos, mas antes explicá-las; o objectivo de explicá-las é tornar inteligível que podem ser as capacidades de criaturas como nós, que têm uma certa história evolutiva e uma etologia muito especial, que envolve cultura e uma história autoconsciente.

4.

A questão de como as explicações das nossas ideias poderão afectar a nossa compreensão delas e de nós próprios assume uma forma muito diferente e bastante urgente, quando chegamos à ética. Nagel permite em princípio que possa haver explicações nada lisonjeadoras das ideias éticas liberais:

Para usar alguns exemplos grosseiros mas conhecidos, a única resposta possível à acusação de que uma moralidade dos direitos individuais não é senão uma carga de ideologia burguesa, ou um instrumento de dominação masculina, ou que a exigência de amar o próximo é afinal uma expressão de medo do próximo, ódio e ressentimento, é considerar de novo, à luz destas sugestões, se as razões para respeitar os direitos individuais ou para cuidar dos outros podem ser sustentadas, ou se disfarçam algo que não é de modo algum uma razão. E esta é outra questão moral. Não se pode pura e simplesmente sair do domínio da reflexão moral: está simplesmente aí. Tudo o que podemos fazer é levá-la por diante à luz de sejam quais forem as novas provas históricas ou psicológicas disponíveis. É o mesmo em todo o lado. Os desafios à objectividade da ciência só podem ser enfrentados usando mais raciocínio científico, os desafios à objectividade da história só pela história, e assim por diante. [Itálicos de Nagel]

Esta é a versão ética do tema de que não podemos sair de um tipo de pensamento, de que temos de “prosseguir do mesmo modo”. Mas levanta de novo a questão do quanto se resolve com essas fórmulas. Pois o que é “do mesmo modo”? Quão diversificadas podem as “razões morais” ser? A relevância das explicações culturais, psicológicas ou económicas para os valores éticos não consiste apenas em serem desafios a todos, colectivamente. O argumento de Nagel pode dar adequadamente conta desse desafio, mas ao fazê-lo derrota na melhor das hipóteses o niilismo ético, e não entra em contacto com as preocupações dos relativistas e subjectivistas. Entre outras, as explicações culturais das crenças éticas ajudam-nos a não esquecer que estas variam de lugar para lugar e, além disso, que as nossas próprias crenças têm uma história peculiar e provavelmente também uma psicologia peculiar. Essas considerações deveriam fazer-nos pensar de maneira diferente e mais reflexiva não apenas acerca do conteúdo das nossas crenças mas também acerca do estilo que usamos para argumentar a seu favor.

Em particular, há a questão de como pensamos acerca das nossas diferenças éticas relativamente a outras culturas, como aqueles povos do passado que não partilham o nosso liberalismo; escreve Nagel:

Perante o facto de os valores [liberais] se terem tornado comuns só recentemente e não em todo o lado, é preciso ainda decidir se são correctos — se devemos continuar a cultivá-los [...] Persiste a questão [...] de eu estar ou não errado caso tivesse aceitado como natural, e consequentemente justificado, as desigualdades de uma sociedade de castas [...]

Mas quanto tenho de decidir? Há aqui uma distinção crucial. Nagel está coberto de razão ao dizer que o liberal, se o for realmente, tem de aplicar o seu liberalismo ao mundo que o rodeia, e o conhecimento de que poucas pessoas na história do mundo foram liberais não é em si uma razão para abandonar o liberalismo. Se há razões para isso, terão de ser o género de considerações que sugerem que há algo melhor, mais convincente, ou mais inspirador em que acreditar. Nisto, concordo inteiramente com Nagel — ainda que se deixe de fora uma questão interessante, a de saber por que razão as pessoas tendem a perder as suas convicções deste modo, tema a que regressarei.

***

Assim, o liberal tem de levar as suas ideias a sério e considerar que se aplicam ao mundo. Mas a quanto do mundo? Segue-se, como Nagel diz, que “perante a descrição de uma sociedade tradicional de castas, tenho de me perguntar se as suas desigualdades hereditárias têm justificação [...]”? A maior parte de nós concordará que se nos for apresentada uma sociedade assim, como facto real, temos de nos fazer aquela pergunta. Mas será o mesmo se nos for apresentada uma descrição de uma sociedade assim, do passado distante, suponha-se, pertencente ao mundo antigo? Claro que ao pensar acerca desta sociedade antiga posso levantar a questão de Nagel, mas será verdadeiro que a força da razão exige que tenha de fazê-lo, e o que quer essa questão dizer? “Teria eu estado errado se tivesse aceitado que as suas desigualdades têm justificação?” — Mas quem estaria errado? Tenho de pensar que estou a visitar em juízo todos os recantos da história? Claro que podemos imaginar-nos como Kant na corte do Rei Artur, condenando as suas injustiças, mas que tracção tem isto exactamente no nosso pensamento ético?

Em particular, será realmente possível que se faça esta viagem imaginária só com a bagagem mínima da razão? Concedendo o facto notável de que ninguém tinha a mundividência liberal nessa altura, o viajante ético do tempo tem de levar consigo implicitamente a experiência histórica que fez dele o liberal que é, e essa experiência não pertence ao lugar que está visitando.

A ideia básica de que vemos as coisas como vemos devido à nossa situação histórica ficou ao longo de duzentos anos tão profundamente inserida na nossa perspectiva que é ao invés o pressuposto universalista de Nagel que pode parecer estranho, a ideia de que, de modo auto-evidente, o juízo moral tem de ter toda a gente em todo o lado igualmente como objecto. Parece igualmente estranho quando pensamos em viajar na direcção oposta. “Raciocinar é pensar sistematicamente de maneira tal que qualquer pessoa olhando por cima do meu ombro possa reconhecer que é correcta”, afirma Nagel perto do início do livro. Qualquer pessoa? Aqui estou raciocinando, com Nagel, de maneira liberal, e Luís XIV está olhando por cima dos nossos ombros. Ele não reconhecerá que os nossos pensamentos são correctos. Deveria fazê-lo? Ou, mais precisamente, deveria tê-lo feito quando estava no seu próprio mundo e ainda não tinha enfrentado a tarefa de tentar dar sentido ao nosso?

Somos reenviados à exigência de explicações. Se o liberalismo for correcto e caso se baseie na razão humana universal, como Nagel parece pensar, por que razão noutros tempos não o teve em consideração nem o aceitou? Kant tinha uma resposta na sua teoria do progresso e do iluminismo: os seres humanos tinham ultrapassado um longo período de tutelagem, e pela primeira vez podiam decidir racionalmente como haveriam de viver. Hegel e Marx deram respostas relacionadas, se bem que mais conflituosas, formuladas em termos históricos e económicos.

Nagel não sugere qualquer resposta e não parece querer uma resposta. Eu diria que Nagel não tem uma “teoria do erro” do que ele denomina correcção moral, mas quer o formule desse modo quer não, é certo que não tem uma explicação de algo que claramente o exige. Ele não pode dar como garantido que as explicações de várias crenças éticas irão no máximo mudar os seus conteúdos, do modo ilustrado pelo exemplo anódino dos peitos descobertos que já mencionei. Se viermos a compreender histórica e psicologicamente como as nossas próprias ideias éticas, assim como as dos outros, surgiram, isto pode mudar a maneira como pensamos acerca do estatuto das nossas ideias, e acerca da relação que têm com as das outras pessoas. Negligenciar esta possibilidade parece-me constituir uma forma de dogmatismo no sentido de Kant, uma recusa do tipo de crítica que fez da filosofia moderna (incluindo as deformações que Nagel correctamente rejeita) o que ela é.

***

Os leitores do livro de Nagel irão procurar pistas da perspectiva subjacente que o apoia nesta abordagem. Com respeito à ética, estou impressionado com dois dos seus pressupostos. Um deles é que se não considerarmos que a nossa moralidade é universalmente aplicável a toda a gente, não podemos aplicá-la com confiança onde temos na verdade de a aplicar, às questões do nosso próprio tempo. Afirmei que algumas pessoas parecem pensar que se o liberalismo é uma ideia recente e as pessoas do passado não eram liberais, elas próprias deveriam perder confiança no liberalismo aplicado ao mundo moderno. Isto, afirma Nagel, é um erro. Mas por que razão o liberal sem confiança o comete? Suspeito que é precisamente porque concorda com o universalismo de Nagel: pensa que se uma moralidade é correcta, tem de aplicar-se a toda a gente. De modo que se o liberalismo for correcto, tem de aplicar-se a todas aquelas pessoas do passado que não eram liberais.

Por que razão elas mesmas não o pensaram? Há quem diga que é porque eram colectivamente malévolas e egoístas; o liberal sem confiança pensa (correctamente) que isso é uma tolice que não explica coisa alguma. Há também quem acredite no progresso iluminado e que pense que era porque as pessoas do passado não dispunham de informação de qualidade, eram supersticiosas, etc. Mas o liberal sem confiança perdeu a fé nas ideias de progresso iluminado, e (muito razoavelmente) não consegue ver como os avanços na ciência e na tecnologia revelaram a verdade acerca do liberalismo. Ele fica com menos certezas de que o liberalismo se aplique a essas pessoas do passado, afinal de contas. De modo que começa a pensar que o liberalismo não pode estar correcto. Essa não é a conclusão que deveria tirar; o que deveria fazer é abandonar a crença universalista que partilha com Nagel. Isto não quer dizer que temos de ir dar a uma posição de ironia, sustentando o liberalismo como liberais, mas afastando-nos dele como críticos reflectidos. Esta posição está ela mesma ainda sob a sombra do universalismo. Só temos de reconhecer que novos tempos acarretam novas necessidades e novos poderes. Em muitos aspectos importantes, não somos como quaisquer outras pessoas do passado, e um desses aspectos é que temos ideias liberais, e maneiras de viver a que essas ideias se aplicam.

Uma segunda razão a favor da posição de Nagel na ética é, penso, o seu rígido entendimento do que é “continuar da mesma maneira”. Ele menciona, a certo ponto, a possibilidade de toda uma actividade ou maneira de continuar poder ser racionalmente rejeitada: dá o exemplo quase desafiadoramente trivial da leitura de folhas de chá. Ele pensa presumivelmente que essas coisas são apropriadamente rejeitadas porque são operações primitivas do pensamento que estão na mesma linha de actividade da ciência, e que a ciência se sai melhor. Mas quem disse que esta era a linha de actividade relevante? Como os antropólogos insistem, há outras maneiras de olhar para práticas como o augúrio. O que determina qual de várias práticas diferentes conta como “a mesma maneira de continuar”? Uma coisa é clara: os praticantes não podem simplesmente determiná-lo por si. O oráculo idoso entre os Azende diz: “É isto que conta como oráculo, e eu não considero que o que estes recém-chegados fazem seja o mesmo”. Mas apesar disso os seus clientes talvez se mudem para o novo hospital.

De modo que Nagel diz: o conteúdo da minha moralidade pode ser modificada por novas descobertas, mas esta maneira de argumentar, esta empresa universalista e racional, é exactamente o que conta como moralidade. Isto determina o que é continuar da mesma maneira. Então os oponentes de Nagel, os naturalistas e os herdeiros insatisfeitos da crítica de Kant, respondem: você não consegue pura simplesmente determinar o que conta como o mesmo. Dizemos que a sua moralidade peculiar tem propósitos: sem mencionar os menos amigáveis, tenta ajudar-nos a viver juntos, a formular imagens de uma vida que valha a pena viver, a dar sentido aos nossos desejos em relação aos desejos e necessidades das outras pessoas, e assim por diante. Tem havido outras maneiras de fazer estas coisas, e haverá sem dúvida outras no futuro. Porque o compreendemos, somos nós que num sentido mais abrangente continuamos da mesma maneira, vivendo o melhor que conseguimos orientando-nos pelo que faz sentido agora, sem esquecer que nem sempre fez sentido, tentando pôr a descoberto pistas de coisas novas que ninguém pode ainda compreender. O que você chama “continuar da mesma maneira” representa apenas um estilo de pensamento ético, estilo esse, em particular, que tenta esquecer que tem uma história.

Claro que quem pensa nestes termos não pode determinar, tal como Nagel também não pode fazê-lo, o que conta — o que terá contado — como continuar da mesma maneira ética. Nada pode fazê-lo, em última análise, exceto o próprio futuro. A Última Palavra, como sempre, está no que efetivamente surgir.

Notas

1. Nagel tem uma secção (p. 92 ss.) sobre o “idealismo transcendental” de Kant, defendendo que não pode evitar ser uma teoria empírica (inacreditável). Isto é certamente contrário às intenções de Kant. Pode-se compreendê-lo de uma maneira mais caridosa como alguém que não nega a ideia de que o mundo é, como ele próprio diz, “empiricamente real”, investigando ao invés qual é conteúdo que essa mesma ideia tem de ter, e como somos capazes de pensá-la.

2. Trata-se de um projecto de defesa balística norte-americana que permitiria, em teoria, eliminar quaisquer mísseis lançados contra os EUA. O sistema nunca passou do papel porque nunca se mostrou exequível. N. do T.

3. Por exemplo, mesmo Barry Barnes, David Bloor e John Henry, que estão associados ao denominado “programa forte” na sociologia do conhecimento científico, que dá ênfase aos factores sociais na formação e aceitação de teorias, rejeitam o “idealismo”, e insistem que uma explicação sociológica tem de pressupor as interacções entre a ciência e a realidade. Veja-se Scientific Knowledge: A Sociological Analysis (Londres: Athlone, 1906), pp. 1, 32.

4. Como o de Andrew Pickering, Constructing Quarks (Edinburgh University Press, 1984). Como o título leva a esperar, o próprio Pickering diz por vezes coisas como “[...] a realidade dos quarks foi o resultado da prática dos físicos de partículas [...]”, que não é uma maneira prudente de exprimir a sua conclusão (a década de setenta do século XX é um pouco tardia para o aparecimento dos quarks no universo), mas deve encorajar-nos a pensar noutras maneiras melhores de o exprimir. (Agradeço aqui a Ian Hacking, que discute estas matérias no seu próximo livro, The Social Construction of What? (Harvard University Press, 1999).

5. Citado por Pickering, p. 414.

6. Richard Rorty, “Does Academic Freedom Have Philosophical Presuppositions?” Academe (Novembro–Dezembro de 1994), pp. 56–57; citado por Nagel, pp. 29-30.

Bernard Williams (1929-2003) was Deutsch Professor of Philosophy at the University of California, Berkeley, and a Fellow of All Souls College, Oxford. His books include Problems of the Self, Moral Luck, Ethics and the Limits of Philosophy, and Truth and Truthfulness.

15 de outubro de 1998

A crise emergente do capitalismo mundial: do neoliberalismo à depressão?

Robert Brenner

Against the Current

Against the Current, No. 77, November/December 1998

Tradução / Os economistas marxistas têm fama de prever com exatidão todas as crises econômicas internacionais, menos a última. Talvez por isso muitos deles ultimamente têm tido uma cautela incomum de mais uma vez soar um alarme falso, mesmo que sinais das perturbações econômicas internacionais venham avolumando-se à sua volta.

Hoje, no entanto, a previsão não é mais necessária. A economia internacional, excetuando-se os Estados Unidos e a Europa — talvez 50% do mundo —, já vive um descenso econômico pior do que qualquer outro ocorrido desde a década de 1930. Fora dos Estados Unidos e da Europa, as ações caíram em quase todos os lugares de 50 a 75% entre julho de 1997 e julho de 1998, e os patrimônios líquidos dos mercados emergentes caíram mais 33% só em agosto e setembro. Na Indonésia, a fome já virou um fato do dia-a-dia; na Rússia, onde a expectativa de vida já declinou cinco anos, os padrões de vida foram reduzidos em 50% ou mais; no leste asiático, milhões estão sendo dispensados dos empregos e lançados na pobreza. Na América Latina, que apenas recentemente começou a se recuperar da desastrosa “década perdida” dos anos 80, os mesmos efeitos começaram a se manifestar com crescente intensidade. Para piorar a situação, a economia dos Estados Unidos, que fôra o principal motor do nascente ciclo ascendente internacional, está com sérios problemas. Recentemente, em junho de 1998, Alan Greenspan, chefe do Federal Reserve (Fed)2 dos Estados Unidos, em depoimento ao Congresso, surpreendeu até propagandistas empresariais ao admitir “ser possível que tenhamos (...) ido ‘além da história’”, isto é, transcendido o ciclo econômico e alcançado crescimento perpétuo.

Porém, em meados de outubro, o mesmo Alan Greenspan já havia reduzido a taxa de juros duas vezes, numa tentativa de neutralizar pressões deflacionárias internacionais cada vez mais poderosas. Enquanto isso, o Federal Reserve chocou Wall Street ao coordenar o socorro (bailout) de um fundo de hedge de bilhões de dólares. Greenspan explicou que o Fed fez isso porque, se deixasse o fundo falir, muito provavelmente se desencadearia uma desintegração financeira mundial. A economia dos Estados Unidos hoje está deslizando para a recessão e, se se deixar isso se materializar, a conseqüência poderia ser desastrosa para a economia mundial.

O ponto central é, naturalmente, o seguinte: o que está por trás da crescente turbulência econômica internacional? Deve-se ressaltar que até muito recentemente nem a corrente dominante dos profissionais de economia dos Estados Unidos, nem os apologistas das empresas dos Estados Unidos, nem qualquer um dos meios de comunicação tinham nenhuma resposta a essa questão. Isso porque eles não estavam dispostos a reconhecer a existência de qualquer problema realmente sério com a economia dos Estados Unidos. Isso aconteceu apesar do fato de que — ao contrário da propaganda da mídia — o desempenho econômico dos Estados Unidos tem sido verdadeiramente sofrível, num período longo. Durante os últimos 25 anos, o crescimento anual médio da produtividade do trabalho nos Estados Unidos — Produto Interno Bruto (PIB) por hora — foi menos de 1% ao ano, ou seja, bem menos da metade da média do século anterior. Ao longo destes mesmos 25 anos, entre 1973 e 1998, o aumento salarial real foi menor do que em qualquer momento da história dos Estados Unidos desde a Guerra Civil, incluindo-se a Grande Depressão. Em 1997, o salário real por hora de operários da produção (sem a inclusão dos benefícios) estava no mesmo nível de 1965.

Talvez o mais estarrecedor, durante o ciclo ascendente dos anos 90, quando a economia dos Estados Unidos entrou ostensivamente numa “Nova Era” e supostamente demonstrou, sem dúvida, a superioridade do “modelo anglo-saxônico” sobre todos os demais, foi que a performance econômica dos Estados Unidos foi, com base em quase todo indicador macroeconômico padrão — crescimento da produção, investimento, produtividade e salários — pior do que em qualquer ciclo ascendente da época pós-guerra. Economistas, apologistas das empresas e os meios de comunicação foram capazes de desviar os olhos do medonho desempenho da economia real dos Estados Unidos porque a inflação havia sido diminuída de acordo com as necessidades do setor financeiro, as taxas de lucro haviam tido uma recuperação significativa (se bem que incompleta), após um longo período de severa depressão, e sobretudo porque o mercado de ações estava batendo todos os recordes.

Uma ruptura no Consenso de Washington

Não obstante, durante os últimos meses, houve uma importante ruptu-ra no Consenso de Washington. Com a crise asiática catalisando o colapsorusso e ameaçando tragar a economia mundial, importantes economistas dopróprio coração do establishment político e econômico dos Estados Unidos— inclusive alguns daqueles que, como Jeffrey Sachs, haviam pressionadoinsistentemente a favor da “terapia de choque” e da liberalização generaliza-da — estão correndo em busca de abrigo. Estes economistas, um tanto sur-preendentemente, estão jogando a culpa pela conflagração desenfreada noque foi chamado de complexo formado pelo Tesouro dos Estados Unidos epelo Fundo Monetário Internacional. Estão defendendo dois argumentos afins.

Um é que a intervenção do FMI no leste asiático foi desastrosamentecontraprodutiva. Argumentam que, no rastro da fuga maciça de capital quecatalisou a crise na Ásia, era necessária uma injeção de recursos para evitarque a crise de liquidez destruísse as bases das economias. Isso teria sido omesmo tipo de injeção de dinheiro barato em larga escala que o Federal Re-serve e os japoneses haviam feito na época da quebra do mercado de açõesem 1987. Porém, o que o FMI forneceu foi o contrário. A exemplo do queHerbert Hoover fizera em 1929, ao exigir o equilíbrio orçamentário no rastroda quebra da bolsa de valores, o FMI impôs taxas de juros altas e austerida-de econômica, como faz rotineiramente. O resultado foi a intensificação dopânico de investidores internacionais, acelerando sua fuga e, ao mesmo tem-po, assegurando a ocorrência de uma catastrófica reação em cadeia de falên-cias de empresas, que impossibilitavam o pagamento de empréstimos e au-mentavam o desemprego, levando a mais falências, etc.

Para além disso, esses economistas argumentam que adesregulamentação dos movimentos de capital de curto prazo está na origemda crise internacional. O dinheiro correu para o leste asiático quando as pers-pectivas pareciam boas, porém sumiu ainda mais rapidamente quando o cli-ma de negócios parecia piorar. Isso precipitou uma depressão na base realdas economias, que agora ameaça se espalhar para o resto do mundo. Ora, éóbvio que, no longo prazo, é o próprio desdobramento da crise que maiscontribuirá para transformar as visões de mundo neoliberais, tanto de inte-lectuais, quanto dos cidadãos em geral. É igualmente evidente que esses eco-nomistas do “sistema” só estão vendo a ponta do iceberg.

No entanto, penso que mesmo suas análises muito parciais e superfici-ais não devem ser ignoradas pela esquerda. Em primeiro lugar, a crítica quefazem do mercado livre para o empréstimo de curto prazo é correta, dentro deseus limites. Os fluxos maciços e não regulados de capital de curto prazorealmente exacerbaram de modo radical a crise do leste asiático, mesmo queeles não tenham sido sua origem última. Em segundo lugar, a crítica destes às condições de empréstimo impostas pelo FMI no leste asiáticoajuda a chamar a atenção para o caráter claramente imperialista da interven-ção do FMI naquela região. Essa intervenção não se destinava apenas a im-por altas taxas de juros e austeridade. Tinha o objetivo, mais notadamente naCoréia, de destruir um sistema de regulação e proteção econômica que aju-dara a viabilizar uma das mais espetaculares trajetórias de crescimento nahistória mundial. Mas, exatamente porque as economias do leste asiáticohaviam sido tão bem sucedidas mesmo pelos próprios critérios do FMI, ochamado programa de reformas do FMI expôs o Fundo, talvez de maneiramais claramente do que nunca antes, como instrumento do capital internaci-onal, ao impor à força a abertura neoliberal às economias do leste asiáticopara a penetração dos grandes bancos e multinacionais. Em terceiro lugar, etalvez mais importante, a crítica feita por esses economistas tem uma boadose de significado ideológico. Isso porque implicitamente, e sem dúvida nãointencionalmente, eles estão desafiando o que se tornou o dogma central denossa época: o de que se pode esperar que o mercado livre seja, em geral,capaz de garantir o melhor de todos os resultados possíveis.

Obviamente, esses economistas limitam a crítica ao mercado de investi-mentos de curto prazo. Não obstante, uma vez que deixa de ser possível simples-mente aceitar como natural o princípio primeiro de que a alocação proporciona-da pelo mercado livre em si sempre dará o melhor resultado possível, o caminhoé aberto para se questionar a adequação desta alocação em todos os setores davida econômica — alocação dos investimentos de longo prazo, das mercadoriase, naturalmente, de maneira mais central, da força de trabalho pelo mercado.

A esquerda, em outras palavras, recebeu uma abertura intelectual peque-na, porém importante, para começar, mais uma vez, a tarefa fundamental, masmuito difícil, de sustentar nossa afirmação central — uma afirmação na qualmuitos perderam a confiança, na esteira do colapso do comunismo e da emergên-cia do neoliberalismo. Trata-se da afirmação da indispensabilidade do socialismo— isto é, de controle social, democrático sobre a economia pela classe trabalha-dora, a partir de baixo — para qualquer ordem societária humana.

A visão consensual da esquerda

Ora, a resposta consensual da esquerda a essa corrente dominante deeconomistas, seria que eles oferecem uma análise superficial e muito parcial aoexplicar a crise econômica internacional tendo como referência apenas a liber-dade e a irresponsabilidade do investimento de curto prazo. Obviamente, aliberdade dos movimentos de curto prazo do capital é parte integrante do pro-grama neoliberal muito mais amplo, que vem ganhando força desde o final dosanos 70. Este programa consiste em, de um lado, tornar o mundo o mais livrepossível para o deslocamento de capital e mercadorias, e, de outro lado, destruir as proteções aos trabalhadores duramente conquistadas ao mercado e ofe-recidas pelo Welfare State (Estado de Bem Estar Social). Seria consensual naesquerda que este abrangente programa neoliberal deve ser, de fato, responsabilizado por muitos dos problemas que atualmente afligem a economia mundi-al, e que a crise atual é, em importante medida, resultado de sua implementação.O que poderia ser chamado de argumento consensual da esquerda se-ria mais ou menos o seguinte: a tendência central a que vimos assistindo,especialmente desde o final dos anos 70, é a dominação crescente do capitalfinanceiro. A lógica das políticas neoliberais tem sido, pois, de garantir, pro-teger e expandir o campo de obtenção de lucro para o capital financeiro e asmultinacionais. Porém, as políticas necessárias para garantir os interesses docapital financeiro foram implementadas às expensas das bases da economia,em geral, e da classe trabalhadora, em particular.Em primeiro lugar, para proteger os rendimentos dos empréstimos con-tra os estragos da inflação, os Estados capitalistas implementaram políticasmacroeconômicas permanentemente restritivas, com contenção do crédito eequilíbrio orçamentário. Porém, essas mesmas políticas foram causas cen-trais do crescimento lento e alto desemprego que dominaram as economiasmundiais desde o final dos anos 70.Em segundo lugar, para possibilitar os melhores rendimentos ao capi-tal financeiro, foram reduzidas as barreiras à mobilidade do capital, permi-tindo sua entrada e saída rápidas dos mercados. Entretanto, essa mobilidadedo capital dificultou ainda mais a implementação de políticas nacionais decrescimento e, em particular, a adoção de políticas de estímulo de financia-mento do deficit público com empréstimos (deficit spending) e crédito fácilpara ajudar a combater o desemprego.

Terceiro, como até Jeffrey Sachs e companhia começaram a admitir,ao possibilitar que o capital entre rapidamente num campo, quando as perspectivas parecem favoráveis, e saia, de modo igualmente rápido, quando sur-ge o menor sinal de problema, a liberação dos mercados de capital dificultoua sustentação de qualquer processo de desenvolvimento econômico de prazomais longo, especialmente no Terceiro Mundo. Isso porque o desenvolvimen-to econômico depende, obviamente, do compromisso de longo prazo de re-cursos produtivos em determinadas linhas de produção e não agüenta as sú-bitas retiradas de capital que se tornaram fatos corriqueiros na ordemneoliberal.Excesso de capacidade e de produçãoOra, a meu ver, essa análise da atual situação econômica faz muitosentido, com certas ressalvas. Porém, sem certas qualificações — sem umacontextualização maior — pode ser potencialmente equivocada.

Para colocar o argumento mais cruamente: a ascensão do capital finan-ceiro e do neoliberalismo deve ser vista muito mais como conseqüência do quecausa da crise econômica internacional — mesmo que eles a tenham exacerba-do significativamente. A crise, por seu vez, tem suas raízes profundas numacrise secular da lucratividade que resultou do excesso constante de capacidadee de produção do setor manufatureiro internacional. Em primeiro lugar, o gran-de deslocamento do capital para as finanças foi a conseqüência da incapacida-de da economia real, especialmente das indústrias de transformação, de propor-cionar uma taxa de lucro adequada. Assim, a aparição do excesso de capacida-de e de produção, acarretando perda de lucratividade nas indústrias de transfor-mação a partir do final da década de 1960, foi a raiz do crescimento aceleradodo capital financeiro a partir do final da década de 1970.Em segundo lugar, a guinada para o neoliberalismo, também iniciadano final dos anos 70, só começou a acontecer depois de as políticas keynesianasde controle da demanda (demand management) terem demonstrado incapaci-dade de restaurar a lucratividade e reacender a acumulação de capital. Do ponto de vista do capital, o monetarismo e o neoliberalismo de maneira mais geralforam uma resposta ao fracasso da primeira opção, os gastos com o financia-mento do déficit por meio de empréstimos (deficit spending) na linha keynesiana.

Terceiro, embora as políticas de restrição de crédito e de equilíbrioorçamentário ressaltadas no programa neoliberal tenham sido motivadas emparte pelo desejo de defender os lucros do capital financeiro, a sua lógicainicial e primeira foi, mediante a redução do crescimento da demanda, pro-mover, de duas maneiras, a recuperação da lucratividade no âmbito do sistema: 1) aumentando o desemprego, para enfraquecer o trabalho e reduzir ocrescimento salarial; 2) forçando um rearranjo (shakeout) no conjunto defirmas de custos elevados e lucros baixos, para deixar apenas empresas decustos baixos e lucros altos no controle dos mercados, elevando, assim, ataxa média de lucro.

Finalmente, no entanto, mesmo que a ascensão do capital financeiro edo neoliberalismo deva ser entendida mais como conseqüências do que comocausas da estagnação e instabilidade econômica de longa duração, a adoçãointegral do programa neoliberal no âmbito de todo o sistema teve um papelfundamental na determinação da transição dos problemas de lucratividade delonga duração e da estagnação secular para a intensa crise atual. Isso sóaconteceu nos anos 90, quando a mudança da política de financiamento dodéficit recorde por meio de empréstimos de Reagan para a de equilíbrio orça-mentário de Clinton preparou o caminho para problemas muito maiores decrescimento e instabilidade.No restante deste texto, pretendo oferecer comprovação adicional dasproposições precedentes apresentando um relato esquemático do surgimento, persistência e exacerbação do excesso de capacidade e de produção fabril emescala mundial e delineando seu papel na crise atual.As raízes profundas da estagnaçãoO meu argumento é que as raízes da estagnação de longa duração e dacrise atual estão na compressão dos lucros do setor manufatureiro que seoriginou no excesso de capacidade e de produção fabril, que era em si aexpressão da acirrada competição internacional.

A partir da segunda metade da década de 1960, produtores de custosmenores que surgiram depois, alemães e especialmente japoneses, expandi-ram rapidamente sua produção. Ao impor preços menores aos seus concor-rentes de custo mais alto, as firmas alemãs e japonesas foram capazes deaumentar imediatamente suas fatias dos mercados internacionais de manufa-turas e manter suas taxas de lucro, reduzindo as fatias do mercado e taxas delucro de suas rivais. O resultado foi excesso de capacidade e de produçãofabril, expresso na menor lucratividade agregada no setor manufatureiro daseconomias do grupo dos 7 (G-7) como um todo. Os fabricantes com custosaltos dos Estados Unidos sofreram originalmente o impacto dessa queda, ten-do a lucratividade caído cerca de 40% no setor fabril e 25-30% na economiacomo um todo entre 1965 e 1973. Em 1973, no entanto, tanto o Japão quantoa Alemanha haviam sido forçados a arcar com parte do ônus da crise delucratividade. Isso porque foram obrigados a enfrentar custos cada vez maio-res, em conseqüência da severa valorização de suas moedas em relação aodólar que ocorreu no momento da crise monetária internacional e do colapsoda ordem de Bretton Woods entre 1971 e 1973.Foi a grande queda de lucratividade dos Estados Unidos, Alemanha, Japão e do mundo capitalista adiantado como um todo — e sua incapacidadede recuperação — a responsável pela redução secular das taxas de acumula-ção de capital, que são a raiz da estagnação econômica de longa duração aolongo do último quartel de século. As baixas taxas de acumulação de capitalacarretaram índices baixos de crescimento da produção e da produtividade;níveis reduzidos de crescimento da produtividade redundaram em percentuaisbaixos de aumento salarial. O crescente desemprego resultou do baixo au-mento da produção e do investimento.

A questão fundamental que imediatamente se coloca, no entanto, ésaber o que foi responsável pela perpetuação do excesso de capacidade e deprodução por trás da queda secular de lucratividade. Dito de outra forma: porque, de acordo com as expectativas comuns, as firmas que sofriam a quedade lucratividade em suas linhas não mudaram para outros ramos numa exten-são suficiente para aliviar o excesso de capacidade? A meu ver, há três res-postas gerais a esta questão.

A primeira é que as grandes corporações dos Estados Unidos, Alema-nha e Japão que dominavam o setor fabril mundial pareciam ter perspectivasmuito melhores de manter e aumentar a lucratividade pelo incremento dacompetitividade em suas próprias linhas do que pela transferência para ou-tros setores. Elas contavam com grandes volumes de capital empatado já pagoem suas próprias linhas; tinham relações antigas com fornecedores e clientesque não podiam ser facilmente reproduzidas em outros ramos; haviam cria-do, durante longo período, um saber tecnológico especializado, duramente conquistado, que era útil apenas em suas próprias linhas. Assim, durante eapós a década de 1970, as corporações dos Estados Unidos, Alemanha eJapão geralmente não largaram suas posições a menos que fossem forçadas aisso, e o resultado foi que havia pouca saída e alívio para o excesso de capa-cidade fabril.Em segundo lugar, a despeito da redução de lucratividade nos setoresfabris mundiais, os fabricantes de custos baixos, sediados especialmente noleste da Ásia, acharam lucrativo ingressar em muitos desses setores, da mes-ma forma que fizeram seus predecessores do Japão. Houve, pois, entradas emdemasia, exacerbando mais o excesso de capacidade.

Por fim, as políticas keynesianas, que se universalizaram nos anos 70e persistiram nos Estados Unidos até o início dos anos 90, contribuíram efe-tivamente para a perpetuação do excesso de capacidade e de produção e,assim, ajudaram a manter baixas as taxas de lucro agregadas. Pelo aumentoda demanda, o financiamento do déficit por empréstimos e o crédito fácilpermitiram, assim, que muitas firmas de custos altos e lucros baixos — que,de outro modo, teriam ido à falência — continuassem em atividade e manti-vessem posições que poderiam, em situação diferente, ser ocupadas por em-presas de custos baixos e lucros altos. O keynesianismo, assim, amenizouinquestionavelmente a longa retração econômica, porém também a prolon-gou, afastando uma depressão semelhante à dos anos 30. Isso, no entanto,teve o preço de reduzir o dinamismo do sistema ao manter em atividade em-presas que obtinham lucros baixos e investiam pouco.

Da estagnação para a crise

O rompimento definitivo com o keynesianismo, cabe ressaltar, real-mente só aconteceu nos anos 90. Quando isso ocorreu, no entanto, pareceter constituído uma condição decisiva para a existência da turbulência eco-nômica de hoje, abrindo o caminho para que a economia internacional pas-sasse de uma estagnação de longa duração para uma crise intensa. Alucratividade menor, decorrente do excesso de capacidade e de produção,vinha obviamente reduzindo a acumulação de capital — daí o crescimentomenor da demanda de investimento desde 1973. Aproximadamente desde a mesma época, em resposta à diminuição da lucratividade, os empregadoresvinham impondo aos trabalhadores um aumento salarial bem menor, o quediminuía o aumento da demanda de consumo. Quando Volker, chefe doFederal Reserve, e Margaret Thatcher impuseram o aperto monetário nofinal dos anos 70, a explosão das taxas de juros reais deprimiu a economiamais ainda. Assim, sem o aumento da demanda governamental resultantedo incremento enorme dos gastos militares promovido por Ronald Reagan,é duvidoso que a economia mundial pudesse ter evitado uma depressão realnos anos 80, especialmente na época da crise internacional da dívida de1981-1982 e depois.Porém, com a ascensão de Bill Clinton, os Estados Unidos passaram aadotar o equilíbrio orçamentário, bem como o aperto monetário, e esta ado-ção definitiva do neoliberalismo parece ter assinalado um ponto de virada.Isso porque pôs um fim ao papel que os Estados Unidos haviam desempenha-do por muito tempo na estabilização da economia internacional, aumentandoa demanda por meio de grandes déficits governamentais.A desaceleração da demanda governamental foi agora agregada ao járeduzido crescimento do consumo e demanda de investimento. Enquanto osdispêndios governamentais nos Estados Unidos cresceram em média 2,4%,por ano, nos 30 anos anteriores, durante os anos 90 elevaram-se apenas 0,1%ao ano. Como os governos europeus vieram também impondo uma austerida-de ainda mais feroz na corrida para a união monetária, o crescimento demercados domésticos em todo o mundo capitalista avançado foi reduzido atéentrar num ritmo de tartaruga. Para compensar, os produtores de todos ospaíses tinham poucas opções a não ser a intensificação radical de sua orien-tação para as exportações. Porém, como as exportações compõem-se na suamaioria de manufaturas, o resultado tem sido a exacerbação do problemasecular do excesso de capacidade fabril.

A maturação da crise atual

É a deterioração do excesso de capacidade fabril que preparou o terre-no para a cadeia de eventos que resultou na crise atual.

Durante a maior parte dos anos 90, os Estados Unidos foram virtual-mente os únicos que prosperaram entre as principais economias capitalistas,conseguindo uma grande recuperação da lucratividade, se bem que incomple-ta, notadamente no seu setor fabril, em depressão há muito tempo. Porém, arecuperação dos Estados Unidos se deu, principalmente, às custas da econo-mia internacional. Isso porque foi conseguida em grande medida por um cresci-mento acentuado das exportações, possibilitadas por um forte aumento dacompetitividade. Os ganhos dos produtores dos Estados Unidos, tendo em vistao lento crescimento da demanda internacional e, em particular, o excesso de oferta nos mercados industriais, foram obtidos em grande parte às expensas deseus principais rivais naquilo que se transformou, em larga medida, numa lutade soma zero por mercados. Em particular, o setor fabril dos Estados Unidosgarantiu sua revitalização em grande parte com a desvalorização do dólar em40-60% contra o marco e o yen, no decorrer de uma década. Assim, enquantoa economia dos Estados Unidos recuperou-se durante a primeira metade dosanos 90, os fabricantes alemães e especialmente os japoneses encontraram difi-culdades de exportação e viveram suas piores crises da época do pós-guerra.Em 1995, de fato, com o yen cotado a 80 por dólar, quando alcançara 240 pordólar dez anos antes, a economia japonesa estava à beira do colapso. Somenteo acordo dos governos dos Estados Unidos, Alemanha e Japão na primavera de1995 para revalorizar o dólar e desvalorizar fortemente o yen salvou o Japão.Não obstante, o socorro ao Japão teve conseqüências imprevistas — mais par-ticularmente a crise asiática. Isso porque os ganhos de produtores de uma eco-nomia — especialmente uma tão grande e poderosa quanto a do Japão — sópoderiam acontecer com perdas de outros. As economias do leste asiático havi-am sido capazes de crescer tão espetacularmente durante toda a primeira meta-de dos anos 90 conjugadas à dos Estados Unidos — e às expensas de produto-res com base no Japão — somente porque suas moedas haviam sido atreladasao dólar e, por isso, haviam caído juntamente com o dólar em relação ao yen. ACoréia, em particular, havia melhorado constantemente sua competitividadeporque o dólar e, portanto, a moeda coreana, o won, caíra, e o investimento naCoréia disparara, como se não houvesse limite ao mercado. Não obstante, quandoo yen finalmente começou a despencar contra o won e outras moedas do lesteasiático a partir de 1995, constatou-se que a economia coreana e, por seu turno,as demais economias do sudeste asiático haviam investido em demasia. Viram-se às voltas com capacidade extremamente excessiva e, por causa do aumentodos seus custos decorrente das suas moedas revalorizadas, com grande dificul-dade de vender com lucro. Quando, durante a primeira metade de 1997, oscredores internacionais começaram a notar que a lucratividade dos produtoresdo leste asiático desabava e o crescimento de suas exportações declinava emrelação às importações, passaram a correr para a porta de saída. Em conseqü-ência, as moedas do leste asiático rapidamente perderam seu valor, um fatoparticularmente desastroso em vista do seu forte endividamento comfinanciadores internacionais.

A essa altura, o FMI tornou tudo muito pior. Ao impor um acentuadoaumento das taxas de juros, assegurou a exacerbação dos problemas que asfirmas já tinham em pagar suas dívidas, abrindo caminho para uma espiraldescendente de incapacidade para honrar dívidas, ocasionando falências edispensas de empregados, o que acentuou a incapacidade de pagar dívidas,etc. Dessa forma, a crise do leste asiático transformou-se em depressão.

O resto da história é razoavelmente bem conhecido. Em 1996, a re-gião do leste asiático como um todo havia investido o mesmo que os EstadosUnidos, que são muito maiores. Assim, quando entrou em depressão, os re-sultados só poderiam ser cruciais. Os seus mercados entraram em colapso esuas exportações aceleraram. A economia japonesa, que procurara sair dacrise, durante os anos 90, reorientando-se para o leste asiático, viu-se numimpasse, em face da contração dos mercados do leste asiático, e só podia teresperança de se recuperar pelo aumento de suas exportações para outros lu-gares. A Alemanha e, de modo geral, a Europa também tentavam sair darecessão pela via das exportações.

O foco de toda essa exportação só poderia ser a economia que cresce-ra e expandira seu mercado doméstico, ou seja, a economia dos Estados Uni-dos, que, em 1997, finalmente principiara a desfrutar de crescimento domés-tico acelerado, até mesmo com salários reais crescentes, porém só consegui-ra isso pela intensificação das exportações industriais. A continuação destedinamismo foi, pois, imediatamente posta em dúvida, em conseqüência daascensão recente do dólar, que inevitavelmente acompanhou o sucesso eco-nômico dos Estados Unidos. Quando, no decorrer da primeira metade de 1998,ajudadas pelo dólar alto, as importações começaram a invadir os EstadosUnidos e, no mesmo período, prejudicadas pelo dólar alto, as exportaçõesdos Estados Unidos cessaram de crescer devido à contração dos mercadosasiáticos, os lucros industriais dos Estados Unidos tinham de cair e o boomdos Estados Unidos tinha de acabar. Foi o fim do boom do setor fabril dosEstados Unidos — ele próprio resultante da intensificação da concorrênciainternacional por conta do permanente excesso de capacidade e de produçãointernacional — a causa imediata de a economia dos Estados Unidos deslizarpara a recessão ou algo pior. Durante a primeira metade de 1998, após cres-cerem de modo impressionante por vários anos e impulsionarem o boom dosEstados Unidos, os lucros do setor industrial foram comprimidos, com impli-cações de largo alcance para a economia, sendo a explosão da bolha do mer-cado acionário a mais importante. A valorização das ações, fortemente am-parada por crescentes lucros do setor industrial, juntamente com a rápidaexpansão das exportações, alimentara o crescimento dos Estados Unidos aosustentar tanto o aumento dos gastos do consumo quanto a elevação dos in-vestimentos. Com as ações tão valorizadas, os consumidores pensavam quesua riqueza aumentara e portanto não precisavam poupar e, ao reduzir pro-fundamente sua taxa de poupança, haviam, nos últimos anos, elevado acen-tuadamente o índice de consumo. Com as ações tão altas, as empresas eramcapazes de levantar recursos a uma taxa bem mais baixa pela venda de ações,o que levou à aceleração do investimento. Porém, com o mercado acionárioem queda, os chamados “efeitos da riqueza” sofreram uma reviravolta. O Banco Central dos Estados Unidos estima que a perda líquida de riqueza emtodos os produtos financeiros dos Estados Unidos desde o auge do mercadoacionário em julho de 1998 corresponda a cerca de US$ 1,5 trilhão de dóla-res. Como as pessoas percebem que dispõem de uma riqueza bem menor doque pensavam que tinham até muito recentemente, inevitavelmente estão pou-pando mais e consumindo menos. Com a queda das cotações das ações, asempresas estão tendo que pagar mais para levantar recursos, e seus investi-mentos vêm minguando. Para piorar a situação, o fim da bolha do mercado deações trouxe uma tremenda perda de confiança empresarial, e os financiadores,duvidando da capacidade de os devedores3 pagarem os empréstimos e, toma-dos de pânico, estão resgastando seus títulos no ímpeto de obter liquidez (ouseja, risco menor e moeda forte). Um crescente “arrocho do crédito” vemassim tornando difícil para as empresas ou indivíduos obter empréstimos,solapando fortemente tanto a produção nova quanto o consumo novo.

Tampouco há muita esperança de que a crise de exportação, e do setorfabril de modo mais geral, que tem sido a fonte última da desaceleração dosEstados Unidos, possa ser superada. Ao contrário. Na maioria das regiões domundo, a produção continua a recuar, os mercados contraem, o crédito ficacada vez mais difícil, e os próprios produtores locais estão cada vez maisdependentes das exportações para sobreviver.

O fato é que a economia mundial por um bom tempo orientou-se paraa economia dos Estados Unidos para impulsioná-la. Com a expansão dosEstados Unidos chegando ao fim, sob o impacto da invasão mundial de ex-portações industriais, fica difícil ver onde serão encontradas as forças paraneutralizar a grave recessão.

Robert Brenner é editor de Against the Current e autor de "The Economics of Global Turbulence" New Left Review 299. Este artigo é uma versão ligeiramente revisada do discurso de abertura de "The Marx International Congress II: Capitalism, Critique, Resistance, Alternatives", patrocinado pela revista Actuel Marx, com a colaboração do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS). Foi apresentado em 30 de setembro de 1998, na Sorbonne, em Paris.

2 de junho de 1998

As origens agrárias do capitalismo

Ellen Meiksins Wood


Tradução / Uma das convenções mais arraigadas da cultura ocidental é aquela que associa capitalismo a cidades. O capitalismo supostamente nasceu e cresceu nas cidades. Mais que isso, a implicação é de que qualquer cidade – com seus aspectos característicos de comércio e troca – é, por sua própria natureza, potencialmente capitalista, e somente obstáculos exógenos impediriam qualquer civilização urbana de dar surgimento ao capitalismo. A religião errada, a forma errada de Estado, ou qualquer tipo de constrangimento ideológico, político ou cultural, atando as mãos das classes urbanas é que teria impedido o capitalismo de brotar em todos os lugares, desde tempos imemoriais – ou pelo menos desde que a tecnologia permitiu a produção de excedentes suficientes.

De acordo com esta visão, o desenvolvimento do capitalismo no ocidente se explica pela autonomia ímpar das suas cidades e das suas classes únicas (típicas), os habitantes dos burgos ou burgueses. Em outras palavras, o capitalismo emergiu no Ocidente menos em decorrência do que estava presente do que daquilo que estava ausente: limitações às práticas econômicas urbanas. Nessas condições, foi preciso apenas uma relativa expansão espontânea do comércio para desencadear o desenvolvimento do capitalismo e levá-lo à maturidade. Só faltava então um crescimento quantitativo, que teve lugar quase automaticamente com o passar do tempo (em algumas versões, é claro, auxiliado, mas não necessariamente causado, pela ética protestante).

Há muito a ser dito a propósito destas pressuposições sobre a ligação natural entre cidades e capitalismo. Dentre elas, está o fato de que tendem a naturalizar o capitalismo, a disfarçar sua característica distintiva de ser uma forma social específica com um começo e (sem dúvida) com um fim. A tendência de identificar capitalismo com cidades e comércio urbano tem sido acompanhada pela inclinação de considerar o capitalismo mais ou menos como uma decorrência automática de práticas tão antigas quanto a história humana, ou até mesmo como a conseqüência automática da natureza humana, a inclinação “natural” para o comércio, nas palavras de Adam Smith “truck, barter and exchange”.

Talvez o corretivo mais salutar para tais pressuposições – e suas implicações lógicas – seja o reconhecimento de que o capitalismo, com todo o seu impulso específico de acumular e de buscar o lucro máximo, nasceu não na cidade mas no campo, num lugar muito específico, e tardiamente na história humana. Ele requer não uma simples extensão ou expansão do escambo e da troca, mas uma transformação completa nas práticas e relações humanas mais fundamentais, uma ruptura nos antigos padrões de interação com a natureza na produção das necessidades vitais básicas. Se a tendência de identificar capitalismo com cidades se apresenta associada à de obscurecer a sua especificidade, uma das melhores maneiras de entender esta especificidade é examinar as origens agrárias do capitalismo.

No que consistiu o “capitalismo agrário”?

Por muitos milênios, os seres humanos proveram suas necessidades materiais através do trabalho da terra. E provavelmente durante um período mais ou menos similar estiveram divididos em classes sociais, constituídas por aqueles que trabalhavam a terra e aqueles que se apropriavam do trabalho dos outros. Esta divisão entre produtores e apropriadores tem assumido diversas formas dependendo do tempo e do lugar, mas possuindo uma característica geral, qual seja, a de que os produtores diretos têm sido camponeses. Estes produtores camponeses permaneceram na posse dos meios de produção, especificamente a terra. Como em todas as sociedades pré-capitalistas, esses produtores tinham acesso direto aos meios de sua própria reprodução. Isto significa que a apropriação do trabalho excedente pela camada exploradora era feita pelo que Marx chamou de meios “extra-econômicos” – quer dizer, por meio de coerção direta, exercida pelos senhores rurais e/ou Estado, através do emprego de força superior, acesso privilegiado aos poderes militares, judiciais e políticos.

Aqui está, portanto, a diferença essencial entre todas as sociedades pré-capitalistas e as capitalistas. Não tem nada a ver com o fato de a produção ser urbana ou rural e tem tudo a ver com as relações de propriedade entre produtores e apropriadores, seja na agricultura ou na indústria. Somente no capitalismo, a forma dominante de apropriação do excedente está baseada na expropriação dos produtores diretos, cujo trabalho excedente é apropriado exclusivamente por meios puramente econômicos. Devido ao fato de que os produtores diretos numa sociedade capitalista plenamente desenvolvida se encontram na situação de expropriados, e devido também ao fato de que o único modo de terem acesso aos meios de produção, para atenderem aos requisitos da sua própria reprodução, e até mesmo para proverem os meios do seu próprio trabalho, é a venda da sua força de trabalho em troca de um salário, os capitalistas podem se apropriar da mais-valia produzida pelos trabalhadores sem necessidade de recorrer à coerção direta.

Esta relação particular entre produtores e apropriadores é, obviamente, mediada pelo mercado. Mercados de vários tipos existiram através da História e até mesmo da pré-história, quando as pessoas trocaram ou venderam o excedente de diversas maneiras e com diferentes objetivos. Mas o mercado no capitalismo tem uma função distinta e sem precedente. Virtualmente tudo numa sociedade capitalista é uma mercadoria produzida para o mercado. O mais importante é que capital e trabalho dependem do mercado para as condições mais básicas da sua reprodução. Assim como os trabalhadores dependem do mercado para vender sua força de trabalho como uma mercadoria, os capitalistas dependem dele para comprar a força de trabalho e também os meios de produção, e para realizarem os seus lucros através da venda de bens e serviços produzidos pelos trabalhadores. Esta dependência do mercado dá a este último um papel sem precedente nas sociedades capitalistas, não apenas como um simples mecanismo de intercâmbio ou distribuição mas como o principal determinante e regulador da reprodução social. O surgimento do mercado como um determinante da reprodução social pressupôs a sua penetração na produção do ingrediente básico mais necessário, o alimento.

Este sistema único de dependência do mercado implicou na existência de algumas “leis do movimento” muito especiais, compulsões e exigências sistêmicas específicas que nenhum outro modo de produção exigiu: os imperativos da competição, acumulação e maximização do lucro. E estes imperativos, por sua vez, significam que o capitalismo pode e deve constantemente se expandir de maneiras e em graus que outras formas sociais desconheciam – permanentemente acumulando, buscando novos mercados, impondo seus imperativos em novos territórios e em novas esferas da vida, em seres humanos e sobre o meio ambiente.

Uma vez que reconheçamos quão distintos são esses processos e essas relações sociais, quão diferentes são das outras formas sociais dominantes na maior parte da história da humanidade, fica claro que é preciso mais para explicar o surgimento dessa forma social distinta do que a duvidosa pressuposição de que ela sempre existiu (de modo embrionário), precisando apenas ser liberada dos constrangimentos artificiais que a encerravam. A questão das suas origens, então, pode ser formulada da seguinte maneira: dado que os produtores foram explorados pelos apropriadores através de meios não-capitalistas durante milênios antes que o capitalismo surgisse, e dado que os mercados também existiram desde os tempos imemoriais praticamente em todos os lugares, como explicar o fato de que as relações produtores/apropriadores passaram a ser dependentes do mercado?

Naturalmente seria possível refazer, incansavelmente, o longo e complexo processo histórico que atribuiu ao mercado este papel central. Mas acreditamos que a questão se torna mais manejável se pudermos identificar a primeira vez e lugar nos quais uma nova dinâmica social se tornou claramente perceptível, uma dinâmica causada pela dependência do mercado dos atores econômicos principais. Aí então poderemos explorar as condições específicas nas quais está mergulhada essa situação única.

Até o século XVII, e ainda bem depois, a maior parte do mundo, inclusive da Europa, estava imune aos imperativos impostos pelo mercado tais como descritos acima. Sem dúvida existia um vasto sistema de comércio que se estendia por todo o globo. Mas em nenhum lugar, nem nos grandes centros comerciais da Europa, nem na vasta rede comercial do mundo islâmico ou da Ásia, estava a atividade econômica, e em particular a produção, impulsionada pelos imperativos da competição e da acumulação. O princípio dominante do comércio, em todo lugar, era “lucro através da venda”, ou “comprar barato para vender caro”. Comprando barato num mercado, vendendo caro em outro. O comércio internacional era essencialmente “carrying trade”, com os comerciantes comprando bens em um lugar para serem vendidos com lucro em outro. Mas mesmo dentro de um único, poderoso e relativamente unificado reino como a França, basicamente os mesmos princípios não-capitalistas de comércio prevaleciam. Não havia um mercado unificado, um mercado no qual as pessoas obtivessem lucro não através do “comprar barato e vender caro”, ou através da simples transferência de mercadorias de um mercado para outro, mas através de uma produção a melhores preços num processo competitivo dentro de um mesmo mercado.

O comércio pendia ainda para os artigos de luxo, ou pelo menos para os artigos que se destinavam aos lares mais prósperos ou que respondiam às necessidades e aos padrões de consumo das classes dominantes. Não havia um mercado de massas para os produtos baratos do consumo cotidiano. O camponês médio produzia não somente suas próprias necessidades alimentares mas também outros artigos corriqueiros como os tecidos de que necessitavam. Eles podiam levar seus excedentes para os mercados locais, onde eram trocados por outros produtos. E produtos agrícolas até podiam ser vendidos em mercados mais distantes. Mas também nesses casos os princípios do comércio eram aqueles aplicados aos produtos manufaturados.

Estes princípios não-capitalistas de comércio existiam ao lado das formas de exploração não-capitalistas. Por exemplo, na Europa ocidental, mesmo lá onde a servidão havia desaparecido, outras formas de exploração “extra-econômica” ainda prevaleciam. Na França, por exemplo, onde os camponeses constituíam a maior parte da população e ainda permaneciam com a posse da terra, um cargo público era um meio de sustentação para muitos membros das classes dominantes, um meio de extração de sobre-trabalho dos camponeses na forma de impostos. E mesmo a grande maioria dos senhores de terras que viviam de rendas dependiam de poderes e privilégios extra-econômicos para amealhar sua fortuna.

Em conseqüência, os camponeses tinham acesso aos meios de produção, à terra, sem precisar oferecer sua força de trabalho no mercado como uma mercadoria. Senhores de terras e ocupantes de cargos públicos (office-holders), com a ajuda de vários poderes e privilégios extra-econômicos, extraíam sobre-trabalho dos camponeses diretamente, na forma de renda ou imposto. Em outras palavras, enquanto todo tipo de pessoa podia comprar e vendar toda sorte de objetos no mercado, nem os camponeses-proprietários que produziam, nem os senhores de terras e funcionários (office-holders) que se apropriavam da produção dos outros, dependiam diretamente do mercado para as condições de sua reprodução, e as relações entre eles não eram mediadas pelo mercado.

Mas havia uma exceção importante a esta regra geral. A Inglaterra, já no século dezesseis, se desenvolvia numa nova direção. Embora houvesse outros Estados monárquicos relativamente fortes, mais ou menos unificados sob a monarquia (como a Espanha e a França), nenhum era tão unificado quanto a Inglaterra (e a ênfase aqui é na Inglaterra e não nas outras partes das ilhas britânicas). A unificação do reino inglês começara bem cedo, no século XI, quando os conquistadores normandos se estabeleceram, através de uma grande coesão militar e política, como classe dominante na ilha. E no século XVI, a Inglaterra já percorrera um longo caminho no sentido de eliminar a fragmentação feudal do Estado e a soberania “dividida” herdada do feudalismo. Os poderes autônomos detidos pelos nobres, corpos municipais e outras entidades corporativas existentes nos outros Estados europeus estavam na Inglaterra cada vez mais concentrados no Estado central. Isto contrastava com os outros Estados europeus, onde mesmo monarquias poderosas continuaram por muito tempo a conviver penosamente com poderes militares pós-feudais, sistemas legais fragmentados e privilégios de corpos sociais. Os detentores desses poderes insistiam em preservar a autonomia frente à centralização do poder no Estado.

A centralização política do Estado inglês tinha fundamentos materiais e corolários. Primeiro, já no século XVI, a Inglaterra possuía uma rede impressionante de estradas e de vias de transportes fluviais e marítimas que unificavam a nação de modo bastante excepcional para o período. Londres cresceu numa taxa muito acima das outras cidades inglesas e do crescimento total da população (transformou-se na maior cidade da Europa) e tornou-se o centro de um mercado nacional em desenvolvimento.

A base material sobre a qual esta economia nacional emergente repousava era a agricultura inglesa, especial em mais de um aspecto. A classe dominante inglesa se caracterizava por dois aspectos que se inter-relacionavam: por um lado, em aliança com a monarquia, participava de um Estado com forte poder centralizador, e não possuía numa medida similar à das suas congêneres europeias os poderes extra-econômicos, mais ou menos autônomos, nos quais estas últimas se apoiavam para extrair sobre-trabalho (ou o excedente) dos produtores diretos. Por outro lado, a alta concentração da terra constituía um dado presente há muito tempo no campo inglês, com grandes senhores de terras detendo uma parcela importante do território. Esta concentração significava que os senhores ingleses podiam usar suas propriedades de diferentes e novas maneiras. O que faltava à classe proprietária em poder extra-econômico para a extração do excedente era largamente compensado pelo seu crescente poderio econômico.

Esta combinação particular de fatores teve consequências significativas. De um lado, a concentração da propriedade da terra implicava que uma porção considerável da terra fosse tornada produtiva não por camponeses-proprietários mas por arrendatários. Isto vinha ocorrendo mesmo antes das grandes ondas de expropriação, que ocorreram principalmente nos séculos XVI e XVIII, usualmente associadas com os “cercamentos” (a eles voltaremos adiante), em contraste, por exemplo, com o ocorrido na França, onde uma parcela importante das terras permaneceu por longo período histórico ainda nas mãos dos camponeses.

De outro lado, a relativa “fraqueza” dos poderes extra-econômicos dos senhores de terras fazia com que dependessem cada vez menos da sua habilidade de espremer mais renda dos arrendatários por meios coercitivos diretos do que da produtividade desses mesmos arrendatários. Em conseqüência os senhores de terras tinham um incentivo muito forte para encorajar – e quando possível obrigar – seus arrendatários a encontrar os meios de aumentar sua produção. Neste aspecto eles eram fundamentalmente diferentes dos aristocratas rentistas que em variadas épocas históricas fizeram depender suas fortunas da capacidade de extorquir o excedente dos camponeses através da simples coação, aumentando essa capacidade através apenas do aperfeiçoamento dos seus poderes coercitivos – militares, judiciais e políticos.

Quanto aos arrendatários, eles estavam crescentemente sujeitos não só à pressão direta dos senhores de terras mas aos imperativos do mercado que os impeliam a aumentar a produtividade. As formas do arrendamento foram múltiplas na Inglaterra, existindo muitas variações regionais, mas um número crescente delas estava sujeita a rendas “econômicas”, isto é, rendas fixadas pelas condições do mercado e não por algum padrão legal ou consuetudinário. Desde o início da Época Moderna, até mesmo muitos contratos baseados no costume tinham se tornado contratos “econômicos”.

O efeito do sistema de relações de propriedade foi tornar muitos agricultores (inclusive prósperos “yeomen”) dependentes do mercado, não apenas para a venda de seus produtos, mas no sentido mais fundamental de que seu acesso à terra, isto é aos meios de produção, era mediado pelo mercado. Havia, com efeito, um mercado de aluguel de terras no qual arrendatários em potencial tinham que competir. Neste mercado, a garantia do arrendamento dependia da capacidade de pagar o valor corrente do aluguel, e a falta de competitividade podia significar a direta perda da terra. Para alcançar uma renda adequada numa situação em que outros arrendatários em potencial estavam competindo pelo mesmo contrato de aluguel, os arrendatários eram compelidos a produzirem mais barato sob pena de perderem a terra.

Mesmo aqueles arrendatários que gozavam de alguma espécie de direito costumeiro à terra, portanto, mais garantidos nas suas parcelas, eram obrigados a vender seus produtos nos mesmos mercados, e consequentemente estavam submetidos às condições da concorrência, quer dizer, aos padrões de produtividade estipulados pelos agricultores submetidos mais diretamente às pressões do mercado. O mesmo ocorria numa proporção cada vez maior com os proprietários que exploravam eles próprios suas terras. Neste ambiente competitivo, agricultores produtivos prosperavam e suas parcelas de terras cultivadas tendiam a crescer, enquanto que agricultores menos competitivos fracassavam e iam se juntar aos sem-terra.

Em todos os casos, os efeitos dos imperativos do mercado foram intensificar a exploração tendo em vista o aumento da produtividade – fosse a exploração do trabalho dos outros, ou a auto-exploração do agricultor e sua família. Este padrão seria reproduzido nas colônias, e também na América independente, onde os pequenos produtores independentes, supostamente a espinha dorsal de uma república livre, tiveram cedo de encarar a cruel escolha imposta pelo capitalismo agrário: na melhor hipótese, intensa auto-exploração e na pior, perda das terras para empresas maiores e mais produtivas.

O surgimento da propriedade capitalista

Em síntese, a agricultura inglesa no século XVI reunia uma combinação ímpar de fatores, ao menos em certas regiões, que acabariam por determinar a direção da economia inglesa como um todo. O resultado disso foi o setor agrário mais produtivo da história. Proprietários e arrendatários se tornaram igualmente preocupados com o que chamavam de “melhoramento” (improvement), o aumento da produtividade da terra visando o lucro.

Vale a pena se debruçar um momento sobre esse conceito de “melhoramento”, porque ele revela muito sobre a agricultura inglesa e o capitalismo. A palavra improve (melhorar) no seu sentido original não significava somente “tornar melhor” num sentido amplo, mas literalmente5 fazer algo visando lucro monetário, e especialmente, cultivar terra visando lucro. No século XVII, o sentido da palavra improver (o agente da melhoria) fixou-se definitivamente na linguagem para designar o indivíduo que tornava a terra produtiva e lucrativa, especialmente através do cercamento ou da supressão do desperdício. Os melhoramentos agrícolas eram naquele momento uma prática já bem estabelecida, e no século XVIII, na época de ouro do capitalismo agrário, “improvement” (melhoramento), no idioma e na realidade, designava um e mesmo fenômeno.

Ao mesmo tempo, a palavra começou a adquirir um significado mais geral, no sentido com o qual a entendemos hoje (pode ser útil refletir a respeito de uma sociedade na qual a palavra “melhorar” tem como raiz lucro monetário); mesmo quando associada à agricultura, atualmente, ela perdeu uma pouco da sua antiga especificidade – de modo que, por exemplo, alguns pensadores radicais do século XIX podiam adotar a palavra “improvement” (melhoramento) no sentido de agricultura científica, sem a conotação de lucro comercial. Mas no início do período moderno, produtividade e lucro estavam indissoluvelmente ligados no conceito de “improvement”(melhoramento), o que resume bem a ideologia da classe agrária capitalista emergente.

No século XVII tomou corpo uma nova literatura que explicava detalhadamente as técnicas e os benefícios dos melhoramentos. Melhoramento foi também a preocupação principal da Royal Society, que reunia alguns dos mais proeminentes cientistas da Inglaterra (Isaac Newton e Robert Boyle eram membros da Society) e alguns dos membros mais progressistas das classes dominantes inglesas – como o filósofo John Locke e o seu mentor, o primeiro Earl de Shaftesbury, ambos profundamente interessados nos melhoramentos agrícolas.

Os melhoramentos não dependiam em primeira instância de inovações tecnológicas significativas – apesar de que novos equipamentos estavam sendo usados, como o arado com roda. Em geral, era mais uma questão de desenvolvimento de técnicas agrícolas: por exemplo, cultivo “conversível” ou “em degrau” – alternância de cultivo com períodos de descanso, rotação de cultura, drenagem de pântanos e terras baixas, etc.

Mas os melhoramentos também significavam algo mais do que novos métodos e técnicas de cultivo. Significavam novas formas e concepções de propriedade. Agricultura “melhorada”, para o proprietário de terras empreendedor e seu próspero capitalista arrendatário, implicava em propriedades aumentadas e concentradas. Também implicava – talvez em maior medida – na eliminação dos antigos costumes e práticas que atrapalhassem o uso mais produtivo da terra.

Comunidades camponesas tinham, desde tempos imemoriais, empregado vários meios de regulamentar o uso da terra conforme os interesses da comunidade aldeã: elas restringiam algumas práticas e concediam determinados direitos, tendo em vista não o aumento da riqueza do senhor ou da propriedade, mas a preservação da própria comunidade camponesa; às vezes, visando a conservação da terra ou a distribuição mais equitativa dos seus frutos, e, freqüentemente, para socorrer os membros menos afortunados da comunidade. Até a propriedade “privada” da terra foi condicionada por estas práticas, que davam a não-proprietários certos direitos de uso da terra apropriada por outra pessoa. Na Inglaterra, existiram muitas dessas práticas e costumes. Era o caso das terras comunais, que podiam eventualmente ser usadas pelos membros da comunidade como pasto ou para apanhar lenha, e havia também diversos tipos de direitos concernentes às terras privadas – tais como o direito ao recolhimento dos restos da colheita em determinados períodos do ano.

Do ponto de vista dos proprietários e dos arrendatários capitalistas, a terra devia ser liberada de todo tipo de obstrução ao seu uso produtivo e lucrativo. Entre o século XVI e XVIII, houve uma pressão contínua para a extinção dos direitos costumeiros que interferiam na acumulação capitalista. Isto poderia significar muitas coisas: a disputa da propriedade comunal com vistas à apropriação privada; a eliminação de um série de direitos de uso sobre as terras privadas; ou, finalmente, problematizar o acesso à terra dos pequenos camponeses que não possuíam título de domínio inequívoco. Em todos esses casos, a concepção tradicional de propriedade precisava ser substituída por um conceito novo, o conceito capitalista de propriedade – propriedade não apenas privada, mas excludente, literalmente excluindo outros indivíduos e a comunidade, através da eliminação das regulações das aldeias e das restrições ao uso da terra, pela extinção dos usos e direitos costumeiros, e assim por diante.

Estas pressões para transformar a natureza da propriedade manifestaram-se de diversas maneiras, na teoria e na prática. Elas são detectáveis nos casos surgidos nos tribunais, nos conflitos a propósito de direitos específicos de apropriação de parcelas das terras comunais ou de alguma terra particular sobre a qual mais de uma pessoa tinha direito de uso. Nesses casos, as práticas costumeiras e a posse freqüentemente eram confrontadas com os princípios dos “melhoramentos” – e os magistrados muitas vezes davam ganho de causa às reclamações baseadas no argumento do “melhoramento”, considerando-as legítimas contra direitos costumeiros que existiam há mais tempo do que a memória alcança.

Novas concepções de propriedade estavam também sendo teorizadas mais sistematicamente, sobretudo na famosa obra de John Locke, Concerning civil government, second treatise. No capítulo 5 deste trabalho encontra-se a afirmação clássica da teoria da propriedade baseada nos princípios do “melhoramento”. Nela, a propriedade como um direito “natural” está baseada naquilo que Locke considera como o meio divino de tornar a terra produtiva e lucrativa, “melhorá-la” (improve it). A interpretação convencional da teoria da propriedade de Locke sugere que o trabalho estabelece (ou funda) o direito de propriedade, mas se lermos cuidadosamente o capítulo de Locke sobre a propriedade veremos com clareza que o que está em questão não é o trabalho enquanto tal, mas a utilização da propriedade de modo produtivo e lucrativo, seu “melhoramento”. Um proprietário (ou senhor de terra) empreendedor, disposto a realizar os “melhoramentos” fundamenta seu direito à propriedade não através de seu trabalho direto, mas através da exploração produtiva da sua terra pelo trabalho de outras pessoas. Terras sem “melhoramentos”, terra que não se torna produtiva e lucrativa (como por exemplo as terras dos indígenas nas Américas) constituem desperdício, e como tal, estabelecem o direito e até mesmo o dever daqueles decididos a “melhorá-las” a se apropriarem dela.

A mesma ética dos melhoramentos podia ser usada para justificar certos tipos de expropriação não apenas nas colônias mas na metrópole inglesa também. Isto nos traz para a mais famosa redefinição de direitos de propriedade: os cercamentos. O “enclosure” é freqüentemente visto simplesmente como a privatização e o cercamento de terras comunais, ou dos “campos abertos” caracteristicamente presentes em algumas regiões do campo inglês. Mas “enclosure” significou, mais precisamente, a extinção (com ou sem o cercamento das terras) dos direitos de uso baseados nos costumes dos quais muitas pessoas dependiam para tirar o seu sustento.

A primeira grande vaga de cercamentos ocorreu no século XVI, quando grandes senhores de terras procuraram retirar os camponeses das terras que podiam se tornar mais rentáveis se usadas para pasto como exigia a cada vez mais lucrativa criação de carneiros. Os comentaristas coevos acusavam os cercamentos, mais do que qualquer outro fator, de responsável pela crescente vaga de vagabundos, aqueles homens sem terra nem senhor que vagavam pelos campos e ameaçavam a ordem social. O mais famoso desses comentaristas, Thomas More, embora ele próprio um “cercador”, descrevia essa prática como os “carneiros que devoram os homens”. Estes críticos sociais, como muitos historiadores depois deles, podem ter superestimado os efeitos dos “enclosures”, em detrimento de outros fatores como causa da transformação das relações de propriedade inglesas. Mas eles permanecem como a expressão mais vívida do processo incansável que estava mudando não apenas o campo inglês mas o mundo: o nascimento do capitalismo.

“Enclosure” continuou sendo uma fonte de conflito na Inglaterra da Época Moderna, fosse feita para a criação de carneiros, fosse para a crescente e lucrativa agricultura de arado. Revoltas por causa dos cercamentos marcaram os séculos XVI e  XVII, e os cercamentos apareceram como a maior reclamação durante a Guerra Civil Inglesa. Nas fases iniciais essa prática foi às vezes obstaculizada pelo Estado monárquico, quando mais não fosse por ser uma ameaça à ordem pública. Mas uma vez que as classes agrárias conseguiram moldar o Estado aos seus interesses – sucesso praticamente garantido depois da chamada Revolução Gloriosa de 1688 – não houve mais interferência estatal, e um novo tipo de cercamento apareceu no século XVIII, os chamados cercamentos do Parlamento. Nada testemunha com maior clareza o triunfo do capitalismo agrário.

Assim, na Inglaterra, uma sociedade na qual a riqueza ainda derivava predominantemente da produção agrícola, a auto-reprodução dos dois atores econômicos principais no setor agrícola – produtores diretos e apropriadores do excedente produzido por eles – era, pelo menos a partir do século XVI, cada vez mais dependente de práticas que podem ser consideradas capitalistas: a maximização do valor de troca por meio da redução de custos e pelo aumento da produtividade, através da especialização, acumulação e inovação.

Este modo de prover as necessidades materiais básicas da sociedade inglesa trouxe consigo toda uma nova dinâmica de crescimento auto-sustentado, um processo de acumulação e expansão muito diferente do antigo padrão cíclico que dominava a vida material em outras sociedades. Foi também acompanhado pelo processo capitalista típico de expropriação e de criação de uma massa de expropriados. É neste sentido que podemos falar de “capitalismo agrário” na Inglaterra da Época Moderna.

O capitalismo agrário era realmente capitalista?

Aqui devemos fazer uma pausa para enfatizar dois pontos importantes. Primeiro, não eram comerciantes nem “industriais” os condutores deste processo. A transformação das relações sociais de propriedade estava firmemente enraizada no campo, e a transformação do comércio e da indústria ingleses foi mais resultado do que causa da transição capitalista na Inglaterra. Os comerciantes podiam funcionar perfeitamente dentro de sistemas não capitalistas. Eles prosperaram, por exemplo, no contexto do feudalismo europeu, onde se aproveitaram não somente da autonomia das cidades mas também da fragmentação dos mercados e da oportunidade de realizar transações entre um mercado e outro.

Em segundo lugar, e ainda mais fundamentalmente, os leitores devem ter notado que o termo “capitalismo agrário” está sendo utilizado (neste texto) sem referência a trabalho assalariado, aspecto que aprendemos a considerar como a essência do capitalismo. Isto requer alguma explicação.

É preciso que se diga, primeiro, que muitos arrendatários empregavam trabalho assalariado, tanto que a “tríade” identificada por Marx e outros – a tríade de proprietários de terras vivendo da renda da terra capitalista, arrendatários capitalistas vivendo do lucro e trabalhadores vivendo de salários – tem sido vista por muitos como a característica definidora das relações agrárias na Inglaterra. E assim era – pelo menos naquelas partes do país, particularmente no leste e no sudeste, notáveis pela sua produtividade agrícola. De fato, as novas pressões econômicas, as pressões competitivas que excluíam fazendeiros improdutivos, foram um fato crucial na polarização da população agrícola em grandes proprietários de terras e trabalhadores sem terra, e na promoção da tríade agrária. E, naturalmente, as pressões pelo aumento da produtividade foram sentidas na exploração intensificada do trabalho assalariado.

Não seria, portanto, sem sentido definir o capitalismo agrário inglês em termos da tríade. Mas é importante ter presente ao espírito o fato de que as pressões competitivas e as novas “leis do movimento” que as acompanhavam dependiam numa primeira instância não da existência de uma massa proletária mas da existência de arrendatários dependentes do mercado. Trabalhadores assalariados e especialmente aqueles que dependiam inteiramente de salário, para a sua manutenção e não apenas como complementação sazonal (aquele tipo de trabalho assalariado sazonal e suplementar que tem existido desde os tempos antigos em sociedades camponesas), permaneciam em minoria na Inglaterra do século XVII.

Além do mais essas pressões competitivas se operavam não apenas nos arrendatários que empregavam trabalho assalariado mas também nos fazendeiros que – de modo típico com suas famílias – eram eles mesmos produtores diretos trabalhando sem ajuda contratada. As pessoas podiam depender do mercado – depender do mercado para as condições básicas da sua reprodução – sem estarem totalmente expropriadas dos meios de produção. Para se tornarem dependentes do mercado, era preciso apenas a perda do acesso direto (não dependente do mercado) aos meios de produção. De fato, uma vez que os imperativos do mercado estavam bem estabelecidos, até mesmo a propriedade plena não constituía uma proteção contra seus efeitos. E a dependência do mercado foi a causa e não o resultado da proletarização em massa.

Isto é importante por vários motivos – e falaremos mais adiante sobre suas mais amplas implicações. Por enquanto, o ponto importante é que a dinâmica específica do capitalismo já estava instalada na agricultura inglesa antes da proletarização da força de trabalho. De fato, essa dinâmica foi um fator decisivo na proletarização da força de trabalho na Inglaterra. O fator crucial foi a dependência dos produtores, assim como dos apropriadores, no mercado e os novos imperativos sociais criados por esta dependência.

Algumas pessoas podem hesitar em descrever essa formação social como “capitalista”, justamente porque capitalismo está, por definição, baseado na exploração do trabalho assalariado. Esta relutância é justa – contanto que reconheçamos que, independentemente do nome que se dê, a economia inglesa no início da Época Moderna, levada pela lógica do seu setor produtivo básico, a agricultura, estava operando de acordo com princípios e com “leis do movimento” diferentes daqueles que prevaleceram em qualquer outro período histórico. Essas leis do movimento foram as pré-condições – que não existiram em nenhum outro lugar – para o desenvolvimento do capitalismo maduro que seria, de fato, baseado na exploração em massa do trabalho assalariado.

Qual foi então o resultado disso tudo? Primeiro, a agricultura inglesa tornou-se mais produtiva do que qualquer outra. Em torno do final do século XVII, por exemplo, a produção de grãos e cereais tinha aumentado de modo tão notável que a Inglaterra se tornou a líder na exportação desses produtos. Esses avanços na produção foram conseguidos com uma força de trabalho relativamente pequena empregada na agricultura. É isto que quer dizer ter a agricultura mais produtiva.

Alguns historiadores puseram em dúvida a ideia mesma de capitalismo agrário, sugerindo que a “produtividade” da agricultura francesa era mais ou menos a mesma que a inglesa no século XVIII. Mas o que eles realmente querem dizer é que a produção agrícola total nos dois países era mais ou menos a mesma. O que eles desconsideram é que num país este nível de produção era atingido por uma população majoritariamente composta de camponeses, enquanto no outro país, a mesma produção global era atingida por uma força de trabalho muito inferior, numa população rural declinante. Em outras palavras, a questão aqui não é produção total mas produtividade, no sentido de produção por unidade de trabalho.

O fato demográfico sozinho explica muito. Entre 1500 e 1700, a Inglaterra teve um crescimento substancial de população – como outros países europeus. Mas o crescimento da população na Inglaterra foi diferente num aspecto essencial: a porcentagem da população urbana mais que dobrou neste período (alguns historiadores consideram que era de um pouco menos de 25% já no final do século XVII). O contraste com a França é flagrante: lá, a população rural permaneceu estável, em torno de 85 a 90% no tempo da Revolução, em 1789, e depois. Por volta de 1850, quando a população urbana da Inglaterra e do país de Gales era de mais ou menos 40,8%, a da França era ainda de 14,4% (e da Alemanha 10,8%).

A agricultura na Inglaterra, já no início da Época Moderna, era produtiva o bastante para sustentar um número excepcional de pessoas não mais engajadas na produção agrícola. Este fato, obviamente, revela mais do que a eficiência das técnicas agrícolas. Ele também indica uma revolução nas relações sociais de apropriação. Enquanto a França permanecia um país de camponeses proprietários, a terra na Inglaterra estava concentrada em muito menos mãos e a massa dos sem-propriedade estava crescendo rapidamente. Enquanto a produção agrícola na França ainda seguia as práticas camponesas tradicionais (nada parecido com a literatura inglesa sobre “melhoramentos” existia na França, e a aldeia comunitária ainda impunha suas regulações e restrições na produção, afetando até mesmos grandes proprietários), os fazendeiros ingleses estavam respondendo aos imperativos da competição e dos melhoramentos.

Vale a pena acrescentar um outro ponto a propósito do padrão demográfico distinto da Inglaterra. O crescimento extraordinário da população urbana não estava distribuído igualmente pelas cidades inglesas. Em outros lugares da Europa, o padrão típico era uma população urbana dispersa em várias cidades importantes – de tal modo que Lyon não era muito menor que Paris. Na Inglaterra, Londres se tornou desproporcionalmente grande, crescendo de mais ou menos 60.000 habitantes em torno de 1520 para 575.000 em 1700 e se tornando a maior cidade da Europa, enquanto que outras cidades inglesas eram muito menores.

Este padrão significa mais do que se pode perceber à primeira vista. Testemunha, entre outras coisas, a transformação das relações sociais de apropriação no coração do capitalismo agrário, o sul e o sudeste, e a expropriação de pequenos produtores, o deslocamento e a migração de uma população cujo destino era, tipicamente, Londres. O crescimento de Londres também representa a crescente unificação, não só do Estado mas do mercado interno. A enorme cidade era o centro do comércio inglês – não somente como o lugar de trânsito para o comércio nacional e internacional mas como o imenso consumidor dos produtos ingleses, em particular, produtos agrícolas. O crescimento de Londres, em outras palavras, representa o capitalismo inglês emergente, com seu mercado integrado – cada vez mais um único, unificado e competitivo mercado; sua agricultura produtiva; e sua população expropriada.

As conseqüências a longo prazo destes padrões distintos devem estar bastante óbvias. Embora este não seja o lugar de explorar as conexões entre o capitalismo agrário e a subsequente transformação da Inglaterra na primeira economia “industrializada”, alguns pontos são evidentes. Sem um setor agrícola produtivo que pudesse sustentar uma importante força de trabalho não-agrícola, o primeiro capitalismo industrial do mundo provavelmente não teria aparecido. Sem o capitalismo agrário inglês, não teria havido uma massa de expropriados obrigados a vender sua força de trabalho por um salário. Sem essa força de trabalho não-agrícola expropriada, não teria havido um mercado de consumo de massa para os bens de consumo diário - como alimentos e têxteis - que lideraram o processo de industrialização na Inglaterra. E sem a sua crescente riqueza, associada às novas motivações para a expansão colonial – motivações distintas das antigas formas de aquisição territorial – o imperialismo britânico teria sido algo muito diferente da máquina de capitalismo industrial que ele se tornou. E (este é sem dúvida um ponto mais controverso) sem o capitalismo inglês provavelmente não haveria nenhum capitalismo: foram as pressões competitivas emanando da Inglaterra, especialmente a Inglaterra industrializada, que compeliram os outros países a promover seu desenvolvimento econômico no sentido capitalista.

As lições do capitalismo agrário

O que tudo isso nos ensina sobre a natureza do capitalismo ? Primeiro, lembra-nos que o capitalismo não é uma conseqüência “natural” e inevitável da natureza humana, ou mesmo de práticas sociais antigas como o comércio (“truck, barter, and exchange”). É o resultado tardio e localizado de condições históricas muito específicas. O impulso expansivo do capitalismo, a ponto de ter se tornado virtualmente universal hoje, não é uma consequência da sua conformidade com a natureza humana ou de algumas leis naturais trans-históricas, mas o produto das suas próprias leis históricas internas de movimento. E essas leis de movimento exigiram vastas transformações sociais para se iniciarem. Exigiram uma transformação nas trocas do Homem com a natureza, com vistas ao provimento das necessidades vitais básicas.

O segundo ponto é que o capitalismo foi desde o princípio uma força profundamente contraditória. Basta considerarmos os efeitos mais óbvios do capitalismo agrário inglês: por um lado, as condições para a prosperidade material não existiam em nenhuma outra parte como na Inglaterra da Época Moderna; porém, por outro lado, estas condições foram alcançadas às custas da extensa expropriação e intensa exploração. É quase dispensável acrescentar que essas novas condições também estabeleceram os fundamentos para novas e mais eficientes formas de expansão colonial e imperialismo, assim como novas necessidades para tal expansão, em busca de novos mercados e recursos.

E, depois, há os corolários dos “melhoramentos”: por um lado, produtividade e capacidade de alimentar uma vasta população; por outro lado, a subordinação de todas as considerações aos imperativos do lucro. Isto significa, entre outras coisas, que pessoas que podiam ser alimentadas são freqüentemente deixadas famintas. Na verdade, significa que existe em geral uma grande disparidade entre a capacidade produtiva do capitalismo e a qualidade de vida que proporciona. A ética dos “melhoramentos” no seu sentido original, no qual produção e lucro são indissociáveis, é também a ética da exploração, da pobreza, e do desamparo.

A ética do “melhoramento”, da produtividade visando o lucro é também, naturalmente, a ética do uso irresponsável da terra, da doença da vaca louca, e da destruição ambiental. O capitalismo nasceu no âmago da vida humana, na interação com a natureza da qual depende a própria vida. A transformação desta interação pelo capitalismo agrário revela os impulsos inerentemente destrutivos de um sistema no qual os aspectos fundamentais da existência estão sujeitos às exigências do lucro. Em outras palavras, revelam a essência secreta do capitalismo.

A expansão dos imperativos capitalistas através do mundo tem reiteradamente reproduzido alguns dos efeitos apresentados por ele no seu país de origem. O processo de expropriação, extinção dos direitos costumeiros de propriedade, a imposição dos imperativos do mercado e a destruição ambiental têm continuado. Este processo tem expandido seu alcance das relações entre classes exploradas e exploradoras às relações entre países imperialistas e países subordinados. Mais recentemente, a generalização dos imperativos do mercado tem tomado a forma, por exemplo, de obrigar (com a ajuda de agências capitalistas internacionais como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional) fazendeiros do terceiro mundo a substituir estratégias de auto-suficiência em matéria de produtos agrícolas por produção especializada para o mercado globalizado. Os efeitos calamitosos dessas mudanças serão explorados em outros artigos deste número da Monthly Review.

Mas se os efeitos destrutivos do capitalismo reproduzem-se constantemente, seus efeitos positivos não têm tido a mesma consistência. Uma vez estabelecido o capitalismo num país e uma vez tendo começado a impor os seus imperativos no resto da Europa e mais recentemente no mundo todo, seu desenvolvimento nos outros lugares não podia seguir o mesmo curso que havia seguido no seu país de origem. A existência de uma sociedade capitalista transformou daí em diante todas as outras, e a expansão subsequente dos imperativos capitalistas mudou sem cessar as condições do desenvolvimento econômico.

Chegamos a um ponto em que os efeitos destrutivos do capitalismo estão sobrepujando os ganhos materiais. Nenhum país do terceiro mundo, hoje em dia, por exemplo, pode esperar atingir até mesmo o desenvolvimento contraditório que a Inglaterra conheceu. Com as pressões da competição, acumulação e exploração impostas pelos outros sistemas capitalistas mais avançados, a tentativa de alcançar a prosperidade material, de acordo com os princípios capitalistas, cada vez mais deverá trazer com ela somente o lado negativo da contradição capitalista, a expropriação e destruição sem os benefícios materiais, ao menos para a vasta maioria.

Há também uma lição de caráter mais geral que se pode tirar da experiência inglesa de capitalismo agrário. Uma vez que os imperativos do mercado ditam os termos da reprodução social, todos os atores econômicos – tanto apropriadores quanto produtores, mesmo que mantenham a posse, ou mesmo a propriedade dos meios de produção – estão sujeitos às exigências da competição, da produtividade crescente, da acumulação de capital e da intensa exploração do trabalho.

No que concerne a este último aspecto, nem mesmo a ausência de uma divisão entre apropriadores e produtores é uma garantia de imunidade (e isto explica porque “socialismo de mercado” é uma contradição em termos): uma vez que o mercado torna-se o “disciplinador” ou o “regulador” econômico, uma vez que os atores econômicos se tornam dependentes do mercado, no que diz respeito às condições da sua própria reprodução, até mesmo trabalhadores que são donos dos seus meios de produção, individualmente ou coletivamente, serão obrigados a responder aos imperativos do mercado – competir e acumular, abandonar as empresas “não-competitivas” e seus trabalhadores, e a explorar a si mesmos.

A história do capitalismo agrário e tudo que segue mostra com clareza que, onde quer que os imperativos do mercado regulem a economia e governem a reprodução social, não há como escapar da exploração.

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