4 de julho de 1999

Raízes do autoritarismo brasileiro

Maria da Conceição Tavares


Em homenagem aos mortos na luta pela terra

Na nossa história recente, as raras passagens pela democracia política nunca conseguiram estabelecer um Estado de Direito com instituições capazes de conter dentro delas o seu próprio aperfeiçoamento. A moldura de regulação dos conflitos das oligarquias territoriais e financeiras sempre ameaça rasgar-se ao menor solavanco nas relações de poder intraburguesas. As lutas paralelas dos movimentos sociais sempre serviram de pretexto para o endurecimento do regime político. O acesso à terra, a educação e os direitos do trabalho nunca puderam ser reivindicados abertamente pela nossa população rural e urbana nos marcos do nosso precário Estado de Direito. Não por falta de "leis", mas porque uma das marcas terríveis do nosso capitalismo selvagem foi a descolagem completa entre a ideologia das elites bacharelescas liberais ou libertárias e os pactos de poder ferozmente conservadores que conduziram o país por meio de sucessivas alianças entre as cúpulas políticas territoriais e as cúpulas do poder ligadas ao Império e ao dinheiro.

Nossas "transições democráticas interrompidas" nunca alteraram a marcha batida do capitalismo excludente, dando a impressão sistemática de que os ideais reformistas ou revolucionários estão "fora de lugar", quando na verdade as idéias postas em prática pela chamada "sociedade civil" burguesa brasileira sempre estiveram no lugar: o de manter em movimento o "moinho satânico" do capital em suas várias formas.

Para manter o movimento do dinheiro e assegurar a propriedade do território -a ser retalhado e reocupado por formas mercantis sempre renovadas de acumulação patrimonial-, o Estado brasileiro é chamado periodicamente a intervir de forma centralizada e arbitrária. Os propósitos da intervenção autoritária são sempre os mesmos: manter a segurança e o domínio das nossas classes proprietárias ou tentar validar o estoque de riquezas acumulado, tanto pelo capital nacional como estrangeiro.

As nossas reformas burguesas sempre tiveram como limites dois medos seculares das nossas elites ilustradas: o medo do Império e o medo do povo. Todas as tentativas reformistas democráticas tenderam sistematicamente a extravasar os limites de tolerância da dominação oligárquica, fosse ele estabelecido pelas armas ou pelo famoso "pacto de compromisso" das elites políticas e sociais. A tentativa de conciliar o mandonismo das nossas burguesias regionais, donas do território, com o cosmopolitismo dos donos do dinheiro associados ao Império sempre produziu alianças políticas que excluíram os interesses majoritários da cidadania. Esse forte autoritarismo ligado à terra e ao dinheiro serviu sempre de embasamento para aniquilar as lutas populares e das classes médias radicalizadas, nas suas tentativas recorrentes de levar à prática as, nunca concluídas, reformas democráticas.

Nem os pactos oligárquicos, liberais ou autoritários, nem os projetos "nacional-desenvolvimentistas" encontraram tempo, dinheiro ou razão suficientes para levar adiante a reforma agrária e o ensino básico universal. Os sucessivos pronunciamentos sobre a "necessidade" de reforma agrária -desde o patriarca da Independência, passando pelo programa do Estatuto da Terra do governo Castelo Branco até os nossos dias- dão uma demonstração inequívoca da falta de vontade política do nosso poder central de enquadrar num pacto social concreto os direitos do nosso povo. Mesmo quando consagrados explicitamente em "pactos constitucionais", sempre formais e "provisórios".

A "necessidade" de ensino público fundamental também vem sendo reiterada como "direito universal" desde o Ministério da Educação do Estado Novo até o governo Fernando Henrique Cardoso, com os resultados conhecidos. No Brasil, até hoje, as tradicionais reformas burguesas continuam, portanto, sendo "revolucionárias" e, como tal, difíceis de aceitar pela ordem social vigente.

O fato de a nossa "revolução democrática-burguesa" continuar "incompleta" não se justifica, porém, nem pelo caráter tardio do nosso capitalismo, nem porque os nossos burocratas de Estado sempre procuraram fazer a "revolução pelo alto". Muitos outros países de capitalismo tardio, com governos autoritários e sociedades atrasadas, no seu processo de construção nacional, levaram a cabo as reformas agrárias e de ensino, requeridas pelas suas "modernizações conservadoras".

Na verdade, a história vitoriosa da constituição do capitalismo em mais de cinco quartos de século de Brasil independente e os seus percalços e "desvios históricos", do ponto de vista da incorporação popular, parecem dever pouco tanto à herança colonial quanto às idéias iluministas que animaram os corações e mentes de nossas elites bem pensantes.

O dado estrutural mais relevante para a história social e política da nossa "modernidade" parece ter sido sempre a apropriação privada de um território de dimensões continentais apenas para valorização mercantil-patrimonialista, sem que o uso social da terra e dos seus recursos naturais fosse levado em consideração pelos sucessivos regimes "republicanos" e pelas repetidas "reformas fiscais".

Ordem sempre significou domínio duro das classes proprietárias sobre a terra e as classes subordinadas, e progresso sempre resultou na acumulação "familiar" de capital e riqueza, qualquer que fosse a inspiração ideológica, positivista ou liberal, das elites no poder. Nunca se conseguiu constituir, por isso, nenhuma espécie de consenso amplo da "sociedade civil" sobre como governar de forma democrática o nosso país.

O processo de deslocamentos espaciais maciços das migrações rurais, em busca de terra, e rurais-urbanas, em busca de trabalho remunerado, produziu mudanças radicais nas condições de vida das nossas populações, mas sempre com um alargamento nas formas de exploração da mão-de-obra. Esse imenso processo "migratório" e de deslocamento recorrente das "fronteiras" de ocupação e de exploração capitalista não permitiu, até hoje, a formação de classes sociais subordinadas mais homogêneas e sedimentadas capazes de um enfrentamento sistemático com as classes dominantes que pudesse levar a uma ordem civil burguesa estabilizada e democrática.

Por sua vez, a "ordem" das elites de negócios sempre foi capaz de mudar as "regras jurídicas" e fazer "contratos de gaveta", produzindo assim uma sociedade mercantil predatória em constante "fuga para a frente", sem normas e sem dinheiro permanentes. A nossa (des)ordem civil burguesa jamais foi capaz de auto-administrar-se nos marcos de um Estado de Direito que respeitasse pelo menos os contratos privados, que dizer o direito público das gentes. Recorrendo periodicamente a golpes militares ou a elites políticas "salvacionistas", as classes dominantes brasileiras não enfrentaram até hoje uma acumulação política de forças democráticas acompanhadas de uma participação societária popular, capazes de produzir uma verdadeira sociedade civil emancipada.

As "forças de ocupação" dos donos do Império, do Território e do Dinheiro sobrepuseram-se sempre aos interesses de vida da maioria da população brasileira. Percorrendo os seus caminhos de dominação, ao longo dos últimos dois séculos, podem ser encontradas as razões da riqueza e da miséria da nação brasileira. É por isso que as bandeiras da emancipação nacional, da democracia e da justiça social continuam, hoje como ontem, a ser bandeiras esfarrapadas por sucessivas derrotas.

No entanto, essas bandeiras emancipatórias são indissociáveis e, enquanto não se tornarem uma ideologia hegemônica e consciente da maioria da sociedade nos sucessivos embates das lutas populares, não será possível mudar o significado histórico de um projeto de desenvolvimento para o futuro.

Maria da Conceição Tavares, 68, economista, é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professora associada da Universidade de Campinas (Unicamp) e ex-deputada federal (PT-RJ).

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