31 de janeiro de 2004

Para uma crítica da categoria de totalitarismo

Domenico Losurdo


Historical Materialism - Volume 12, Issue 2, 2004

Uma categoria polissêmica

Tradução / Em 1951, no momento que Hanna Arendt publicou The Origins of Totalitarianism, o debate sobre o totalitarismo vinha se travando havia uma década. Entretanto, o significado do termo ainda não estava bem definido. Como orientar-se naquilo que, à primeira vista, aparecia como um labirinto? Aqui, faço abstração das ocorrências em que o adjetivo “totalitário”, mais ainda do que o substantivo, tem uma conotação positiva, concernente à capacidade atribuída a uma religião ou a qualquer ideologia ou visão do mundo de dar resposta a todos os múltiplos problemas resultantes de uma dramática situação de crise e às próprias indagações sobre o sentido da vida, que empenham o homem em sua totalidade. Ainda em 1958, embora rejeitando o “totalitarismo legal”, isto é, imposto pela lei, Barth celebrava nos seguintes termos a dinâmica universalista e a eficácia onisciente da “mensagem” cristã: “Totalitária, na medida em que visa ao todo,em que exige cada homem e o exige totalmente para si, também é a livre graça do evangelho”. [1]

Concentremo-nos sobre o debate mais propriamente político. Podemos distinguir dois filões principais. Na Dialética do iluminismo, Horkheimer e Adorno se ocupam bem pouco da URSS. Além do Terceiro Reich, o discurso versa sobre o “capitalismo totalitário”: “Primeiro, só os pobres e selvagens estavam expostos às forças capitalistas. Mas a ordem totalitária estabelece completamente, em seus direitos, o pensamento calculista e atém-se à ciência enquanto tal. Seu cânone é sua própria eficiência cruel” [2]. Aqui, as etapas preparatórias do nazismo são identificadas na violência perpetrada pelas grandes potências ocidentais contra os povos coloniais e aquela consumada, no próprio coração das metrópoles capitalistas, contra os pobres e os marginalizados reclusos nos abrigos de desempregados. Não é distinta a orientação de uma autora também influenciada pelo marxismo. Se, por vezes, aproxima a Alemanha hitleriana e a União Soviética staliniana, Simone Weill denuncia o horror do poder total, do totalitarismo, com o olhar, sobretudo, fixado na dominação colonial e imperial: “A analogia entre o sistema hitleriano e a antiga Roma é surpreendente a ponto de levar a acreditar que, após dois mil anos, só Hitler teria sabido copiar corretamente os romanos” [3]. Entre o Império romano e o Terceiro Reich coloca o expansionismo desenfreado e sem peias de Luís XIV: “O regime estabelecido por ele já merecia, pela primeira vez na Europa depois de Roma, a designação moderna de totalitário”; “a atroz devastação do Palatinato (da qual são culpadas as tropas conquistadoras francesas) sequer teve a desculpa das necessidades da guerra” [4]. Procedendo retrospectivamente em relação à antiga Roma, Weill efetua uma leitura em registro proto-totalitário do episódio do Antigo Testamento da conquista de Canaã e do aniquilamento de seus habitantes.

É hora de olhar um pouco os autores de orientação liberal. Na reconstrução da gênese da “democracia totalitária”, Talmon chega à seguinte conclusão:

Se [...] o empirismo é aliado da liberdade e o espírito doutrinário é, ao contrário, aliado do totalitarismo, é provável que o conceito de homem como abstração, independentemente das classes históricas [os diversos agrupamentos] a que pertence, se torne um poderoso meio de propagação do totalitarismo. [5]

Claramente, estão postas em acusação a Declaração dos Direitos do Homem e a tradição revolucionária francesa em seu conjunto (não somente Rousseau, mas também Sieyès).

Passemos, agora, a Hayek: “As tendências que culminaram na criação do sistema totalitário não estavam confinadas nos países que, depois, sucumbiram a ele” e elas não põem em causa somente os movimentos comunista e nazi-fascista. Em particular, no que diz respeito à Áustria:

Não foram os nazistas, mas os socialistas que iniciaram o agrupamento das crianças, desde a mais tenra idade, em organizações políticas, de modo a estarem seguros de que elas cresceriam como bons proletários. Não foram os fascistas, mas os socialistas que pensaram, em primeiro lugar, em organizar esportes, jogos, partidas de futebol e excursões em clubes do partido cujos membros não teriam sido infectados por pontos de vista distintos. Foram os socialistas que primeiro insistiram no fato de que estes membros deveriam distinguir-se dos demais pelo modo de se saudarem e de se dirigirem uns aos outros.

Assim, Hayek pode concluir que “a idéia de um partido político que abarca todas as atividades de um indivíduo do berço ao túmulo” e que difunde uma Weltanschatuung [a] de conjunto é uma idéia que remete, em primeiro lugar, ao movimento socialista. Sobre esse movimento age uma tradição de mais longa data, que se reconhece – como observará, mais tarde, o patriarca do neoliberalismo – na “democracia social ou totalitária”. [6] De todo modo, “controle econômico e totalitarismo” aparecem estreitamente entrelaçados. [7]

Portanto, se de um lado os acusados são principalmente (ainda que não exclusivamente) o colonialismo e o imperialismo, do outro o réu principal (embora não exclusivo) da polêmica é constituído pela tradição revolucionária que de 1789 conduz a 1917, passando pela reivindicação de 1848 do direito ao trabalho e da “democracia social ou totalitária”.

Nesse ponto, podemos fazer intervir uma distinção ulterior. O totalitarismo, por assim dizer, de “esquerda”, pode ser criticado a partir de dois pontos de vista sensivelmente diferentes. Ele pode ser deduzido da infeliz ideologia organicista atribuída a Marx ou a Rousseau, ademais de Sieyès (esta é a abordagem de Talmon e Hayek). Ou então, pode ser referido às características materiais dos países em que o totalitarismo comunista afirmou-se. É desse modo que argumenta Wittfogel: “O estudo comparativo dos poderes totais” – como o diz o subtítulo de seu livro – demonstra que esse fenômeno manifesta-se, sobretudo no Oriente, no âmbito de uma “sociedade hidráulica”, caracterizada pela tendência em direção do controle total dos recursos hídricos necessários para o desenvolvimento da agricultura e a própria sobrevivência dos habitantes. Nesse contexto, bem longe de ser o progenitor do totalitarismo comunista, Marx é seu crítico ante litteram [b], como o mostram sua análise e suas denúncias do “despotismo oriental”, em que emprega uma categoria evocada por Wittfogel já no título de seu livro. [8]

Destes pressupostos decorre, pois, que o “poder total” não remete exclusivamente ao século XIX. Pode-se então pôr em relevo uma distinção ulterior. Se Arendt insiste na novidade do fenômeno totalitário, Popper chega a uma conclusão oposta, segundo a qual o conflito entre a “sociedade aberta e seus inimigos” parece ser eterno: “Aquilo que, hoje, chamamos totalitarismo pertence a uma tradição que é tão velha ou tão jovem quanto nossa própria civilização”. [9]

Finalmente, vimos que o totalitarismo pode ser denunciado olhando-se principalmente para a direita ou para a esquerda, mas não faltam casos em que a denúncia provém de ambientes e de personalidades ligadas ao nazi-fascismo e dirigese exclusivamente a seus inimigos. Em agosto de 1941, no decorrer da campanha, ou melhor, da guerra de extermínio contra a União Soviética, e diante da encarniçada e imprevista resistência que ela provocou, o general alemão Halder a explica pelo fato de que o inimigo preparou-se acuradamente para a guerra “com a completa falta de escrúpulos própria de um Estado totalitário” [10]. No mesmo sentido, Goebbels, mesmo sem lançar mão do termo “totalitarismo”, explica essa inesperada e inaudita resistência encontrada pelo exército invasor no Leste pelo fato de que o bolchevismo, cancelando qualquer resquício de livre personalidade, “transforma os homens em robôs” e em “robôs de guerra”, em “robôs mecanizados” [11]. Por fim, a acusação de totalitarismo pode golpear até os inimigos ocidentais do Eixo. Em 1937, a aspiração da Itália fascista a desenvolver também um império colonial confronta-se com a hostilidade, em primeiro lugar, da Inglaterra, que passa a ser acusada por sua “gélida e totalitária discriminação contra tudo aquilo que não seja simplesmente inglês”. [12]

A virada da guerra fria e a intervenção de Hannah Arendt

A partir da publicação das Origens do totalitarismo, as polissemias do debate aqui delineado em grandes linhas tenderam a diluir-se. Ainda em maio de 1948, Arendt denunciava o “desenvolvimento de métodos totalitários” em Israel, referindose ao “terrorismo” e à expulsão e deportação da população árabe [13]. Três anos depois, não havia mais espaço para críticas dirigidas contra o Ocidente atual. Em nossos dias, mais do que nunca, a única tese politically correct [c] é aquela que tem por alvo sempre e somente a Alemanha hitleriana e a União Soviética.

É a tese que triunfou a partir e no decorrer da guerra fria. Em 12 de março de 1947, Truman proclama a “doutrina” que toma seu nome: depois da vitória alcançada na guerra contra a Alemanha e o Japão, abre-se uma nova fase na luta pela causa da liberdade. Agora, a ameaça provém da União Soviética, “regime totalitário imposto aos povos livres, mediante agressão direta ou indireta, minando os fundamentos da paz internacional e, portanto, a segurança dos Estados Unidos”. [14]

Aqui, o alvo é delimitado com clareza: não se trata de virar as costas em relação ao século XX; de outro lado, não faz sentido golpear também os socialistas, junto com os comunistas: por mais graves que possam ter sido suas responsabilidades no passado, eles passaram a ser, no mais das vezes, aliados do Ocidente. Mas uma abordagem similar à assumida por Wittfogel seria um desvio por duas razões. A categoria de “despotismo oriental” dificilmente poderia legitimar a intervenção dos EUA, por exemplo, na guerra civil desencadeada na China onde, logo após a proclamação de sua doutrina, Truman se empenha em sustentar Chiang Kai-shek [15]. Por outro lado, a insistência sobre as condições objetivas, que explicariam a afirmação do “poder total”, tornaria mais difícil e menos agressiva a acusação feita aos comunistas. É por essa razão que termina por prevalecer a abordagem dedutivista. A guerra fria se configura como uma guerra civil internacional que dilacera transversalmente todos os países: para o Ocidente, o melhor meio de enfrentá-la é apresentar-se como o campeão da luta contra o novo totalitarismo, caracterizado como a conseqüência necessária e inevitável da ideologia e do programa comunista.

Nesse contexto, como colocar a intervenção de Arendt? Logo após sua publicação, Origens do totalitarismo foi submetido a dura crítica por parte de Golo Mann:

As duas primeiras partes da obra tratam da pré-história do Estado total. Mas aqui o leitor não encontrará aquilo que está acostumado a encontrar em trabalhos semelhantes, isto é, pesquisas sobre as peculiaridades históricas da Alemanha ou da Itália ou da Rússia [..] Pelo contrário, Hannah Arendt dedica dois terços de seu esforço ao anti-semitismo e ao imperialismo e, sobretudo, ao imperialismo de matriz inglesa. Não consigo segui-la [..] Somente na terceira parte, em vista da qual todo o resto foi escrito, Hannah Arendt parece abordar realmente o tema. [16]

Portanto, estariam substancialmente fora do tema as páginas dedicadas ao anti-semitismo e ao imperialismo, embora se trate de explicar a gênese de um regime como o hitleriano, que declaradamente ambicionava construir na Europa central e oriental um grande império colonial fundado sobre o domínio de uma pura raça branca e ariana, após ter liquidado de uma vez por todas o bacilo judeu da subversão, que alimentava as revoltas dos Untermenschen [d] e das raças inferiores.

Todavia, Golo Mann aponta um problema real. Como se harmoniza a última parte do livro de Arendt que tem por foco exclusivo a URSS staliniana e o Terceiro Reich, com as duas primeiras, que desenvolvem um requisitório contra a França (pelo anti-semitismo) e, em particular, contra a Inglaterra (pelo imperialismo)? Este último é o país que teve um papel central e funesto no decurso da luta contra a Revolução Francesa: Burke não se limitou a defender a nobreza feudal no plano interno, mas apontou “o princípio de tais privilégios até incluir neles todo o povo britânico, elevado assim ao estatuto de aristocracia entre as nações”. É aí que se deve buscar a gênese do racismo, “a arma ideológica do imperialismo”. [17] Entende-se agora que estas torpezas ideológicas se afirmaram em particular na Inglaterra, obcecada “pelas teorias sobre a hereditariedade e seu equivalente moderno, a eugenia”. Se a atitude de Disraeli não difere da de Gobineau, é porque temos que lidar com “dois devotos defensores da ‘raça’” [18], mas somente o primeiro conseguiu ascender a posições de tal poder e de tal prestígio. Ademais, é sobretudo nas colônias inglesas que começa a ser teorizado e imposto às “raças submetidas” um poder sem os limites que ele conhece nas metrópoles capitalistas; já no âmbito do Império britânico emerge a tentação dos “massacres administrativos” como instrumento de manutenção da dominação [19]. Esse é o ponto de partida necessário para se compreender a ideologia e a prática do Terceiro Reich. De Lord Cromer vem traçado um retrato que não está isento de analogias com aqueles sucessivamente dedicados a Eichmann: a banalidade do mal parece encontrar uma primeira encarnação, mais débil, no “burocrata imperialista” britânico, que “na fria indiferença, na genuína falta de interesse pelos povos administrados”, desenvolve uma “filosofia de burocrata” e uma “nova forma de governo […] mais perigosa que o despotismo e a arbitrariedade” [20]. Este requisitório é impiedoso, mas eis que se dissolve como por encanto na terceira parte das Origens do totalitarismo. O fato é que o livro de Arendt resulta, na realidade, de dois níveis distintos que remetem a dois períodos de composições diversas e separadas uma da outra pelo corte temporal do desencadeamento da guerra fria. Ainda na França, a autora via o trabalho que estava escrevendo “como uma obra exaustiva sobre o anti-semitismo e sobre o imperialismo e uma pesquisa histórica sobre aquele fenômeno que, então, chamava de ‘imperialismo racial’, isto é, sobre a forma mais extrema de opressão das minorias nacionais por parte das nações dominantes de um Estado soberano” [21]. Naquele momento, bem longe de ser um alvo, a URSS era, sobretudo, um modelo. Vinha lhe sendo atribuído o mérito, observa Arendt no outono de 1942 (no meio tempo, tinha desembarcado nos EUA e dali seguia o desenvolvimento da operação Barbarossa desencadeada por Hitler), de ter “simplesmente liquidado o antisemitismo” no âmbito de uma “solução justa e muito moderna da questão nacional” [22]. Ainda mais significativo é um texto de outubro de 1945:

Com respeito à Rússia, aquilo em que todos os movimentos políticos e as nações deveriam prestar atenção – o seu modo, completamente novo e bem-sucedido de enfrentar e compor os conflitos de nacionalidades, de organizar populações diferentes sobre a base da igualdade nacional – tem sido negligenciado tanto por seus amigos quanto por seus inimigos. [23]

Recorri às citações para evidenciar a reviravolta das posições que ocorrerá alguns anos depois, quando ela critica Stalin pela desarticulação calculada das organizações já existentes de forma a produzir artificialmente aquela massa amorfa que é o pressuposto do advento do totalitarismo.

A julgar pela terceira parte das Origens do totalitarismo, o que caracteriza o totalitarismo comunista é o sacrifício, inspirado e estimulado por Marx, da moral sobre o altar da filosofia da História e de suas leis “necessárias”. Arendt tinha, porém, se expressado de modo bem diverso em janeiro de 1946:

No país que nomeou Disraeli primeiro-ministro, o judeu Karl Marx escreveu O Capital, um livro que em seu zelo fanático pela justiça alimentou a tradição judaica de forma muito mais eficaz do que o festejado conceito de “homem eleito da raça eleita”. [24]

Aqui, enquanto teórico da justiça, Marx é contraposto, nítida e positivamente, a um primeiro ministro inglês que enuncia teorias posteriormente herdadas e radicalizadas pelo Terceiro Reich.

Na passagem das duas primeiras partes, escritas ainda sob a emoção da luta contra o nazismo, para a terceira parte, que remete ao desencadeamento da guerra fria, a categoria de imperialismo (que inclui, em primeiro lugar, a Grã-Bretanha e o Terceiro Reich, esse tipo de estágio supremo do imperialismo) cede o posto à categoria de totalitarismo (que inclui a URSS staliniana e o Terceiro Reich).

As species do genus [e] imperialista não coincidem com as species do genus totalitarismo; embora as species permaneçam aparentemente imutáveis, no primeiro caso, a Alemanha é posta em causa pelo menos desde Guilherme II, no segundo caso, somente a partir de 1933. Ao menos no que diz respeito à coerência formal, apresenta-se mais rigoroso o esquema inicial que, depois de ter aclarado o genus “imperialismo”, ao investigar as diferenças específicas desse fenômeno, enfrenta a análise da species “imperialismo racial”. Mas então de que forma as categorias de totalitarismo e de imperialismo podem entrelaçar-se num todo coerente? E qual é a relação que conecta ambas à de anti-semitismo? A resposta que Arendt fornece a essas interrogações dá a impressão de uma harmonização artificial entre dois níveis que continuam a ser dificilmente compatíveis entre si.

Mais do que um livro, Origens do totalitarismo constitui, na realidade, dois livros sobrepostos, para os quais, não obstante sucessivos ajustes, a autora não consegue conferir uma unidade substancial. Ao resenhar a obra, eminentes historiadores e historiadores das idéias (Carr e Stuart Hugues), mesmo exprimindo-se com respeito e por vezes com admiração, não mostram dificuldade em se dar conta da desproporção, na autora, entre o conhecimento real e aprofundado do Terceiro Reich e as informações aproximativas sobre a União Soviética; sublinham, sobretudo, quanto é cansativa a tentativa de adaptar a análise da União Soviética (que remete ao desencadeamento da guerra fria) à do Terceiro Reich (que reenvia aos anos da grande coalizão contra o fascismo e o nazismo). [25]

A guerra fria e as sucessivas adaptações da categoria de totalitarismo

Dos campos de concentração, Origens do totalitarismo falam, sempre e somente, em relação à URSS e ao Terceiro Reich. Chama a atenção, sobretudo, o silêncio sobre uma experiência direta que Arendt teve dessa instituição total: junto com tantos outros alemães, fugitivos da Alemanha nazista e tornados suspeitos, com a eclosão da guerra, por serem cidadãos de um Estado inimigo, ela foi internada, por algum tempo, em Gurs. As condições aí devem ter sido bastante duras: tinha-se a impressão – lembrava Arendt em 1943 – que “tínhamos sido levados para lá pour crever [f] de algum jeito”, tanto que em alguns dos internados surge a tentação do “suicídio” como “ação coletiva” de protesto. [26]

No momento em que Origens do totalitarismo vem à luz, o campo de concentração é um instrumento sinistramente vital até na Iugoslávia, onde, porém, estavam reclusos os comunistas fiéis a Stalin. Mais geralmente, nos países balcânicos a ditadura decerto não é menos férrea que na Europa Oriental. Entretanto, no caso da Iugoslávia que, tendo rompido com a URSS, estava de fato ligada ao Ocidente, podem ser constatados – como observará, em 1953, o secretário de Estado Dulles – “certos aspectos de despotismo”, mas nada mais. [27] É um juízo que, de qualquer forma, desaparece no silêncio observado por Arendt a esse propósito.

Para consolidar, posteriormente, o peso da guerra fria, outros fatores particulares intervieram: “Mussolini, que tanto amava o termo totalitário, não tentou instaurar um regime totalitário propriamente dito, contentando-se com a ditadura do partido único”. À Itália fascista, são assemelhados a Espanha de Franco e o Portugal de Salazar. [28] Deste modo, são poupados da acusação de totalitarismo os dois países que tinham aderido à OTAN. Nesse ponto, a luta entre antitotalitarismo e totalitarismo coincide perfeitamente com a luta entre os dois blocos.

Se poupa a Espanha, Portugal e até a própria Iugoslávia, a acusação de totalitarismo é lançada ou sugerida até para países inesperados:

Uma forma semelhante de governo (o totalitário, DL) parece encontrar condições favoráveis nos países do tradicional despotismo oriental, na Índia e na China, onde há uma reserva humana praticamente inexaurível, capaz de alimentar a máquina totalitária acumuladora de poder e devoradora de indivíduos, e onde, ademais, o sentido da superfluidade dos homens, típico das massas (e absolutamente novo na Europa, um fenômeno associado ao desemprego generalizado e ao crescimento demográfico dos últimos 150 anos) dominou durante séculos sem contestação no desprezo pela vida humana. [29]

Vale a pena observar que, embora gozando de um regime parlamentar, a Índia era, naquele momento, aliada da URSS!

Segundo Arendt, caracterizava o totalitarismo comunista o sacrifício, inspirado e estimulado por Marx, da moral sobre o altar da filosofia da história e de suas leis “necessárias”. O argumento apresentado nas Origens do totalitarismo pode ser lido numa intervenção, em março de 1949, de Dean Acheson, secretário de Estado americano durante a administração Truman: a OTAN é expressão da comunidade atlântica e ocidental, unida “por comuns instituições e sentimentos morais e éticos” e em luta contra um mundo surdo às razões da moral e, assim, inspirado do “sentimento comunista segundo o qual a coerção mediante a força constitui o método apropriado para apressar o inevitável”. [30]

Apesar disso, com as substanciais concessões ao clima ideológico da guerra fria, alguma coisa do projeto original das Origens do totalitarismo continua a se fazer presente mesmo na terceira parte do livro. Salta aqui aos olhos a distinção feita entre a ditadura revolucionária de Lenin e o regime propriamente totalitário de Stalin. Rompendo com a política czarista de opressão das minorias nacionais, Lenin organiza o maior número possível de nacionalidades, favorecendo o surgimento de uma consciência nacional e cultural até entre os grupos étnicos mais atrasados que, por sua vez, conseguem organizar-se como entidades culturais e nacionais autônomas. Algo de análogo se verifica também para as outras formas de organização social e política: os sindicatos, por exemplo, conquistam uma autonomia organizativa desconhecida na Rússia czarista. Tudo isso representa um antídoto em relação ao regime totalitário, que pressupõe uma relação direta e imediata com o líder carismático, de um lado, e a massa amorfa e atomizada, de outro. A estrutura articulada criada por Lenin é sistematicamente desmantelada por Stalin, que, para impor o regime totalitário que almeja, precisa desorganizar a massa de modo que possa tornar-se objeto do poder carismático e inconteste do chefe infalível. [31]

Como explicar a passagem de Lenin a Stalin? E por que a sociedade articulada e organizada que veio à luz na vaga da revolução não consegue contestar eficazmente a obra sistemática de desarticulação e desorganização que abre caminho para a imposição do regime totalitário? Leiamos a resposta: “Sem dúvida, Lenin sofre sua maior derrota quando, com o advento da guerra civil, o poder supremo que ele tinha, originariamente, projetado concentrar nos Sovietes passou definitivamente para as mãos da burocracia” [32]. Mas, então, a passagem ao regime totalitário não é o resultado inevitável de um pecado original ideológico (a filosofia da história de Marx), mas, em primeiro lugar, o produto de circunstâncias históricas bem determinadas e, ademais, de circunstâncias históricas que põem diretamente em causa as potências ocidentais de consolidada tradição liberal, empenhadas em alimentar de todas as formas a guerra civil antibolchevique. Por outro lado, não se entende bem como possa ainda sustentar-se a assimilação do bolchevismo e do nazismo sobre a qual insiste a terceira parte das Origens do totalitarismo: foi Lenin e não Stalin que edificou o partido bolchevique. Sobretudo, justifica-se pouco a acusação lançada contra Marx. Mas, segundo Arendt, na condução de sua política, Lenin teria sido guiado mais por seu instinto de grande estadista do que pelo programa marxista propriamente dito. Na realidade, as medidas de emancipação das minorias nacionais tinham sido precedidas por um longo e complexo debate sobre a questão nacional vista à luz do marxismo.

A defasagem entre o projeto inicial e as sucessivas composições das Origens do totalitarismo comporta também uma oscilação de caráter metodológico. Por um lado, Arendt se permite recorrer a uma interpretação dedutivista do fenômeno totalitário, claramente vizinha à dos autores liberais freqüentemente citados: o totalitarismo staliniano era, então, lido como a conseqüência lógica e inevitável da ideologia marxiana. Por outro lado, ela se vê constrangida a remeter às condições históricas particulares que explicam o advento do regime totalitário staliniano: guerra civil, agressões internacionais das potências vitoriosas na I Guerra Mundial (mas nossa autora apenas sobrevoa esse ponto), desagregação das estruturas organizativas etc. A distinção entre o leninismo e o stalinismo, entre ditadura revolucionária e o regime totalitário que a segue, interrompe aquela linha de continuidade férrea e meramente ideológica de Marx ao totalitarismo, instituída desde Hayek e Talmon.

Não por acaso, esta distinção é um dos alvos da polêmica de Golo Mann. Outro, ainda mais relevante, é constituído pelas duas primeiras partes das Origens do totalitarismo em seu conjunto. Além das reservas expressas na resenha, é, sobretudo, eloquente a conversa que o historiador refere ter tido com Jaspers. É um convite a tomar distância das posições heréticas tomadas por sua discípula:

Você acredita que o imperialismo inglês, em particular Lord Cromer no Egito, teve algo a ver com o Estado totalitário? Ou o anti-semitismo francês no caso Dreyfus? “Você escreveria isto?”. “Mas é claro, ela dedica a isso três capítulos”. Acreditando cegamente na amiga amada, ele tinha aconselhado a leitura do livro que ele, no entanto, tinha lido apenas de relance. [33]

Golo Mann tem razão. No tema do totalitarismo, Jaspers é decididamente mais ortodoxo que Arendt. Essa última acaba por ser influenciada pelas críticas dirigida a ela. Isso emerge, em particular, no ensaio Sobre a revolução. Aqui, Marx é o autor da “doutrina politicamente mais danosa da idade moderna, ou seja, que a vida é o bem supremo e que o processo vital da sociedade é o próprio centro de todo o esforço humano”. O resultado é catastrófico:

Este caminho leva Marx a uma verdadeira e própria capitulação da liberdade diante da necessidade. Assim, ele faz o que seu mestre de revolução, Robespierre, tinha feito antes dele e aquilo que seu maior discípulo, Lenin, fará depois dele na mais grandiosa e terrível revolução que seus ensinamentos tenham, até agora, inspirado. [34]

Ora, não é somente em Marx que se dissipa o “zelo fanático pela justiça” do qual Arendt fala em 1946 e do qual já se tinham largamente perdido os rastros apenas cinco anos mais tarde. O elemento mais relevante de novidade é outro: plano e sem obstáculos passa a ser o percurso que conduz de Marx ao totalitarismo passando por Lenin. Sobre os ombros de Marx, age a Revolução Francesa e esta também está plenamente envolvida no juízo de condenação, que marca uma ulterior reviravolta em relação às Origens do totalitarismo.

Agora, fica clara a adesão à abordagem dedutivista de Talmon e Hayek, como fica claro também o triunfo obtido por Golo Mann. Mais além das concessões que lhe faz Arendt, prevalece, em nossos dias, uma leitura das Origens do totalitarismo que parece levar em conta as preocupações ideológicas expressas por ele. Com efeito, quem hoje, no âmbito do debate sobre totalitarismo, se lembra de Lord Cromer e da sua “nova forma de governo”, ainda “mais perigosa que o despotismo”? E quem aponta para os “massacres administrativos” cuja tentação acompanha como uma sombra a história do imperialismo? Quem ainda faz intervir a categoria de imperialismo? Das duas seções das quais resulta o livro de Arendt, só a menos válida, aquela que evita principalmente o peso das preocupações ideológicas e políticas imediatas, continua sendo empregada e interrogada. Ao resenhar Origens do totalitarismo, Golo Mann sintetizava assim o sentido de suas críticas: “Tudo é demasiadamente sutil, demasiadamente inteligente, demasiadamente artificial […] Em breve, teríamos preferido um tom mais rigoroso, mais positivo no conjunto” [35]. Com efeito, a teoria do totalitarismo tornou-se, em seguida, menos “sutil” e mais “robusta” e “positiva”. Adaptou-se em cheio às exigências da guerra fria. Emergindo do organicismo e do holismo de direita e de esquerda e dedutível de algum modo apriorístico desta frutífera fonte ideológica, o totalitarismo, em suas duas distintas configurações, explica todo o horror do século XX: essa é, hoje, a vulgata dominante.

Teoria do totalitarismo e seleção dos horrores do século XIX

É uma vulgata que nem mesmo tenta interrogar-se sobre alguma catástrofe central do século o qual, assim mesmo, pretende explicar. Procedamos como se estivéssemos no passado em relação à Revolução de Outubro, que constituiria o ponto de partida da vicissitude totalitária. Como interpretar a I Guerra Mundial, com seu séquito de mobilizações totais, de arregimentação total, de execuções e dizimações no interior do próprio campo, de impiedosas punições coletivas que comportam, por exemplo, a deportação e o extermínio dos armênios? E, em qual contexto colocar ainda as guerras balcânicas, com os massacres que as caracterizam? Sempre procedendo em retrospectiva, como ler a tragédia dos Hereros [g], considerados inaptos como força de trabalho servil e que foram, conseqüentemente, no início do século XIX, condenados ao aniquilamento por uma ordem explícita?

Agora não mais no passado, procedamos como se estivéssemos no futuro em relação à I Guerra Mundial e à Revolução de Outubro. Pouco mais de duas décadas depois, o campo de concentração faz sua aparição também nos Estados Unidos onde, com base em uma ordem de Franklin Delano Roosevelt, são reclusos em campos de concentração todos os cidadãos americanos de origem japonesa, inclusive mulheres e crianças.

Naquele mesmo momento, na Ásia, a guerra conduzida pelo Império do Sol Nascente assumia formas particularmente repugnantes. Com a tomada de Nanquim, o massacre torna-se uma espécie de disciplina esportiva e, ao mesmo tempo, de divertimento: quem conseguirá ser mais rápido ou mais eficiente ao decapitar os prisioneiros? A desumanização do inimigo alcança então uma inteireza bastante rara e, de fato, com caráter de “unicidade”: em vez de utilizar animais, as vivisseções são praticadas nos chineses, os quais, por outro lado, constituem o alvo vivo dos soldados japoneses que se exercitam à prática de assalto com baionetas. A desumanização também investe em cheio contra as mulheres que, nos países invadidos pelo Japão, são submetidas a uma brutal escravidão sexual: são as comfort women [h] , obrigadas a “trabalhar” a um ritmo infernal a fim de restaurar dos cansaços da guerra o exército de ocupação e logo eliminadas assim que se tornam inúteis pelo desgaste ou por quaisquer doenças. [36]

A guerra no Extremo-Oriente, que vê o Japão tratar cruelmente os prisioneiros ingleses e americanos e lançar mão contra a China até de armas biológicas, termina com o bombardeio atômico de Hiroshima e Nagasaki, em um país que já se encontra no extremo de suas forças e se prepara à rendição: é por isso que estudiosos americanos compararam o aniquilamento da população civil das duas cidades japonesas, já indefesas, ao massacre dos judeus pelo Terceiro Reich consumado na Europa.

De tudo isso, não há traços no livro de Arendt. O Japão apenas aparece no índice analítico: à guerra na Ásia se faz um fugaz aceno para denunciar o totalitarismo da China e não somente o do Partido Comunista, mas do país inteiro sobre os ombros do qual age, como já vimos, o “despotismo oriental”. Além do peso da guerra fria (entrementes, o Japão passou a participar da aliança antitotalitária), emergem aqui todos os limites da categoria de totalitarismo.

Ela não consegue explicar adequadamente nem mesmo as tragédias das quais se ocupa de forma específica. A “solução final” tem atrás de si duas etapas que a precederam imediatamente. No decurso da I Guerra Mundial, foi a Rússia czarista (com os países ocidentais aliados a ela) que promoveram a maciça deportação dos judeus das zonas fronteiriças, suspeitos de pouca lealdade relativamente a um regime que os oprimia. Após a derrubada do czarismo e o desencadeamento da guerra civil, são as tropas brancas (apoiadas pelas mesmas potências ocidentais) que lançam a caça ao judeu, apontado como o inspirador oculto da revolução “judaico-bolchevista”: daí decorrem os massacres que, como sublinham os historiadores, parecem antecipar o advento da “solução final”. [37]

Um dedutivismo arbitrário e inconcludente

Se são clamorosamente enviezados os deslocamentos de enfoque da teoria do totalitarismo hoje dominante, é claramente insustentável a abordagem dedutivista sobre a qual ela se alavanca. No comunismo que Marx defendia, diluem o Estado, as nações, as religiões, as classes sociais, todos os elementos constitutivos de uma identidade meta-individual: não há nenhum sentido em falar de organicismo e fazer jorrar desse presumido pecado original o aniquilamento do indivíduo no âmbito do sistema totalitário. No que diz respeito ao sacrifício da moral sobre o altar da filosofia da história, esse motivo é antecipadamente confundido ou drasticamente problematizado pela Arendt de janeiro de 1946, que descreve Marx como uma espécie de profeta hebraico sedento de justiça

A abordagem dedutivista se revela arbitrária e inconclusiva também em relação ao Terceiro Reich. Folheemos a árvore genealógica do nazismo, da forma como tem sido comumente reconstruída pelos mais notórios historiadores. É obrigatório o encontro com Chamberlain: segundo Nolte, trata-se de um “bom liberal” que “levanta a bandeira da liberdade individual” [38]. Com efeito, estamos aqui lidando com um autor para quem o germanismo (sinônimo em última análise do Ocidente) é caracterizado pela recusa do “absolutismo monárquico” e de todas as visões do mundo que sacrificam o “singular” sobre o altar da coletividade. Não por acaso Locke é o “novo elaborador da nova visão do mundo germânico; e se quisermos encontrar precedentes, é necessário buscá-los em Ockam e, antes disso, em Duns Scoto, para quem é “o indivíduo” que constitui “a única realidade”.

Uma reconstrução histórica das “origens culturais do Terceiro Reich” tampouco pode ignorar Gobineau: o autor do Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas celebra as “tradições liberais dos Arianos”, os quais, por muito tempo, resistem a essa “monstruosidade cananeia” que é a ideia de “pátria”. Se, nesse contexto, inserimos também Langbehn, como sugere, entre outros, Mosse [39], veremos que é ainda mais nítida a profissão de fé individualista, bem como a celebração do “espírito santo do individualismo”, do “princípio alemão do individualismo”, esta “estimulante força fundamental e originária de todo o germanismo”. Os países designados como modelo são, quando muito, os países clássicos da tradição liberal. Se Gobineau dedica seu livro “a Sua Majestade George V”, Langbehn celebra o povo inglês como o “mais aristocrático entre todos os povos” e “o mais individualista entre todos os povos”, bem como Le Bon (um autor bastante caro a Goebbels) contrapõe, constante e positivamente, o mundo anglo-saxão ao resto do planeta. [40]

Mas, por que ir mais longe? Abramos Mein Kampf. Dura é a polêmica contra uma visão do mundo que, ao pretender atribuir ao Estado uma “força criativa e produtora de cultura”, desconhece não somente o valor da raça, mas ainda se torna culpada de “subestimar a pessoa” ou, ainda, a “pessoa singular” [41]. A “civilização de amanhã” repousa, em primeiro lugar, “sobre a genialidade e a energia da personalidade” [42]; portanto, não se pode nunca perder de vista o “homem singular”, o “ente singular” (Einzelwesen) em sua irredutível peculiaridade [43], o “homem singular” em suas “múltiplas e sutilíssimas diferenciações” [44]. Hitler aspira apresentar-se se como o autêntico e coerente defensor dos valores da “personalidade”, do “sujeito”, da “força criativa e da capacidade da pessoa singular, do significado superior da personalidade”, do “princípio da personalidade” contra o “princípio democrático da massa”, que encontra no marxismo a sua expressão mais conseqüente e mais repugnante [45]. Se o marxismo nega “o valor da pessoa”, o movimento nazista “deve promover, por todos os meios, o respeito da pessoa, não deve nunca esquecer que nos valores pessoais reside o valor de tudo que é humano e que cada ação é o produto da força criativa de um homem singular”. [46]

Naturalmente, é fácil ler no nazismo até apelos à unidade em coro na luta contra o inimigo, mas este é um motivo que, por razões óbvias, torna-se um recurso, de tempos em tempos, da ideologia da guerra de todos os países empenhados na segunda Guerra dos 30 Anos [i]. Certo, seria necessário perguntar-se através de que processos a celebração do “indivíduo”, da “personalidade” e do “singular” se transforma, de modo consciente ou sub-reptício, na celebração da cultura e dos povos realmente em posição de colher esses valores, com a conseqüente hierarquização dos povos e a condenação das “raças” consideradas, intrínseca e irremediavelmente, coletivistas [47]. Mas essa é uma dialética que também se manifesta no âmbito da tradição liberal e que, entretanto, não pode ser descrita através da categoria de organicismo ou de holismo.

Na melhor das hipóteses, querer explicar o totalitarismo com o organicismo ou com o sacrifício da moral sobre o altar da filosofia da história é como explicar a virtude soporífica do ópio reenviando a sua vis dormitiva [j].

Totalitarismo e partido único

Agora, façamos pura abstração da origem cultural do totalitarismo e concentremo-nos em suas características. Essas podem ser descritas como “uma ideologia (de Estado), um partido único, geralmente dirigido por um só indivíduo, uma conduta terrorista, o monopólio dos meios de comunicação, o monopólio da violência e uma economia diretamente governada pelo poder central” [48]. Das duas últimas caraterísticas – admitem os autores desta definição – a primeira certamente remete à natureza do Estado enquanto tal e a segunda podia ser encontrada até na Grã-Bretanha, profundamente marcada naquele momento (1956) pelas nacionalizações e pelas reformas sociais trabalhistas. Convém, então, concentrar-se nas outras características. Será que remeter de forma exclusiva ao totalitarismo é o monopólio dos meios de comunicação? Como deve ser conhecido, no curso da I Guerra Mundial, Wilson criou um Comitê para a Informação Pública que fornecia aos jornais, toda semana, 22 000 colunas de notícias, tratando de tudo que era considerado suscetível de poder vir a favorecer o inimigo. Será então a “conduta terrorista” que define, de forma específica, o totalitarismo? Tem-se a impressão que os dois autores aqui citados ignoram a história dos países que abordam e nos quais vivem. Com base na Espionage Act de 16 de maio de 1918, é possível ser condenado a 20 anos de cárcere por ter exprimido opiniões “de forma desleal, irreverente, vulgar ou abusiva sobre a forma de governo dos Estados Unidos, ou sobre a Constituição dos Estados Unidos, ou sobre as forças militares ou navais dos Estados Unidos, ou sobre sua bandeira [..] ou sobre o uniforme do Exército ou da Marinha dos Estados Unidos”. São notórios historiadores americanos que sublinham que as medidas lançadas no decurso do primeiro conflito mundial visavam “a cancelar até os mínimos traços de oposição”. E, à violência de cima se acresce a violência de baixo, tolerada e encorajada pelas autoridades que se exprime numa impiedosa caça a qualquer um que seja suspeito de escasso fervor patriótico. [49]

No que concerne ao “partido único, geralmente dirigido por um só indivíduo”, assistimos aqui à aproximação e à confusão de dois problemas sensivelmente distintos entre si. Sobre o papel do líder, pode ser interessante fazer um confronto. Ao estourar, em 1950, a guerra na Coréia, Truman não teve nenhuma dificuldade em decidir a intervenção independentemente do Congresso [50], ao passo que Mao foi obrigado a enfrentar e a derrotar a dura oposição que encontrou no âmbito do Bureau Político, no qual, inicialmente, foi posto em minoria [51]. Permanecem afirmando que, contrariamente aos USA, na China vigora o partido único e que essa característica é comum aos regimes totalitários. Além de deter o monopólio da ação política, esse é um partido-Exército e ao mesmo tempo, sobretudo no caso dos comunistas, um partido-Igreja. Será essa a confirmação da validade da teoria do totalitarismo?

Ao contrário, se essa teoria tem por alvo, de forma exclusiva, o comunismo e o nazismo, ela já é refutada por Hayek, que, justamente, faz intervir no confronto também os partidos socialistas. Com efeito, ao denunciar a incapacidade da imprensa de influir sobre as “largas massas” e ao declarar que é necessário saber aprender com as campanhas de agitação lançadas pelo “marxismo”, Hitler faz referência, em primeiro lugar, à “imprensa social-democrata” e aos “agitadores” (oradores e jornalistas) da social-democracia. [52]

Mas por sua vez, Hayek volta a se fixar nas observações empíricas, sem ao menos interrogar-se sobre as razões do fenômeno (o partido-Exército e o partido-Igreja) constatado e criticado por ele. Os partidos socialistas aspiram a romper o monopólio burguês dos meios de comunicação, e para isso promovem a publicação de jornais do partido, a organização de escolas para a formação de quadros etc. É um problema que não se coloca para a burguesia: essa pode contar com o controle do aparelho escolar e da grande imprensa de informação, bem como o apoio, de forma direta ou indiretamente, da Igreja e de outras associações e articulações da sociedade civil. A legislação anti-socialista aprovada por iniciativa de Bismarck impõe ao partido a necessidade de adaptar-se às condições da ilegalidade e faz, por outro lado, emergir a aspiração de romper também o monopólio burguês da violência. Essa é uma dialética que já tinha se desenvolvido no decorrer da Revolução Francesa. A burguesia se esforça para manter o monopólio da violência, impondo cláusulas censitárias até para o alistamento nas Guardas Nacionais e eis que, na vertente oposta, organizam-se partidos que são, também, organizações de luta.

Essa dialética alcança seu auge na Rússia czarista. Ao desenvolver a teoria do partido, Lenin tem em mente o modelo constituído pela social-democracia alemã. Mas sua estrutura centralizada foi, posteriormente, reforçada de modo a poder enfrentar o desafio representado pela autocracia czarista e por um regime policialesco de mil olhos e nenhum escrúpulo. Entende-se, então, que o partido bolchevique se revele mais de qualquer outro à altura do estado de exceção permanente que, a partir da I Guerra Mundial, caracteriza a Rússia e a Europa; a tal ponto que se torna um modelo não só para os comunistas mas, também, para seus oponentes. Bukharin observa, no VII Congresso do PCR (b), em abril de 1923:

Os fascistas, mais que qualquer outro partido, apropriaram-se e passaram a pôr em prática a experiência da revolução russa. Se os considerarmos do ponto de vista formal, isto é, do ponto de vista da técnica de seus procedimentos políticos, verificase uma perfeita aplicação da tática bolchevique e especificamente do bolchevismo russo: no sentido de uma rápida concentração de forças e de uma ação enérgica por parte de uma organização militar unida e compacta. [53]

A contiguidade, que, em Hayek, é sinônimo de vizinhança ideológica e política, é aqui sinônimo de antagonismo. Às tentativas dos partidos operários de romper o monopólio burguês da violência, a burguesia responde rompendo o monopólio socialista e comunista dos partidos de luta: essa é a leitura de Bukharin.

De resto, a seqüência temporal fixada por Hayek é esquemática e aproximativa. Em situações diversas, são os socialistas que devem aprender com seus oponentes. Na Itália, enquanto as organizações sindicais e políticas das classes populares são sistematicamente destruídas pelo assalto fascista (estamos às vésperas da marcha sobre Roma, isto é, do golpe de Estado monárquico-mussoliniano), na tentativa de organizar uma defesa, Guido Pacelli (naquele momento, socialista) prega a necessidade de romper com a tradição legalista:

Hoje, há novos métodos. Frente à força armada há a força armada. Donde a necessidade da formação na Itália “do exército vermelho proletário”. Ademais, os fatos demonstraram, claramente, e poucos de nós sustentamos isso desde o início, que o fascismo deve ser abatido no terreno da violência sobre o qual ele foi o primeiro a se instalar. A resignação cristã aconselhada pelos mestres do método reformista fez com que o inimigo se encorajasse e conduziu ao esfacelamento de nossas organizações [..] O proletariado dispõe de um novo órgão de defesa e de batalha: “O seu exército”. Nossas forças devem enquadrar-se e disciplinar-se voluntariamente. O operário deve transformar-se em soldado, soldado proletário, mas “soldado” [..] A burguesia, para nos atacar, não criou um partido que teria sido insuficiente, mas um organismo armado, o seu exército: o fascismo. Nós devemos fazer outro tanto. [54]

Sobretudo, é arbitrário o ponto de partida indicado por Hayek. Pode-se, tranquilamente, proceder da frente para trás em relação ao ponto de partida indicado por ele (a formação dos partidos socialistas). Mais uma vez, estamos em presença de uma dialética que já se manifesta no decurso da Revolução Francesa: se as seções populares jacobinas são a resposta ao monopólio de burgueses e demais proprietários sobre a Guarda Nacional, a jeunesse dorée [k] é a réplica dos burgueses e demais proprietários ao monopólio popular do partido organizado para a luta. Desse confronto, a classe dominante que professa o liberalismo está ausente só em aparência: as organizações proto-fascistas que se constituem na França no início do século XX funcionam como “polícia auxiliar” do poder e da classe dominante. [55]

Uma dialética análoga também se desenvolve no que diz respeito ao sindicato. Obviamente, os capitalistas – como já o notava Adam Smith – não têm necessidade deles [56]; entretanto, aos sindicatos inspirados do marxismo ou aos movimentos de oposição mais ou menos radical opõem-se sindicatos inspirados da Igreja e, mais tarde, outros ainda inspirados do movimento fascista e nazista; enfim, vêm à luz os “sindicatos” do capital.

Aproximando e assimilando dois “fatos” (a insistência no partido-Exército e no partido-Igreja por parte dos socialistas e comunistas, de um lado, e por parte dos fascistas e nazistas do outro), a leitura de Hayek se revela afetada por uma superstição positivista. Mas é nessa superstição que se fundamenta, em última análise, a teoria corrente do totalitarismo. Com a mesma lógica de Hayek, poder-se-ia aproximar Roosevelt de Hitler: partilham entre si o “fato” do recurso aos blindados, aos aviões e navios de guerra!

Por outro lado, ao forjar seus instrumentos de luta, Hitler não se limita a mirar em direção aos partidos socialistas e comunistas. Ao afirmar a incapacidade dos partidos burgueses tradicionais de influir nas classes populares, o autor de Mein Kampf propõe-se a tirar lições, não só da social-democracia, mas também da Igreja católica da qual, apesar de tudo, aprecia a influência sobre as largas massas e a conhecida capacidade de recrutar quadros até nos extratos populares mais modestos [57]. Sobretudo, é uma ordem religiosa que suscita a admiração de Hitler: “Foi com Himmler que a SS tornou-se essa milícia extraordinária, devotada a uma ideia, fiel até a morte. Em Himmler, vejo o nosso Inácio de Loyola” [58]. Já designada e celebrada por De Maistre como a única organização apta a fazer frente à maçonaria revolucionária [59], sucessivamente assumida como modelo por Rhodes para a realização de sua ideia imperialista de “domínio baseado no segredo” – é Arendt que o nota [60] – a ordem dos jesuítas passa, enfim, a ser interpretada como a organização de quadros capazes, disciplinados e devotados à causa, dos quais necessita a guerra civil contra-revolucionária do século XIX. Deveríamos então aproximar e assimilar as lojas maçônicas, Societas Jesus e Schutz Staffeln [l]?

Estado racial e eugenia: Os EUA e o Terceiro Reich

Seria bastante pobre uma definição do Terceiro Reich que se limitasse a pôr em evidência seu caráter totalitário, remetendo em particular ao fenômeno da ditadura do partido único. Enquanto líderes de uma ditadura com partido único, não é difícil relacionar juntos Hitler e Stalin, Mao, Deng, Ho Chi Minh, Nasser, Ataturk, Tito, Franco etc., mas esse exercício escolástico está bem aquém de uma análise histórica. Mesmo se houver a preocupação de distinguir os “totalitários”, Stalin e Hitler, do “autoritário” Mussolini, cujo poder é limitado pela presença do Vaticano e da Igreja, não se terá trilhado um caminho muito maior. Nesse caso, mais do que um percurso real, assistiríamos a um deslizamento: da ideologia teríamos passado, inadvertidamente, a um âmbito completamente distinto, a uma realidade, dados e fatos independentes e preexistentes em relação às escolhas ideológicas e políticas do fascismo.

No que concerne ao Terceiro Reich, é bem difícil dizer alguma coisa determinada e concreta a seu respeito sem referir-se a seus programas raciais e eugenísticos. E estes nos conduzem a uma direção muito diferente daquela sugerida pela categoria de totalitarismo. Logo após a conquista do poder, Hitler se preocupa em distinguir nitidamente, inclusive no plano jurídico, as posições dos arianos em relação aos judeus bem como aos dos poucos mulatos que viviam na Alemanha (ao final da I Guerra Mundial, tropas de cor que participavam do Exército francês tinham tomado parte da ocupação do país). Assim, fica claro que o elemento central do programa nazista era a construção de um Estado racial. Bem, quais eram naquele momento os modelos possíveis de Estado racial? Mais ainda do que a África do Sul, o pensamento corre, em primeiro lugar, ao Sul dos EUA. Ademais, de forma explícita já em 1937, Rosenberg decerto se refere à África do Sul: é bom que permaneça solidamente “em mãos nórdicas” e brancas (graças a oportunas “leis” que distinguem, além dos “indianos”, os “negros, mulatos e judeus”), e que constitua um “bastião sólido” contra o perigo representado pelo “despertar negro”. Mas o ponto de referência principal é constituído pelos Estados Unidos, esse “esplêndido país do futuro” que teve o mérito de formular a feliz “nova ideia de um Estado racial”, ideia que então se tratava de pôr em prática, “com força juvenil”, mediante expulsão e deportação de “negros e amarelos” [61]. Basta dar uma olhada à legislação de Nuremberg para se dar conta da analogia com a situação que reinava do outro lado do Atlântico: obviamente, na Alemanha eram, primeiro, os judeus de origem alemã que ocupavam o lugar dos afro-americanos. “A questão negra” – escrevia Rosenberg em 1937 – “está, nos EUA, no vértice de todas as questões decisivas”; e uma vez que o absurdo princípio de igualdade seja cancelado para os negros, não se vê por que não se devam tirar “as conseqüências necessárias para os amarelos e os judeus” [62]. Por conseguinte, no que diz respeito ao projeto bastante caro para ele de um império continental alemão, Hitler tinha bem presente o modelo dos EUA, dos quais celebra “a inaudita força interior” [63]: a Alemanha era chamada a seguir esse exemplo, expandindo-se pela Europa Oriental como se fosse uma espécie de Faroeste e tratando os “indígenas” à mesma maneira dos peles-vermelhas. [64]

Às mesmas conclusões chegaríamos se fixássemos o olhar na eugenia. É hoje conhecido o débito que a Alemanha contraiu em relação aos EUA, onde a nova “ciência”, inventada na segunda metade do século XIX por Francis Galton (um primo de Darwin), conhece ampla fortuna. Bem antes do advento de Hitler ao poder, às vésperas do desencadeamento da I Guerra Mundial, vem à luz, em Mônaco, um livro que, já em seu título, aponta os Estados Unidos como modelo de “higiene racial”. Seu autor, vice-cônsul do Império Austro-húngaro em Chicago, celebra os EUA pela “lucidez” e pela “pura razão prática” das quais dão prova ao enfrentar, com a devida energia, um problema tão importante e, também, tão freqüentemente relegado a segundo plano: violar as leis que vetam as relações sexuais e matrimoniais mistas pode comportar até 10 anos de reclusão e, em caso de condenação, atingir não só os protagonistas mas igualmente seus cúmplices [65]. Mesmo após a conquista do poder pelo nazismo, os ideólogos e “cientistas” da raça continuam a martelar: “Também a Alemanha tem muito que aprender com as medidas dos norte-americanos: estes sabem o que fazem” [66]. Vale acrescentar que não estamos diante de uma relação de mão única. Com o advento de Hitler ao poder, são os mais radicais seguidores do movimento eugenista americano que erigem o Terceiro Reich em modelo, visitando-o não poucas vezes em viagens de estudo ou de peregrinação ideológica. [67]

Uma questão se impõe: por que, para definir o regime nazista, o recurso à ditadura do partido único deveria ser mais caracterizante do que a ideologia e a prática racista e eugênica? É exatamente desta fonte que derivam as categorias centrais e as palavras-chave do discurso nazista, como vimos a propósito da Rassenygiene, que no fundo é a tradução alemã de eugenics, a nova ciência inventada na Inglaterra e triunfante do outro lado do Atlântico. Mas há exemplos ainda mais clamorosos. Rosenberg manifesta sua admiração pelo autor americano Lothrop Stoddard, a quem pertence o mérito de ter sido o primeiro a cunhar a expressão Untermensch, que já em 1925 se exibe como subtítulo da tradução alemã de um livro publicado em Nova Iorque três anos antes [68]. No que concerne ao significado do termo que ele tinha cunhado, Stoddard esclarece que ele indica a massa dos “selvagens e semi-selvagens”, no interior ou no interior das metrópoles capitalistas, de qualquer modo “inaptos à civilização e inimigos incorrigíveis dela”, com os quais é preciso proceder a um acerto de contas [69]. Nos EUA como no mundo inteiro, é necessário defender a “supremacia branca” contra a “maré montante dos povos de cor”, excitados pelo bolchevismo, “o renegado, o traidor no interior de nosso campo”, o qual, com sua insidiosa propaganda, atinge não somente as colônias, mas as próprias regiões negras dos Estados Unidos” [70]. Bem se compreende a extraordinária fortuna destas teses. O autor americano, que, antes mesmo de receber os elogios de Rosenberg, já os tinha recebido de dois presidentes estadunidenses (Harding e Hoover), foi seguidamente acolhido em Berlim com todas as honras. Lá encontrou-se não somente com os mais ilustres expoentes da eugenia nazista, mas também com a cúpula do regime, inclusive com Adolf Hitler [71], desde então lançado em sua campanha para dizimar e submeter os Untermenschen.

Convém também concentrar a atenção em outro termo. Vimos que Hitler encarava como um modelo a expansão branca no Faroeste. Logo depois de tê-la invadido, Hitler procedeu ao desmembramento da Polônia. Uma parte, da qual os polacos foram expulsos, foi diretamente incorporada ao Grande Reich; o resto constituiu a “Governadoria Geral”, em cujo âmbito, como declarou o governador geral, os polacos vivem numa “espécie de reserva”, submetidos à jurisdição alemã sem serem cidadãos alemães [72]. O modelo americano é aplicado de modo quase escolar.

Ao menos em sua fase inicial, o Terceiro Reich propõe-se instituir também uma Judensreservat, uma “reserva para os judeus”, também semelhante às que serviram para confinar os peles-vermelhas. Até mesmo no concernente à expressão “solução final”, vêmo-la emergir primeiro nos USA, referida à “questão negra” antes que à “questão judaica” e, só depois, na Alemanha. [73]

Assim como não é espantoso que o “totalitarismo” tenha encontrado sua expressão mais concentrada nos países de posição central na Segunda Guerra dos 30 Anos, tampouco surpreende que a tentativa nazista de construir um Estado racial tenha extraído motivos de inspiração, categorias e palavras-chave da experiência histórica mais rica que, sobre este assunto, tinha diante de si, aquela acumulada pelos brancos norte-americanos em suas relações com os peles-vermelhas e o negros. Obviamente, não devemos perder de vista todas as outras diferenças, no que diz respeito ao governo das leis, à limitação do poder estatal (relativamente à comunidade branca) etc. Resta o fato de que o Terceiro Reich se apresenta como a tentativa, levada a efeito nas condições da guerra total e da guerra civil internacional, de realizar um regime de white supremacy em escala planetária e sob hegemonia alemã, recorrendo a medidas eugenéticas, político-sociais e militares.

O coração do nazismo é constituído pela ideia de Herrenvolk, que remete à teoria e à prática racista do sul dos Estados Unidos e, mais geralmente, à tradição colonial do Ocidente; esta ideia é o alvo principal da Revolução de Outubro, que não por acaso conclama os “escravos das colônias” a romper suas cadeias. A teoria corrente do totalitarismo concentra a atenção exclusivamente sobre a semelhança dos métodos atribuídos aos dois antagonistas, fazendo-os até descender de uma pretensa afinidade ideológica, sem fazer nenhuma referência à situação objetiva e ao contexto geopolítico.
Por uma redefinição da categoria de totalitarismo

O defeito fundamental da categoria de totalitarismo é transformar uma descrição empírica, relativa a certas categorias determinadas, numa dedução lógica de caráter geral. Não há dificuldades em constatar as analogias entre URSS staliniana e Alemanha nazista; a partir delas, é possível construir uma categoria geral (totalitarismo) e sublinhar a presença nos dois países do fenômeno assim definido; mas transformar esta categoria na chave de explicação dos processos políticos verificados nos dois países é um salto assustador. Sua arbitrariedade deveria ser evidente, por duas razões fundamentais. Já vimos a primeira: de modo sub-reptício as analogias que subsistem entre URSS e Terceiro Reich quanto à ditadura do partido único são consideradas decisivas, ao passo que são ignoradas e removidas as analogias no plano da política eugênica e racial, que permitiriam instituir conexões bem diferentes.

Quanto à segunda razão, mesmo se concentrarmos a atenção sobre a ditadura do partido único nos dois países geralmente postos em confronto, por que remeter à afinidade de suas ideologias antes que à semelhança das situações políticas (o estado de exceção permanente) ou ao contexto geopolítico (a particular vulnerabilidade) que os dois países tinham de enfrentar? Parece-me evidente, em vez disso, que como fundamento do fenômeno totalitário, juntamente com as ideologias e as tradições políticas, age poderosamente a situação objetiva.

A tal respeito pode ser instrutiva uma reflexão sobre a origem do termo “totalitarismo”. Dois anos após a explosão da Revolução de Outubro, quando ainda perduram os ecos do primeiro conflito mundial, eis que emerge a crítica do “totalismo revolucionário” (revolutionärer Totalismus) [74]. O uso do adjetivo parece supor que haveria um “totalismo” distinto daquele caracterizado como revolucionário. Enquanto indica diretamente uma species (o “totalismo revolucionário”), o genus (totalismo) remete, ainda que de modo indireto, a uma species distinta, a do totalismo bélico. Com efeito, este substantivo, que era utilizado naquele momento (antes, pois, de ser substituído por totalitarismo) tinha imediatamente a seu lado um adjetivo que, a partir de 1914, começa a ressoar de modo obsessivo. Fala-se de “mobilização total” e, alguns anos depois, de “guerra total” e até mesmo de “política total” [75]. A “política total” é a política adequada à “guerra total”. Mas não é esse também o significado real que convém atribuir à categoria de “totalitarismo”? Tanto Mussolini quanto Hitler declaram explicitamente que os movimentos e regimes por eles dirigidos são filhos da guerra e à guerra também remetem inevitavelmente a revolução que contra ela se desencadeou e o regime político que dela se originou.

Sendo assim, pôr lado a lado União Soviética e Alemanha hitleriana, enquanto expressões eminentes do totalitarismo, é, enfim, uma banalidade: onde o regime correspondente à guerra total deveria evidenciar sua característica de fundo senão nos dois países situados no centro da Segunda Guerra de 30 Anos? Não é nada espantoso que o universo concentracionário tenha assumido nestes países uma configuração nitidamente mais brutal do que, por exemplo, nos Estados Unidos, protegidos pelo oceano do perigo de invasões e que, durante o gigantesco confronto, sofreram perdas e devastações largamente inferiores àquelas sofridas pelos principais contendores. Cerca de um século e meio antes, às vésperas da mudança da constituição federal, Hamilton tinha explicado que a limitação dos poderes e a instauração do governo das leis tinham tido sucesso em dois países de tipo insular, protegidos pelo mar das ameaças das potências rivais. Em caso de falência do projeto de União e de formação, sobre suas ruínas, de um sistema de Estados análogo ao existente no continente europeu, advertiu o estadista americano, também teriam surgido na América os fenômenos do exército permanente, de um forte poder central e, enfim, do absolutismo. No século XX, ainda que continue a ser um elemento de proteção, a posição insular não mais é um obstáculo insuperável: na seqüência da guerra total com as grandes potências europeias e asiáticas, o totalitarismo irrompe também nos Estados Unidos, como o demonstra a legislação terrorista visando a quebrar qualquer oposição e, de modo particularmente clamoroso, o surgimento da instituição mais típica do totalitarismo, a saber, o campo de concentração.

Pode-se dizer que, relativamente à União Soviética e ao Terceiro Reich, os campos de concentração na França e nos Estados Unidos assumiram uma configuração mais branda (mas seria superficial e irresponsável sugerir uma banalização); mas permanece o fato de que, para tornar-se adequada, uma teoria deve estar em condição de explicar o surgimento desta instituição em todos os quatro países, incluídos aqueles que gozavam de um ordenamento liberal, e deve esclarecer em que medida as diferenças remetem à diversidade das ideologias ou à diversidade das situações objetivas e do contexto geopolítico. E uma teoria realmente adequada deve, além disso, explicar os campos de concentração nos quais o Ocidente liberal em seu conjunto enclausurou as populações coloniais (há muitos séculos alvos da guerra total). Assim como, em termos mais gerais, deve explicar o fato por meio do qual, com o desencadeamento da I Guerra Mundial, atribuiu-se ao Estado, também nos países de ordenamento liberal, segundo a observação de Weber, um “poder legítimo sobre a vida, a morte e a liberdade” dos cidadãos. Longe de oferecer uma resposta, a teoria corrente do totalitarismo nem sequer chega a formular o problema.

Contradição performativa e ideologia da guerra na teoria corrente do totalitarismo

Marx lançou a semente do totalitarismo comunista que nele reivindicou inspirar-se: uma tese que está presente em Arendt a partir da guerra fria e que, desde então, é parte integrante da teoria corrente do totalitarismo. Mas, para parafrasear uma célebre frase de Weber a propósito do materialismo histórico, também a tese da não-inocência da teoria não é um táxi no qual se possa entrar e do qual se possa descer a gosto do freguês. Assim, pois: que papel desempenharam a teoria costumeira do totalitarismo e a palavra de ordem de luta contra o totalitarismo no massacre que, na Indonésia de 1965, custou a vida de centenas de milhares de comunistas? No que concerne à história contemporânea da América Latina, suas páginas mais sombrias não remetem ao “totalitarismo”, mas à luta contra ele. Para dar um só exemplo, há alguns anos, na Guatemala, a “comissão para a verdade” acusou a CIA de ter fortemente ajudado a ditadura militar a cometer “atos de genocídio” contra os maias, culpados de ter simpatizado com os opositores ao regime caro a Washington. [76]

Em outras palavras: com seus silêncios e suas obliterações, a teoria costumeira do totalitarismo não terá se transformado ela própria numa ideologia da guerra, e da guerra total, contribuindo a alimentar ulteriormente os horrores que pretende, no entanto, denunciar e caindo assim numa trágica contradição performativa?

Em nossos dias chovem as denúncias, com o olhar voltado para o Islã, de “totalitarismo religioso” [77] ou então do “novo inimigo totalitário que é o terrorismo” [78]. Irrompe com renovada vitalidade a linguagem da guerra fria. Confirma-o a advertência dirigida por um eminente senador americano (Joseph Lieberman) à Arábia Saudita: ela deve ficar bem atenta para rejeitar a sedução do totalitarismo islâmico e para não se deixar isolar do Ocidente por uma “cortina de ferro teológica” [79]. Se o alvo polêmico foi assim mudado, a denúncia do totalitarismo continua a funcionar eminentemente como ideologia da guerra contra os inimigos do Ocidente. E em nome desta ideologia são justificadas as violações da Convenção de Genebra e o tratamento desumano reservado aos detentos na baía de Guantanamo, o embargo e a punição coletiva impostos ao povo iraquiano [m] e a outros povos, bem como o ulterior martírio infligido ao povo palestino. A luta contra o totalitarismo serve para legitimar e transfigurar a guerra total contra os “bárbaros” estrangeiros ao Ocidente.

Notas:

1 In Pombeni 1977, pp. 324–5. Italics are mine.
2 Horkheimer and Adorno 2002, pp. 43, 67–8. 
3 Weil 1990, pp. 218–19. 
4 Weil 1990, pp. 204, 206.
5 Talmon 1960, p. 4. 
6 Hayek 1986, pp. 8–9. 
7 Hayek 1986, p. 85. 
8 Hayek 1960, p. 55. 
9 Hayek 1986, Ch. VII.
10 Wittfogel 1959. 
11 Popper 1966, Vol. 1, p. 1. 
12 In Ruge-Schumann 1977, p. 82. 
13 Goebbels 1991, Vol. 2, pp. 163, 183.
14 Scarfoglio 1999, p. 22. 
15 Arendt 1989, p. 87. 
16 In Commager 1963, Vol. 2, p. 525. 
17 See Mao’s argument against the American Secretary of State, Dean Acheson (the speech is dated 28 August 1949).
18 Mann 1951. 
19 Arendt 1958, pp. 176, 160
20 Arendt 1958, pp. 176, 183. 
21 Arendt 1958, pp. 131, 133–4, 216. 
22 Arendt 1958, pp. 211, 212, 213. 
23 Young-Bruehl 1984, p. 158. 
24 Arendt, 1989, p. 193.
25 Arendt 1978c, p. 149. 
26 Arendt 1978a, p. 110.
27 Gleason 1995, pp. 112–3, 257, note 30. 
28 Arendt 1978b, p. 59.
29 In Hofstadter 1982, Vol. II, p. 439. 
30 Arendt 1958, pp. 308–9. 
31 Arendt 1958, p. 311.
32 In Hofstadter 1982, Vol. II, p. 428. 
33 Arendt 1958, pp. 318–9. 
34 Arendt 1958, p. 319.
35 Mann 1991, pp. 232–3.
36 Arendt 1963, pp. 58–9.
37 Mann 1951.
38 See Chang 1997; Katsuichi 1999; Hicks 1995. 
39 For the general overview of the twentieth century, see Losurdo 1996, and 1998.
40 Nolte 1978, p. 351. 
41 Mosse 1964, passim. 
42 For the analysis of Gobineau, Langbehn, Chamberlain, and Le Bon, see Losurdo 2002, Chapter 25, § 1.
43 Hitler 1971, pp. 382–3. 
44 Hitler 1971, p. 345. 
45 Hitler 1971, p. 421. 
46 Hitler 1971, p. 442. 
47 Hitler 1971, pp. 443–5 and passim. 
48 Hitler 1971, pp. 65, 352. 
49 See Losurdo 2002, Ch. 33, § 2.
50 Friedrich-Brzezinski 1968, p. 21. 
51 See Losurdo 1993, Chapter 5, § 4. 
52 Chace 1998, p. 288.
53 Chen 1994, pp. 181–6. 
54 Hitler, 1971, pp. 528–9.
55 In Strada-Kulesov 1998, p. 53.
56 In Del Carria 1970, Vol. 2, p. 224. 
57 Nolte 1978, pp. 119, 146–8. 
58 Smith 1981, p. 67 (Book I, Chapter VII). 
59 Hitler 1971, pp. 481–2.
60 Hitler 1952–4, Vol. I, p. 164. 
61 Maistre 1984, p. 205. 
62 Arendt 1958, p. 214.
63 Rosenberg 1937, pp. 666, 673. 
64 Rosenberg 1937, pp. 668–9. 
65 Hitler 1971, pp. 153–4. 
66 See Losurdo 1996, Chapter 5, p. 6.
67 Hoffmann 1913, pp. ix, 67–8. 
68 Günther 1934, p. 465. 
69 See Kühl 1994, pp. 53–63. 
70 Rosenberg 1937, p. 214. 
71 Stoddard 1925a, pp. 23–4.
72 Stoddard 1925b, pp. 220–1. 
73 On all of this, see Kühl 1994, p. 61. President Harding’s flattering comment is quoted at the beginning of the French translation of Stoddard 1925b. 
74 In Ruge-Schumann 1977, p. 36. 
75 See Losurdo 1998, pp. 8–10.
76 Paquet 1919, p. 111. Nolte 1987, p. 563 has drawn attention to this. 
77 Ludendorff 1935, p. 35 and passim. Clearly, the motif of total mobilisation is particularly tied to Ernst Jünger.
78 Navarro 1999.
79 Friedman 2001. 
80 Spinelli 2001. 
81 In Dao 2002, p. 4.

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1 de janeiro de 2004

Cuba: os próximos quarenta e cinco anos?

Cuba celebra este ano o quadragésimo quinto aniversário de sua revolução vitoriosa: uma grande conquista histórica. E quando temos em mente que a revolução cubana - a longa ação sustentada de uma nação de apenas onze milhões de pessoas - sobreviveu por quarenta e cinco anos contra todas as probabilidades, enfrentando com sucesso a inimizade declarada, o cerco político internacional ditado pelos EUA e o bloqueio econômico, assim como as sempre renovadas tentativas de subverter e derrubar a ordem pós-revolucionária por parte da mais preponderante potência econômica e militar do mundo, mesmo este simples fato põe em evidência a magnitude e o significado duradouro da intervenção cubana em curso no processo histórico de nosso tempo. Somos todos contemporâneos de uma conquista cujas reverberações vão muito além dos limites do tendenciosamente propagandeado "Hemisfério Americano", oferecendo sua mensagem de esperança ao resto do mundo.

István Mészáros


January 2004 (Volume 55, Number 8)

Tradução / Dia 1º de janeiro Cuba celebrou o quadragésimo quinto aniversário de sua vitoriosa revolução: uma grande conquista histórica. E quando nos lembramos de que a revolução cubana – a ação duradoura de uma nação de apenas onze milhões de pessoas – sobreviveu ao longo de quarenta e cinco anos contra todos os riscos, confrontando a inimizade declarada, o cerco e bloqueio internacionais determinados pelos Estados Unidos, assim como as tentativas de subverter e derrubar a ordem pós-revolucionária pela mais preponderante potência econômica e militar, até mesmo esse simples acontecimento põe em relevo a magnitude e a significância da atual intervenção cubana no processo histórico de nosso tempo. Somos todos contemporâneos de uma vitória cujas reverberações chegam bem além dos limites do tendenciosamente propagandeado “Hemisfério Americano”, oferecendo sua mensagem de esperança também para o resto do mundo.

Em 1999, três anos antes de o governo americano ter ominosamente decretado que Cuba fazia parte do “eixo do mal”, visando eliminar o “círculo vicioso” [1] numa fase inicial do agressivamente promovido “novo século americano”, escrevi no prefácio de Socialismo ou Barbárie:

Chegou ao fim o século XX, descrito pelos apologistas mais entusiasmados como o “século americano”. Essas opiniões se manifestam como se não houvesse ocorrido a Revolução de Outubro de 1917, nem as revoluções Chinesa e Cubana, nem as lutas pela libertação colonial das décadas seguintes, isso sem mencionar a humilhante derrota dos Estados Unidos no Vietnã. De fato, os defensores acríticos da ordem estabelecida antecipam confidencialmente que não apenas o século XXI, mas todo o próximo milênio, está destinado a se conformar às regras incontestáveis da “Pax Americana”. [2]

Evidentemente, todos os que se engajam na tentativa fútil de reescrever a história se recusam a reconhecer até o mais óbvio: ou seja, que os grandes eventos históricos, como os que acabei de mencionar, não podem ser desfeitos para se ajustar às contingências políticas do momento. Esses eventos resultam de contradições sociais absolutamente fundamentais, e não perdem a relevância histórica e ardente realidade enquanto determinações arraigadas não forem atendidas de forma positiva e duradoura por um estágio mais avançado de desenvolvimento. Nem quando pensamos no tipo de reversão capitulacionista que vimos na antiga União Soviética.

Teremos coragem de pensar nos próximos quarenta e cinco anos? A resposta é simplesmente que isso é necessário. Pois as mudanças históricas da magnitude da que consideramos aqui, embora tenham impacto dramático imediato, só realizam todo o seu potencial numa perspectiva mais longa. Tanto mais porque o adversário histórico entrincheirado sempre ajusta suas próprias estratégias – restringidas apenas pelos limites últimos de suas determinações sistêmicas – para anular todo movimento do adversário progressista. É assim quando os ajustes signifiquem algumas concessões reformistas temporárias, ou quando, pelo contrário, signifiquem a adoção implacável das ações mais destrutivas. E por isso a noção de Kruschev de uma “competição pacífica” com a produção capitalista, como o juiz mutuamente aceito de objetivos rivais, foi tão ingênua, para não dizer coisa mais grave, quando a verdadeira aposta histórica era nada menos que a instituição de uma alternativa radical hegemônica à ordem social do capital. O antagonista capitalista firmemente estabelecido nunca teve a espécie de ilusão que cobra o pagamento de alto preço.

Nesse contexto não devemos nos esquecer de que se existe uma interrogação acerca dos próximos quarenta e cinco anos de Cuba, a mesma interrogação paira sobre o futuro de toda a humanidade. Pois na atual fase do desenvolvimento histórico do capital, em resultado do aprofundamento da crise estrutural do sistema, não somente as concessões reformistas do passado terão de ser retomadas – como já estão sendo – até mesmo nos países capitalistas mais avançados, mas, dada a insuficiência crônica dos remédios produtivamente disponíveis, surge claramente no horizonte amortal irracionalidade da adoção do curso de ação mais destrutivo em escala global, tentando se impor como solução racional de todos os nossos problemas.

Cuba está ao lado dos Estados Unidos e pode ser atingida militarmente com a maior facilidade. Mas, é claro, a mesma facilidade de ataque está em preparação ativa – tanto para fins de chantagem, inclusive a nuclear, quanto para disparar uma ação militar devastadora – para atingir os cantos mais remotos do mundo. O projeto “Guerra nas Estrelas” de ontem ainda podia ser apresentado como um escudo defensivo, mesmo que na verdade não fosse nada dessa espécie. Mas o sucessor altamente aperfeiçoado, cujo nome de código é “Falcão” (sigla em inglês para Aplicação e Lançamento de Força a partir dos Estados Unidos Continentais) não pode ser considerado outra coisa que não um sistema de armamentos escandalosamente ofensivo, a ser lançado contra o mundo inteiro. A primeira fase operacional desse sistema estará completa em meados de 2006, e os testes iniciais começarão em 2004. Completamente desenvolvidos, os veículos não tripulados “serão capazes de atingir alvos a 9.000 milhas marítimas (16679,25 km) de distância em não mais que duas horas”. Além disso, levarão uma carga de até 12.000 libras (5436 kg) e voarão a velocidades de até 10 vezes a velocidade do som.” O objetivo dessa máquina de guerra infernal é permitir que os Estados Unidos ataquem sozinhos qualquer país que queiram dominar ou destruir, no seu projeto de conquistar a dominação do mundo como indiscutível e inatacável governante do imperialismo hegemônico global. Como comentou John Pike, chefe do think tank “globalsecurity.org”, sobre o novo sistema de armas: Trata-se de explodir povos do outro lado do mundo, mesmo que nenhum país do mundo nos permita usar seu território. [3]

2

O fracasso da persistente política do governo americano contra Cuba é amplamente reconhecido. Mesmo um antigo ministro do governo conservador de Margatet Thatcher tem grandes reservas acerca dessa postura anticubana dos americanos e de sua adoção pelos governos da Europa, como deixou claro num artigo recente:

É extremamente ingênuo quem pensa que na era pós-Castro Cuba vá se tornar efetivamente o 51º estado dos Estados Unidos. Ainda assim, é exatamente nisso que muitos na administração americana, e até desse lado do Atlântico, parecem acreditar. Na verdade, é mais provável que ocorra exatamente o contrário. ... É preciso evitar o perigo de tomar emprestado o instrumento cego que é a marreta política dos Estados Unidos [e de ver Cuba] através dos binóculos desfocados dos desejos americanos. [4]

Desnecessário dizer, visões críticas, ainda quando não possam ser acusadas de “tendenciosamente esquerdistas”, não fazem qualquer diferença para os reacionários formuladores de política da administração dos Estados Unidos. Um de seus subsecretários de estado, John Bolton, acusou Cuba de ser o fornecedor de armas biológicas para os inimigos dos Estados Unidos, tomando por “base” o fato de os cubanos terem uma indústria farmacêutica avançada. Foi uma das primeiras tentativas de caracterizar Cuba como alvo “moralmente justificável” para um ataque militar dos Estados Unidos. Eu mesmo comentei sarcasticamente à época (junho de 2002), num programa de entrevistas da TV brasileira, “Roda Viva”, que esses homens não têm moral nem qualquer respeito pela verdade. Não causa surpresa que tentativas dessa espécie de acusar Cuba de crimes anti-americanos fictícios sejam constantemente renovadas. Fidel Castro relatou no seu discurso de Primeiro de Maio um caso muito recente e ameaçador:

A política do governo dos Estados Unidos é de tão escandalosamente provocadora que no dia 25 de abril o sr Kevin Whitaker, chefe do Birô Cubano do Departamento de Estado, informou ao chefe da Seção que cuida dos nossos interesses em Washington que o Departamento de Segurança Interna do Conselho de Segurança Nacional considerava os constantes sequestros a partir de Cuba uma ameaça grave à segurança nacional dos Estados Unidos, e exigiu que o governo cubano adote todas as medidas necessárias para evitar essas ações. Disse isso como se não fossem eles quem provocava e incentivava esses sequestros, como se não fôssemos nós que adotávamos medidas drásticas para evitá-los.

A controvérsia internacional acerca da condenação dos sequestradores teve muito a ver com o desprezo pela ameaça militar direta a que o país estava – e ainda está – submetido por esse motivo.

A continuação cínica de atos de provocação e a hipócrita justificação mentirosa nos meios de comunicação de massa permanecem como as características definidoras da política americana com que Cuba está condenada a conviver no futuro previsível, ainda que não pelos próximos quarenta e cinco anos. Certamente não pelos próximos quarenta e cinco anos! Pois é inconcebível que a fase atual, extremamente agressiva do imperialismo hegemônico global – que agora tenta absurdamente “compensar” o perdularismo incurável de seu sistema de produção destrutiva por meio dos gastos astronômicos em armamentos e aventuras militares associadas, financiados pelo buraco negro do endividamento americano – seja capaz de durar tanto tempo, exterminando toda a humanidade se não for interrompido bem antes de decorrido esse tempo.

Por muito tempo, Cuba foi forçada a viver em estado de emergência. As grandes privações que tiveram de ser vencidas sob tais circunstâncias não se limitam às conseqüências do bloqueio americano. Depois do desmoronamento do sistema soviético a situação se agravou ainda mais, não somente através do endurecimento do bloqueio americano, na vã esperança de precipitar um colapso imediato, mas também devido à perda pelo país de seus principais mercados e fontes de suprimentos. Por isso, a absorção de calorias e proteínas pela população caiu praticamente à metade, e os anos dolorosos do “período especial” foram necessários para restaurar os requisitos nutricionais da população ao nível anterior.

Desnecessário dizer, as condições do estado de emergência são desfavoráveis à conquista de muitos objetivos desejáveis, tanto no plano político-cultural, quanto no econômico. Mas não se pode simplesmente esperar que elas deixem de existir, nem elas devem ser prolongadas além do historicamente justificável, uma vez que as condições se alterem para melhor.

Nesse ponto vemos um grande contraste com a experiência soviética. Como sabemos, durante alguns anos depois da Revolução de Outubro o país teve de enfrentar a extrema privação de um autêntico estado de emergência. Mais tarde, entretanto, Stalin prolongou artificialmente durante décadas o estado de emergência antes plenamente justificável, pois essa continuação lhe ofereceu uma opção mais fácil para implementar suas políticas autoritárias. Mas seguir assim a “linha de resistência mínima” – já que, na visão de Stalin, todo questionamento das políticas decretadas poderia ser facilmente esmagado – resultou na instituição dos campos de trabalho forçado, com terríveis conseqüências para a produtividade do trabalho, trazendo consigo a violação brutal da legalidade que em 1956 Kruschev condenou com toda razão. Ademais, quando foi forçado em 1952 a admitir que a produtividade do trabalho soviético era seriamente problemática, Stalin tentou resolver a situação pela estipulação de mais uma solução autoritária, propondo a imposição pela administração da disciplina do trabalho. Em seu último texto importante – sobre os “Problemas Econômicos do Socialismo na URSS” – ele decretou a validade eterna da “lei do valor”, a permanência da divisão “não-essencial” entre o trabalho físico e o mental, e a separação justificável da sociedade entre o “pessoal executivo socialista” (“nossos executivos empresariais”) bem remunerado, e a “força de trabalho físico” firmemente controlada não apenas politicamente, mas também por práticas institucionais “racionais” sucedâneas do mercado. Insistiu na necessidade de “produção e circulação adequada de mercadorias”, a ser regulada com base na “contabilidade de custos e na lucratividade”, deixando para o futuro um perigoso legado e também conferindo “legitimidade socialista” ao autoritarismo tradicional do “mercado disciplinador” cujas fatídicas conseqüências todos conhecemos bem. [5]

Evidentemente, não existe nada de artificial no dolorosamente longo estado de emergência de Cuba diante das ameaças militares constantemente renovadas e intensificadas de seu adversário preponderante. No entanto, ninguém poderá negar que todo o potencial da revolução cubana só será fruído num futuro em que, em resultado de uma mudança fundamental das circunstâncias e da relação global de forças, será possível dizer que a obrigação quase proibitiva de enfrentar as forças destrutivas do capital pertence irremediavelmente ao passado.

3

A vitoriosa revolução cubana é única e tem significância universal. É única no sentido de ter resultado de duzentos anos de luta ressurgente, inicialmente contra o colonialismo espanhol, e mais tarde contra a dominação imperialista pelos Estados Unidos. A grande figura histórica de José Marti – que mais de cem anos depois de sua morte continua sendo uma tremenda inspiração para o presente – com sua visão de longo alcance ligou diretamente as duas fases, antecipando claramente, muito antes da conclusão da luta contra a Espanha, que Cuba só conquistaria sua emancipação quando conseguisse derrotar a nova dominação americana.

Mas a revolução cubana também é única no sentido de que a derrubada do regime servil de Batista foi precedido por três anos de luta armada, sustentada por um número sempre crescente da população do país. A isso se acrescenta o fato de que à época da tomada do poder o governo americano ainda acalentava a ilusão de que seria capaz de dominar o país a seu bel prazer também sob as novas circunstâncias, ainda que de forma ligeiramente alterada. Ademais, dado o esmagador apoio popular à derrubada do regime cliente dos Estados Unidos, ele foi forçado a produzir ruídos favoráveis à mudança.

Quando fracassaram as tentativas de voltar a impor a antiga dominação por outros meios, ele imediatamente adotou uma atitude abertamente hostil. É por isso que se vê claramente que o adversário histórico ajusta inevitavelmente suas estratégias quando é forçado a enfrentar um desfio significativo, o que ele faz para reverter a situação, ou pelo menos para evitar novas ocorrências daquilo que o “surpreendeu”, ou melhor, a que foi submetido. Dessa forma, as políticas americanas não somente para Cuba, mas para toda a América Latina (e não somente para ela) – sob a forma de derrubada violenta de regimes democraticamente eleitos (cinicamente em nome da “democracia e liberdade”) e imposição de ditaduras brutais – acentua fortemente esse ponto. A revolução cubana é assim única também sob o aspecto de que na sua esteira até mesmo os primeiros sinais de qualquer luta armada anti-imperialista em potencial tiveram de ser esmagados pela intervenção direta ou indireta dos Estados Unidos, como o demonstra também o destino trágico de Che Guevara.

Entretanto, se a unicidade da revolução cubana se afirma dessa forma – por várias razões importantes, inclusive a constituição histórica de sua liderança, de José Marti até o presente – ela não pode ser imitada ou repetida, muito menos transformada no modelo compulsório de transformação revolucionária, assim como não se pode dar toda a ênfase necessária à sua significância universal. A tentativas passadas de imposição do modelo soviético, sob Stalin e seus sucessores, causaram prejuízo imenso ao movimento socialista em toda parte. Não se pode permitir que isso se repita no futuro, por maiores que sejam as tentações. Ninguém o afirma com mais clareza que o próprio Fidel Castro. Falando de nossos problemas, ele diz:

Surgem movimentos de massa que se formam com tremenda força, e eu creio que esses movimentos desempenharão papel fundamental nas lutas futuras. Serão outras táticas, já não será a tática no estilo bolchevique, nem mesmo ao nosso estilo, porque pertenceram a um mundo diferente. Nesse de agora devem surgir novas táticas, sem que isso signifique desânimo para ninguém, em lugar algum, e fazê-lo da forma que se considere conveniente. Mas tratemos de ver e analisar com a maior objetividade possível o quadro atual e o desenvolvimento da luta sob o domínio unipolar de uma superpotência: Estados Unidos. Serão outros caminhos e outras vias pelos quais irão se criando as condições para que esse mundo global se transforme em outro mundo. [5]

Os apologistas do capital geralmente tentam racionalizar e “explicam para longe” suas próprias contradições e problemas como se fossem o resultado de terem sido “exportadas” de um território estrangeiro por uma “força subversiva”, e conspiratoriamente impostas a eles. Como claramente indicam as linhas citadas acima, nada poderia estar mais longe de uma estratégia genuína de transformação socialista. Pois uma estratégia bem fundamentada deve sempre advogar o acionamento das verdadeiras alavancas transformadoras pelos movimentos sociais existentes sob as condições sociais predominantes e alterar dinamicamente as circunstâncias históricas.

O significado universal da revolução cubana reside na sua grande afinidade com as aspirações de todos aqueles que pretendem se libertar das restrições paralisantes da ordem social do capital.

Embora, num sentido geral, essa aspiração se aplique a todos que participam da causa da emancipação humana, é compreensível que os ecos gerados pela revolução cubana tenham sido os maiores na América Latina. Pois os países daquele continente foram, e ainda são, todos dominados pela mesma potência imperialista, e seus esforços para remediar sua situação foram constantemente frustrados e afinal anulados, tanto por razões internas quanto externas, pelo mesmo sistema social sob o qual eles tiveram que reproduzir suas condições de existência. A mensagem da revolução cubana para eles é portanto dupla.

Primeiro, ela focaliza a questão da recuperação de sua soberania dos Estados Unidos, e do seu poder de decisão, libertando-se assim da dominação militar, política e econômica de seu vizinho avassalador.

E, segundo, ao mesmo tempo as questões fundamentais do sistema reprodutivo socioeconômico em seu conjunto teriam de ser submetidas a uma crítica radical, tanto por causa da insuportável dominação da ordem capitalista pelos Estados Unidos, quanto, o que é mais importante, por causa do anacronismo histórico e perdularismo das determinações metabólicas do capital em geral no atual estágio da história. Noutras palavras, todos os países da América Latina (e não somente eles) tiveram de lutar para sair de seu próprio círculo vicioso de tentar resolver seus imensos problemas na cinicamente inflada margem mínima da “ajuda econômica” americana, quando na realidade é a economia dos Estados Unidos quem permanece maciçamente dependente dos recursos que deve transferir do resto do mundo, de muitas formas diferentes, para sua própria esfera de produção e consumo. E a desanimadora verdade é que o verdadeiro círculo vicioso deve ser operado – não como uma questão de política iníqua, mas de uma política que se pode corrigir por uma “visão esclarecida”, como advoga a “teoria do desenvolvimento modernizador”, mas, pelo contrário – como a imposição fundamentalmente inalterável de um sistema historicamente anacrônico e estruturalmente restrito para o qual “não existe alternativa” (como os políticos do sistema não se cansam de repetir), com os Estados Unidos no seu ponto alto.

Desde o início, a mensagem da revolução cubana focalizava esses dois conjuntos de problemas que afetam profundamente todos os países da América Latina. Assim, não importando quando ou com que sucesso os países interessados possam agir no interesse da realização dos objetivos profundamente interligados que têm diante de si, a mensagem dupla da revolução cubana – convocando não apenas para a luta anti-imperialista, mas também para uma mudança estrutural e sistêmica da sociedade como a condição última do sucesso daquela luta – está destinada a ressoar com crescente intensidade, até nas circunstâncias mais difíceis, por todo o continente.

4

Quanto ao tempo que nos resta, não pode haver dúvida de que os desafios e perigos continuarão enormes, apesar de todas as conquistas. A ameaça militar dos Estados Unidos contra Cuba foi intensificada nos últimos anos, paralelamente à crescente agressividade da política americana em todo o mundo. De fato, como já mencionamos antes, Cuba foi apontada como um dos estados que constituem o “eixo do mal”, com todas as sinistras implicações de tal caracterização. Mas os formuladores da política americana devem também se lembrar de seu humilhante fiasco na “Baía dos Porcos”. Devem entender que a afirmação de Fidel Castro no discurso do dia primeiro de maio de 2003 não é uma ameaça vazia, quando ele insiste que caso Cuba seja atacada, como o foi o Iraque, “ os agressores não estariam apenas enfrentando um exército, mas milhares de exércitos que constantemente se reproduziriam e fariam o inimigo pagar preço tão alto em baixas que excederia em muito o custo em vidas de seus filhos e filhas que o povo americano estaria disposto a pagar pelas aventuras e idéias do Presidente Bush.

Na verdade, o projeto americano de dominação imperialista global não tem futuro melhor que as variedades anteriores do imperialismo – que no final sempre fracassaram. Mais cedo ou mais tarde, a sobre-extensão dos agressores os levará à derrota, mesmo que na estrada que leva ao fracasso final eles possam destruir as condições de existência humana neste planeta. E nesse sentido literalmente vital, superar a ameaça militar a que Cuba está submetida é a causa comum de toda a humanidade.

Naturalmente, os perigos não estão confinados ao plano militar. Sua outra dimensão crucialmente importante é a guerra econômica e política a que Cuba foi submetida nos últimos quarenta e cinco anos, constantemente intensificada e que assumiu formas novas e mais perigosas. Hoje ela assume a forma de um enorme pressão pela “marketização”, que se torna mais problemática diante do fato de que a aceitação de uma ideologia de mercado contribuiu significativamente para a desintegração do sistema soviético no governo de Gorbachev e seus colaboradores.

Quando Stalin formulou em 1952 a sua primeira versão da disciplina de mercado – pela qual se compensaria com “bens de consumo lucrativamente produzidos” a “força de trabalho” por sua aceitação de tal disciplina – muito do que ele decretou era completamente infundado e teve de permanecer no reino da fantasia. Pois o sistema soviético não poderia operar na base da produção e circulação de mercadorias, sob a lei do valor, principalmente pela razão simples de não ter um mercado adequado, muito menos um mercado de trabalho. E muitas coisas podem ser reguladas numa economia com confiabilidade tolerável com a ajuda de um pseudomercado, que de fato existiu na União Soviética, mas evidentemente não existiu um mercado para a alocação e o controle firme da força de trabalho. Até mesmo Kruschev resistiu à tentação de ampliar as mudanças inspiradas por Stalin nesse campo perigoso. Somente com Gorbachev se deu o passo crítico de estabelecer um verdadeiro mercado de trabalho, trazendo consigo conseqüências catastróficas para a economia e sociedade soviéticas em geral, sem conseguir realizar as expectativas irreais dos formuladores dessa política.

É nesse ponto que encontramos a linha crucial de demarcação . Naturalmente, falar de marketização pode cobrir muitas coisas, e freqüentemente não implica nada além do melhor uso dos recursos materiais e humanos. É uma preocupação perfeitamente legítima em qualquer circunstância. Na verdade, ela é grosseiramente violada, apesar de todas as fantasias em contrário, exatamente na atual fase de produção e consumo irremediavelmente perdulários do capital: o inimigo jurado de toda e qualquer preocupação com a economia e com a correspondente alocação racional de recursos. A questão que exige resposta é: quem detém o controle efetivo dos recursos combinados da sociedade, os “produtores associados” ou uma força externa de formulação de decisões, ainda que esta seja ideologicamente adornada com o nome da imaginária e benevolente “mão invisível” de Adam Smith? Uma vez que o trabalho seja transformado em mercadoria como qualquer outra, manipulado de acordo com as exigências fetichísticas e mistificadoras – tudo menos objetivas – do mercado de trabalho, fecham-se firmemente todas as portas para as aspirações à realização dos tão necessários objetivos socialistas do povo. Em seu lugar, tudo é lançado no remoinho da restauração capitalista, como nos informa a amarga experiência histórica. Somente a forma mais ansiosa de “doce ilusão” há de esperar a capitulação de Cuba nessa questão de vital importância.

A revolução cubana demonstrou sua solidariedade, da forma mais tangível, com a causa da emancipação humana em muitas ocasiões. Mas solidariedade é uma rua de duas mãos. A solidariedade internacional tem condições de dar uma contribuição significativa para os próximos quarenta e cinco anos da revolução cubana.

Notas

1. Lincoln Diaz-Ballart, “amigo íntimo e assessor do Presidente Bush, fez essa declaração enigmática a uma estação de TV de Miami: 'não posso entrar em detalhes, mas estamos tentando quebrar esse círculo vicioso .' Que métodos eles estarão considerando para lidar com esse círculo vicioso? Minha eliminação com os recursos sofisticados que desenvolveram, como prometeu Mr. Bush no Texas antes das eleições? Ou pelo ataque a Cuba tal como atacaram o Iraque?” Do discurso do Presidente Fidel Castro pronunciado no dia Primeiro de Maio de 2003. 
2. István Mészáros, O Século XXI: Socialismo ou Barbárie, Boitempo Editorial, São Paulo, 2003, p. 15/16.
3. Julian Borger, “US-based missiles to have global reach”, The Guardian , 1 de julho de 2003.
4. Colin Moynihan, “Cuba has been left out for too long: Britain and Europe must break with 40 years of failed US policy”, The Guardian , 1 de julho de 2003
5. Os leitores interessados encontrarão uma discussão documentada dessas questões no capítulo 17 de Beyond Capital (Merlin Press, Londres, e Monthly Review Press, Nova Iorque, 1995; em português, Para além do capital , Boitempo Editorial, São Paulo, 2002), especialmente na seção 17.3, que trata de “O fracasso da desestalinização e o colapso do 'socialismo realmente existente'”.
6. Fidel Castro Ruz, “El mundo caótico al que conduce la globalización neoliberal no puede sobrevivir”, Granma , 25 de jungho de 1998, p. 6. Citado em Gilberto Valdés Gutiérrrez, “El sistema de dominación múltiple”. Manuscrito.

István Mészaros is author of Socialism or Barbarism: From the “American Century” to the Crossroads (Monthly Review Press, 2001) and Beyond Capital: Toward a Theory of Transition (Monthly Review Press, 1995).

This essay was written at the request of the Brazilian periodical, Margem Esquerda, and published in its November 2003 issue.

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