Mike Davis
New Left Review
New Left Review
NLR 26 • MAR/APR 2004 |
Tradução / Em algum momento do ano que vem, uma mulher vai dar à luz na favela de Ajegunle, em Lagos; um rapaz fugirá de sua aldeia, no oeste de Java, para as luzes brilhantes de Jacarta; e um fazendeiro partirá com a família empobrecida para um dos inumeráveis pueblos jovenes de Lima. O evento exato não importa e passará sem sequer ser notado. Ainda assim, representará um divisor de águas na história humana. Pela primeira vez, a população urbana da Terra será mais numerosa que a rural. Na verdade, dada a imprecisão dos recenseamentos no Terceiro Mundo, essa transição sem paralelo pode já ter ocorrido.
A Terra urbanizou-se ainda mais depressa do que previra de início o Clube de Roma em seu relatório sabidamente malthusiano de 1972, Limits of growth [Limites do crescimento]. Em 1950, havia 86 cidades no mundo com mais de um milhão de habitantes; hoje, são 400 e, em 2015, serão pelo menos 550[1]. Na verdade, as cidades absorveram quase dois terços da explosão populacional global desde 1950 e crescem hoje no ritmo de um milhão de bebês e migrantes por semana[2]. A população urbana atual (3,2 bilhões de pessoas) é maior que a população total do planeta em 1960. Enquanto isso, no mundo todo o campo chegou a sua população máxima (3,2 bilhões de pessoas) e começará a encolher a partir de 2020. Como resultado, as cidades serão responsáveis por todo o crescimento populacional futuro da Terra – espera-se que seu ponto máximo, cerca de 10 bilhões de habitantes, seja atingido em 2050[3].
O climatério urbano
Desse aumento mundial, 95% ocorrerá nas áreas urbanas dos países em desenvolvimento, cuja população dobrará para quase 4 bilhões de pessoas na próxima geração[4]. (Na verdade, a população urbana combinada da China, da Índia e do Brasil já é mais ou menos igual à da Europa somada à da América do Norte.) O resultado mais notado será o desenvolvimento de novas megacidades com mais de 8 milhões de habitantes e, ainda mais espetaculares, hipercidades com mais de 20 milhões de habitantes (a população urbana mundial estimada na época da Revolução Francesa)[5]. Em 1995, só Tóquio atingira incontestavelmente esse patamar. Em 2025, segundo a Far Eastern Economic Review, a Ásia, sozinha, poderá ter dez ou onze conurbações desse tamanho, como Jacarta (24,9 milhões), Daca (25 milhões) e Karachi (26,5 milhões). Xangai, cujo crescimento foi congelado durante décadas pela política maoísta de suburbanização deliberada, poderia ter até 27 milhões de moradores em sua imensa região metropolitana estuarina[6]. Enquanto isso, prevê-se que Mumbai (Bombaim) atinja 33 milhões de habitantes, embora ninguém saiba se concentrações tão gigantescas de pobreza são sustentáveis em termos biológicos ou ecológicos[7].
Mas, se as megacidades são as estrelas mais brilhantes do firmamento urbano, três quartos do fardo do crescimento populacional será suportado por cidades pouco visíveis de segundo nível e por áreas urbanas menores – lugares onde, como enfatizam os pesquisadores da ONU, “há pouco ou nenhum planejamento para acomodar tais pessoas e prestar-lhes serviços”[8]. Na China (oficialmente 43% urbana em 1997), o número oficial de cidades disparou de 193 para 640 desde 1978. Mas as grandes metrópoles, apesar do crescimento extraordinário, na verdade reduziram sua participação relativa no total da população urbana. Pelo contrário, são as cidades pequenas e as vilas recentemente “promovidas” a cidades que absorveram a maior parte da força de trabalho rural tornada excedente pelas reformas do mercado depois de 1979[9]. Na África, do mesmo modo, o crescimento ao estilo supernova de algumas cidades gigantescas como Lagos (de 300 mil habitantes em 1950 para 10 milhões hoje) foi igualado pela transformação de várias dezenas de cidadezinhas e oásis como Uagadugu, Nuakchote, Duala, Antananarivo e Bamako em cidades maiores que São Francisco e Manchester. Na América Latina, onde as cidades principais monopolizaram por um bom tempo o crescimento, cidades secundárias como Tijuana, Curitiba, Temuco, Salvador e Belém estão hoje em expansão, “com o crescimento mais veloz acontecendo nas cidades que possuem entre 100 mil e 500 mil habitantes”[10].
Além disso, como insistiu Gregory Guldin, a urbanização precisa ser conceituada como transformação estrutural e intensificação da interação em todos os pontos de uma linha contínua urbano-rural. Em seu estudo do sul da China, o campo vem se urbanizando in situ, além de gerar migrações nunca vistas. “As aldeias tornam-se mais parecidas com as vilas xiang e os mercados e as cidadezinhas do interior ficam mais parecidas com cidades grandes.” O resultado, na China e em boa parte do sudeste da Ásia, é uma paisagem híbrida, um campo parcialmente urbanizado que, defendem Guldin e outros, pode ser “um caminho novo e importante de povoação humana e desenvolvimento [...] uma forma nem rural nem urbana, mas uma mistura dos dois, na qual uma rede densa de transações liga grandes núcleos urbanos com suas regiões circundantes”[11]. Na Indonésia, onde um processo semelhante de hibridação rural/urbana está bem avançado em Jabotabek (a grande Jacarta), os pesquisadores chamam esses novos padrões de uso de terra de desokotas e discutem se são paisagens de transição ou uma espécie nova e dramática de urbanismo[12].
Os urbanistas também especulam sobre os processos que interligam as cidades do Terceiro Mundo em redes, corredores e hierarquias novos e extraordinários. Por exemplo, os deltas dos rios Pérola (Hong Kong–Guangju) e Yang-tsé (Xangai), juntamente com o corredor Beijing-Tianjin, estão se transformando rapidamente em megalópoles comparáveis a Tóquio-Osaka, ao baixo Reno ou a Nova York–Filadélfia. Mas esse pode ser apenas o primeiro estágio do surgimento de uma estrutura ainda maior: “um corredor urbano contínuo que se estende do Japão/Coréia do Norte até o oeste de Java”[13]. Xangai, quase com certeza, irá então se unir a Tóquio, Nova York e Londres como uma das “cidades mundiais” que controlam a rede global de fluxos de capital e informação. O preço dessa nova ordem urbana será a desigualdade cada vez maior em e entre cidades de diferentes tamanhos e especializações. Guldin, por exemplo, cita interessantes discussões chinesas sobre a possível substituição, hoje em dia, do antigo abismo de renda e desenvolvimento entre a cidade e o campo por uma lacuna igualmente básica entre as cidades pequenas e as gigantes litorâneas[14].
De volta a Dickens
A dinâmica da urbanização no Terceiro Mundo recapitula e confunde os precedentes da Europa e da América do Norte no século XIX e início do século XX. Na China, a maior revolução industrial da história é a alavanca de Arquimedes que desloca uma população do tamanho da européia das aldeias rurais para cidades cheias de fumaça e arranha-céus. Como resultado, “a China deixa[rá] de ser o país predominantemente rural que foi por milênios”[15]. Na verdade, o grande óculo do Centro Financeiro Mundial de Xangai pode, daqui a pouco, olhar para um vasto mundo urbano jamais imaginado por Mao, nem, aliás, por Le Corbusier. Mas, na maior parte do mundo em desenvolvimento, faltam ao crescimento das cidades o poderoso motor industrial-exportador da China e sua enorme importação de capital estrangeiro (hoje em dia, equivalente à metade do investimento estrangeiro total no mundo em desenvolvimento).
Em conseqüência, a urbanização em outros lugares foi radicalmente desligada da industrialização e até do desenvolvimento propriamente dito. Alguns argumentariam que esta é a expressão de um pendor inexorável: a tendência intrínseca do capitalismo informatizado de desvincular o crescimento da produção do crescimento do nível de emprego. Mas, na África subsaariana, na América Latina, no Oriente Médio e em partes da Ásia, a urbanização sem crescimento é mais claramente herança de uma conjuntura política global – a crise da dívida externa do final da década de 1970 e a subseqüente reestruturação das economias do Terceiro Mundo pelo FMI nos anos 1980 – do que lei férrea do avanço da tecnologia. Além disso, a urbanização do Terceiro Mundo continuou em seu ritmo velocíssimo (3,8% ao ano entre 1960 e 1993) durante os anos difíceis da década de 1980 e do início da de 1990, apesar da queda do salário real, da alta dos preço e da disparada do desemprego urbano[16].
Essa expansão urbana “perversa” contradisse os modelos econômicos ortodoxos, que previam que o feedback negativo da recessão urbana retardaria ou até reverteria a migração do campo. O caso africano foi especialmente paradoxal. Como as cidades da Costa do Marfim, da Tanzânia, do Gabão e de outros países cuja economia se contraía 2% a 5% ao ano conseguiram ainda manter um crescimento populacional anual de 5% a 8%17? Obviamente, parte do segredo é que as políticas de desregulamentação agrícola e “descampesinação” impostas pelo FMI (e hoje pela OMC) aceleraram o êxodo da mão-de-obra rural excedente para as favelas urbanas, ainda que as cidades deixassem de ser máquinas de empregos. O crescimento da população urbana, apesar do crescimento econômico urbano zerado ou negativo, é a face extrema do que alguns pesquisadores rotularam de “superurbanização”[18]. É apenas uma das várias ladeiras inesperadas para as quais a ordem mundial neoliberal empurrou a urbanização do milênio.
É claro que a teoria social clássica, de Marx a Weber, acreditava que as grandes cidades do futuro seguiriam os passos industrializantes de Manchester, Berlim e Chicago. Na verdade, Los Angeles, São Paulo, Pusan e, hoje, Ciudad Juárez, Bangalore e Guangju seguiram mais ou menos essa trajetória clássica. Mas a maioria das cidades do hemisfério sul é mais parecida com a Dublin vitoriana, que, como enfatizou Emmet Larkin, não teve igual dentre “todos os montes de cortiços produzidos no mundo ocidental no século XIX [...] [porque] seus cortiços não foram resultado da revolução industrial. Dublin, na verdade, sofreu mais com os problemas da desindustrialização do que com a industrialização entre 1800 e 1850”[19].
Do mesmo modo, Kinshasa, Cartum, Dar-es-Salaam, Daca e Lima cresceram de modo prodigioso, apesar da ruína da indústria de substituição de importações, do encolhimento do setor público e da decadência da classe média. As forças globais que “empurram” as pessoas para fora do campo – a mecanização em Java e na Índia, a importação de alimentos no México, no Haiti e no Quênia, a guerra civil e a seca de modo generalizado na África e, por toda parte, a consolidação de pequenas propriedades em grandes e a competição do agronegócio em escala industrial – parecem manter a urbanização mesmo quando a “atração” da cidade é enfraquecida drasticamente pelo endividamento e pela depressão[20]. Ao mesmo tempo, o rápido crescimento urbano no contexto do ajuste estrutural, da desvalorização da moeda e da redução do Estado foi a receita inevitável da produção em massa de favelas[21] . Assim, boa parte do mundo urbano corre de volta para a época de Dickens.
A predominância espantosa das favelas é o principal tema do relatório histórico e sombrio publicado em outubro passado pelo Programa de Assentamentos Humanos das Nações Unidas (UN-Habitat)[22]. The challenge of the slums [O desafio das favelas] (daqui em diante apenas Slums) é a primeira auditoria verdadeiramente global acerca da pobreza urbana. Integra com competência diversos estudos de casos urbanos, de Abidjan a Sydney, com dados globais sobre as famílias, incluindo, pela primeira vez, a China e o antigo bloco soviético. (Os autores da ONU registram sua dívida especial a Branko Milanovic, economista do Banco Mundial que foi o pioneiro do uso de micropesquisas como uma lente poderosa para estudar a crescente desigualdade global. Num de seus artigos, Milanovic explica: “Pela primeira vez na história humana, os pesquisadores têm dados razoavelmente exatos sobre a distribuição de renda ou bem-estar [despesas ou consumo] em mais de 90% da população do mundo”[23].)
Slums também é incomum em sua honestidade intelectual. Um dos pesquisadores ligados ao relatório contou-me que “os tipos de ‘Consenso de Washington’ (Banco Mundial, FMI etc.) sempre insistiram em definir os problemas das favelas globais não como resultado da globalização e da desigualdade, mas como resultado do ‘mau governo’”. No entanto, o novo relatório rompe a seriedade e a autocensura tradicionais da ONU para condenar abertamente o neoliberalismo, em especial os programas de ajuste estrutural do FMI[24].
Slums, é verdade, negligencia (ou guarda para outros relatórios do UN-Habitat) algumas das questões mais importantes sobre o uso da terra causadas pela superurbanização e pelo assentamento informal, como o espalhamento, a degradação ambiental e os perigos urbanos. Também deixa de lançar luz sobre os processos que expulsam a mão-de-obra do campo e de incorporar uma literatura volumosa e de crescimento rápido sobre a dimensão sexuada da pobreza urbana e do emprego informal. Mas, afora essas pequenas objeções, Slums é um documento valiosíssimo que dá destaque às descobertas insistentes da pesquisa diante das autoridades institucionais das Nações Unidas. Se os relatórios do Painel Intergovernamental sobre a Mudança Climática constituem um consenso científico sem precedentes sobre os perigos do aquecimento global, Slums parece ser um alerta igualmente enfático sobre a catástrofe global da pobreza urbana. (Algum dia um terceiro relatório talvez examine o terreno sinistro da interação dos dois[26].) E, para os propósitos desta resenha, constitui um arcabouço excelente para o exame inicial dos debates contemporâneos sobre urbanização, economia informal, solidariedade humana e ação histórica.
A urbanização da pobreza
A primeira definição conhecida e publicada da palavra inglesa slum* surgiu no Vocabulary of the flash language [Vocabulário da linguagem vulgar], em que é sinônimo de racket ou “comércio criminoso”[27]. No entanto, nos anos da cólera nas décadas de 1830 e 1840, os pobres moravam em slums, em vez de praticá-los. Uma geração depois, identificaram-se slums na América e na Índia, em geral reconhecidos como fenômeno internacional. O “slum clássico” era um lugar pitoresco e sabidamente provinciano, mas em geral os reformadores concordavam com Charles Booth que todos se caracterizavam por um amálgama de habitações dilapidadas, excesso de população, pobreza e vício. É claro que, para os liberais do século XIX, a dimensão moral era fundamental, e a favela era considerada, acima de tudo, um lugar onde o “resíduo” social apodrecia num esplendor imoral e quase sempre turbulento. Os autores de Slums descartam as calúnias vitorianas, mas fora isso conservam a definição clássica: excesso de população, habitações pobres ou informais, acesso inadequado a água potável e esgoto sanitário e insegurança da posse da terra[28].
Essa definição multidimensional é, na verdade, um padrão bem conservador do que qualifica uma favela; muitos leitores ficarão surpresos pela conclusão da ONU, contrariando o que se vê, de que somente 19,6% dos mexicanos urbanos moram em favelas. Mas, mesmo com essa definição restritiva, Slums estima que, em 2001, havia pelo menos 921 milhões de moradores de favelas: população quase igual à do mundo todo quando o jovem Engels aventurou-se pela primeira vez pelas ruas miseráveis de Manchester. Na verdade, o capitalismo neoliberal multiplicou exponencialmente o famoso slum Tom-All-Alone de Dickens em A casa soturna. Os moradores de favela constituem espantosos 78,2% da população urbana dos países menos desenvolvidos e o total de um terço da população urbana global[29]. Extrapolando a estrutura etária da maioria das cidades do Terceiro Mundo, pelo menos metade da população favelada tem menos de vinte anos[30]
Os maiores percentuais de moradores de favelas do mundo são da Etiópia (espantosos 99,4% da população urbana), Tchade (também 99,4%), Afeganistão (98,5%) e Nepal (92%)[31]. No entanto, é provável que a população urbana mais pobre esteja em Maputo e Kinshasa, onde (segundo outras fontes) dois terços dos moradores ganha menos do que o custo da nutrição diária mínima necessária[32]. Em Délhi, os planejadores queixam-se amargamente das “favelas dentro das favelas”, em que as pessoas ocupam os pequenos espaços abertos das colônias de reassentamento na periferia para onde os antigos pobres urbanos foram violentamente removidos em meados da década de 1970[33]. No Cairo e em Phnom Penh, os recém-chegados à cidade ocupam ou alugam espaço nos telhados, criando favelas no ar.
Muitas vezes a população das favelas é deliberadamente – e às vezes maciçamente – subcalculada. No final dos anos 1990, por exemplo, Bangcoc tinha uma taxa de pobreza “oficial” de apenas 5%, mas as pesquisas encontraram quase um quarto da população (1,16 milhão) morando em favelas e acampamentos de ocupação[34]. Do mesmo modo, a ONU descobriu recentemente que estava, sem querer, deixando de contar por uma grande margem a pobreza urbana na África. Por exemplo, é provável que os moradores de favelas de Angola sejam duas vezes mais numerosos do que se pensava a princípio. Do mesmo modo, a organização subestimou o número de habitantes urbanos pobres da Libéria, o que não surpreende, já que a população de Monróvia triplicou num só ano (1989-90) quando, apavorados, moradores do interior fugiram de uma violenta guerra civil[35].
Pode haver mais de 250 mil favelas na Terra. Sozinhas, as cinco maiores metrópoles do sul da Ásia (Karachi, Mumbai, Délhi, Kolkata e Daca) somam cerca de 15 mil comunidades faveladas diferentes com um total de mais de 20 milhões de habitantes. Uma população favelada ainda maior cobre o litoral em urbanização da África ocidental, enquanto outras conurbações imensas de pobreza espalham-se pela Anatólia e pelas terras altas da Etiópia; abraçam a base dos Andes e do Himalaia; explodem para longe dos núcleos de arranha-céus da Cidade do México, de Jo-burg, Manila e São Paulo; e, claro, ladeiam as margens dos rios Amazonas, Níger, Congo, Nilo, Tigre, Ganges, Irrawaddy e Mekong. É paradoxal que os tijolos desse planeta-favela sejam ao mesmo tempo totalmente intercambiáveis e espontaneamente únicos, como os bustees de Kolkata, os chawls e zopadpattis de Mumbai, os katchi abadis de Karachi, os kampungs de Jacarta, os iskwaters de Manila, as shammasas de Cartum, os umjondolos de Durban, os intra-murios de Rabat, as bidonvilles de Abidjan, os baladis do Cairo, os gecekondus de Ancara, os conventillos de Quito, as favelas do Brasil, as villas miseria de Buenos Aires e as colonias populares da Cidade do México. São os antípodas tenazes das paisagens genéricas de fantasia e dos parques temáticos residenciais – os burgueses “Offworlds” [mundos de fora], de Philip K. Dick – nos quais a classe média global cada vez mais prefere se enclausurar.
Enquanto, por um lado, o modelo clássico do slum era o cortiço decadente do centro da cidade, as novas favelas, por sua vez, localizam-se, em geral, na orla das explosões espaciais urbanas. É claro que o crescimento horizontal de cidades como México, Lagos ou Jacarta foi extraordinário e que o “alastramento das favelas” é um problema tão grande no mundo em desenvolvimento quanto o alastramento dos subúrbios de classe média nos países ricos. A área construída de Lagos, por exemplo, dobrou numa só década, entre 1985 e 1994[36]. O governador do estado de Lagos disse a jornalistas, no ano passado, que “cerca de dois terços dos 3577 km² da superfície terrestre total do estado podia ser classificada como barracos ou favelas”[37]. Realmente, como escreve um correspondente da ONU,
Além disso, Lagos é, simplesmente, o maior entroncamento do corredor de 70 milhões de favelados que se estende de Abidjan a Ibadan – provavelmente a maior área de solo coberta de pobreza urbana em nosso planeta[39]. É claro que a ecologia da favela gira em torno da oferta de espaço para assentamento. Winter King, num estudo recente publicado na Harvard Law Review, afirma que 85% dos moradores urbanos do mundo desenvolvido “ocupam propriedades ilegalmente”[40]. Em última instância, a indeterminação da propriedade da terra e/ou a propriedade frouxa do Estado foram as brechas pelas quais uma vasta porção da humanidade despejou-se nas cidades. Os modos de assentamento das favelas variam num grande espectro, das invasões de terra disciplinadíssimas da Cidade do México e de Lima aos mercados de aluguel de organização complexa (mas muitas vezes ilegal) nos arredores de Beijing, Karachi e Nairóbi. Até em cidades como Karachi, onde a periferia urbana pertence formalmente ao governo, “lucros imensos oriundos da especulação imobiliária [...] continuam a se acumular no setor privado à custa das famílias de baixa renda”[41]. Na verdade, a máquina política nacional e local costuma aceitar o assentamento informal (e a especulação privada ilegal) enquanto conseguir controlar a compleição política das favelas e receber um fluxo regular de propinas ou aluguéis. Sem títulos formais de propriedade da terra ou da casa própria, impõe-se aos moradores das favelas uma dependência quase feudal de autoridades e líderes partidários locais. A deslealdade pode significar expulsão ou até o arrasamento de um bairro inteiro.
Enquanto isso, o fornecimento da infra-estrutura de sobrevivência arrasta-se bem atrás do ritmo da urbanização, e, muitas vezes, as áreas de favela periurbanas não oferecem nenhum serviço público nem saneamento básico[42]. Em geral, as áreas pobres das cidades latino-americanas têm melhor prestação de serviços básicos que as do sul da Ásia, que, por sua vez, costumam ter serviços urbanos mínimos, como fornecimento de água e eletricidade, que faltam a muitas favelas africanas. Como em Londres no início da época vitoriana, a contaminação da água por dejetos humanos e animais é a causa das doenças diarréicas crônicas que matam pelo menos dois milhões de crianças urbanas todos os anos[43]. Estimados 57% dos africanos urbanos não têm acesso a saneamento básico, e, em cidades como Nairóbi, os pobres precisam usar “banheiros voadores” (defecar num saco plástico)44. Em Mumbai o problema do saneamento é definido pela proporção de um assento sanitário para quinhentos habitantes nos bairros mais pobres. Somente 11% dos bairros pobres de Manila e 18% de Daca têm meios formais de dispor do esgoto[45]. Sem contar a incidência da epidemia de HIV/Aids, a ONU considera que dois em cada cinco moradores de favelas africanas vivem num nível de pobreza que é, literalmente, uma “ameaça à vida”[46].
Paralelamente, por toda parte os pobres urbanos são forçados a habitar terrenos perigosos e nada apropriados para a construção – encostas muito íngremes, margens de rios e alagados. Do mesmo modo, instalam-se à sombra mortal de refinarias, indústrias químicas, depósitos de lixo tóxico ou à margem de ferrovias e auto-estradas. Em conseqüência, a pobreza “construiu” um problema de desastre urbano de freqüência e alcance sem precedentes, como exemplificam as inundações crônicas em Manila, Daca e Rio de Janeiro; as explosões de dutos na Cidade do México e em Cubatão (no Brasil); a catástrofe de Bhopal, na Índia; a explosão de uma fábrica de munição em Lagos e os deslizamentos fatais em Caracas, La Paz e Tegucigalpa47. Além disso, as comunidades de pobres urbanos sem direito de voto são vulneráveis às explosões súbitas de violência estatal, como na famosa destruição, em 1990, da favela praiana de Maroko, em Lagos (“uma agressão à paisagem para a comunidade vizinha de Victoria Island, fortaleza dos ricos”), ou a demolição, em 1995, sob clima congelante, da grande cidade de ocupantes ilegais de Zhejiangcun, nos arredores de Beijing[48].
Mas as favelas, apesar de mortais e inseguras, têm um futuro brilhante. Por um curto período o campo ainda conterá a maioria dos pobres do mundo, mas esse título de reputação duvidosa passará para as favelas urbanas por volta de 2035[49]. Pelo menos metade da próxima explosão populacional urbana do Terceiro Mundo será creditada às comunidades informais. Dois bilhões de favelados em 2030 ou 2040 é uma possibilidade monstruosa, quase incompreensível, mas a pobreza humana por si só superpõe-se às favelas e excede-as. Na verdade, Slums ressalta que, em algumas cidades, a maioria dos pobres mora, na verdade, fora da favela propriamente dita[50]. Além disso, os pesquisadores do “Observatório Urbano” da ONU alertam que, em 2020, “a pobreza urbana no mundo chegará a 45% a 50% do total de moradores de cidades”[51].
O "Big Bang" da pobreza urbana
A evolução da nova pobreza urbana foi um processo histórico não-linear. O acréscimo lento de cortiços e barracos ao invólucro da cidade é marcado por tempestades de pobreza e explosões de construção de favelas. Em sua coletânea de histórias Adjusted lives [Vidas ajustadas], o escritor nigeriano Fidelis Balogun descreve a chegada do Programa de Ajuste Estrutural (PAE) do FMI, em meados da década de 1980, como equivalente a uma grande catástrofe natural, destruindo para sempre a antiga alma de Lagos e “reescravizando” os nigerianos urbanos.
O lamento de Balogun sobre “privatizar a todo vapor e ficar mais faminto a cada dia” e sua enumeração das conseqüências malévolas do PAE soariam instantaneamente familiares aos sobreviventes não só dos outros trinta PAEs africanos como também de centenas de milhões de asiáticos e latino-americanos. Os anos 1980 – quando o FMI e o Banco Mundial usaram a alavancagem da dívida para reestruturar a economia da maior parte do Terceiro Mundo – foram a época em que as favelas tornaram-se um futuro implacável não só para os migrantes rurais pobres como também para milhões de habitantes urbanos tradicionais, desalojados ou jogados na miséria pela violência do “ajuste”.
Como enfatiza Slums, os PAEs foram “de natureza deliberadamente antiurbana” e projetados para reverter qualquer “viés urbano” que existisse nas políticas de bem-estar social, na estrutura fiscal ou nos investimentos governamentais53.
Em toda parte o FMI, agindo como delegado dos grandes bancos e apoiado pelos governos Reagan e Bush, ofereceu aos países pobres o mesmo cálice envenenado de desvalorização, privatização, remoção dos controles da importação e dos subsídios aos alimentos, redução forçada dos custos com saúde e educação e enxugamento impiedoso do setor público. (Um famoso telegrama de 1985 de George Shultz, Secretário do Tesouro dos Estados Unidos, a oficiais do USAID no exterior ordenava: “Na maioria dos casos, as empresas do setor público têm de ser privatizadas”54 .)
Ao mesmo tempo, os PAEs devastaram os pequenos proprietários rurais ao eliminar subsídios e expulsá-los, no esquema “ou vai ou racha”, para o mercado global de commodities dominado pelo agronegócio do Primeiro Mundo55.
Como ressalta Ha-Joon Chang, os PAEs, de maneira hipócrita, “chutaram a escada” (ou seja, as tarifas e os subsídios protecionistas) que as nações da OCDE empregaram historicamente em sua própria subida da agricultura para os bens e serviços urbanos de alto valor agregado56 . Slums afirma a mesma coisa quando argumenta que “a principal causa isolada do aumento da pobreza e da desigualdade nas décadas de 1980 e 1990 foi o recuo do Estado”. Além das reduções diretas impostas pelos PAEs aos gastos e à propriedade do setor público, os autores da ONU destacam a diminuição mais sutil da capacidade do Estado que resultou da “subsidiaridade”: a descentralização do poder entre os escalões mais baixos do governo e, em especial, as ONGs ligadas diretamente às principais entidades de auxílio internacional.
Toda a estrutura aparentemente descentralizada é estranha à noção de governo representativo nacional que tão bem serviu ao mundo desenvolvido e, ao mesmo tempo, bastante submissa ao funcionamento de uma hegemonia global. O ponto de vista internacional dominante [ou seja, o de Washington] torna-se o paradigma de fato do desenvolvimento, de modo a unificar rapidamente o mundo todo no sentido geral daquilo que os financiadores e as organizações internacionais apóiam.57
A África e a América Latina urbanas foram as mais atingidas pela depressão artificial arquitetada pelo FMI e pela Casa Branca. Com efeito, em muitos países o impacto econômico dos PAEs durante os anos 1980, em conjunto com as secas prolongadas, o aumento do preço do petróleo, a disparada dos juros e a queda do preço das commodities, foi mais grave e duradouro que a Grande Depressão.
O balanço do ajuste estrutural na África examinado por Carole Rakodi inclui fuga de capitais, colapso da indústria, aumento marginal ou negativo da receita de exportação, cortes drásticos nos serviços públicos urbanos, disparada de preços e declínio acentuado do salário real58. Em Kinshasa (“uma aberração ou um sinal do que está para acontecer?”), o assainissement varreu a classe média de funcionários públicos e produziu um “declínio inacreditável do salário real”, que, por sua vez, patrocinou o pesadelo do aumento da criminalidade e das gangues predatórias59.
Em Dar-es-Salaam, as despesas com serviços públicos caíram 10% por pessoa ao ano durante a década de 1980 – na prática, uma demolição do Estado local60. Em Cartum, a liberalização e o ajuste estrutural, de acordo com pesquisadores locais, /fabricaram 1,1 milhão de “novos pobres”, “saídos em sua maioria dos grupos assalariados ou dos funcionários do setor público”61. Em Abidjan, uma das poucas cidades tropicais africanas com um setor fabril importante e serviços urbanos modernos, a submissão ao regime do PAE levou, aqui e ali, à desindustrialização, ao colapso da construção civil e a uma rápida deterioração do transporte público e do saneamento básico62. Na Nigéria de Balogun, a extrema pobreza, cada vez mais urbanizada em Lagos, Ibadan e outras cidades, entrou em metástase e passou de 28% em 1980 para 66% em 1996. “O PNB per capita, hoje de cerca de 260 dólares”, relata o Banco Mundial, “está abaixo do nível da época da independência, há quarenta anos, e abaixo do nível de 370 dólares atingido em 1985.”63
Na América Latina, os PAEs (muitas vezes implementados por ditaduras militares) desestabilizaram a economia rural e arrasaram o emprego e a habitação urbanos. Em 1970, as teorias “foquistas” guevaristas de rebelião rural ainda se adequavam a uma realidade continental em que a pobreza do campo (75 milhões de pobres) ofuscava a das cidades (44 milhões). No entanto, no final da década de 1980, a imensa maioria dos pobres (115 milhões em 1990) morava em colonias e villas miseria urbanas, em vez de fazendas ou aldeias (80 milhões)64.
Enquanto isso, a desigualdade urbana explodia. Em Santiago, a ditadura de Pinochet arrasou favelas e expulsou antigos ocupantes radicais, obrigando as famílias pobres a se tornarem allegadas, amontoando-se – às vezes duas ou três famílias – na mesma moradia alugada. Em Buenos Aires, a participação do decil mais rico na renda total, que era de dez vezes a do decil mais pobre em 1984, aumentou para 23 vezes em 198965. Em Lima, onde o valor do salário mínimo caiu 83% durante a recessão do FMI, o percentual de famílias abaixo da linha de pobreza aumentou de 17% em 1985 para 44% em 199066. No Rio de Janeiro, a desigualdade, medida pelos coeficientes Gini clássicos, disparou de 0,58 em 1981 para 0,67 em 198967. Na verdade, em toda a América Latina a década de 1980 aprofundou os vales e elevou os picos da topografia social mais contrastada do mundo. (Segundo um relatório de 2003 do Banco Mundial, os coeficientes Gini são 10 pontos mais altos na América Latina que na Ásia; 17,5 pontos mais altos que na OCDE; e 20,4 pontos mais altos que na Europa oriental68.)
Em todo o Terceiro Mundo, os choques econômicos dos anos 1980 obrigaram os indivíduos a reagrupar-se em volta dos recursos somados da família e, principalmente, da capacidade de sobrevivência e da engenhosidade desesperada das mulheres. Na China e nas cidades em industrialização do sudeste da Ásia, milhões de moças escravizaram-se às linhas de montagem e à miséria fabril. Na África e na maior parte da América Latina (com exceção das cidades da fronteira norte do México), essa opção não existiu. Em vez disso, a desindustrialização e a dizimação dos empregos masculinos no setor formal obrigaram as mulheres a improvisar novos meios de vida como montadoras pagas por peça, vendedoras de bebidas, camelôs, faxineiras, lavadeiras, catadoras, babás e prostitutas. Na América Latina, onde a participação das mulheres urbanas na força de trabalho sempre foi menor que em outros continentes, o surto de mulheres nas atividades informais terciárias durante a década de 1980 foi especialmente dramático69. Em relação à África, onde o símbolo do setor informal são as mulheres que abrem biroscas e vendem produtos agrícolas nas ruas, Christian Rogerson nos recorda que a maioria dessas trabalhadoras informais não é autônoma nem economicamente independente, mas trabalha para outras pessoas70. (Essas redes onipresentes e cruéis de microexploração, com pobres explorando os muito pobres, costumam ficar ocultas nas descrições do setor informal.)
A pobreza urbana também foi maciçamente feminilizada nos países do antigo Comecon depois da “liberação” capitalista em 1989. No início da década de 1990, a extrema pobreza dos antigos “países de transição” (como a ONU os chama) disparou de 14 milhões de pessoas para 168 milhões: uma pauperização em massa quase sem precedentes na história71. Se, no balanço global, essa catástrofe econômica foi em parte compensada pelo mui louvado sucesso da China na elevação da renda de suas cidades litorâneas, o “milagre” do mercado chinês foi comprado com “um aumento enorme da desigualdade salarial entre os trabalhadores urbanos [...] no período entre 1988 e 1999”. As mulheres e as minorias ficaram particularmente em desvantagem72.
É claro que, em teoria, a década de 1990 deveria ter corrigido os erros dos anos 1980 e permitido às cidades do Terceiro Mundo recuperar o terreno perdido e fechar os abismos de desigualdade criados pelos PAEs. A dor do ajuste seria seguida pelo analgésico da globalização. Com efeito, a década de 1990, como Slums observa ironicamente, foi a primeira em que o desenvolvimento urbano global aconteceu segundo parâmetros quase utópicos de liberdade de mercado neoclássica.
Durante a década de 1990, o comércio continuou a se expandir num ritmo quase sem precedentes; áreas antes vedadas se abriram e as despesas militares diminuíram. [...] Todos os insumos básicos da produção ficaram mais baratos com a queda rápida dos juros, juntamente com o preço das commodities básicas. Os fluxos de capital foram cada vez menos atrapalhados por controles nacionais e puderam encaminhar-se velozmente para as áreas mais produtivas. Sob condições econômicas quase perfeitas, de acordo com a doutrina econômica neoliberal dominante, seria possível imaginar que a década teria prosperidade e justiça social inigualáveis.73
No caso, contudo, a pobreza urbana continuou seu acúmulo incessante, e “a lacuna entre países pobres e ricos aumentou, como acontecera nos vinte anos anteriores, e, na maioria dos países, a desigualdade de renda cresceu ou, no máximo, estabilizou-se”. A desigualdade global, medida pelos economistas do Banco Mundial, atingiu um coeficiente Gini inacreditável de 0,67 no final do século. Matematicamente, era uma situação equivalente àquela em que os dois terços mais pobres do mundo recebessem renda zero, e o terço mais rico, tudo74.
Um excedente de humanidade?
O tectonismo violento da globalização neoliberal desde 1978 é análogo aos processos catastróficos que, a princípio, deram forma ao “Terceiro Mundo” durante a época do imperialismo vitoriano tardio (1870-1900). Neste último caso, a incorporação forçada ao mercado mundial dos grandes campesinatos de subsistência da Ásia e da África provocou a morte de milhões pela fome e o desenraizamento de outras dezenas de milhões de suas posses tradicionais. O resultado final, também na América Latina, foi uma “semiproletarização” rural: a criação de uma classe enorme de semicamponeses e trabalhadores agrícolas miseráveis sem a segurança existencial da subsistência[75]. (Em conseqüência, o século XX não se tornou uma época de revoluções urbanas, como imaginava o marxismo clássico, mas de levantes rurais e guerras camponesas de libertação nacional inéditos.) Parece que o recente ajuste estrutural provocou uma reconfiguração igualmente fundamental do futuro humano. Como concluem os autores de Slums: “Em vez de serem um foco de crescimento e prosperidade, as cidades tornaram-se o depósito de lixo de um excedente de população que trabalha nos setores informais de comércio e serviços, sem especialização, desprotegido e com baixos salários”. “O crescimento d[este] setor informal”, declaram sem rodeios, “é [...] resultado direto da liberalização.”[76]
Na verdade, a classe trabalhadora informal global (que se sobrepõe mas não é idêntica à população favelada) tem quase um bilhão de pessoas, constituindo a classe social de crescimento mais rápido e mais sem precedentes da Terra. Desde que o antropólogo Keith Hart, que trabalhava em Accra, criou o conceito de “setor informal” em 1973, uma imensa literatura (que, em sua maior parte, não distingue microacumulação de sub-subsistência) enfrentou os formidáveis problemas teóricos e empíricos envolvidos no estudo das estratégias de sobrevivência dos pobres urbanos77. Há, no entanto, o consenso básico de que a crise da década de 1980 inverteu as posições estruturais relativas dos setores formal e informal, promovendo a busca informal da sobrevivência como novo meio de vida principal da maioria das cidades do Terceiro Mundo.
Alejandro Portes e Kelly Hoffman avaliaram recentemente o impacto geral dos PAEs e da liberalização sobre a estrutura de classes urbana e latino-americana a partir da década de 1970. De modo coerente com as conclusões da ONU, verificaram que, desde então, tanto os funcionários públicos quanto o proletariado formal se reduziram em todos os países da região. Em contraste, o setor informal da economia, junto com a desigualdade social geral, expandiu-se de forma dramática.
Diversamente de alguns pesquisadores, eles fazem uma distinção fundamental entre a pequena burguesia informal (“a soma dos donos de microempresas informais, que empregam menos de cinco trabalhadores, mais os profissionais e técnicos que trabalham por conta própria”) e o proletariado informal (“a soma dos trabalhadores autônomos, menos profissionais liberais e técnicos, com empregados domésticos e trabalhadores pagos e não-pagos de microempresas informais”).
Demonstram que esse primeiro estrato, os “microempresários” tão louvados nas escolas de administração norte-americanas, costumam ser profissionais desalojados do setor público e trabalhadores especializados demitidos. Desde a década de 1980, cresceram de 5% para 10% da população urbana economicamente ativa, tendência que reflete “o empreendedorismo forçado imposto aos ex-assalariados pelo declínio do emprego no setor formal”78.
No geral, de acordo com Slums, os trabalhadores informais são cerca de dois quintos da população economicamente ativa do mundo em desenvolvimento79. Segundo os pesquisadores do Banco Interamericano de Desenvolvimento, a economia informal emprega atualmente 57% da força de trabalho latino-americana e oferece quatro de cada cinco novos “empregos”80. Outras fontes afirmam que mais da metade dos indonésios urbanos e 65% dos moradores de Daca subsistem no setor informal81. Do mesmo modo, Slums cita pesquisas que comprovam que a atividade econômica informal responde por 33% a 40% do emprego urbano na Ásia, 60% a 75% na América Central e 60% na África82. Com efeito, nas cidades subsaarianas a criação de “empregos formais” praticamente deixou de existir. Um estudo da OIT sobre o mercado de trabalho urbano do Zimbábue durante o ajuste estrutural “estagflacionário” do início dos anos 1990 descobriu que o setor formal só criava 10 mil empregos por ano, em contrapartida a uma força de trabalho urbana que crescia em mais de 300 mil indivíduos por ano83. Slums estima, ainda, que um total de 90% das novas vagas urbanas da África na próxima década virão, de algum modo, do setor informal84.
Os gurus do moto perpétuo do capitalismo, como o incontrolável Hernando de Soto, podem ver essa população enorme de trabalhadores marginalizados, funcionários públicos demitidos e ex-camponeses como, na verdade, uma colméia frenética de ambiciosos empreendedores desejosos de direitos formais de propriedade e espaço competitivo não-regulamentado, mas faz bem mais sentido tomar a maioria dos trabalhadores informais como desempregados “ativos”, que não têm escolha senão subsistir de algum jeito para não passar fome85 . É pouco provável que os estimados 100 milhões de crianças de rua – que nos desculpe o señor De Soto – comecem a emitir ações e negociar obrigações futuras sobre a venda de chicletes86. E a maior parte dos 70 milhões de “trabalhadores flutuantes” da China, que vivem furtivamente na periferia urbana, não vai acabar se capitalizando como pequenos empreiteiros nem se integrará à classe trabalhadora urbana formal. E a classe trabalhadora informal, submetida por toda parte à micro e à macroexploração, está, quase universalmente, privada da proteção das leis e dos padrões trabalhistas.
Além disso, como defende Alain Dubresson no caso de Abidjan, “o dinamismo dos ofícios braçais e do pequeno comércio depende em boa medida da demanda do setor assalariado”. Ele lança um alerta contra a “ilusão” cultivada pela OIT e pelo Banco Mundial de que “o setor informal pode substituir com eficiência o setor formal e promover um processo de acumulação suficiente para uma cidade com mais de 2,5 milhões de habitantes”87. Seu aviso é repetido por Christian Rogerson, que, distinguindo (como Portes e Hoffman) microempresas “de sobrevivência” e “de crescimento”, escreve sobre as primeiras: “Em termos gerais, a renda gerada por essas empresas, cuja maioria tende a ser administrada por mulheres, costuma ficar abaixo até do padrão de vida mínimo e envolve pouco investimento de capital, praticamente nenhuma habilidade especializada e oportunidades apenas restritas de crescer e se transformar num negócio viável”. Com até os salários urbanos do setor formal da África baixos a ponto de os economistas não conseguirem imaginar como os trabalhadores sobrevivem (o chamado “enigma salarial”), o setor terciário informal tornou-se uma arena de extrema competição darwinista entre os pobres. Rogerson cita os exemplos do Zimbábue e da África do Sul, onde os nichos informais controlados por mulheres – spazas (lojinhas informais que vendem de tudo) e biroscas – estão hoje apinhados e sofrem de queda de lucratividade88.
Em outras palavras, a tendência macroeconômica real do trabalho informal é a reprodução da pobreza absoluta. Mas, se o proletariado informal não é a menorzinha das pequenas burguesias, também não é um “exército de reserva de mão-de-obra” nem um “lumpemproletariado”, em nenhum dos sentidos obsoletos do século XIX. Parte dele, é verdade, é uma força de trabalho invisível da economia formal, e numerosos estudos já mostraram como as redes de terceirização da Wal-Mart e de outras megaempresas penetram profundamente na miséria das colonias e chawls. Mas no fim das contas a maior parte dos favelados urbanos, radical e verdadeiramente, não encontra lar na economia internacional contemporânea. É claro que as favelas se originam no campo global onde, como nos recorda Deborah Bryceson, a competição desigual com a grande escala da agroindústria vem “arrebentando as costuras” da sociedade rural tradicional89. Conforme as áreas rurais perdem sua “capacidade de armazenamento”, as favelas tomam seu lugar, e a “involução” urbana substitui a involução rural como ralo da mãode- obra excedente, que só consegue acompanhar a subsistência com façanhas cada vez mais heróicas de auto-exploração e uma subdivisão competitiva ainda maior dos nichos de sobrevivência já densamente povoados90. A “Modernização”, o “Desenvolvimento” e, agora, o “Mercado” irrestrito já tiveram seus bons dias.
A força de trabalho de um bilhão de pessoas foi expelida do sistema mundial, e quem consegue imaginar algum cenário plausível, sob os auspícios neoliberais, que a reintegre como trabalhadores produtivos ou consumidores em massa?
Marx e o espírito santo
Portanto, a recente triagem capitalista da humanidade já aconteceu. Além disso, o crescimento global de um vasto proletariado informal é uma evolução estrutural totalmente original, não prevista pelo marxismo clássico nem pelos gurus da modernização. Na verdade a favela desafia a teoria social a perceber a novidade de um verdadeiro resíduo global sem o poder econômico estratégico da mão-de-obra socializada, mas maciçamente concentrado num mundo de barracos em torno dos enclaves fortificados dos ricos urbanos.
É claro que a tendência à involução urbana já existia durante o século XIX. As revoluções industriais européias foram incapazes de absorver toda a oferta de mão-de-obra rural desalojada, sobretudo depois que a agricultura continental sofreu a competição devastadora das pradarias norte-americanas a partir da década de 1870. Mas a migração em massa para as sociedades coloniais das Américas e da Oceania, assim como para a Sibéria, constituiu uma válvula de segurança dinâmica que impediu tanto o surgimento de mega-Dublins quanto a disseminação do tipo de anarquismo da classe baixa que se enraizara nas partes mais empobrecidas do sul da Europa. Hoje, pelo contrário, o excesso de mão-de-obra enfrenta barreiras sem precedentes – uma “grande muralha” literal da imposição de uma fronteira de alta tecnologia – que bloqueiam a migração em grande escala para os países ricos. Do mesmo modo, os controvertidos programas de reassentamento populacional em regiões de “fronteira” como Amazônia, Tibete, Kalimantan e Irian Jaya produzem devastação ambiental e conflitos étnicos sem reduzir de forma substancial a pobreza urbana no Brasil, na China e na Indonésia.
Assim, só resta a favela como solução totalmente franqueada ao problema de armazenar o excedente de humanidade do século XXI. Mas não são as grandes favelas – como já imaginara a burguesia vitoriana apavorada – vulcões esperando para entrar em erupção? Ou será que a impiedosa competição darwinista, em que um número cada vez maior de pobres compete pelos mesmos restos informais, ainda garante a violência comunitária que consome a si mesma como forma mais elevada de involução urbana? Até que ponto o proletariado informal possui o talismã marxista mais poderoso, a “atuação histórica”? Pode a mão-de-obra desincorporada ser reincorporada a um projeto emancipador global? Ou a sociologia do protesto na megacidade empobrecida é uma regressão à multidão urbana préindustrial, que explodia de quando em quando nas crises de consumo mas, fora isso, era fácil de manobrar com o clientelismo, o espetáculo populista e os apelos à unidade étnica? Ou há algum novo tema histórico inesperado, à moda de Hardt e Negri, arrastando-se rumo à supercidade?
Na verdade, a literatura atual sobre a pobreza e o protesto urbano oferece poucas respostas a perguntas de tamanho alcance. Alguns pesquisadores, por exemplo, questionariam se os favelados etnicamente diferentes ou os trabalhadores informais economicamente heterogêneos chegam a constituir uma verdadeira “classe em si mesma”, quanto mais uma “classe em si mesma” potencialmente ativista. Com certeza, o proletariado informal traz “ligações radicais”, no sentido marxista de ter pouco ou nenhum interesse oculto na preservação do modo de produção existente. Mas os migrantes rurais desenraizados e os trabalhadores informais, tendo sido em grande parte desapossados da força de trabalho fungível ou reduzidos ao serviço doméstico na casa dos ricos, têm pouco acesso à cultura do trabalho coletivo ou da luta de classes em grande escala. Seu estágio social, necessariamente, tem de ser o da favela ou da feira, não o da fábrica ou da linha de montagem internacional.
As lutas dos trabalhadores informais – como enfatiza John Walton numa resenha recente da pesquisa sobre movimentos sociais em cidades pobres – tenderam, acima de tudo, a ser episódicas e descontínuas. Também costumam concentrar-se em questões imediatas de consumo: invasões de terra em busca de moradia acessível e revoltas contra o aumento dos preços dos alimentos ou dos serviços públicos. No passado, pelo menos, “os problemas urbanos das sociedades em desenvolvimento foram mais comumente mediados pelas relações clientelistas do que pelo ativismo popular”91 . Desde a crise da dívida externa na década de 1980, os líderes neopopulistas da América Latina obtiveram marcante sucesso na exploração do desejo desesperado dos pobres urbanos de ter estruturas de vida cotidiana mais estáveis e previsíveis. Embora Walton não afirme de modo explícito, o setor informal urbano foi ideologicamente promíscuo no apoio a salvadores populistas: uniu-se a Fujimori no Peru, mas na Venezuela abraçou Chávez92 . Na África e no sul da Ásia, por outro lado, o clientelismo urbano iguala-se, com demasiada freqüência, ao domínio de fanáticos étnico-religiosos e ao pesadelo de suas ambições de limpeza étnica. Os exemplos mais famosos são as milícias antimuçulmanas do Congresso do Povo Oodua, em Lagos, e o movimento semifascista Shiv Sena, em Bombaim93 .
Essas sociologias de protesto do século XVIII persistirão até meados do XXI? É provável que o passado seja um mau guia para o futuro. A história não é uniformitarista. O novo mundo urbano vem evoluindo com rapidez extraordinária e muitas vezes em direções imprevistas. Por toda parte a acumulação contínua de pobreza solapa a segurança da vida e impõe desafios ainda mais extraordinários à engenhosidade econômica dos pobres. Talvez haja um ponto de virada no qual a poluição, a aglomeração, a ganância e a violência da vida urbana cotidiana vençam afinal a civilidade específica e as redes de sobrevivência da favela. Com certeza, no antigo mundo rural havia patamares, muitas vezes calibrados pela fome, que levavam diretamente à erupção social. Mas ninguém sabe ainda em que temperatura social as novas cidades da pobreza entram em combustão espontânea.
Na verdade, pelo menos por enquanto, Marx cedeu o palco histórico a Maomé e ao Espírito Santo. Se Deus morreu nas cidades da Revolução Industrial, surgiu de novo nas cidades pós-industriais do mundo em desenvolvimento. O contraste entre as culturas da pobreza urbana nas duas épocas é extraordinário. Como demonstrou Hugh McLeod em seu estudo magistral sobre a religião da classe operária vitoriana, Marx e Engels acertaram bastante em sua crença de que a urbanização estava secularizando a classe trabalhadora. Embora Glasgow e Nova York fossem, em parte, exceções, “a linha de interpretação que associa o afastamento da igreja da classe trabalhadora com o aumento da consciência de classe é, em certo sentido, incontestável”. Conquanto as pequenas igrejas e as seitas dissidentes prosperassem nas favelas, a principal corrente era a descrença ativa ou passiva.
Já na década de 1880, Berlim escandalizava os estrangeiros como “a cidade menos religiosa do mundo”, e, em Londres, o comparecimento médio dos adultos às igrejas do East End proletário e das Docklands, em 1902, era de meros 12% (e, ainda assim, na maioria de católicos)94. Em Barcelona, claro, a classe operária anarquista saqueou as igrejas durante a Semana Trágica, enquanto nas favelas de São Petersburgo, Buenos Aires e até em Tóquio os trabalhadores militantes abraçaram avidamente as novas fés de Darwin, Kropotkin e Marx.
Hoje, pelo contrário, o islamismo populista e o cristianismo pentecostal (e, em Bombaim, o culto de Shivaji) ocupam um espaço social análogo àquele do socialismo e do anarquismo no início do século XX. No Marrocos, por exemplo, onde todo ano um contingente de meio milhão de emigrantes rurais é absorvido pelas cidades apinhadas e onde metade da população tem menos de 25 anos, movimentos islamistas como o “Justiça e Bem-Estar”, fundado pelo xeque Abdessalam Yassin, tornaram-se o verdadeiro governo das favelas, organizando escolas noturnas, fornecendo apoio legal às vítimas de agressões do Estado, comprando remédios para os doentes, subsidiando peregrinações e pagando funerais.
Como admitiu recentemente o primeiro-ministro Abderrahman Yussufi – líder socialista que já foi exilado pela monarquia – a Ignacio Ramonet: “Nós [a esquerda] nos aburguesamos. Isolamo-nos do povo. Precisamos reconquistar os bairros populares. Os islamistas seduziram o nosso eleitorado natural. Prometem-lhes o paraíso na Terra”. Por outro lado, um líder islamista disse a Ramonet: “Diante da negligência do Estado e em face da brutalidade da vida cotidiana, as pessoas descobrem, graças a nós, a solidariedade, a auto-ajuda, a fraternidade. Entendem que islamismo é humanismo”95.
A contrapartida do islamismo populista nas favelas da América Latina e em boa parte da África subsaariana é o pentecostalismo. É claro que hoje o cristianismo, em sua maioria, é uma religião não-ocidental (dois terços de seus seguidores vivem fora da Europa e da América do Norte), e o pentecostalismo é seu missionário mais dinâmico nas cidades da pobreza. Na verdade, a especificidade do pentecostalismo é tal que é a primeira grande religião mundial a ter crescido quase inteiramente no solo da favela urbana moderna. Com raízes no antigo metodismo extático e na espiritualidade afro-americana, o pentecostalismo “despertou” quando o Espírito Santo concedeu o dom das línguas aos participantes de uma maratona inter-racial de oração num bairro pobre de Los Angeles (a rua Azusa), em 1906. Unidos em torno do batismo espiritual, da cura milagrosa, de pastores carismáticos e de uma crença pré-milenar numa iminente guerra mundial entre capital e trabalho, o pentecostalismo norte-americano primitivo, como observaram repetidas vezes os historiadores religiosos, nasceu como “democracia profética”, cujos públicos rural e urbano sobrepunham-se, respectivamente, aos do populismo e do IWW96. Na verdade, como os agitadores do IWW, seus primeiros missionários na América Latina e na África “viviam muitas vezes em extrema pobreza, com pouco ou nenhum dinheiro, raramente sabendo onde passariam a noite ou como conseguiriam a refeição seguinte”97. Também não deixaram nada a dever ao IWW em suas denúncias veementes das injustiças do capitalismo industrial e sua destruição inevitável.
Sintomaticamente, a primeira congregação brasileira, num bairro operário anarquista de São Paulo, foi fundada por um artesão imigrante italiano que trocara Malatesta pelo Espírito Santo em Chicago98. Na África do Sul e na Rodésia, o pentecostalismo criou suas primeiras cabeças-de-ponte nos complexos mineiros e nos bairros pobres, onde, segundo Jean Comaroff, “parecia harmonizar-se com as noções autóctones de forças espirituais pragmáticas e compensar a despersonalização e a impotência da vivência da mão-de-obra urbana”99. Concedendo um papel maior às mulheres do que as outras Igrejas cristãs e dando imenso apoio à abstinência e à frugalidade, o pentecostalismo – como descobriu R. Andrew Chesnut nas baixadas de Belém do Pará – sempre exerceu atração especial sobre “o estrato mais empobrecido das classes empobrecidas”: as esposas abandonadas, as viúvas e as mães solteiras100. Desde 1970, e principalmente graças ao seu encanto para as mulheres da favela e sua fama de não escolher cor, cresceu e tornou-se, comprovadamente, o maior movimento auto-organizado dos pobres urbanos do planeta101.
Embora as afirmações recentes sobre a existência de “mais de 533 milhões de pentecostais/carismáticos no mundo em 2002” sejam provavelmente exageradas, não é nada difícil que alcancem metade desse número. Aceita-se em geral que 10% da América Latina é pentecostal (cerca de 40 milhões de pessoas) e que o movimento foi a reação cultural isolada mais importante à urbanização explosiva e traumática102. É claro que, quando o pentecostalismo se globalizou, diferenciou-se em correntes e sociologias distintas. Mas embora na Libéria, em Moçambique e na Guatemala as igrejas com patrocínio norte-americano tenham sido vetores da ditadura e da repressão e algumas congregações dos Estados Unidos tenham hoje se enobrecido como a principal linha de fundamentalismo da classe média suburbana, a onda missionária do pentecostalismo no Terceiro Mundo continua mais próxima do espírito milenarista original da rua Azusa103. Acima de tudo, como descobriu Chesnut no Brasil, “o pentecostalismo [...] continua a ser uma religião da periferia informal” (e em Belém, especificamente, “dos mais pobres dentre os pobres”). No Peru, onde o pentecostalismo vem crescendo de forma quase exponencial nas vastas barriadas de Lima, Jefrey Gamarra defende que o crescimento das seitas e da economia informal “são conseqüência e resposta um do outro”104. Paul Freston acrescenta que “é a primeira religião de massa autônoma da América Latina [...] Os líderes podem não ser democráticos, mas vêm da mesma classe social”105.
Ao contrário do islamismo populista, que enfatiza a continuidade da civilização e a solidariedade da fé entre as classes, o pentecostalismo, seguindo a tradição de sua origem afro-americana, mantém uma identidade fundamentalmente exílica. Embora, assim como o islamismo das favelas, o pentecostalismo crie uma relação eficiente com a necessidade de sobrevivência da classe trabalhadora informal (organizando redes de auto-ajuda para as mulheres pobres, oferecendo a cura espiritual como paramedicina, auxiliando a recuperação de alcoólatras e dependentes de drogas, protegendo as crianças das tentações das ruas e assim por diante), sua premissa básica é a de que o mundo urbano é corrupto, injusto e impossível de reformar. Ainda não se sabe se – como defendeu Jean Comaroff em seu livro sobre as Igrejas sionistas africanas (muitas das quais são hoje pentecostais) – essa religião dos “marginalizados dos bairros pobres da modernidade neocolonial” é na verdade uma resistência “mais radical” do que a “participação na política sindical formal”106. Mas, com a esquerda ainda muito ausente da favela, a escatologia do pentecostalismo rejeita de forma admirável o destino inumano da cidade do Terceiro Mundo para o qual Slums alerta. Também santifica aqueles que, em todos os sentidos estruturais e existenciais, realmente vivem no exílio.
Notas
1 UN Population Division, World urbanization prospects, the 2001 revision (Nova York, 2002).
2 Population Information Program, Population reports: meeting the urban challenge, v. XXX, n. 4, outono [quarto trimestre] de 2002, p. 1.
3 Wolfgang Lutz, Warren Sandeson e Sergei Scherbov, “Doubling of world population unlikely”, Nature, n. 387, 19/6/1997, p. 803-4. No entanto, a população da África subsaariana triplicará, e a da Índia dobrará.
4 Global Urban Observatory, Slums of the world: the face of urban poverty in the new millenium? (Nova York, 2003), p. 10.
5 Embora não se duvide da velocidade da urbanização global, a taxa de crescimento de cidades específicas pode frear-se repentinamente com o atrito do tamanho e da aglomeração. Um caso famoso de uma dessas “reversões de polarização” é a Cidade do México, que todos previam que atingiria 25 milhões de habitantes na década de 1990 (a população atual é, provavelmente, de 18 ou 19 milhões). Ver Yue-man Yeung, “Geography in an age of mega-cities”, International Social Sciences Journal, n. 151, 1997, p. 93.
6 Ver o ponto de vista de Yue-man Yeung, “Viewpoint: integration of the Pearl River delta”, International Development Planning Review, v. 25, n. 3, 2003.
7 Far Eastern Economic Review, Asia 1998 Yearbook, p. 63.
8 UN-Habitat, The challenge of the slums: global report on human settlements 2003 (Londres, 2003), p. 3.
9 Gregory Guldin, What’s a peasant to do: village becoming town in Southern China (Boulder, Colorado, 2001), p. 13.
10 Miguel Villa e Jorge Rodriguez, “Demographic trends in Latin America’s metropolises, 1950-1990”, em Alan Gilbert (org.), The mega-city in Latin America (Tóquio, 1996), p. 33-4.
11 Guldin, Peasant, cit., p. 14, 17. Ver também Jing Neng Li, “Structural and spatial economic changes and their effects on recent urbanization in China”, em Gavin Jones e Pravin Visaria (orgs.), Urbanization in large developing countries (Oxford, 1997), p. 44.
12 Ver T. McGee, “The emergence of Desakota regions in Asia: expanding a hypothesis”, em Northon Ginsburg, Bruce Koppell e T. McGee (orgs.), The extended metropolis: settlement transition in Asia (Honolulu, 1991).
13 Yue-man Yeung e Fu-chen Lo, “Global restructuring and emerging urban corridors in Pacific Asia”, em Lo e Yeung (orgs.), Emerging world cities in Pacific Asia (Tóquio, 1996), p. 41.
14 Guldin, Peasant, cit., p. 13.
15 Wang Mengkui, assessor do Conselho de Estado, citado no Financial Times, 26 de novembro de 2003. Desde as reformas de mercado do final da década de 1970, estima-se que quase 300 milhões de chineses mudaram-se das áreas rurais para as cidades. Espera-se que mais 250 ou 300 milhões os sigam nas próximas décadas (Financial Times, 16/12/2003).
16 Josef Gugler, “Introduction – II. Rural-urban migration”, em Gugler (org.), Cities in the developing world: issues, theory and policy (Oxford, 1997), p. 43. Para uma visão contrária, que contesta os dados geralmente aceitos do Banco Mundial e da ONU sobre as taxas de urbanização elevadas e contínua da década de 1980, ver Deborah Potts, “Urban lives: adopting new strategies and adapting rural links”, em Carole Rakodi (org.), The urban challenge in Africa: growth and management of its large cities (Tóquio, 1997), p. 463-73.
17 David Simon, “Urbanization, globalization and economic crisis in Africa”, em Rakodi, Urban challenge, cit., p. 95.
18 Ver Josef Gugler, “Overurbanization reconsidered”, em Gugler, Cities in the developing world, cit., p. 114-23. Em contraste, a economia anterior dominante na União Soviética e na China maoísta restringia a migração interna para as cidades e, assim, tendia à “suburbanização”.
19 Prefácio de Jacinta Prunty, Dublin slums 1800-1925: a study in Urban Geography (Dublin, 1998), p. IX.
20 “Assim, parece que, nos países de baixa renda, uma queda significativa da renda urbana talvez não produza necessariamente, a curto prazo, o declínio da migração rural-urbana” (Nigel Harris, “Urbanization, economic development and policy in developing countries”, Habitat International, v. 14, n. 4, 1990, p. 21-2).
21 Sobre a urbanização no Terceiro Mundo e a crise global da dívida externa, ver York Bradshaw e Rita Noonan, “Urbanization, economic growth, and women’s labour-force participation”, em Gugler, Cities in the developing world, cit., p. 9-10.
22 Slums, cit.
23 Branko Milanovic, True world income distribution 1988 and 1993, Banco Mundial (Nova York, 1999). Milanovic e seu colega Schlomo Yitzhaki foram os primeiros a calcular a distribuição de renda mundial com base em dados de pesquisas com famílias de cada país.
24 O Unicef, para ser justo, criticou durante anos o FMI, destacando que “centenas de milhares de crianças do mundo em desenvolvimento deram a vida para pagar a dívida de seus países”. Ver The state of the world’s children (Oxford, 1989), p. 30.
25 Slums, cit., p. 6.
26 Supõe-se que um estudo assim examinaria, de um lado, os riscos urbanos e o colapso da infr estrutura e, de outro, o impacto da mudança climática sobre a agricultura e a migração.
27 Prunty, Dublin slums, cit., p. 2.
28 Slums, cit., p. 12.
29 Slums, cit., p. 2-3.
30 Ver A. Oberai, Population growth, employment and poverty in Third World mega-cities (Nova York, 1993), p. 28. Em 1980, a coorte 0-19 das grandes cidades da OCDE era de 19% a 28% da população; nas megacidades do Terceiro Mundo, de 40% a 53%.
31 Slums of the world, cit., p. 33-4.
32 Simon, “Urbanization in Africa”, cit., p. 103; e Jean-Luc Piermay, “Kinshasa: a reprieved megacity?”, em Rakodi, Urban challenge, cit., p. 236.
33 Sabir Ali, “Squatters: slums within slums”, em Prodipto Roy e Shangon Das Gupta (orgs.), Urbanization and slums (Délhi, 1995), p. 55-9.
34 Jonathan Rigg, Southeast Asia: a region in transition (Londres, 1991), p. 143.
35 Slums of the world, cit., p. 34.
36 Salah El-Shakhs, “Toward appropriate urban development policy in emerging mega-cities in Africa”, em Rakodi, Urban challenge, cit., p. 516.
37 Daily Times of Nigeria, 20/10/2003. Lagos cresceu de forma mais explosiva que todas as outras grandes cidades do Terceiro Mundo, com exceção de Daca. Em 1950, tinha apenas 300 mil habitantes, mas depois cresceu quase 10% ao ano até 1980, quando reduziu o ritmo para cerca de 6% – ainda bem veloz – durante os anos de reajuste estrutural.
38 Amy Otchet, “Lagos: the survival of the determined”, Unesco Courier, junho de 1999.
39 Slums, cit., p. 50.
40 Winter King, “Illegal settlements and the impact of titling programmes”, Harvard Law Review, v. 44, n. 2, setembro de 2003, p. 471.
41 Nações Unidas, Karachi, série “Population growth and policies in megacities” (Nova York, 1988), p. 19.
42 A ausência de infra-estrutura, no entanto, cria incontáveis nichos para trabalhadores informais: vender água, transportar excrementos, reciclar lixo, fornecer gás de cozinha, e assim por diante.
43 World Resources Institute, World resources: 1996-97 (Oxford, 1996), p. 21.
44 Slums of the world, cit., p. 25.
45 Slums, cit., p. 99.
46 Slums of the world, cit., p. 12.
47 Encontra-se um exemplar estudo de caso em Greg Bankoff, “Constructing vulnerability: the historical, natural and social generation of flooding in Metropolitan Manila”, Disasters, v. 27, n. 3, 2003, p. 224-38.
48 Otchet, “Lagos”; e Li Zhang, Strangers in the city: reconfigurations of space, power and social networks within China’s floating population (Stanford, 2001); Alan Gilbert, The Latin American city (Nova York, 1998), p. 16.
49 Martin Ravallion, On the urbanization of poverty, artigo do Banco Mundial, 2001.
50 Slums, cit., p. 28.
51 Slums of the world, cit., p. 12.
52 Fidelis Odun Balogun, Adjusted lives: stories of structural adjustment (Trenton, New Jersey, 1995), p. 80.
53 The challenge of slums, cit., p. 30. Os teóricos do “viés urbano”, como Michael Lipton, que inventou a expressão em 1977, argumentam que a agricultura tende a ser subcapitalizada nos países em desenvolvimento, e as cidades, relativamente “sobre-urbanizadas”, porque as políticas fiscais e financeiras favorecem a elite urbana e distorcem o fluxo dos investimentos. No limite, as cidades seriam vampiros do campo. Ver Lipton, Why poor people stay poor: a study of urban bias in world development (Cambridge, 1977).
54 Citado em Tony Killick, “Twenty-five years in development: the rise and impending decline of market solutions”, Development Policy Review, v. 4, 1986, p. 101.
55 Deborah Bryceson, “Disappearing peasantries? Rural labour redundancy in the neoliberal era and beyond”, em Bryceson, Cristóbal Kay e Jos Mooij (orgs.), Disappearing peasantries?: rural labour in Africa, Asia and Latin America (Londres, 2000), p. 304-5.
56 Ha-Joon Chang, “Kicking away the ladder. Infant industry promotion in historical perspective”, Oxford Development Studies, v. 31, n. 1, 2003, p. 21. “A renda per capita dos países em desenvolvimento cresceu 3% ao ano entre 1960 e 1980, mas somente cerca de 1,5% entre 1980 e 2000 [...] Os economistas neoliberais, portanto, defrontam-se aqui com um paradoxo. Os países em desenvolvimento cresceram muito mais depressa quando usaram ‘más’ políticas durante 1960-90 do que quando usaram políticas ‘boas’ (ou pelo menos ‘melhores’) nas duas décadas seguintes” (p. 28).
57 Slums, cit., p. 48.
58 Carole Rakodi, “Global forces, urban change, and urban management in Africa”, em Rakodi, Urban challenge, cit., p. 50, 60-1.
59 Piermay, “Kinshasa”, cit., p. 235-6; “Megacities”, Time, 11/1/1993, p. 26.
60 Michael Mattingly, “The role of the government of urban areas in the creation of urban poverty”, em Sue Jones e Nici Nelson (orgs.), Urban poverty in Africa (Londres, 1999), p. 21.
61 Adil Ahmad e Ata El-Batthani, “Poverty in Khartoum”, Environment and Urbanization, v. 7, n. 2, outubro de 1995, p. 205.
62 Alain Dubresson, “Abidjan”, em Rakodi, Urban challenge, cit., p. 261-3.
63 Banco Mundial, Nigeria: country brief, setembro de 2003.
64 ONU, World urbanization prospects, p. 12.
65 Luis Ainstein, “Buenos Aires: a case of deepening social polarization”, em Gilbert, Mega-city in Latin America, cit., p. 139.
66 Gustavo Riofrio, “Lima: mega-city and mega-problem”, em Gilbert, Mega-city in Latin America, cit., p. 159; e Gilbert, Latin American city, cit., p. 73.
67 Hamilton Tolosa, “Rio de Janeiro: urban expansion and structural change”, em Gilbert, Megacity in Latin America, cit., p. 211.
68 Banco Mundial, Inequality in Latin America and the Caribbean (Nova York, 2003).
69 Orlandina de Oliveira e Bryan Roberts, “The many roles of the informal sector in development”, em Cathy Rakowski (org.), Contrapunto: the informal sector debate in Latin America (Albany, 1994), p. 64-8.
70 Christian Rogerson, “Globalization or informalization? African urban economics in the 1990s”, em Rakodi, Urban challenge, cit., p. 348.
71 Slums, cit., p. 2.
72 Albert Park et al., “The growth of wage inequality in urban China, 1988 to 1999”, documento estimativo do Banco Mundial, fevereiro de 2003, p. 27 (citação); e John Knight e Linda Song, “Increasing urban wage inequality in China”, Economics of Transition, v. II, n. 4, 2003, p. 616 (discriminação).
73 Slums, cit., p. 34.
74 Shaohua Chen e Martin Ravallion, How did the world’s poorest fare in the 1990s?, documento do Banco Mundial, 2000.
75 Ver meu Late Victorian holocausts: El Niño famines and the making of the Third World (Londres, 2001), principalmente as páginas 206-9.
76 Slums, cit., p. 40, 46.
77 Keith Hart, “Informal income opportunities and urban employment in Ghana”, Journal of Modern African Studies, v. II, 1973, p. 61-89.
78 Alejandro Portes e Kelly Hoffman, “Latin American class structures: their composition and change during the neoliberal era”, Latin American Research Review, v. 38, n. 1, 2003, p. 55.
79 Slums, cit., p. 60.
80 Citado em Economist, 21/3/1998, p. 37.
81 Dennis Rondinelli e John Kasarda, “Job creation needs in Third World cities”, em Kasarda e
Allan Parnell (orgs.), Third World cities: problems, policies and prospects (Newbury Park, Califórnia, 1993), p. 106-7.
82 Slums, cit., p. 103.
83 Guy Mhone, “The impact of structural adjustment on the urban informal sector in Zimbabwe”, Issues in development, documento para discussão n. 2, Organização Internacional do Trabalho (Genebra, sem data), p. 19.
84 Slums, cit., p. 104.
85 Orlandina de Oliveira e Bryan Roberts enfatizam corretamente que os estratos inferiores da força de trabalho urbana deveriam ser identificados “não só pelo título de suas ocupações ou pelo emprego formal ou informal, mas pela estratégia da família para obter renda”. A massa de pobres urbanos só consegue existir mediante a “soma dos rendimentos, a divisão da moradia, da alimentação e de outros recursos” com familiares ou conterrâneos (“Urban development and social inequality in Latin America”, em Gugler, Cities in the developing world, cit., p. 290).
86 Estatística sobre crianças de rua: Natural History, julho de 1997, p. 4.
87 Dubresson, “Abidjan”, cit., p. 263.
88 Rogerson, “Globalization or informalization?”, cit., p. 347-51.
89 Bryceson, “Disappearing peasantries”, cit., p. 307-8.
90 Na definição original e inimitável de Clifford Geertzs, “involução” é “a ultrapassagem de uma forma estabelecida, de modo a torná-la rígida mediante a superelaboração interna dos detalhes”. Agricultural involution: social development and economic change in two Indonesian towns (Chicago, 1963), p. 82. De forma mais prosaica, a “involução” agrícola ou urbana pode ser descrita como o aumento incessante da auto-exploração da mão-de-obra (mantendo fixos os outros fatores), que continua, apesar da redução do rendimento, enquanto produzir algum retorno ou incremento.
91 John Walton, “Urban conflict and social movements in poor countries: theory and evidence of collective action”, trabalho apresentado na “Cities in Transition Conference”, Humboldt University, Berlim, julho de 1987.
92 Kurt Weyland, “Neopopulism and neoliberalism in Latin America: how much affinity?”, Third World Quarterly, v. 24, n. 6, 2003, p. 1095-115.
93 Para uma descrição fascinante, mas assustadora, da ascensão do Shiv Sena em Bombaim à custa das antigas políticas comunistas e sindicalistas, ver Thomas Hansen, Wages of violence: naming and identity in postcolonial Bombay (Princeton, 2001). Ver também Veena Das (org.), Mirrors of violence: communities, riots and survivors in South Asia (Nova York, 1990).
94 Hugh McLeod, Piety and poverty: working-class religion in Berlin, London and New York, 1870- 1914 (Nova York, 1996), p. XXV, 6, 32.
95 Ignacio Ramonet, “Le Maroc indécis”, Le Monde Diplomatique, julho de 2000, p. 12-3. Outro ex-esquerdista disse a Ramonet: “Quase 65% da população vive abaixo da linha da pobreza. As pessoas das bidonvilles estão inteiramente isoladas das elites. Vêem as elites da maneira como costumavam ver os franceses”.
96 Em sua controvertida interpretação sociológica do pentecostalismo, Robert Mapes Anderson afirmou que “a intenção inconsciente [do pentecostalismo]”, como a dos outros movimentos milenaristas, era na verdade “revolucionária” (Vision of the disinherited: the making of American pentecostalism [Oxford, 1979], p. 222).
97 Anderson, Vision of the disinherited, cit., p. 77.
98 R. Andrew Chesnut, Born again in Brazil: the pentecostal boom and the pathogens of poverty (New Brunswick, 1997), p. 29. Sobre as ligações históricas do pentecostalismo com o anarquismo no
Brasil, ver Paul Freston, “Pentecostalism in Latin America: characteristics and controversies”, Social Compass, v. 45, n. 3, 1998, p. 342.
99 David Maxwell, “Historicizing christian independency: the Southern Africa pentecostal movement, c. 1908-60”, Journal of African History, n. 40, 1990, p. 249; e Jean Comaroff, Body of power, spirit of resistance (Chicago, 1985), p. 186.
100 Chesnut, Born again, cit., p. 61. Na verdade, Chesnut descobriu que o Espírito Santo não só movia as línguas como melhorava o orçamento familiar. “Por eliminar despesas associadas ao complexo de prestígio masculino, os assembleianos conseguiam subir das fileiras inferior e mediana da pobreza para os seus escalões mais altos, e alguns quadrangulares migraram da pobreza [...] para as faixas inferiores da classe média” (ibidem, p. 18).
101 “Em toda a história humana, nenhum outro movimento humano voluntário não-político ou militarista cresceu tão depressa quanto o movimento pentecostal carismático nos últimos vinte anos” (Peter Wagner, prefácio para Vinson Synan, The holiness-pentecostal tradition [Grand Rapids, 1997], p. XI).
102 A estimativa mais elevada é de David Barret e Todd Johnson, “Annual statistical table on global mission: 2001”, International Bulletin of Missionary Research, v. 25, n. 1, janeiro de 2001, p. 25. Synan diz que havia 217 milhões de pentecostais em 1997 (Holiness, cit., p. ix). Sobre a América Latina, conferir Freston, “Pentecostalism”, cit., p. 337; Anderson, Vision of the disinherited, cit.; e David Martin, “Evangelical and charismatic christianity in Latin America”, em Karla Poewe (org.) Charismatic christianity as a global culture (Colúmbia, 1994), p. 74-5.
103 Ver o brilhante Christianity and politics in Doe’s Liberia (Cambridge, 1993), de Paul Gifford. E também Peter Walshe, Prophetic christianity and the liberation movement in South Africa (Pietermaritzburg, 1995), principalmente p. 110-1.
104 Jefrey Gamarra, “Conflict, post-conflict and religion: Andean responses to new religious movements”, Journal of Southern African Studies, v. 26, n. 2, junho de 2000, p. 272. Andres Tapia cita o teólogo peruano Samuel Escobar, que vê o Sendero Luminoso e os pentecostais como “dois lados da mesma moeda”: “ambos buscavam um forte rompimento com as injustiças, só os meios eram diferentes”. “Com o declínio do Sendero Luminoso, o pentecostalismo surgiu como vencedor na luta pelas almas dos peruanos pobres” (“In the ashes of the shining path”, Pacific News Service, 14 de fevereiro de 1996).
105 Freston, “Pentecostalism”, cit., p. 352.
106 Comaroff, Body of power, cit., p. 259-61.
A Terra urbanizou-se ainda mais depressa do que previra de início o Clube de Roma em seu relatório sabidamente malthusiano de 1972, Limits of growth [Limites do crescimento]. Em 1950, havia 86 cidades no mundo com mais de um milhão de habitantes; hoje, são 400 e, em 2015, serão pelo menos 550[1]. Na verdade, as cidades absorveram quase dois terços da explosão populacional global desde 1950 e crescem hoje no ritmo de um milhão de bebês e migrantes por semana[2]. A população urbana atual (3,2 bilhões de pessoas) é maior que a população total do planeta em 1960. Enquanto isso, no mundo todo o campo chegou a sua população máxima (3,2 bilhões de pessoas) e começará a encolher a partir de 2020. Como resultado, as cidades serão responsáveis por todo o crescimento populacional futuro da Terra – espera-se que seu ponto máximo, cerca de 10 bilhões de habitantes, seja atingido em 2050[3].
O climatério urbano
Onde estão os heróis, os colonizadores, as vítimas da Metrópole?
Brecht, registro no Diário, 1921
Desse aumento mundial, 95% ocorrerá nas áreas urbanas dos países em desenvolvimento, cuja população dobrará para quase 4 bilhões de pessoas na próxima geração[4]. (Na verdade, a população urbana combinada da China, da Índia e do Brasil já é mais ou menos igual à da Europa somada à da América do Norte.) O resultado mais notado será o desenvolvimento de novas megacidades com mais de 8 milhões de habitantes e, ainda mais espetaculares, hipercidades com mais de 20 milhões de habitantes (a população urbana mundial estimada na época da Revolução Francesa)[5]. Em 1995, só Tóquio atingira incontestavelmente esse patamar. Em 2025, segundo a Far Eastern Economic Review, a Ásia, sozinha, poderá ter dez ou onze conurbações desse tamanho, como Jacarta (24,9 milhões), Daca (25 milhões) e Karachi (26,5 milhões). Xangai, cujo crescimento foi congelado durante décadas pela política maoísta de suburbanização deliberada, poderia ter até 27 milhões de moradores em sua imensa região metropolitana estuarina[6]. Enquanto isso, prevê-se que Mumbai (Bombaim) atinja 33 milhões de habitantes, embora ninguém saiba se concentrações tão gigantescas de pobreza são sustentáveis em termos biológicos ou ecológicos[7].
Mas, se as megacidades são as estrelas mais brilhantes do firmamento urbano, três quartos do fardo do crescimento populacional será suportado por cidades pouco visíveis de segundo nível e por áreas urbanas menores – lugares onde, como enfatizam os pesquisadores da ONU, “há pouco ou nenhum planejamento para acomodar tais pessoas e prestar-lhes serviços”[8]. Na China (oficialmente 43% urbana em 1997), o número oficial de cidades disparou de 193 para 640 desde 1978. Mas as grandes metrópoles, apesar do crescimento extraordinário, na verdade reduziram sua participação relativa no total da população urbana. Pelo contrário, são as cidades pequenas e as vilas recentemente “promovidas” a cidades que absorveram a maior parte da força de trabalho rural tornada excedente pelas reformas do mercado depois de 1979[9]. Na África, do mesmo modo, o crescimento ao estilo supernova de algumas cidades gigantescas como Lagos (de 300 mil habitantes em 1950 para 10 milhões hoje) foi igualado pela transformação de várias dezenas de cidadezinhas e oásis como Uagadugu, Nuakchote, Duala, Antananarivo e Bamako em cidades maiores que São Francisco e Manchester. Na América Latina, onde as cidades principais monopolizaram por um bom tempo o crescimento, cidades secundárias como Tijuana, Curitiba, Temuco, Salvador e Belém estão hoje em expansão, “com o crescimento mais veloz acontecendo nas cidades que possuem entre 100 mil e 500 mil habitantes”[10].
Além disso, como insistiu Gregory Guldin, a urbanização precisa ser conceituada como transformação estrutural e intensificação da interação em todos os pontos de uma linha contínua urbano-rural. Em seu estudo do sul da China, o campo vem se urbanizando in situ, além de gerar migrações nunca vistas. “As aldeias tornam-se mais parecidas com as vilas xiang e os mercados e as cidadezinhas do interior ficam mais parecidas com cidades grandes.” O resultado, na China e em boa parte do sudeste da Ásia, é uma paisagem híbrida, um campo parcialmente urbanizado que, defendem Guldin e outros, pode ser “um caminho novo e importante de povoação humana e desenvolvimento [...] uma forma nem rural nem urbana, mas uma mistura dos dois, na qual uma rede densa de transações liga grandes núcleos urbanos com suas regiões circundantes”[11]. Na Indonésia, onde um processo semelhante de hibridação rural/urbana está bem avançado em Jabotabek (a grande Jacarta), os pesquisadores chamam esses novos padrões de uso de terra de desokotas e discutem se são paisagens de transição ou uma espécie nova e dramática de urbanismo[12].
Os urbanistas também especulam sobre os processos que interligam as cidades do Terceiro Mundo em redes, corredores e hierarquias novos e extraordinários. Por exemplo, os deltas dos rios Pérola (Hong Kong–Guangju) e Yang-tsé (Xangai), juntamente com o corredor Beijing-Tianjin, estão se transformando rapidamente em megalópoles comparáveis a Tóquio-Osaka, ao baixo Reno ou a Nova York–Filadélfia. Mas esse pode ser apenas o primeiro estágio do surgimento de uma estrutura ainda maior: “um corredor urbano contínuo que se estende do Japão/Coréia do Norte até o oeste de Java”[13]. Xangai, quase com certeza, irá então se unir a Tóquio, Nova York e Londres como uma das “cidades mundiais” que controlam a rede global de fluxos de capital e informação. O preço dessa nova ordem urbana será a desigualdade cada vez maior em e entre cidades de diferentes tamanhos e especializações. Guldin, por exemplo, cita interessantes discussões chinesas sobre a possível substituição, hoje em dia, do antigo abismo de renda e desenvolvimento entre a cidade e o campo por uma lacuna igualmente básica entre as cidades pequenas e as gigantes litorâneas[14].
De volta a Dickens
Vi hostes inumeráveis, condenadas à escuridão, à sujeira, à pestilência, à obscenidade, ao sofrimento e à morte precoce.
Dickens, "A December vision", 1850
A dinâmica da urbanização no Terceiro Mundo recapitula e confunde os precedentes da Europa e da América do Norte no século XIX e início do século XX. Na China, a maior revolução industrial da história é a alavanca de Arquimedes que desloca uma população do tamanho da européia das aldeias rurais para cidades cheias de fumaça e arranha-céus. Como resultado, “a China deixa[rá] de ser o país predominantemente rural que foi por milênios”[15]. Na verdade, o grande óculo do Centro Financeiro Mundial de Xangai pode, daqui a pouco, olhar para um vasto mundo urbano jamais imaginado por Mao, nem, aliás, por Le Corbusier. Mas, na maior parte do mundo em desenvolvimento, faltam ao crescimento das cidades o poderoso motor industrial-exportador da China e sua enorme importação de capital estrangeiro (hoje em dia, equivalente à metade do investimento estrangeiro total no mundo em desenvolvimento).
Em conseqüência, a urbanização em outros lugares foi radicalmente desligada da industrialização e até do desenvolvimento propriamente dito. Alguns argumentariam que esta é a expressão de um pendor inexorável: a tendência intrínseca do capitalismo informatizado de desvincular o crescimento da produção do crescimento do nível de emprego. Mas, na África subsaariana, na América Latina, no Oriente Médio e em partes da Ásia, a urbanização sem crescimento é mais claramente herança de uma conjuntura política global – a crise da dívida externa do final da década de 1970 e a subseqüente reestruturação das economias do Terceiro Mundo pelo FMI nos anos 1980 – do que lei férrea do avanço da tecnologia. Além disso, a urbanização do Terceiro Mundo continuou em seu ritmo velocíssimo (3,8% ao ano entre 1960 e 1993) durante os anos difíceis da década de 1980 e do início da de 1990, apesar da queda do salário real, da alta dos preço e da disparada do desemprego urbano[16].
Essa expansão urbana “perversa” contradisse os modelos econômicos ortodoxos, que previam que o feedback negativo da recessão urbana retardaria ou até reverteria a migração do campo. O caso africano foi especialmente paradoxal. Como as cidades da Costa do Marfim, da Tanzânia, do Gabão e de outros países cuja economia se contraía 2% a 5% ao ano conseguiram ainda manter um crescimento populacional anual de 5% a 8%17? Obviamente, parte do segredo é que as políticas de desregulamentação agrícola e “descampesinação” impostas pelo FMI (e hoje pela OMC) aceleraram o êxodo da mão-de-obra rural excedente para as favelas urbanas, ainda que as cidades deixassem de ser máquinas de empregos. O crescimento da população urbana, apesar do crescimento econômico urbano zerado ou negativo, é a face extrema do que alguns pesquisadores rotularam de “superurbanização”[18]. É apenas uma das várias ladeiras inesperadas para as quais a ordem mundial neoliberal empurrou a urbanização do milênio.
É claro que a teoria social clássica, de Marx a Weber, acreditava que as grandes cidades do futuro seguiriam os passos industrializantes de Manchester, Berlim e Chicago. Na verdade, Los Angeles, São Paulo, Pusan e, hoje, Ciudad Juárez, Bangalore e Guangju seguiram mais ou menos essa trajetória clássica. Mas a maioria das cidades do hemisfério sul é mais parecida com a Dublin vitoriana, que, como enfatizou Emmet Larkin, não teve igual dentre “todos os montes de cortiços produzidos no mundo ocidental no século XIX [...] [porque] seus cortiços não foram resultado da revolução industrial. Dublin, na verdade, sofreu mais com os problemas da desindustrialização do que com a industrialização entre 1800 e 1850”[19].
Do mesmo modo, Kinshasa, Cartum, Dar-es-Salaam, Daca e Lima cresceram de modo prodigioso, apesar da ruína da indústria de substituição de importações, do encolhimento do setor público e da decadência da classe média. As forças globais que “empurram” as pessoas para fora do campo – a mecanização em Java e na Índia, a importação de alimentos no México, no Haiti e no Quênia, a guerra civil e a seca de modo generalizado na África e, por toda parte, a consolidação de pequenas propriedades em grandes e a competição do agronegócio em escala industrial – parecem manter a urbanização mesmo quando a “atração” da cidade é enfraquecida drasticamente pelo endividamento e pela depressão[20]. Ao mesmo tempo, o rápido crescimento urbano no contexto do ajuste estrutural, da desvalorização da moeda e da redução do Estado foi a receita inevitável da produção em massa de favelas[21] . Assim, boa parte do mundo urbano corre de volta para a época de Dickens.
A predominância espantosa das favelas é o principal tema do relatório histórico e sombrio publicado em outubro passado pelo Programa de Assentamentos Humanos das Nações Unidas (UN-Habitat)[22]. The challenge of the slums [O desafio das favelas] (daqui em diante apenas Slums) é a primeira auditoria verdadeiramente global acerca da pobreza urbana. Integra com competência diversos estudos de casos urbanos, de Abidjan a Sydney, com dados globais sobre as famílias, incluindo, pela primeira vez, a China e o antigo bloco soviético. (Os autores da ONU registram sua dívida especial a Branko Milanovic, economista do Banco Mundial que foi o pioneiro do uso de micropesquisas como uma lente poderosa para estudar a crescente desigualdade global. Num de seus artigos, Milanovic explica: “Pela primeira vez na história humana, os pesquisadores têm dados razoavelmente exatos sobre a distribuição de renda ou bem-estar [despesas ou consumo] em mais de 90% da população do mundo”[23].)
Slums também é incomum em sua honestidade intelectual. Um dos pesquisadores ligados ao relatório contou-me que “os tipos de ‘Consenso de Washington’ (Banco Mundial, FMI etc.) sempre insistiram em definir os problemas das favelas globais não como resultado da globalização e da desigualdade, mas como resultado do ‘mau governo’”. No entanto, o novo relatório rompe a seriedade e a autocensura tradicionais da ONU para condenar abertamente o neoliberalismo, em especial os programas de ajuste estrutural do FMI[24].
A direção principal das intervenções nacionais e internacionais durante os últimos vinte anos na verdade aumentou a pobreza urbana e as favelas, elevou a exclusão e a desigualdade e enfraqueceu a elite urbana em seu esforço de usar as cidades como motores do crescimento.[25]
Slums, é verdade, negligencia (ou guarda para outros relatórios do UN-Habitat) algumas das questões mais importantes sobre o uso da terra causadas pela superurbanização e pelo assentamento informal, como o espalhamento, a degradação ambiental e os perigos urbanos. Também deixa de lançar luz sobre os processos que expulsam a mão-de-obra do campo e de incorporar uma literatura volumosa e de crescimento rápido sobre a dimensão sexuada da pobreza urbana e do emprego informal. Mas, afora essas pequenas objeções, Slums é um documento valiosíssimo que dá destaque às descobertas insistentes da pesquisa diante das autoridades institucionais das Nações Unidas. Se os relatórios do Painel Intergovernamental sobre a Mudança Climática constituem um consenso científico sem precedentes sobre os perigos do aquecimento global, Slums parece ser um alerta igualmente enfático sobre a catástrofe global da pobreza urbana. (Algum dia um terceiro relatório talvez examine o terreno sinistro da interação dos dois[26].) E, para os propósitos desta resenha, constitui um arcabouço excelente para o exame inicial dos debates contemporâneos sobre urbanização, economia informal, solidariedade humana e ação histórica.
A urbanização da pobreza
A montanha de lixo parecia estender-se até muito longe e então, aos poucos, sem demarcação nem fronteira visível, virava outra coisa. Mas o quê? Uma coleção de estruturas, confusa e sem caminhos. Caixas de papelão, compensado e tábuas podres, carcaças de carros enferrujadas e sem vidros tinham sido amontoados para formar habitações.
Michael Thelwell, The harder they come, 1980
A primeira definição conhecida e publicada da palavra inglesa slum* surgiu no Vocabulary of the flash language [Vocabulário da linguagem vulgar], em que é sinônimo de racket ou “comércio criminoso”[27]. No entanto, nos anos da cólera nas décadas de 1830 e 1840, os pobres moravam em slums, em vez de praticá-los. Uma geração depois, identificaram-se slums na América e na Índia, em geral reconhecidos como fenômeno internacional. O “slum clássico” era um lugar pitoresco e sabidamente provinciano, mas em geral os reformadores concordavam com Charles Booth que todos se caracterizavam por um amálgama de habitações dilapidadas, excesso de população, pobreza e vício. É claro que, para os liberais do século XIX, a dimensão moral era fundamental, e a favela era considerada, acima de tudo, um lugar onde o “resíduo” social apodrecia num esplendor imoral e quase sempre turbulento. Os autores de Slums descartam as calúnias vitorianas, mas fora isso conservam a definição clássica: excesso de população, habitações pobres ou informais, acesso inadequado a água potável e esgoto sanitário e insegurança da posse da terra[28].
Essa definição multidimensional é, na verdade, um padrão bem conservador do que qualifica uma favela; muitos leitores ficarão surpresos pela conclusão da ONU, contrariando o que se vê, de que somente 19,6% dos mexicanos urbanos moram em favelas. Mas, mesmo com essa definição restritiva, Slums estima que, em 2001, havia pelo menos 921 milhões de moradores de favelas: população quase igual à do mundo todo quando o jovem Engels aventurou-se pela primeira vez pelas ruas miseráveis de Manchester. Na verdade, o capitalismo neoliberal multiplicou exponencialmente o famoso slum Tom-All-Alone de Dickens em A casa soturna. Os moradores de favela constituem espantosos 78,2% da população urbana dos países menos desenvolvidos e o total de um terço da população urbana global[29]. Extrapolando a estrutura etária da maioria das cidades do Terceiro Mundo, pelo menos metade da população favelada tem menos de vinte anos[30]
Os maiores percentuais de moradores de favelas do mundo são da Etiópia (espantosos 99,4% da população urbana), Tchade (também 99,4%), Afeganistão (98,5%) e Nepal (92%)[31]. No entanto, é provável que a população urbana mais pobre esteja em Maputo e Kinshasa, onde (segundo outras fontes) dois terços dos moradores ganha menos do que o custo da nutrição diária mínima necessária[32]. Em Délhi, os planejadores queixam-se amargamente das “favelas dentro das favelas”, em que as pessoas ocupam os pequenos espaços abertos das colônias de reassentamento na periferia para onde os antigos pobres urbanos foram violentamente removidos em meados da década de 1970[33]. No Cairo e em Phnom Penh, os recém-chegados à cidade ocupam ou alugam espaço nos telhados, criando favelas no ar.
Muitas vezes a população das favelas é deliberadamente – e às vezes maciçamente – subcalculada. No final dos anos 1990, por exemplo, Bangcoc tinha uma taxa de pobreza “oficial” de apenas 5%, mas as pesquisas encontraram quase um quarto da população (1,16 milhão) morando em favelas e acampamentos de ocupação[34]. Do mesmo modo, a ONU descobriu recentemente que estava, sem querer, deixando de contar por uma grande margem a pobreza urbana na África. Por exemplo, é provável que os moradores de favelas de Angola sejam duas vezes mais numerosos do que se pensava a princípio. Do mesmo modo, a organização subestimou o número de habitantes urbanos pobres da Libéria, o que não surpreende, já que a população de Monróvia triplicou num só ano (1989-90) quando, apavorados, moradores do interior fugiram de uma violenta guerra civil[35].
Pode haver mais de 250 mil favelas na Terra. Sozinhas, as cinco maiores metrópoles do sul da Ásia (Karachi, Mumbai, Délhi, Kolkata e Daca) somam cerca de 15 mil comunidades faveladas diferentes com um total de mais de 20 milhões de habitantes. Uma população favelada ainda maior cobre o litoral em urbanização da África ocidental, enquanto outras conurbações imensas de pobreza espalham-se pela Anatólia e pelas terras altas da Etiópia; abraçam a base dos Andes e do Himalaia; explodem para longe dos núcleos de arranha-céus da Cidade do México, de Jo-burg, Manila e São Paulo; e, claro, ladeiam as margens dos rios Amazonas, Níger, Congo, Nilo, Tigre, Ganges, Irrawaddy e Mekong. É paradoxal que os tijolos desse planeta-favela sejam ao mesmo tempo totalmente intercambiáveis e espontaneamente únicos, como os bustees de Kolkata, os chawls e zopadpattis de Mumbai, os katchi abadis de Karachi, os kampungs de Jacarta, os iskwaters de Manila, as shammasas de Cartum, os umjondolos de Durban, os intra-murios de Rabat, as bidonvilles de Abidjan, os baladis do Cairo, os gecekondus de Ancara, os conventillos de Quito, as favelas do Brasil, as villas miseria de Buenos Aires e as colonias populares da Cidade do México. São os antípodas tenazes das paisagens genéricas de fantasia e dos parques temáticos residenciais – os burgueses “Offworlds” [mundos de fora], de Philip K. Dick – nos quais a classe média global cada vez mais prefere se enclausurar.
Enquanto, por um lado, o modelo clássico do slum era o cortiço decadente do centro da cidade, as novas favelas, por sua vez, localizam-se, em geral, na orla das explosões espaciais urbanas. É claro que o crescimento horizontal de cidades como México, Lagos ou Jacarta foi extraordinário e que o “alastramento das favelas” é um problema tão grande no mundo em desenvolvimento quanto o alastramento dos subúrbios de classe média nos países ricos. A área construída de Lagos, por exemplo, dobrou numa só década, entre 1985 e 1994[36]. O governador do estado de Lagos disse a jornalistas, no ano passado, que “cerca de dois terços dos 3577 km² da superfície terrestre total do estado podia ser classificada como barracos ou favelas”[37]. Realmente, como escreve um correspondente da ONU,
boa parte da cidade é um mistério [...] auto-estradas sem iluminação passam por desfiladeiros de lixo fumegante antes de dar lugar a ruas de terra que volteiam entre duzentas favelas, os esgotos correndo com dejetos não-tratados [...] Ninguém sequer sabe com certeza o tamanho da população – oficialmente são seis milhões, mas a maioria dos especialistas estima-a em dez milhões – e, menos ainda, o número de assassinatos a cada ano [ou] a taxa de infeçcão pelo HIV.[38]
Além disso, Lagos é, simplesmente, o maior entroncamento do corredor de 70 milhões de favelados que se estende de Abidjan a Ibadan – provavelmente a maior área de solo coberta de pobreza urbana em nosso planeta[39]. É claro que a ecologia da favela gira em torno da oferta de espaço para assentamento. Winter King, num estudo recente publicado na Harvard Law Review, afirma que 85% dos moradores urbanos do mundo desenvolvido “ocupam propriedades ilegalmente”[40]. Em última instância, a indeterminação da propriedade da terra e/ou a propriedade frouxa do Estado foram as brechas pelas quais uma vasta porção da humanidade despejou-se nas cidades. Os modos de assentamento das favelas variam num grande espectro, das invasões de terra disciplinadíssimas da Cidade do México e de Lima aos mercados de aluguel de organização complexa (mas muitas vezes ilegal) nos arredores de Beijing, Karachi e Nairóbi. Até em cidades como Karachi, onde a periferia urbana pertence formalmente ao governo, “lucros imensos oriundos da especulação imobiliária [...] continuam a se acumular no setor privado à custa das famílias de baixa renda”[41]. Na verdade, a máquina política nacional e local costuma aceitar o assentamento informal (e a especulação privada ilegal) enquanto conseguir controlar a compleição política das favelas e receber um fluxo regular de propinas ou aluguéis. Sem títulos formais de propriedade da terra ou da casa própria, impõe-se aos moradores das favelas uma dependência quase feudal de autoridades e líderes partidários locais. A deslealdade pode significar expulsão ou até o arrasamento de um bairro inteiro.
Enquanto isso, o fornecimento da infra-estrutura de sobrevivência arrasta-se bem atrás do ritmo da urbanização, e, muitas vezes, as áreas de favela periurbanas não oferecem nenhum serviço público nem saneamento básico[42]. Em geral, as áreas pobres das cidades latino-americanas têm melhor prestação de serviços básicos que as do sul da Ásia, que, por sua vez, costumam ter serviços urbanos mínimos, como fornecimento de água e eletricidade, que faltam a muitas favelas africanas. Como em Londres no início da época vitoriana, a contaminação da água por dejetos humanos e animais é a causa das doenças diarréicas crônicas que matam pelo menos dois milhões de crianças urbanas todos os anos[43]. Estimados 57% dos africanos urbanos não têm acesso a saneamento básico, e, em cidades como Nairóbi, os pobres precisam usar “banheiros voadores” (defecar num saco plástico)44. Em Mumbai o problema do saneamento é definido pela proporção de um assento sanitário para quinhentos habitantes nos bairros mais pobres. Somente 11% dos bairros pobres de Manila e 18% de Daca têm meios formais de dispor do esgoto[45]. Sem contar a incidência da epidemia de HIV/Aids, a ONU considera que dois em cada cinco moradores de favelas africanas vivem num nível de pobreza que é, literalmente, uma “ameaça à vida”[46].
Paralelamente, por toda parte os pobres urbanos são forçados a habitar terrenos perigosos e nada apropriados para a construção – encostas muito íngremes, margens de rios e alagados. Do mesmo modo, instalam-se à sombra mortal de refinarias, indústrias químicas, depósitos de lixo tóxico ou à margem de ferrovias e auto-estradas. Em conseqüência, a pobreza “construiu” um problema de desastre urbano de freqüência e alcance sem precedentes, como exemplificam as inundações crônicas em Manila, Daca e Rio de Janeiro; as explosões de dutos na Cidade do México e em Cubatão (no Brasil); a catástrofe de Bhopal, na Índia; a explosão de uma fábrica de munição em Lagos e os deslizamentos fatais em Caracas, La Paz e Tegucigalpa47. Além disso, as comunidades de pobres urbanos sem direito de voto são vulneráveis às explosões súbitas de violência estatal, como na famosa destruição, em 1990, da favela praiana de Maroko, em Lagos (“uma agressão à paisagem para a comunidade vizinha de Victoria Island, fortaleza dos ricos”), ou a demolição, em 1995, sob clima congelante, da grande cidade de ocupantes ilegais de Zhejiangcun, nos arredores de Beijing[48].
Mas as favelas, apesar de mortais e inseguras, têm um futuro brilhante. Por um curto período o campo ainda conterá a maioria dos pobres do mundo, mas esse título de reputação duvidosa passará para as favelas urbanas por volta de 2035[49]. Pelo menos metade da próxima explosão populacional urbana do Terceiro Mundo será creditada às comunidades informais. Dois bilhões de favelados em 2030 ou 2040 é uma possibilidade monstruosa, quase incompreensível, mas a pobreza humana por si só superpõe-se às favelas e excede-as. Na verdade, Slums ressalta que, em algumas cidades, a maioria dos pobres mora, na verdade, fora da favela propriamente dita[50]. Além disso, os pesquisadores do “Observatório Urbano” da ONU alertam que, em 2020, “a pobreza urbana no mundo chegará a 45% a 50% do total de moradores de cidades”[51].
O "Big Bang" da pobreza urbana
Depois de sua risada misteriosa, mudaram rapidamente de assunto para outras coisas. Como as pessoas lá em casa vinham sobrevivendo ao PAE?
Fidelis Balogun, Adjusted lives, 1995
A evolução da nova pobreza urbana foi um processo histórico não-linear. O acréscimo lento de cortiços e barracos ao invólucro da cidade é marcado por tempestades de pobreza e explosões de construção de favelas. Em sua coletânea de histórias Adjusted lives [Vidas ajustadas], o escritor nigeriano Fidelis Balogun descreve a chegada do Programa de Ajuste Estrutural (PAE) do FMI, em meados da década de 1980, como equivalente a uma grande catástrofe natural, destruindo para sempre a antiga alma de Lagos e “reescravizando” os nigerianos urbanos.
Parecia que a lógica esquisita desse programa econômico era que, para devolver a vida à economia moribunda, todo o suco tinha antes de ser esPAEmido da maioria desprivilegiada dos cidadãos. A classe média logo desapareceu, e os montes de lixo dos poucos cada vez mais ricos tornaram-se a mesa da multiplicada população dos abjetamente pobres. O escoamento dos cérebros para os países árabes ricos em petróleo e para o mundo ocidental transformou-se numa torrente.[52]
O lamento de Balogun sobre “privatizar a todo vapor e ficar mais faminto a cada dia” e sua enumeração das conseqüências malévolas do PAE soariam instantaneamente familiares aos sobreviventes não só dos outros trinta PAEs africanos como também de centenas de milhões de asiáticos e latino-americanos. Os anos 1980 – quando o FMI e o Banco Mundial usaram a alavancagem da dívida para reestruturar a economia da maior parte do Terceiro Mundo – foram a época em que as favelas tornaram-se um futuro implacável não só para os migrantes rurais pobres como também para milhões de habitantes urbanos tradicionais, desalojados ou jogados na miséria pela violência do “ajuste”.
Como enfatiza Slums, os PAEs foram “de natureza deliberadamente antiurbana” e projetados para reverter qualquer “viés urbano” que existisse nas políticas de bem-estar social, na estrutura fiscal ou nos investimentos governamentais53.
Em toda parte o FMI, agindo como delegado dos grandes bancos e apoiado pelos governos Reagan e Bush, ofereceu aos países pobres o mesmo cálice envenenado de desvalorização, privatização, remoção dos controles da importação e dos subsídios aos alimentos, redução forçada dos custos com saúde e educação e enxugamento impiedoso do setor público. (Um famoso telegrama de 1985 de George Shultz, Secretário do Tesouro dos Estados Unidos, a oficiais do USAID no exterior ordenava: “Na maioria dos casos, as empresas do setor público têm de ser privatizadas”54 .)
Ao mesmo tempo, os PAEs devastaram os pequenos proprietários rurais ao eliminar subsídios e expulsá-los, no esquema “ou vai ou racha”, para o mercado global de commodities dominado pelo agronegócio do Primeiro Mundo55.
Como ressalta Ha-Joon Chang, os PAEs, de maneira hipócrita, “chutaram a escada” (ou seja, as tarifas e os subsídios protecionistas) que as nações da OCDE empregaram historicamente em sua própria subida da agricultura para os bens e serviços urbanos de alto valor agregado56 . Slums afirma a mesma coisa quando argumenta que “a principal causa isolada do aumento da pobreza e da desigualdade nas décadas de 1980 e 1990 foi o recuo do Estado”. Além das reduções diretas impostas pelos PAEs aos gastos e à propriedade do setor público, os autores da ONU destacam a diminuição mais sutil da capacidade do Estado que resultou da “subsidiaridade”: a descentralização do poder entre os escalões mais baixos do governo e, em especial, as ONGs ligadas diretamente às principais entidades de auxílio internacional.
Toda a estrutura aparentemente descentralizada é estranha à noção de governo representativo nacional que tão bem serviu ao mundo desenvolvido e, ao mesmo tempo, bastante submissa ao funcionamento de uma hegemonia global. O ponto de vista internacional dominante [ou seja, o de Washington] torna-se o paradigma de fato do desenvolvimento, de modo a unificar rapidamente o mundo todo no sentido geral daquilo que os financiadores e as organizações internacionais apóiam.57
A África e a América Latina urbanas foram as mais atingidas pela depressão artificial arquitetada pelo FMI e pela Casa Branca. Com efeito, em muitos países o impacto econômico dos PAEs durante os anos 1980, em conjunto com as secas prolongadas, o aumento do preço do petróleo, a disparada dos juros e a queda do preço das commodities, foi mais grave e duradouro que a Grande Depressão.
O balanço do ajuste estrutural na África examinado por Carole Rakodi inclui fuga de capitais, colapso da indústria, aumento marginal ou negativo da receita de exportação, cortes drásticos nos serviços públicos urbanos, disparada de preços e declínio acentuado do salário real58. Em Kinshasa (“uma aberração ou um sinal do que está para acontecer?”), o assainissement varreu a classe média de funcionários públicos e produziu um “declínio inacreditável do salário real”, que, por sua vez, patrocinou o pesadelo do aumento da criminalidade e das gangues predatórias59.
Em Dar-es-Salaam, as despesas com serviços públicos caíram 10% por pessoa ao ano durante a década de 1980 – na prática, uma demolição do Estado local60. Em Cartum, a liberalização e o ajuste estrutural, de acordo com pesquisadores locais, /fabricaram 1,1 milhão de “novos pobres”, “saídos em sua maioria dos grupos assalariados ou dos funcionários do setor público”61. Em Abidjan, uma das poucas cidades tropicais africanas com um setor fabril importante e serviços urbanos modernos, a submissão ao regime do PAE levou, aqui e ali, à desindustrialização, ao colapso da construção civil e a uma rápida deterioração do transporte público e do saneamento básico62. Na Nigéria de Balogun, a extrema pobreza, cada vez mais urbanizada em Lagos, Ibadan e outras cidades, entrou em metástase e passou de 28% em 1980 para 66% em 1996. “O PNB per capita, hoje de cerca de 260 dólares”, relata o Banco Mundial, “está abaixo do nível da época da independência, há quarenta anos, e abaixo do nível de 370 dólares atingido em 1985.”63
Na América Latina, os PAEs (muitas vezes implementados por ditaduras militares) desestabilizaram a economia rural e arrasaram o emprego e a habitação urbanos. Em 1970, as teorias “foquistas” guevaristas de rebelião rural ainda se adequavam a uma realidade continental em que a pobreza do campo (75 milhões de pobres) ofuscava a das cidades (44 milhões). No entanto, no final da década de 1980, a imensa maioria dos pobres (115 milhões em 1990) morava em colonias e villas miseria urbanas, em vez de fazendas ou aldeias (80 milhões)64.
Enquanto isso, a desigualdade urbana explodia. Em Santiago, a ditadura de Pinochet arrasou favelas e expulsou antigos ocupantes radicais, obrigando as famílias pobres a se tornarem allegadas, amontoando-se – às vezes duas ou três famílias – na mesma moradia alugada. Em Buenos Aires, a participação do decil mais rico na renda total, que era de dez vezes a do decil mais pobre em 1984, aumentou para 23 vezes em 198965. Em Lima, onde o valor do salário mínimo caiu 83% durante a recessão do FMI, o percentual de famílias abaixo da linha de pobreza aumentou de 17% em 1985 para 44% em 199066. No Rio de Janeiro, a desigualdade, medida pelos coeficientes Gini clássicos, disparou de 0,58 em 1981 para 0,67 em 198967. Na verdade, em toda a América Latina a década de 1980 aprofundou os vales e elevou os picos da topografia social mais contrastada do mundo. (Segundo um relatório de 2003 do Banco Mundial, os coeficientes Gini são 10 pontos mais altos na América Latina que na Ásia; 17,5 pontos mais altos que na OCDE; e 20,4 pontos mais altos que na Europa oriental68.)
Em todo o Terceiro Mundo, os choques econômicos dos anos 1980 obrigaram os indivíduos a reagrupar-se em volta dos recursos somados da família e, principalmente, da capacidade de sobrevivência e da engenhosidade desesperada das mulheres. Na China e nas cidades em industrialização do sudeste da Ásia, milhões de moças escravizaram-se às linhas de montagem e à miséria fabril. Na África e na maior parte da América Latina (com exceção das cidades da fronteira norte do México), essa opção não existiu. Em vez disso, a desindustrialização e a dizimação dos empregos masculinos no setor formal obrigaram as mulheres a improvisar novos meios de vida como montadoras pagas por peça, vendedoras de bebidas, camelôs, faxineiras, lavadeiras, catadoras, babás e prostitutas. Na América Latina, onde a participação das mulheres urbanas na força de trabalho sempre foi menor que em outros continentes, o surto de mulheres nas atividades informais terciárias durante a década de 1980 foi especialmente dramático69. Em relação à África, onde o símbolo do setor informal são as mulheres que abrem biroscas e vendem produtos agrícolas nas ruas, Christian Rogerson nos recorda que a maioria dessas trabalhadoras informais não é autônoma nem economicamente independente, mas trabalha para outras pessoas70. (Essas redes onipresentes e cruéis de microexploração, com pobres explorando os muito pobres, costumam ficar ocultas nas descrições do setor informal.)
A pobreza urbana também foi maciçamente feminilizada nos países do antigo Comecon depois da “liberação” capitalista em 1989. No início da década de 1990, a extrema pobreza dos antigos “países de transição” (como a ONU os chama) disparou de 14 milhões de pessoas para 168 milhões: uma pauperização em massa quase sem precedentes na história71. Se, no balanço global, essa catástrofe econômica foi em parte compensada pelo mui louvado sucesso da China na elevação da renda de suas cidades litorâneas, o “milagre” do mercado chinês foi comprado com “um aumento enorme da desigualdade salarial entre os trabalhadores urbanos [...] no período entre 1988 e 1999”. As mulheres e as minorias ficaram particularmente em desvantagem72.
É claro que, em teoria, a década de 1990 deveria ter corrigido os erros dos anos 1980 e permitido às cidades do Terceiro Mundo recuperar o terreno perdido e fechar os abismos de desigualdade criados pelos PAEs. A dor do ajuste seria seguida pelo analgésico da globalização. Com efeito, a década de 1990, como Slums observa ironicamente, foi a primeira em que o desenvolvimento urbano global aconteceu segundo parâmetros quase utópicos de liberdade de mercado neoclássica.
Durante a década de 1990, o comércio continuou a se expandir num ritmo quase sem precedentes; áreas antes vedadas se abriram e as despesas militares diminuíram. [...] Todos os insumos básicos da produção ficaram mais baratos com a queda rápida dos juros, juntamente com o preço das commodities básicas. Os fluxos de capital foram cada vez menos atrapalhados por controles nacionais e puderam encaminhar-se velozmente para as áreas mais produtivas. Sob condições econômicas quase perfeitas, de acordo com a doutrina econômica neoliberal dominante, seria possível imaginar que a década teria prosperidade e justiça social inigualáveis.73
No caso, contudo, a pobreza urbana continuou seu acúmulo incessante, e “a lacuna entre países pobres e ricos aumentou, como acontecera nos vinte anos anteriores, e, na maioria dos países, a desigualdade de renda cresceu ou, no máximo, estabilizou-se”. A desigualdade global, medida pelos economistas do Banco Mundial, atingiu um coeficiente Gini inacreditável de 0,67 no final do século. Matematicamente, era uma situação equivalente àquela em que os dois terços mais pobres do mundo recebessem renda zero, e o terço mais rico, tudo74.
Um excedente de humanidade?
Limpamos nosso caminho perto da cidade, mantendo-nos nele por suas mil brechas de sobrevivência [...]
Patrick Chamoiseau, Texaco (1997)
O tectonismo violento da globalização neoliberal desde 1978 é análogo aos processos catastróficos que, a princípio, deram forma ao “Terceiro Mundo” durante a época do imperialismo vitoriano tardio (1870-1900). Neste último caso, a incorporação forçada ao mercado mundial dos grandes campesinatos de subsistência da Ásia e da África provocou a morte de milhões pela fome e o desenraizamento de outras dezenas de milhões de suas posses tradicionais. O resultado final, também na América Latina, foi uma “semiproletarização” rural: a criação de uma classe enorme de semicamponeses e trabalhadores agrícolas miseráveis sem a segurança existencial da subsistência[75]. (Em conseqüência, o século XX não se tornou uma época de revoluções urbanas, como imaginava o marxismo clássico, mas de levantes rurais e guerras camponesas de libertação nacional inéditos.) Parece que o recente ajuste estrutural provocou uma reconfiguração igualmente fundamental do futuro humano. Como concluem os autores de Slums: “Em vez de serem um foco de crescimento e prosperidade, as cidades tornaram-se o depósito de lixo de um excedente de população que trabalha nos setores informais de comércio e serviços, sem especialização, desprotegido e com baixos salários”. “O crescimento d[este] setor informal”, declaram sem rodeios, “é [...] resultado direto da liberalização.”[76]
Na verdade, a classe trabalhadora informal global (que se sobrepõe mas não é idêntica à população favelada) tem quase um bilhão de pessoas, constituindo a classe social de crescimento mais rápido e mais sem precedentes da Terra. Desde que o antropólogo Keith Hart, que trabalhava em Accra, criou o conceito de “setor informal” em 1973, uma imensa literatura (que, em sua maior parte, não distingue microacumulação de sub-subsistência) enfrentou os formidáveis problemas teóricos e empíricos envolvidos no estudo das estratégias de sobrevivência dos pobres urbanos77. Há, no entanto, o consenso básico de que a crise da década de 1980 inverteu as posições estruturais relativas dos setores formal e informal, promovendo a busca informal da sobrevivência como novo meio de vida principal da maioria das cidades do Terceiro Mundo.
Alejandro Portes e Kelly Hoffman avaliaram recentemente o impacto geral dos PAEs e da liberalização sobre a estrutura de classes urbana e latino-americana a partir da década de 1970. De modo coerente com as conclusões da ONU, verificaram que, desde então, tanto os funcionários públicos quanto o proletariado formal se reduziram em todos os países da região. Em contraste, o setor informal da economia, junto com a desigualdade social geral, expandiu-se de forma dramática.
Diversamente de alguns pesquisadores, eles fazem uma distinção fundamental entre a pequena burguesia informal (“a soma dos donos de microempresas informais, que empregam menos de cinco trabalhadores, mais os profissionais e técnicos que trabalham por conta própria”) e o proletariado informal (“a soma dos trabalhadores autônomos, menos profissionais liberais e técnicos, com empregados domésticos e trabalhadores pagos e não-pagos de microempresas informais”).
Demonstram que esse primeiro estrato, os “microempresários” tão louvados nas escolas de administração norte-americanas, costumam ser profissionais desalojados do setor público e trabalhadores especializados demitidos. Desde a década de 1980, cresceram de 5% para 10% da população urbana economicamente ativa, tendência que reflete “o empreendedorismo forçado imposto aos ex-assalariados pelo declínio do emprego no setor formal”78.
No geral, de acordo com Slums, os trabalhadores informais são cerca de dois quintos da população economicamente ativa do mundo em desenvolvimento79. Segundo os pesquisadores do Banco Interamericano de Desenvolvimento, a economia informal emprega atualmente 57% da força de trabalho latino-americana e oferece quatro de cada cinco novos “empregos”80. Outras fontes afirmam que mais da metade dos indonésios urbanos e 65% dos moradores de Daca subsistem no setor informal81. Do mesmo modo, Slums cita pesquisas que comprovam que a atividade econômica informal responde por 33% a 40% do emprego urbano na Ásia, 60% a 75% na América Central e 60% na África82. Com efeito, nas cidades subsaarianas a criação de “empregos formais” praticamente deixou de existir. Um estudo da OIT sobre o mercado de trabalho urbano do Zimbábue durante o ajuste estrutural “estagflacionário” do início dos anos 1990 descobriu que o setor formal só criava 10 mil empregos por ano, em contrapartida a uma força de trabalho urbana que crescia em mais de 300 mil indivíduos por ano83. Slums estima, ainda, que um total de 90% das novas vagas urbanas da África na próxima década virão, de algum modo, do setor informal84.
Os gurus do moto perpétuo do capitalismo, como o incontrolável Hernando de Soto, podem ver essa população enorme de trabalhadores marginalizados, funcionários públicos demitidos e ex-camponeses como, na verdade, uma colméia frenética de ambiciosos empreendedores desejosos de direitos formais de propriedade e espaço competitivo não-regulamentado, mas faz bem mais sentido tomar a maioria dos trabalhadores informais como desempregados “ativos”, que não têm escolha senão subsistir de algum jeito para não passar fome85 . É pouco provável que os estimados 100 milhões de crianças de rua – que nos desculpe o señor De Soto – comecem a emitir ações e negociar obrigações futuras sobre a venda de chicletes86. E a maior parte dos 70 milhões de “trabalhadores flutuantes” da China, que vivem furtivamente na periferia urbana, não vai acabar se capitalizando como pequenos empreiteiros nem se integrará à classe trabalhadora urbana formal. E a classe trabalhadora informal, submetida por toda parte à micro e à macroexploração, está, quase universalmente, privada da proteção das leis e dos padrões trabalhistas.
Além disso, como defende Alain Dubresson no caso de Abidjan, “o dinamismo dos ofícios braçais e do pequeno comércio depende em boa medida da demanda do setor assalariado”. Ele lança um alerta contra a “ilusão” cultivada pela OIT e pelo Banco Mundial de que “o setor informal pode substituir com eficiência o setor formal e promover um processo de acumulação suficiente para uma cidade com mais de 2,5 milhões de habitantes”87. Seu aviso é repetido por Christian Rogerson, que, distinguindo (como Portes e Hoffman) microempresas “de sobrevivência” e “de crescimento”, escreve sobre as primeiras: “Em termos gerais, a renda gerada por essas empresas, cuja maioria tende a ser administrada por mulheres, costuma ficar abaixo até do padrão de vida mínimo e envolve pouco investimento de capital, praticamente nenhuma habilidade especializada e oportunidades apenas restritas de crescer e se transformar num negócio viável”. Com até os salários urbanos do setor formal da África baixos a ponto de os economistas não conseguirem imaginar como os trabalhadores sobrevivem (o chamado “enigma salarial”), o setor terciário informal tornou-se uma arena de extrema competição darwinista entre os pobres. Rogerson cita os exemplos do Zimbábue e da África do Sul, onde os nichos informais controlados por mulheres – spazas (lojinhas informais que vendem de tudo) e biroscas – estão hoje apinhados e sofrem de queda de lucratividade88.
Em outras palavras, a tendência macroeconômica real do trabalho informal é a reprodução da pobreza absoluta. Mas, se o proletariado informal não é a menorzinha das pequenas burguesias, também não é um “exército de reserva de mão-de-obra” nem um “lumpemproletariado”, em nenhum dos sentidos obsoletos do século XIX. Parte dele, é verdade, é uma força de trabalho invisível da economia formal, e numerosos estudos já mostraram como as redes de terceirização da Wal-Mart e de outras megaempresas penetram profundamente na miséria das colonias e chawls. Mas no fim das contas a maior parte dos favelados urbanos, radical e verdadeiramente, não encontra lar na economia internacional contemporânea. É claro que as favelas se originam no campo global onde, como nos recorda Deborah Bryceson, a competição desigual com a grande escala da agroindústria vem “arrebentando as costuras” da sociedade rural tradicional89. Conforme as áreas rurais perdem sua “capacidade de armazenamento”, as favelas tomam seu lugar, e a “involução” urbana substitui a involução rural como ralo da mãode- obra excedente, que só consegue acompanhar a subsistência com façanhas cada vez mais heróicas de auto-exploração e uma subdivisão competitiva ainda maior dos nichos de sobrevivência já densamente povoados90. A “Modernização”, o “Desenvolvimento” e, agora, o “Mercado” irrestrito já tiveram seus bons dias.
A força de trabalho de um bilhão de pessoas foi expelida do sistema mundial, e quem consegue imaginar algum cenário plausível, sob os auspícios neoliberais, que a reintegre como trabalhadores produtivos ou consumidores em massa?
Marx e o espírito santo
[Diz o Senhor:] Virá o tempo em que o pobre dirá que nada tem para comer e o trabalho desaparecerá [...] Isso fará o pobre partir para esses lugares e invadir para ter comida. Isso fará o rico sair com sua arma e declarar guerra ao homem que trabalha [...] haverá sangue nas ruas como uma chuva que se despeja dos céus.
Profecia do "Avivamento da rua Azusa", de 1906
Portanto, a recente triagem capitalista da humanidade já aconteceu. Além disso, o crescimento global de um vasto proletariado informal é uma evolução estrutural totalmente original, não prevista pelo marxismo clássico nem pelos gurus da modernização. Na verdade a favela desafia a teoria social a perceber a novidade de um verdadeiro resíduo global sem o poder econômico estratégico da mão-de-obra socializada, mas maciçamente concentrado num mundo de barracos em torno dos enclaves fortificados dos ricos urbanos.
É claro que a tendência à involução urbana já existia durante o século XIX. As revoluções industriais européias foram incapazes de absorver toda a oferta de mão-de-obra rural desalojada, sobretudo depois que a agricultura continental sofreu a competição devastadora das pradarias norte-americanas a partir da década de 1870. Mas a migração em massa para as sociedades coloniais das Américas e da Oceania, assim como para a Sibéria, constituiu uma válvula de segurança dinâmica que impediu tanto o surgimento de mega-Dublins quanto a disseminação do tipo de anarquismo da classe baixa que se enraizara nas partes mais empobrecidas do sul da Europa. Hoje, pelo contrário, o excesso de mão-de-obra enfrenta barreiras sem precedentes – uma “grande muralha” literal da imposição de uma fronteira de alta tecnologia – que bloqueiam a migração em grande escala para os países ricos. Do mesmo modo, os controvertidos programas de reassentamento populacional em regiões de “fronteira” como Amazônia, Tibete, Kalimantan e Irian Jaya produzem devastação ambiental e conflitos étnicos sem reduzir de forma substancial a pobreza urbana no Brasil, na China e na Indonésia.
Assim, só resta a favela como solução totalmente franqueada ao problema de armazenar o excedente de humanidade do século XXI. Mas não são as grandes favelas – como já imaginara a burguesia vitoriana apavorada – vulcões esperando para entrar em erupção? Ou será que a impiedosa competição darwinista, em que um número cada vez maior de pobres compete pelos mesmos restos informais, ainda garante a violência comunitária que consome a si mesma como forma mais elevada de involução urbana? Até que ponto o proletariado informal possui o talismã marxista mais poderoso, a “atuação histórica”? Pode a mão-de-obra desincorporada ser reincorporada a um projeto emancipador global? Ou a sociologia do protesto na megacidade empobrecida é uma regressão à multidão urbana préindustrial, que explodia de quando em quando nas crises de consumo mas, fora isso, era fácil de manobrar com o clientelismo, o espetáculo populista e os apelos à unidade étnica? Ou há algum novo tema histórico inesperado, à moda de Hardt e Negri, arrastando-se rumo à supercidade?
Na verdade, a literatura atual sobre a pobreza e o protesto urbano oferece poucas respostas a perguntas de tamanho alcance. Alguns pesquisadores, por exemplo, questionariam se os favelados etnicamente diferentes ou os trabalhadores informais economicamente heterogêneos chegam a constituir uma verdadeira “classe em si mesma”, quanto mais uma “classe em si mesma” potencialmente ativista. Com certeza, o proletariado informal traz “ligações radicais”, no sentido marxista de ter pouco ou nenhum interesse oculto na preservação do modo de produção existente. Mas os migrantes rurais desenraizados e os trabalhadores informais, tendo sido em grande parte desapossados da força de trabalho fungível ou reduzidos ao serviço doméstico na casa dos ricos, têm pouco acesso à cultura do trabalho coletivo ou da luta de classes em grande escala. Seu estágio social, necessariamente, tem de ser o da favela ou da feira, não o da fábrica ou da linha de montagem internacional.
As lutas dos trabalhadores informais – como enfatiza John Walton numa resenha recente da pesquisa sobre movimentos sociais em cidades pobres – tenderam, acima de tudo, a ser episódicas e descontínuas. Também costumam concentrar-se em questões imediatas de consumo: invasões de terra em busca de moradia acessível e revoltas contra o aumento dos preços dos alimentos ou dos serviços públicos. No passado, pelo menos, “os problemas urbanos das sociedades em desenvolvimento foram mais comumente mediados pelas relações clientelistas do que pelo ativismo popular”91 . Desde a crise da dívida externa na década de 1980, os líderes neopopulistas da América Latina obtiveram marcante sucesso na exploração do desejo desesperado dos pobres urbanos de ter estruturas de vida cotidiana mais estáveis e previsíveis. Embora Walton não afirme de modo explícito, o setor informal urbano foi ideologicamente promíscuo no apoio a salvadores populistas: uniu-se a Fujimori no Peru, mas na Venezuela abraçou Chávez92 . Na África e no sul da Ásia, por outro lado, o clientelismo urbano iguala-se, com demasiada freqüência, ao domínio de fanáticos étnico-religiosos e ao pesadelo de suas ambições de limpeza étnica. Os exemplos mais famosos são as milícias antimuçulmanas do Congresso do Povo Oodua, em Lagos, e o movimento semifascista Shiv Sena, em Bombaim93 .
Essas sociologias de protesto do século XVIII persistirão até meados do XXI? É provável que o passado seja um mau guia para o futuro. A história não é uniformitarista. O novo mundo urbano vem evoluindo com rapidez extraordinária e muitas vezes em direções imprevistas. Por toda parte a acumulação contínua de pobreza solapa a segurança da vida e impõe desafios ainda mais extraordinários à engenhosidade econômica dos pobres. Talvez haja um ponto de virada no qual a poluição, a aglomeração, a ganância e a violência da vida urbana cotidiana vençam afinal a civilidade específica e as redes de sobrevivência da favela. Com certeza, no antigo mundo rural havia patamares, muitas vezes calibrados pela fome, que levavam diretamente à erupção social. Mas ninguém sabe ainda em que temperatura social as novas cidades da pobreza entram em combustão espontânea.
Na verdade, pelo menos por enquanto, Marx cedeu o palco histórico a Maomé e ao Espírito Santo. Se Deus morreu nas cidades da Revolução Industrial, surgiu de novo nas cidades pós-industriais do mundo em desenvolvimento. O contraste entre as culturas da pobreza urbana nas duas épocas é extraordinário. Como demonstrou Hugh McLeod em seu estudo magistral sobre a religião da classe operária vitoriana, Marx e Engels acertaram bastante em sua crença de que a urbanização estava secularizando a classe trabalhadora. Embora Glasgow e Nova York fossem, em parte, exceções, “a linha de interpretação que associa o afastamento da igreja da classe trabalhadora com o aumento da consciência de classe é, em certo sentido, incontestável”. Conquanto as pequenas igrejas e as seitas dissidentes prosperassem nas favelas, a principal corrente era a descrença ativa ou passiva.
Já na década de 1880, Berlim escandalizava os estrangeiros como “a cidade menos religiosa do mundo”, e, em Londres, o comparecimento médio dos adultos às igrejas do East End proletário e das Docklands, em 1902, era de meros 12% (e, ainda assim, na maioria de católicos)94. Em Barcelona, claro, a classe operária anarquista saqueou as igrejas durante a Semana Trágica, enquanto nas favelas de São Petersburgo, Buenos Aires e até em Tóquio os trabalhadores militantes abraçaram avidamente as novas fés de Darwin, Kropotkin e Marx.
Hoje, pelo contrário, o islamismo populista e o cristianismo pentecostal (e, em Bombaim, o culto de Shivaji) ocupam um espaço social análogo àquele do socialismo e do anarquismo no início do século XX. No Marrocos, por exemplo, onde todo ano um contingente de meio milhão de emigrantes rurais é absorvido pelas cidades apinhadas e onde metade da população tem menos de 25 anos, movimentos islamistas como o “Justiça e Bem-Estar”, fundado pelo xeque Abdessalam Yassin, tornaram-se o verdadeiro governo das favelas, organizando escolas noturnas, fornecendo apoio legal às vítimas de agressões do Estado, comprando remédios para os doentes, subsidiando peregrinações e pagando funerais.
Como admitiu recentemente o primeiro-ministro Abderrahman Yussufi – líder socialista que já foi exilado pela monarquia – a Ignacio Ramonet: “Nós [a esquerda] nos aburguesamos. Isolamo-nos do povo. Precisamos reconquistar os bairros populares. Os islamistas seduziram o nosso eleitorado natural. Prometem-lhes o paraíso na Terra”. Por outro lado, um líder islamista disse a Ramonet: “Diante da negligência do Estado e em face da brutalidade da vida cotidiana, as pessoas descobrem, graças a nós, a solidariedade, a auto-ajuda, a fraternidade. Entendem que islamismo é humanismo”95.
A contrapartida do islamismo populista nas favelas da América Latina e em boa parte da África subsaariana é o pentecostalismo. É claro que hoje o cristianismo, em sua maioria, é uma religião não-ocidental (dois terços de seus seguidores vivem fora da Europa e da América do Norte), e o pentecostalismo é seu missionário mais dinâmico nas cidades da pobreza. Na verdade, a especificidade do pentecostalismo é tal que é a primeira grande religião mundial a ter crescido quase inteiramente no solo da favela urbana moderna. Com raízes no antigo metodismo extático e na espiritualidade afro-americana, o pentecostalismo “despertou” quando o Espírito Santo concedeu o dom das línguas aos participantes de uma maratona inter-racial de oração num bairro pobre de Los Angeles (a rua Azusa), em 1906. Unidos em torno do batismo espiritual, da cura milagrosa, de pastores carismáticos e de uma crença pré-milenar numa iminente guerra mundial entre capital e trabalho, o pentecostalismo norte-americano primitivo, como observaram repetidas vezes os historiadores religiosos, nasceu como “democracia profética”, cujos públicos rural e urbano sobrepunham-se, respectivamente, aos do populismo e do IWW96. Na verdade, como os agitadores do IWW, seus primeiros missionários na América Latina e na África “viviam muitas vezes em extrema pobreza, com pouco ou nenhum dinheiro, raramente sabendo onde passariam a noite ou como conseguiriam a refeição seguinte”97. Também não deixaram nada a dever ao IWW em suas denúncias veementes das injustiças do capitalismo industrial e sua destruição inevitável.
Sintomaticamente, a primeira congregação brasileira, num bairro operário anarquista de São Paulo, foi fundada por um artesão imigrante italiano que trocara Malatesta pelo Espírito Santo em Chicago98. Na África do Sul e na Rodésia, o pentecostalismo criou suas primeiras cabeças-de-ponte nos complexos mineiros e nos bairros pobres, onde, segundo Jean Comaroff, “parecia harmonizar-se com as noções autóctones de forças espirituais pragmáticas e compensar a despersonalização e a impotência da vivência da mão-de-obra urbana”99. Concedendo um papel maior às mulheres do que as outras Igrejas cristãs e dando imenso apoio à abstinência e à frugalidade, o pentecostalismo – como descobriu R. Andrew Chesnut nas baixadas de Belém do Pará – sempre exerceu atração especial sobre “o estrato mais empobrecido das classes empobrecidas”: as esposas abandonadas, as viúvas e as mães solteiras100. Desde 1970, e principalmente graças ao seu encanto para as mulheres da favela e sua fama de não escolher cor, cresceu e tornou-se, comprovadamente, o maior movimento auto-organizado dos pobres urbanos do planeta101.
Embora as afirmações recentes sobre a existência de “mais de 533 milhões de pentecostais/carismáticos no mundo em 2002” sejam provavelmente exageradas, não é nada difícil que alcancem metade desse número. Aceita-se em geral que 10% da América Latina é pentecostal (cerca de 40 milhões de pessoas) e que o movimento foi a reação cultural isolada mais importante à urbanização explosiva e traumática102. É claro que, quando o pentecostalismo se globalizou, diferenciou-se em correntes e sociologias distintas. Mas embora na Libéria, em Moçambique e na Guatemala as igrejas com patrocínio norte-americano tenham sido vetores da ditadura e da repressão e algumas congregações dos Estados Unidos tenham hoje se enobrecido como a principal linha de fundamentalismo da classe média suburbana, a onda missionária do pentecostalismo no Terceiro Mundo continua mais próxima do espírito milenarista original da rua Azusa103. Acima de tudo, como descobriu Chesnut no Brasil, “o pentecostalismo [...] continua a ser uma religião da periferia informal” (e em Belém, especificamente, “dos mais pobres dentre os pobres”). No Peru, onde o pentecostalismo vem crescendo de forma quase exponencial nas vastas barriadas de Lima, Jefrey Gamarra defende que o crescimento das seitas e da economia informal “são conseqüência e resposta um do outro”104. Paul Freston acrescenta que “é a primeira religião de massa autônoma da América Latina [...] Os líderes podem não ser democráticos, mas vêm da mesma classe social”105.
Ao contrário do islamismo populista, que enfatiza a continuidade da civilização e a solidariedade da fé entre as classes, o pentecostalismo, seguindo a tradição de sua origem afro-americana, mantém uma identidade fundamentalmente exílica. Embora, assim como o islamismo das favelas, o pentecostalismo crie uma relação eficiente com a necessidade de sobrevivência da classe trabalhadora informal (organizando redes de auto-ajuda para as mulheres pobres, oferecendo a cura espiritual como paramedicina, auxiliando a recuperação de alcoólatras e dependentes de drogas, protegendo as crianças das tentações das ruas e assim por diante), sua premissa básica é a de que o mundo urbano é corrupto, injusto e impossível de reformar. Ainda não se sabe se – como defendeu Jean Comaroff em seu livro sobre as Igrejas sionistas africanas (muitas das quais são hoje pentecostais) – essa religião dos “marginalizados dos bairros pobres da modernidade neocolonial” é na verdade uma resistência “mais radical” do que a “participação na política sindical formal”106. Mas, com a esquerda ainda muito ausente da favela, a escatologia do pentecostalismo rejeita de forma admirável o destino inumano da cidade do Terceiro Mundo para o qual Slums alerta. Também santifica aqueles que, em todos os sentidos estruturais e existenciais, realmente vivem no exílio.
Notas
1 UN Population Division, World urbanization prospects, the 2001 revision (Nova York, 2002).
2 Population Information Program, Population reports: meeting the urban challenge, v. XXX, n. 4, outono [quarto trimestre] de 2002, p. 1.
3 Wolfgang Lutz, Warren Sandeson e Sergei Scherbov, “Doubling of world population unlikely”, Nature, n. 387, 19/6/1997, p. 803-4. No entanto, a população da África subsaariana triplicará, e a da Índia dobrará.
4 Global Urban Observatory, Slums of the world: the face of urban poverty in the new millenium? (Nova York, 2003), p. 10.
5 Embora não se duvide da velocidade da urbanização global, a taxa de crescimento de cidades específicas pode frear-se repentinamente com o atrito do tamanho e da aglomeração. Um caso famoso de uma dessas “reversões de polarização” é a Cidade do México, que todos previam que atingiria 25 milhões de habitantes na década de 1990 (a população atual é, provavelmente, de 18 ou 19 milhões). Ver Yue-man Yeung, “Geography in an age of mega-cities”, International Social Sciences Journal, n. 151, 1997, p. 93.
6 Ver o ponto de vista de Yue-man Yeung, “Viewpoint: integration of the Pearl River delta”, International Development Planning Review, v. 25, n. 3, 2003.
7 Far Eastern Economic Review, Asia 1998 Yearbook, p. 63.
8 UN-Habitat, The challenge of the slums: global report on human settlements 2003 (Londres, 2003), p. 3.
9 Gregory Guldin, What’s a peasant to do: village becoming town in Southern China (Boulder, Colorado, 2001), p. 13.
10 Miguel Villa e Jorge Rodriguez, “Demographic trends in Latin America’s metropolises, 1950-1990”, em Alan Gilbert (org.), The mega-city in Latin America (Tóquio, 1996), p. 33-4.
11 Guldin, Peasant, cit., p. 14, 17. Ver também Jing Neng Li, “Structural and spatial economic changes and their effects on recent urbanization in China”, em Gavin Jones e Pravin Visaria (orgs.), Urbanization in large developing countries (Oxford, 1997), p. 44.
12 Ver T. McGee, “The emergence of Desakota regions in Asia: expanding a hypothesis”, em Northon Ginsburg, Bruce Koppell e T. McGee (orgs.), The extended metropolis: settlement transition in Asia (Honolulu, 1991).
13 Yue-man Yeung e Fu-chen Lo, “Global restructuring and emerging urban corridors in Pacific Asia”, em Lo e Yeung (orgs.), Emerging world cities in Pacific Asia (Tóquio, 1996), p. 41.
14 Guldin, Peasant, cit., p. 13.
15 Wang Mengkui, assessor do Conselho de Estado, citado no Financial Times, 26 de novembro de 2003. Desde as reformas de mercado do final da década de 1970, estima-se que quase 300 milhões de chineses mudaram-se das áreas rurais para as cidades. Espera-se que mais 250 ou 300 milhões os sigam nas próximas décadas (Financial Times, 16/12/2003).
16 Josef Gugler, “Introduction – II. Rural-urban migration”, em Gugler (org.), Cities in the developing world: issues, theory and policy (Oxford, 1997), p. 43. Para uma visão contrária, que contesta os dados geralmente aceitos do Banco Mundial e da ONU sobre as taxas de urbanização elevadas e contínua da década de 1980, ver Deborah Potts, “Urban lives: adopting new strategies and adapting rural links”, em Carole Rakodi (org.), The urban challenge in Africa: growth and management of its large cities (Tóquio, 1997), p. 463-73.
17 David Simon, “Urbanization, globalization and economic crisis in Africa”, em Rakodi, Urban challenge, cit., p. 95.
18 Ver Josef Gugler, “Overurbanization reconsidered”, em Gugler, Cities in the developing world, cit., p. 114-23. Em contraste, a economia anterior dominante na União Soviética e na China maoísta restringia a migração interna para as cidades e, assim, tendia à “suburbanização”.
19 Prefácio de Jacinta Prunty, Dublin slums 1800-1925: a study in Urban Geography (Dublin, 1998), p. IX.
20 “Assim, parece que, nos países de baixa renda, uma queda significativa da renda urbana talvez não produza necessariamente, a curto prazo, o declínio da migração rural-urbana” (Nigel Harris, “Urbanization, economic development and policy in developing countries”, Habitat International, v. 14, n. 4, 1990, p. 21-2).
21 Sobre a urbanização no Terceiro Mundo e a crise global da dívida externa, ver York Bradshaw e Rita Noonan, “Urbanization, economic growth, and women’s labour-force participation”, em Gugler, Cities in the developing world, cit., p. 9-10.
22 Slums, cit.
23 Branko Milanovic, True world income distribution 1988 and 1993, Banco Mundial (Nova York, 1999). Milanovic e seu colega Schlomo Yitzhaki foram os primeiros a calcular a distribuição de renda mundial com base em dados de pesquisas com famílias de cada país.
24 O Unicef, para ser justo, criticou durante anos o FMI, destacando que “centenas de milhares de crianças do mundo em desenvolvimento deram a vida para pagar a dívida de seus países”. Ver The state of the world’s children (Oxford, 1989), p. 30.
25 Slums, cit., p. 6.
26 Supõe-se que um estudo assim examinaria, de um lado, os riscos urbanos e o colapso da infr estrutura e, de outro, o impacto da mudança climática sobre a agricultura e a migração.
27 Prunty, Dublin slums, cit., p. 2.
28 Slums, cit., p. 12.
29 Slums, cit., p. 2-3.
30 Ver A. Oberai, Population growth, employment and poverty in Third World mega-cities (Nova York, 1993), p. 28. Em 1980, a coorte 0-19 das grandes cidades da OCDE era de 19% a 28% da população; nas megacidades do Terceiro Mundo, de 40% a 53%.
31 Slums of the world, cit., p. 33-4.
32 Simon, “Urbanization in Africa”, cit., p. 103; e Jean-Luc Piermay, “Kinshasa: a reprieved megacity?”, em Rakodi, Urban challenge, cit., p. 236.
33 Sabir Ali, “Squatters: slums within slums”, em Prodipto Roy e Shangon Das Gupta (orgs.), Urbanization and slums (Délhi, 1995), p. 55-9.
34 Jonathan Rigg, Southeast Asia: a region in transition (Londres, 1991), p. 143.
35 Slums of the world, cit., p. 34.
36 Salah El-Shakhs, “Toward appropriate urban development policy in emerging mega-cities in Africa”, em Rakodi, Urban challenge, cit., p. 516.
37 Daily Times of Nigeria, 20/10/2003. Lagos cresceu de forma mais explosiva que todas as outras grandes cidades do Terceiro Mundo, com exceção de Daca. Em 1950, tinha apenas 300 mil habitantes, mas depois cresceu quase 10% ao ano até 1980, quando reduziu o ritmo para cerca de 6% – ainda bem veloz – durante os anos de reajuste estrutural.
38 Amy Otchet, “Lagos: the survival of the determined”, Unesco Courier, junho de 1999.
39 Slums, cit., p. 50.
40 Winter King, “Illegal settlements and the impact of titling programmes”, Harvard Law Review, v. 44, n. 2, setembro de 2003, p. 471.
41 Nações Unidas, Karachi, série “Population growth and policies in megacities” (Nova York, 1988), p. 19.
42 A ausência de infra-estrutura, no entanto, cria incontáveis nichos para trabalhadores informais: vender água, transportar excrementos, reciclar lixo, fornecer gás de cozinha, e assim por diante.
43 World Resources Institute, World resources: 1996-97 (Oxford, 1996), p. 21.
44 Slums of the world, cit., p. 25.
45 Slums, cit., p. 99.
46 Slums of the world, cit., p. 12.
47 Encontra-se um exemplar estudo de caso em Greg Bankoff, “Constructing vulnerability: the historical, natural and social generation of flooding in Metropolitan Manila”, Disasters, v. 27, n. 3, 2003, p. 224-38.
48 Otchet, “Lagos”; e Li Zhang, Strangers in the city: reconfigurations of space, power and social networks within China’s floating population (Stanford, 2001); Alan Gilbert, The Latin American city (Nova York, 1998), p. 16.
49 Martin Ravallion, On the urbanization of poverty, artigo do Banco Mundial, 2001.
50 Slums, cit., p. 28.
51 Slums of the world, cit., p. 12.
52 Fidelis Odun Balogun, Adjusted lives: stories of structural adjustment (Trenton, New Jersey, 1995), p. 80.
53 The challenge of slums, cit., p. 30. Os teóricos do “viés urbano”, como Michael Lipton, que inventou a expressão em 1977, argumentam que a agricultura tende a ser subcapitalizada nos países em desenvolvimento, e as cidades, relativamente “sobre-urbanizadas”, porque as políticas fiscais e financeiras favorecem a elite urbana e distorcem o fluxo dos investimentos. No limite, as cidades seriam vampiros do campo. Ver Lipton, Why poor people stay poor: a study of urban bias in world development (Cambridge, 1977).
54 Citado em Tony Killick, “Twenty-five years in development: the rise and impending decline of market solutions”, Development Policy Review, v. 4, 1986, p. 101.
55 Deborah Bryceson, “Disappearing peasantries? Rural labour redundancy in the neoliberal era and beyond”, em Bryceson, Cristóbal Kay e Jos Mooij (orgs.), Disappearing peasantries?: rural labour in Africa, Asia and Latin America (Londres, 2000), p. 304-5.
56 Ha-Joon Chang, “Kicking away the ladder. Infant industry promotion in historical perspective”, Oxford Development Studies, v. 31, n. 1, 2003, p. 21. “A renda per capita dos países em desenvolvimento cresceu 3% ao ano entre 1960 e 1980, mas somente cerca de 1,5% entre 1980 e 2000 [...] Os economistas neoliberais, portanto, defrontam-se aqui com um paradoxo. Os países em desenvolvimento cresceram muito mais depressa quando usaram ‘más’ políticas durante 1960-90 do que quando usaram políticas ‘boas’ (ou pelo menos ‘melhores’) nas duas décadas seguintes” (p. 28).
57 Slums, cit., p. 48.
58 Carole Rakodi, “Global forces, urban change, and urban management in Africa”, em Rakodi, Urban challenge, cit., p. 50, 60-1.
59 Piermay, “Kinshasa”, cit., p. 235-6; “Megacities”, Time, 11/1/1993, p. 26.
60 Michael Mattingly, “The role of the government of urban areas in the creation of urban poverty”, em Sue Jones e Nici Nelson (orgs.), Urban poverty in Africa (Londres, 1999), p. 21.
61 Adil Ahmad e Ata El-Batthani, “Poverty in Khartoum”, Environment and Urbanization, v. 7, n. 2, outubro de 1995, p. 205.
62 Alain Dubresson, “Abidjan”, em Rakodi, Urban challenge, cit., p. 261-3.
63 Banco Mundial, Nigeria: country brief, setembro de 2003.
64 ONU, World urbanization prospects, p. 12.
65 Luis Ainstein, “Buenos Aires: a case of deepening social polarization”, em Gilbert, Mega-city in Latin America, cit., p. 139.
66 Gustavo Riofrio, “Lima: mega-city and mega-problem”, em Gilbert, Mega-city in Latin America, cit., p. 159; e Gilbert, Latin American city, cit., p. 73.
67 Hamilton Tolosa, “Rio de Janeiro: urban expansion and structural change”, em Gilbert, Megacity in Latin America, cit., p. 211.
68 Banco Mundial, Inequality in Latin America and the Caribbean (Nova York, 2003).
69 Orlandina de Oliveira e Bryan Roberts, “The many roles of the informal sector in development”, em Cathy Rakowski (org.), Contrapunto: the informal sector debate in Latin America (Albany, 1994), p. 64-8.
70 Christian Rogerson, “Globalization or informalization? African urban economics in the 1990s”, em Rakodi, Urban challenge, cit., p. 348.
71 Slums, cit., p. 2.
72 Albert Park et al., “The growth of wage inequality in urban China, 1988 to 1999”, documento estimativo do Banco Mundial, fevereiro de 2003, p. 27 (citação); e John Knight e Linda Song, “Increasing urban wage inequality in China”, Economics of Transition, v. II, n. 4, 2003, p. 616 (discriminação).
73 Slums, cit., p. 34.
74 Shaohua Chen e Martin Ravallion, How did the world’s poorest fare in the 1990s?, documento do Banco Mundial, 2000.
75 Ver meu Late Victorian holocausts: El Niño famines and the making of the Third World (Londres, 2001), principalmente as páginas 206-9.
76 Slums, cit., p. 40, 46.
77 Keith Hart, “Informal income opportunities and urban employment in Ghana”, Journal of Modern African Studies, v. II, 1973, p. 61-89.
78 Alejandro Portes e Kelly Hoffman, “Latin American class structures: their composition and change during the neoliberal era”, Latin American Research Review, v. 38, n. 1, 2003, p. 55.
79 Slums, cit., p. 60.
80 Citado em Economist, 21/3/1998, p. 37.
81 Dennis Rondinelli e John Kasarda, “Job creation needs in Third World cities”, em Kasarda e
Allan Parnell (orgs.), Third World cities: problems, policies and prospects (Newbury Park, Califórnia, 1993), p. 106-7.
82 Slums, cit., p. 103.
83 Guy Mhone, “The impact of structural adjustment on the urban informal sector in Zimbabwe”, Issues in development, documento para discussão n. 2, Organização Internacional do Trabalho (Genebra, sem data), p. 19.
84 Slums, cit., p. 104.
85 Orlandina de Oliveira e Bryan Roberts enfatizam corretamente que os estratos inferiores da força de trabalho urbana deveriam ser identificados “não só pelo título de suas ocupações ou pelo emprego formal ou informal, mas pela estratégia da família para obter renda”. A massa de pobres urbanos só consegue existir mediante a “soma dos rendimentos, a divisão da moradia, da alimentação e de outros recursos” com familiares ou conterrâneos (“Urban development and social inequality in Latin America”, em Gugler, Cities in the developing world, cit., p. 290).
86 Estatística sobre crianças de rua: Natural History, julho de 1997, p. 4.
87 Dubresson, “Abidjan”, cit., p. 263.
88 Rogerson, “Globalization or informalization?”, cit., p. 347-51.
89 Bryceson, “Disappearing peasantries”, cit., p. 307-8.
90 Na definição original e inimitável de Clifford Geertzs, “involução” é “a ultrapassagem de uma forma estabelecida, de modo a torná-la rígida mediante a superelaboração interna dos detalhes”. Agricultural involution: social development and economic change in two Indonesian towns (Chicago, 1963), p. 82. De forma mais prosaica, a “involução” agrícola ou urbana pode ser descrita como o aumento incessante da auto-exploração da mão-de-obra (mantendo fixos os outros fatores), que continua, apesar da redução do rendimento, enquanto produzir algum retorno ou incremento.
91 John Walton, “Urban conflict and social movements in poor countries: theory and evidence of collective action”, trabalho apresentado na “Cities in Transition Conference”, Humboldt University, Berlim, julho de 1987.
92 Kurt Weyland, “Neopopulism and neoliberalism in Latin America: how much affinity?”, Third World Quarterly, v. 24, n. 6, 2003, p. 1095-115.
93 Para uma descrição fascinante, mas assustadora, da ascensão do Shiv Sena em Bombaim à custa das antigas políticas comunistas e sindicalistas, ver Thomas Hansen, Wages of violence: naming and identity in postcolonial Bombay (Princeton, 2001). Ver também Veena Das (org.), Mirrors of violence: communities, riots and survivors in South Asia (Nova York, 1990).
94 Hugh McLeod, Piety and poverty: working-class religion in Berlin, London and New York, 1870- 1914 (Nova York, 1996), p. XXV, 6, 32.
95 Ignacio Ramonet, “Le Maroc indécis”, Le Monde Diplomatique, julho de 2000, p. 12-3. Outro ex-esquerdista disse a Ramonet: “Quase 65% da população vive abaixo da linha da pobreza. As pessoas das bidonvilles estão inteiramente isoladas das elites. Vêem as elites da maneira como costumavam ver os franceses”.
96 Em sua controvertida interpretação sociológica do pentecostalismo, Robert Mapes Anderson afirmou que “a intenção inconsciente [do pentecostalismo]”, como a dos outros movimentos milenaristas, era na verdade “revolucionária” (Vision of the disinherited: the making of American pentecostalism [Oxford, 1979], p. 222).
97 Anderson, Vision of the disinherited, cit., p. 77.
98 R. Andrew Chesnut, Born again in Brazil: the pentecostal boom and the pathogens of poverty (New Brunswick, 1997), p. 29. Sobre as ligações históricas do pentecostalismo com o anarquismo no
Brasil, ver Paul Freston, “Pentecostalism in Latin America: characteristics and controversies”, Social Compass, v. 45, n. 3, 1998, p. 342.
99 David Maxwell, “Historicizing christian independency: the Southern Africa pentecostal movement, c. 1908-60”, Journal of African History, n. 40, 1990, p. 249; e Jean Comaroff, Body of power, spirit of resistance (Chicago, 1985), p. 186.
100 Chesnut, Born again, cit., p. 61. Na verdade, Chesnut descobriu que o Espírito Santo não só movia as línguas como melhorava o orçamento familiar. “Por eliminar despesas associadas ao complexo de prestígio masculino, os assembleianos conseguiam subir das fileiras inferior e mediana da pobreza para os seus escalões mais altos, e alguns quadrangulares migraram da pobreza [...] para as faixas inferiores da classe média” (ibidem, p. 18).
101 “Em toda a história humana, nenhum outro movimento humano voluntário não-político ou militarista cresceu tão depressa quanto o movimento pentecostal carismático nos últimos vinte anos” (Peter Wagner, prefácio para Vinson Synan, The holiness-pentecostal tradition [Grand Rapids, 1997], p. XI).
102 A estimativa mais elevada é de David Barret e Todd Johnson, “Annual statistical table on global mission: 2001”, International Bulletin of Missionary Research, v. 25, n. 1, janeiro de 2001, p. 25. Synan diz que havia 217 milhões de pentecostais em 1997 (Holiness, cit., p. ix). Sobre a América Latina, conferir Freston, “Pentecostalism”, cit., p. 337; Anderson, Vision of the disinherited, cit.; e David Martin, “Evangelical and charismatic christianity in Latin America”, em Karla Poewe (org.) Charismatic christianity as a global culture (Colúmbia, 1994), p. 74-5.
103 Ver o brilhante Christianity and politics in Doe’s Liberia (Cambridge, 1993), de Paul Gifford. E também Peter Walshe, Prophetic christianity and the liberation movement in South Africa (Pietermaritzburg, 1995), principalmente p. 110-1.
104 Jefrey Gamarra, “Conflict, post-conflict and religion: Andean responses to new religious movements”, Journal of Southern African Studies, v. 26, n. 2, junho de 2000, p. 272. Andres Tapia cita o teólogo peruano Samuel Escobar, que vê o Sendero Luminoso e os pentecostais como “dois lados da mesma moeda”: “ambos buscavam um forte rompimento com as injustiças, só os meios eram diferentes”. “Com o declínio do Sendero Luminoso, o pentecostalismo surgiu como vencedor na luta pelas almas dos peruanos pobres” (“In the ashes of the shining path”, Pacific News Service, 14 de fevereiro de 1996).
105 Freston, “Pentecostalism”, cit., p. 352.
106 Comaroff, Body of power, cit., p. 259-61.