12 de janeiro de 2009

Cortinas de fumaça

Com a tese da legítima defesa, tenta-se negar o que é óbvio a qualquer aluno de direito: Israel viola diversas normas internacionais

Salem H. Nasser


É possível ver, aqui e ali, os corpos que se acumulam e fazer as contas: mais de 750 mortos, um terço deles crianças, e mais de 3.000 feridos, metade deles mulheres e crianças. Somos, no entanto, os que estamos fora de Gaza, bombardeados com discursos que pretendem essencialmente nos fazer esquecer que os cadáveres existem e se multiplicam.

Uma após a outra, são desfraldadas as cortinas que, se não fizerem desaparecer os mortos, nos farão vê-los com outras cores e, eventualmente, justificar o massacre.

A afirmação de que os ataques israelenses são uma resposta aos foguetes palestinos e constituem o único remédio possível é tão falsa que não deveria resistir a um instante de reflexão. No entanto, o mantra é repetido com tamanha calma e com tamanha insistência que se transforma tanto em discurso oficial da imprensa, dos diplomatas e dos estadistas quanto em ponto de partida para qualquer leitura dos fatos.

O simples fato de que esse discurso encontra um lugar e as pessoas se permitem sustentá-lo com ares de grande seriedade é suficiente para embaçar a visão de quem porventura pensasse questionar a legalidade das ações israelenses e as de seus líderes.

Com a tese da legítima defesa, tenta-se negar o que se faz evidente a qualquer estudante de direito internacional: que Israel viola inúmeras normas internacionais e que os líderes israelenses e seus comandantes militares estão cometendo diariamente crimes de guerra e crimes contra a humanidade e que, num mundo em que o direito fosse menos refém da política, seriam todos julgados pelo Tribunal Penal Internacional.

O direito internacional avançou muito durante o último século, ao longo do qual manteve em seu cerne a preocupação com a paz e com a segurança internacionais. Suas normas incorporaram valores tais como a proteção dos inocentes e o combate à impunidade. Instituições foram criadas para preservar a paz e para julgar os criminosos.

Mas esse mesmo direito traz em si os traços de sua própria fraqueza e, nestes dias, se faz pequeno, se faz ausente, junto com suas instituições.

Acompanhar a crônica dos eventos e contar os mortos e as tragédias tampouco basta para enxergar claramente. É preciso levantar o olhar e lembrar o contexto em que se inscrevem os ataques do momento.

Israel há muito trabalha para tornar impossível um Estado palestino viável e para forçar os palestinos a renunciarem a seus direitos históricos e legítimos. Ao longo do tempo, com o apoio incondicional dos EUA, com a aceitação complacente da Europa, adquiriu o apoio dos líderes do Fatah e de vários governos árabes. Resta agora impor aos palestinos uma liderança e um caminho diferentes daqueles que eles elegeram, derrubar o Hamas e extinguir a resistência ao esvaziamento dos direitos palestinos.

O que está em jogo agora é mais do que a capacidade dos palestinos de lançar foguetes contra Israel. O que se está desenrolando é um capítulo decisivo do jogo geopolítico no Oriente Médio. Israel precisa dar uma demonstração cabal de sua força e de sua capacidade militar e pretende eliminar um dos últimos obstáculos à capitulação palestina. Se, ao final dessa campanha, os palestinos ainda tiverem a capacidade de resistir, Israel terá sofrido uma derrota relativa.

Para enxergar, é preciso também decifrar e não se deixar hipnotizar pelo circo da diplomacia oficial. Para entender, é preciso aceitar que discursos vazios nas cúpulas ensaiadas e abortadas, nas discussões do Conselho de Segurança e nas entrevistas são apenas isto: discursos vazios.

As posições dos Estados e das instituições se fazem conhecer pelos atos e omissões e pelas suas consequências. Para além da encenação, deve-se perceber que, na prática, a comunidade internacional está dando a Israel tempo para levar a cabo a missão.

Assim como o direito se apequena porque a política o remete a um canto escondido, falta à diplomacia uma coluna vertebral moral.

A verdade, inconfessada, é que a comunidade internacional há muito desistiu de encontrar uma solução justa para a questão palestina e busca agora apenas um fim para essa questão. E, ao que parece, se esse fim vier pela via dos massacres e dos crimes, então que assim seja.

É preciso não se deixar anestesiar nem aceitar os véus como uma bem-vinda cegueira. É preciso não se render à opressiva sensação de impotência diante dos números que contam as massas ensanguentadas e inertes.

É preciso enxergar os cadáveres e, para além deles, os seres humanos.

SALEM H. NASSER, 41, é doutor em direito pela USP, coordenador do Centro de Direito Global da Direito GV e professor de direito internacional da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas.

1 de janeiro de 2009

Mensagem de Israel: Gaza

Em 2004, o exército israelense começou a construir uma cidade árabe fictícia no deserto de Negev. ...

Ilan Pappé


Vol. 31 No. 1 · 1 January 2009

Em 2004, o exército israelense começou a construir uma cidade árabe fictícia no deserto de Negev. É do tamanho de uma cidade real, com ruas (todas com nomes), mesquitas, prédios públicos e carros. Construída a um custo de US$ 45 milhões, essa cidade fantasma se tornou uma Gaza fictícia no inverno de 2006, depois que o Hezbollah lutou contra Israel até o empate no norte, para que as IDF pudessem se preparar para lutar uma "guerra melhor" contra o Hamas no sul.

Quando o chefe do Estado-Maior israelense Dan Halutz visitou o local após a guerra do Líbano, ele disse à imprensa que os soldados "estavam se preparando para o cenário que se desenrolaria no denso bairro da Cidade de Gaza". Uma semana após o bombardeio de Gaza, Ehud Barak compareceu a um ensaio para a guerra terrestre. Equipes de televisão estrangeiras o filmaram enquanto ele assistia às tropas terrestres conquistarem a cidade fictícia, invadindo as casas vazias e, sem dúvida, matando os "terroristas" escondidos nelas.

"Gaza é o problema", disse Levy Eshkol, então primeiro-ministro de Israel, em junho de 1967. "Eu estava lá em 1956 e vi cobras venenosas andando na rua. Devemos estabelecer algumas delas no Sinai, e espero que as outras imigrem." Eshkol estava discutindo o destino dos territórios recém-ocupados: ele e seu gabinete queriam a Faixa de Gaza, mas não as pessoas que viviam nela.

Os israelenses costumam se referir a Gaza como 'Me'arat Nachashim', um poço de cobras. Antes da primeira intifada, quando a Faixa forneceu a Tel Aviv pessoas para lavar seus pratos e limpar suas ruas, os moradores de Gaza eram retratados de forma mais humana. A ‘lua de mel’ terminou durante sua primeira intifada, após uma série de incidentes em que alguns desses funcionários esfaquearam seus empregadores. O fervor religioso que teria inspirado esses ataques isolados gerou uma onda de sentimento islamofóbico em Israel, o que levou ao primeiro cercamento de Gaza e à construção de uma cerca elétrica ao redor dela. Mesmo após os Acordos de Oslo de 1993, Gaza permaneceu isolada de Israel e foi usada apenas como um reservatório de mão de obra barata; ao longo da década de 1990, "paz" para Gaza significou sua transformação gradual em um gueto.

Em 2000, Doron Almog, então chefe do comando sul, começou a policiar os limites de Gaza: "Estabelecemos pontos de observação equipados com a melhor tecnologia e nossas tropas foram autorizadas a atirar em qualquer um que alcançasse a cerca a uma distância de seis quilômetros", ele se gabou, sugerindo que uma política semelhante fosse adotada para a Cisjordânia. Somente nos últimos dois anos, cem palestinos foram mortos por soldados apenas por chegarem muito perto das cercas. De 2000 até a guerra atual estourar, as forças israelenses mataram três mil palestinos (634 crianças entre elas) em Gaza.

Entre 1967 e 2005, a terra e a água de Gaza foram saqueadas por colonos judeus em Gush Katif às custas da população local. O preço da paz e da segurança para os palestinos ali era se entregar à prisão e à colonização. Desde 2000, os moradores de Gaza escolheram resistir em maior número e com mais força. Não foi o tipo de resistência que o Ocidente aprova: foi islâmica e militar. Sua marca registrada foi o uso de foguetes Qassam primitivos, que a princípio foram disparados principalmente contra os colonos em Katif. A presença dos colonos, no entanto, tornou difícil para o exército israelense retaliar com a brutalidade que usa contra alvos puramente palestinos. Então os colonos foram removidos, não como parte de um processo de paz unilateral, como muitos argumentaram na época (a ponto de sugerir que Ariel Sharon recebesse o prêmio Nobel da paz), mas sim para facilitar qualquer ação militar subsequente contra a Faixa de Gaza e consolidar o controle da Cisjordânia.

Após o desligamento de Gaza, o Hamas assumiu, primeiro em eleições democráticas, depois em um golpe preventivo encenado para evitar uma tomada apoiada pelos americanos pelo Fatah. Enquanto isso, os guardas de fronteira israelenses continuaram a matar qualquer um que chegasse muito perto, e um bloqueio econômico foi imposto à Faixa. O Hamas retaliou disparando mísseis em Sderot, dando a Israel um pretexto para usar sua força aérea, artilharia e helicópteros de ataque. Israel alegou estar atirando nas "áreas de lançamento dos mísseis", mas na prática isso significava em qualquer lugar e em todos os lugares em Gaza. As baixas foram altas: somente em 2007, trezentas pessoas foram mortas em Gaza, dezenas delas crianças.

Israel justifica sua conduta em Gaza como parte da luta contra o terrorismo, embora tenha violado todas as leis internacionais de guerra. Os palestinos, ao que parece, não podem ter lugar dentro da Palestina histórica, a menos que estejam dispostos a viver sem direitos civis e humanos básicos. Eles podem ser cidadãos de segunda classe dentro do estado de Israel ou presos nas megaprisões da Cisjordânia e da Faixa de Gaza. Se eles resistirem, provavelmente serão presos sem julgamento ou mortos. Esta é a mensagem de Israel.

A resistência na Palestina sempre foi baseada em vilas e cidades; de onde mais ela poderia vir? É por isso que cidades, vilas e aldeias palestinas, fictícias ou reais, têm sido retratadas desde a revolta árabe de 1936 como "bases inimigas" em planos e ordens militares. Qualquer retaliação ou ação punitiva deve ter como alvo civis, entre os quais pode haver um punhado de pessoas envolvidas na resistência ativa contra Israel. Haifa foi tratada como uma base inimiga em 1948, assim como Jenin em 2002; agora Beit Hanoun, Rafah e Gaza são consideradas dessa forma. Quando você tem o poder de fogo e nenhuma inibição moral contra o massacre de civis, você tem a situação que estamos testemunhando agora em Gaza. 

Mas não é apenas no discurso militar que os palestinos são desumanizados. Um processo semelhante está em andamento na sociedade civil judaica em Israel e explica o apoio massivo lá para a carnificina em Gaza. Os palestinos foram tão desumanizados pelos judeus israelenses – sejam políticos, soldados ou cidadãos comuns – que matá-los é algo natural, assim como expulsá-los em 1948 ou aprisioná-los nos Territórios Ocupados. A atual resposta ocidental indica que seus líderes políticos não conseguem ver a conexão direta entre a desumanização sionista dos palestinos e as políticas bárbaras de Israel em Gaza. Há um grave perigo de que, na conclusão da "Operação Chumbo Fundido", a própria Gaza se assemelhe à cidade fantasma do Negev.

Guia essencial para a Jacobin

A Jacobin tem divulgado conteúdo socialista em ritmo acelerado desde 2010. Eis aqui um guia prático para algumas das obras mais importantes ...