Salem H. Nasser
É possível ver, aqui e ali, os corpos que se acumulam e fazer as contas: mais de 750 mortos, um terço deles crianças, e mais de 3.000 feridos, metade deles mulheres e crianças. Somos, no entanto, os que estamos fora de Gaza, bombardeados com discursos que pretendem essencialmente nos fazer esquecer que os cadáveres existem e se multiplicam.
Uma após a outra, são desfraldadas as cortinas que, se não fizerem desaparecer os mortos, nos farão vê-los com outras cores e, eventualmente, justificar o massacre.
A afirmação de que os ataques israelenses são uma resposta aos foguetes palestinos e constituem o único remédio possível é tão falsa que não deveria resistir a um instante de reflexão. No entanto, o mantra é repetido com tamanha calma e com tamanha insistência que se transforma tanto em discurso oficial da imprensa, dos diplomatas e dos estadistas quanto em ponto de partida para qualquer leitura dos fatos.
O simples fato de que esse discurso encontra um lugar e as pessoas se permitem sustentá-lo com ares de grande seriedade é suficiente para embaçar a visão de quem porventura pensasse questionar a legalidade das ações israelenses e as de seus líderes.
Com a tese da legítima defesa, tenta-se negar o que se faz evidente a qualquer estudante de direito internacional: que Israel viola inúmeras normas internacionais e que os líderes israelenses e seus comandantes militares estão cometendo diariamente crimes de guerra e crimes contra a humanidade e que, num mundo em que o direito fosse menos refém da política, seriam todos julgados pelo Tribunal Penal Internacional.
O direito internacional avançou muito durante o último século, ao longo do qual manteve em seu cerne a preocupação com a paz e com a segurança internacionais. Suas normas incorporaram valores tais como a proteção dos inocentes e o combate à impunidade. Instituições foram criadas para preservar a paz e para julgar os criminosos.
Mas esse mesmo direito traz em si os traços de sua própria fraqueza e, nestes dias, se faz pequeno, se faz ausente, junto com suas instituições.
Acompanhar a crônica dos eventos e contar os mortos e as tragédias tampouco basta para enxergar claramente. É preciso levantar o olhar e lembrar o contexto em que se inscrevem os ataques do momento.
Israel há muito trabalha para tornar impossível um Estado palestino viável e para forçar os palestinos a renunciarem a seus direitos históricos e legítimos. Ao longo do tempo, com o apoio incondicional dos EUA, com a aceitação complacente da Europa, adquiriu o apoio dos líderes do Fatah e de vários governos árabes. Resta agora impor aos palestinos uma liderança e um caminho diferentes daqueles que eles elegeram, derrubar o Hamas e extinguir a resistência ao esvaziamento dos direitos palestinos.
O que está em jogo agora é mais do que a capacidade dos palestinos de lançar foguetes contra Israel. O que se está desenrolando é um capítulo decisivo do jogo geopolítico no Oriente Médio. Israel precisa dar uma demonstração cabal de sua força e de sua capacidade militar e pretende eliminar um dos últimos obstáculos à capitulação palestina. Se, ao final dessa campanha, os palestinos ainda tiverem a capacidade de resistir, Israel terá sofrido uma derrota relativa.
Para enxergar, é preciso também decifrar e não se deixar hipnotizar pelo circo da diplomacia oficial. Para entender, é preciso aceitar que discursos vazios nas cúpulas ensaiadas e abortadas, nas discussões do Conselho de Segurança e nas entrevistas são apenas isto: discursos vazios.
As posições dos Estados e das instituições se fazem conhecer pelos atos e omissões e pelas suas consequências. Para além da encenação, deve-se perceber que, na prática, a comunidade internacional está dando a Israel tempo para levar a cabo a missão.
Assim como o direito se apequena porque a política o remete a um canto escondido, falta à diplomacia uma coluna vertebral moral.
A verdade, inconfessada, é que a comunidade internacional há muito desistiu de encontrar uma solução justa para a questão palestina e busca agora apenas um fim para essa questão. E, ao que parece, se esse fim vier pela via dos massacres e dos crimes, então que assim seja.
É preciso não se deixar anestesiar nem aceitar os véus como uma bem-vinda cegueira. É preciso não se render à opressiva sensação de impotência diante dos números que contam as massas ensanguentadas e inertes.
É preciso enxergar os cadáveres e, para além deles, os seres humanos.
SALEM H. NASSER, 41, é doutor em direito pela USP, coordenador do Centro de Direito Global da Direito GV e professor de direito internacional da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas.
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