1 de fevereiro de 2010

Presidente da hipocrisia

Das declamações no Cairo ao silêncio sobre Gaza, ocupação do Iraque e escalada no Afeganistão e no Paquistão, Tariq Ali pergunta o que mudou na política externa dos EUA desde a saída de Bush.

Tariq Ali

New Left Review

NLR 61 • JAN/FEB 2010

Um ano depois de a presidência dos EUA ter mudado de mãos, o que mudou no império norte-americano? Durante o governo Bush, a ‘grande’ imprensa e boa parte da sessão amnésica da esquerda repetia, que os EUA estariam sob o poder de um regime aberrante, produto de praticamente um golpe de Estado aplicado por um pequeno grupo de direitistas fanáticos - combinado à corporações ultrarreacionárias -, que teria sequestrado a democracia dos EUA, pondo-a a serviço de agressões jamais vistas contra o Oriente Médio. Resposta a isso, os EUA teriam eleito um mestiço alistado no Partido Democrata, que prometia curar todas as feridas "domésticas" e restaurar a boa reputação dos EUA no mundo. Esse presidente foi recebido numa onda de euforia ideológica jamais vista desde os dias de Kennedy. Outra vez, os EUA mostrariam sua verdadeira face - decididos, mas pacíficos; firmes, mas generosos; humanos, respeitosos, multiculturalistas - ao mundo. Naturalmente, como um Lincoln ou um Roosevelt de nossos tempos, o novo jovem presidente dos EUA teria de fazer concessões, como qualquer estadista. Mas, pelo menos, estaria acabado o vergonhoso interlúdio de bandidagem e criminalidade dos Republicanos. Bush e Cheney haviam interrompido a continuidade de uma liderança norte-americana multilateral que tanto bem fizera ao país durante a Guerra Fria e depois dela. Obama recuperaria esse fio dessa meada.

Raramente a mitologia de autopromoção – ou ingenuidade bem-intencionada – foi tão rapidamente desmascarada. Não houve qualquer rompimento fundamental na política externa, como oposta às cantigas diplomáticas, entre os governos Bush 1, Clinton e Bush 2; tampouco houve qualquer mudança importante entre os governos Bush e Obama. Os objetivos estratégicos e imperativos dos EUA continuam os mesmos; tampouco mudaram os principais teatros e os meios de operação. Desde o colapso da URSS, a Doutrina Carter – a construção de um novo pilar democrático de direitos humanos – definiu o Oriente Médio estendido como campo de batalha central para a imposição do poder norte-americano em todo o mundo. Basta olhar para cada setor, para ver que Obama é produto de Bush, como Bush, de Clinton; e Clinton, de Bush-pai, em ritmo de filiação bíblica.

Continuam a ignorar Gaza

A posição de Obama a favor de Israel já estava manifesta antes da posse. Dia 27/12/2008, o Exército de Israel [ing. Israel Defense Forces, IDF] lançou ataque mortífero, por terra e ar, contra a população de Gaza. Os bombardeiros, incêndios provocados, matança generalizada continuaram sem interrupção por 22 dias, tempo durante o qual o presidente-eleito não enunciou uma sílaba de reprovação. Conforme planos já existentes, Telavive suspendeu os ataques algumas horas antes da posse de Obama, dia 20/1/2009, para não estragar a festa. Àquela altura, Obama já nomeara um doberman ultrassionista de Chicago, Rahm Emanuel, ex-voluntário do Exército de Israel, para trabalhar em sua sala, como principal assessor da presidência. Imediatamente depois da posse, Obama – como todos os presidentes dos EUA – falou a favor da paz entre os dois povos sofredores da Terra Santa e, outra vez como todos os que o antecederam, pediu que os palestinos reconhecessem Israel e que Israel suspendesse as construções nos territórios que invadiu e ocupou em 1967. Uma semana depois do discurso de Obama no Cairo, em que se manifestou contra a criação de novas colônias israelenses na Palestina, a coalizão de Netanyahu já ampliava impunemente o roubo de terra árabe em Jerusalém Leste. No outono, a secretária de Estado Clinton dava parabéns a Netanyahu por ter feito “concessões sem precedentes”. Mark Landler do New York Times, em conferência de imprensa em Jerusalém, perguntou à secretária: “Senhora Secretária, quando esteve aqui, na primeira visita, a senhora falou duramente contra a demolição de casas de árabes em Jerusalém Leste. Mesmo assim, as demolições prosseguiram e, de fato, há alguns dias, o prefeito de Jerusalém assinou nova ordem para demolir mais casas de árabes. O que a senhora teria a comentar hoje, sobre a mesma política?” A secretária ignorou a pergunta.[1]

Um mês antes, uma comissão de investigação da ONU [ing. “UN Fact Finding Mission”] nomeada para examinar denúncias sobre a invasão de Gaza, relatou que o Exército de Israel praticara atos criminosos, que não deixavam de ser criminosos por terem sido ou provocados ou respondidos com foguetes caseiros disparados pelo Hamás. Comandada por um dos mais aplicados e reconhecidos juízes especialistas em ‘direito internacional’, o juiz sul-africano Richard Goldstone, promotor que já trabalhara em sessão pré-orquestrada do Tribunal de Haia sobre a Iugoslávia e sionista conhecido e professo, as acusações contra Israel foram reduzidas ao mínimo necessário para garantir alguma credibilidade ao Relatório. Há impressionantes diferenças entre os testemunhos que a Comissão da ONU realmente ouviu e o que se lê no relatório.[2]  Mas, desabituada de receber críticas de qualquer tipo, Telavive reagiu com fúria; e Washington ordenou a seu cliente e cabeça do complô, Mahmoud Abbas, que se opusesse ao Relatório na ONU.[3] Pareceu demais até para os seguidores de Abbas e Abbas desobedeceu; mas houve reações violentas e Abbas teve de desdizer-se, o que o desacreditou ainda mais. O episódio confirmou que o controle do AIPAC sobre Washington continua tão forte como sempre – ao contrário do que supõem alguns iludidos da esquerda dos EUA, para os quais o lobby israelense estaria envelhecido e sem força, e estaria sendo substituído por algum ramo mais ‘ilustrado’ do sionismo norte-americano.

No teatro palestino do sistema norte-americano, a ausência de novidade significativa não implica ausência de movimento. Considerada de um ponto de vista mais amplo, a política dos EUA tem sido, há algum tempo, estimular a ação de Israel na direção de criar um ou mais bantustões, o que atende perfeitamente bem seus interesses.[4] Para tanto, é claro, é indispensável eliminar qualquer possível liderança palestina legítima, ou Estado palestino real. Os Acordos de Oslo foram um primeiro passo desse processo, destruindo a credibilidade da OLP e instaurando uma ‘Autoridade Palestina’ que não passa de fachada de Potemkin para a única real autoridade nos territórios ocupados, a saber, o Exército de Israel. Incapaz de obter qualquer respeitabilidade ou autoridade, por cerimonial que fosse, a liderança da OLP na Cisjordânia passou a dedicar-se a fazer fortuna, abandonando definitivamente a luta pelos interesses do povo palestino, entregue à pobreza mais absoluta e regularmente exposto à violência dos colonos judeus. Trabalhando na direção oposta, e criando um sistema primitivo mais eficaz de bem-estar social, capaz de distribuir assistência médica, remédios e alimentos nas áreas mais miseravelmente pobres, e com creches e asilos para velhos e doentes, o Hamás conseguiu ganhar apoio popular e venceu as eleições palestinas de 2006. Europa e EUA reagiram imediatamente com o boicote político-econômico, e apoiaram a volta do partido Fatah ao poder na Cisjordânia. Em Gaza, onde o Hamás era mais forte, Israel tentou durante algum tempo inflar Mohammed Dahlan para que liderasse um golpe – Dahlan é o chefe-de-quadrilha favorito de Washington, dentro do aparelho de segurança da OLP. Ben-Eliezer, ministro da Defesa contou, em depoimento à Comissão de Negócios Estrangeiros e Defesa, do Parlamento de Israel, que em 2002, quando o Exército de Israel retirou-se de Gaza, ofereceu a Faixa a Dahlan, que desejava provocar a guerra civil na Palestina que tanto perturbava a vida dos colonos judeus. Quatro anos antes, Dahlan recebera ajuda de Washington para promover golpe militar em Gaza,[5] mas foi vencido pelo Hamás, que assumiu o controle da Faixa em meados de 2007. Depois do bloqueio como castigo político e econômico por os eleitores palestinos terem-se levantado e resistido aos expressos desejos euro-norte-americanos, veio o ataque israelense do final de 2008 –, em relação ao qual Obama "piscou".

Mas o resultado, agora, não é o impasse sempre regular e pontualmente lastimado pelos sonhadores que ainda sonham com “acordos de paz”. Depois de repetidos golpes, e cada vez mais isolada, a resistência palestina está sendo paulatinamente minada e enfraquecida, a ponto de o próprio Hamás – sem conseguir desenvolver qualquer estratégia coerente, nem de romper o compromisso dos Acordos de Oslo, dos quais também o Hamás tornou-se prisioneiro – começar a considerar a possibilidade de aceitar o nada que Israel oferece, paramentado com outros nadas que o ocidente oferece. Não há nenhum tipo significativo de Autoridade Palestina. Deputados eleitos pela Cisjordânia ou Gaza são tratados como enviados de ONGs de mendigos: recebem migalhas se permanecem ajoelhados e seguem o que o ocidente ordene; e castigos, se saem da linha. Racionalmente, os palestinos melhor fariam se dissolvessem a Autoridade e exigissem direitos iguais de cidadania num único Estado, apoiados em campanha internacional a favor do boicote a Israel, desinvestimento e sanções, até que se desmantelem todas as estruturas de apartheid vigentes em Israel. Na prática, há pequena ou nenhuma probabilidade de isso acontecer em futuro próximo. O que se deve prever, muito mais provavelmente, é a convergência – já promovida e elogiada no jornal Haaretz como mais brilhantemente iluminada que a de Rabin [6] – de Obama e Netanyahu, na direção de uma solução final, com várias entidades ‘palestinas’ com as quais Israel poderá conviver e nas quais morrerá a Palestina.

Colhendo Bagdá

No momento, porém, há preocupações mais prementes: as zonas de guerra mais a leste são as que mais chamam a atenção imperial. O Iraque pode ter saído das manchetes, mas não dos briefings diários de segurança no Salão Oval. Em 2002, em sua ascensão política como senador estadual discreto em Illinois, Obama se opôs ao ataque ao Iraque; era politicamente barato fazê-lo. Quando ele foi eleito presidente, as forças americanas ocuparam o país por seis anos, e seu primeiro ato foi manter o secretário de Defesa de Bush, Robert Gates, funcionário de longa data da CIA e veterano do caso Irã-Contras, no Pentágono. Dificilmente se poderia conceber um sinal mais rudimentar e mais demonstrativo de continuidade política. Nos últimos dois anos da administração republicana, os níveis de tropas americanas aumentaram em um quinto, para 150.000, em um 'aumento' que foi saudado por todo o espectro partidário como tendo esmagado a resistência iraquiana, preparando o país para um regime estável. futuro ocidental, esperançosamente até democrático. A nova Administração Democrática não se desviou em nada desse roteiro. O Acordo de Status de Forças de 3 anos assinado por Bush e seus colaboradores em Bagdá estipulava que todas as tropas americanas deixariam o Iraque até dezembro de 2011, embora um acordo subsequente pudesse obviamente estender sua permanência, e as forças de 'combate' dos EUA deixariam as cidades iraquianas. , aldeias e localidades até junho de 2009. Antes de sua eleição, Obama prometeu a retirada de todas as tropas americanas de 'combate' do Iraque dentro de dezesseis meses após sua posse, ou seja, até maio de 2010 - adornado com uma cláusula de segurança de que essa promessa poderia ser 'refinada ' à luz dos acontecimentos. Foi prontamente, com o anúncio de fevereiro de 2009 que as tropas de combate agora deixariam o Iraque em setembro de 2010, enquanto as 50.000 forças “residuais” também poderiam se engajar em operações de combate para “proteger nossos esforços civis e militares em andamento”. [7]

A carnificina e a devastação causadas no Iraque pelos Estados Unidos e seus aliados, principalmente a Grã-Bretanha, são agora bem conhecidas: a destruição do patrimônio cultural do país, o brutal desmembramento de sua infra-estrutura social, o roubo de seus recursos naturais, o estilhaçamento de seus bairros mistos e, sobretudo, a morte ou deslocamento de inúmeros de seus cidadãos - mais de um milhão de mortos; três milhões de refugiados; cinco milhões de órfãos, segundo dados do governo. [8] Sem desperdiçar palavras com nada disso, o Comandante-em-Chefe e seus generais têm outras preocupações. O Iraque pode agora ser considerado um posto avançado toleravelmente seguro do sistema americano no Oriente Médio? Eles têm motivos para exultar e motivos para duvidar. Em comparação com a situação no auge da insurgência em 2006, a maior parte do país hoje está sob o domínio de Bagdá, e as baixas americanas são poucas e raras. Um exército predominantemente xiita - cerca de 250.000 homens - foi treinado e armado até os dentes para lidar com qualquer ressurgimento da resistência. A limpeza sectária da capital, em uma escala da qual o Haganah poderia se orgulhar, eliminou a maioria dos bairros sunitas, dando pela primeira vez ao regime de Maliki, estabelecido por Bush, um controle firme sobre o centro do país. Ao norte, os protetorados curdos permanecem firmes bastiões do poder americano. Ao sul, as milícias de Moqtada al-Sadr foram mandadas embora. O melhor de tudo é que os poços de petróleo estão voltando para quem sabe fazer bom uso deles, já que os leilões distribuem arrendamentos de 25 anos para empresas estrangeiras. Alguns excessos podem estragar a cena em Bagdá, [9] mas o novo Iraque tem a bênção do sorriso do santo Sistani.

No entanto, persiste o pensamento inquieto de que a resistência iraquiana, capaz de infligir tamanho dano à máquina militar americana ainda ontem, pode estar apenas ganhando tempo após pesadas perdas e a deserção de um segmento importante, e ainda pode causar estragos nos colaboradores. amanhã, se os EUA se retirarem completamente. [10] Para garantir contra tal perigo, Washington colocou marcadores nos equivalentes modernos - muito maiores e mais hediondos - das antigas fortalezas dos cruzados. A base militar de Balad, ao alcance dos bombardeiros de Bagdá, é uma pequena cidade-estado americana. Contendo um aeroporto que é supostamente o mais movimentado do mundo depois de Heathrow, ele pode abrigar mais de 30.000 soldados e auxiliares americanos - uma força de trabalho imigrante composta principalmente por trabalhadores do sul da Ásia que limpam casas, cozinham e trabalham nas lanchonetes Subway; traficantes de drogas nunca faltam, enquanto prostitutas móveis do Leste Europeu atendem às outras necessidades de Balad. Quinze linhas de ônibus complementam o aeroporto, mas o deslocamento continua sendo um problema para alguns funcionários. [11] Outras treze bases militares e da força aérea estão espalhadas por todo o país, entre elas Camp Renegade perto de Kirkuk, para proteger os poços de petróleo, Badraj na fronteira iraniana, para espionagem na República Islâmica, e uma base britânica que remonta até a década de 1930 em Nasiriyah, atualizado para atender aos apetites americanos. Na própria Bagdá, entretanto, o procônsul americano já pode usufruir da maior e mais cara embaixada do mundo - é do tamanho da Cidade do Vaticano - no enclave fortificado da Zona Verde.

Depois de tomar o Iraque como presa colonial em 1920 e instalar a dinastia Hachemita como seu instrumento local, a Grã-Bretanha enfrentou uma rebelião em grande escala, que reprimiu apenas com dificuldade e selvageria total. Nos doze anos seguintes, Londres governou o país como uma dependência imperial, antes de finalmente renunciar ao seu 'mandato' - concedido pela Liga das Nações - em 1932. Mas o regime cliente que deixou para trás durou mais um quarto de século, até que finalmente foi derrubado na revolução de 1958. A tomada americana do Iraque provocou uma insurgência em grande escala ainda mais rápida, e que durou mais tempo, contra uma ocupação que gozava desta vez de um mandato das Nações Unidas. O império dos EUA também deixará para trás um regime fantoche para manter o país no futuro próximo. Nesse empreendimento, poderia haver poucos sucessores mais adequados para Ramsay MacDonald - aquela figura anterior bonita e esbelta que nunca perdia palavras edificantes - do que Barack Obama. Mas a história se acelerou desde aqueles dias, e há pelo menos uma chance de que Maliki e seus torturadores encontrem o destino de Nuri al-Said mais rapidamente, em outro levante nacional para erradicar bases militares estrangeiras, embaixadas enormes, empresas petrolíferas e seus colaboradores locais.

Ameaçando Teerã

Para as elites americanas, o Irã há muito representa um enigma: uma 'República Islâmica' cuspindo fogo publicamente contra o Grande Satã enquanto silenciosamente estende assistência a ele sempre que mais necessário, seja conluio com a contra-revolução na Nicarágua, invasão do Afeganistão ou ocupação do Iraque . Os governantes de Israel não recebem nenhum desses benefícios e têm uma visão mais obscura da retórica dos mulás, dirigida com maior ferocidade a eles e ao Pequeno Satã em Londres do que a seus patronos em Washington. Acima de tudo, uma vez que a perspectiva de um programa nuclear iraniano minando o monopólio israelense de armas de destruição em massa no Oriente Médio começou a surgir no horizonte, Tel Aviv galvanizou seus ativos nos Estados Unidos em uma campanha para garantir que Washington se comprometesse a derrubá-lo a todo custo. Não que houvesse muita resistência a superar, dado o grau em que os objetivos israelenses há muito foram internalizados como pouco menos que uma segunda natureza por nós, formuladores de políticas. Desprezando as aberturas do regime de Khatami para um acordo regional abrangente em 2003, a administração republicana procurou, em vez disso, forçar o Irã a cumprir o monopólio israelense, igualando as tiradas oratórias de Teerã e endurecendo as sanções econômicas contra ele.

Sem dizer muito explicitamente, Obama assumiu o cargo deixando claro que não era assim que as coisas deveriam ser feitas. Muito melhor seria iniciar um diálogo de perdão e esquecimento com Teerã, apostando no pragmatismo tradicional do regime e no manifesto pró-americanismo das camadas médias e jovens da população em geral, para chegar a um acordo diplomático amigável no interesse de todas as partes, despojar o Irã de uma capacidade nuclear em troca de um abraço econômico e político. Mas o momento foi azarado e o cálculo foi prejudicado pela polarização política no próprio Irã. As lutas entre facções no establishment clerical se intensificaram durante a eleição presidencial em junho de 2009, quando uma tentativa de sua ala mais abertamente pró-Ocidente de tomar o poder em uma onda de protestos (principalmente) da classe média foi reprimida por um contra-ataque em exercício que combinou fraude eleitoral e violência das milícias. Para Obama, a oportunidade de postura ideológica era grande demais para resistir. Em uma demonstração inigualável de hipocrisia, ele lamentou com os olhos úmidos a morte de um manifestante morto em Teerã no mesmo dia em que seus drones exterminaram sessenta aldeões, a maioria mulheres e crianças, no Paquistão. Com a mídia ocidental em pleno brado de apoio ao presidente, o candidato frustrado na disputa iraniana - historicamente um dos piores carniceiros do regime, responsável por execuções em massa nos anos 80 - foi convertido em mais um ícone do Mundo Livre. Esquemas para uma grande reconciliação entre os dois estados tiveram que ser postos de lado.

Após esta desventura, a Administração Democrática voltou à linha do seu antecessor, tentando encurralar a Rússia e a China - a aquiescência europeia pode ser dada como certa - num bloqueio económico ao Irão, na esperança de estrangular de tal forma o país que o Líder Supremo será derrubado ou obrigado a chegar a um acordo. Se tal pressão falhar, um ataque aéreo de caças-bombardeiros israelenses ou americanos contra as instalações nucleares iranianas continua sendo a ameaça de apoio. Embora ainda improvável, tal blitz não pode ser totalmente descartada, mesmo porque uma vez que o Ocidente em geral - neste caso, não apenas Obama, mas Sarkozy, Brown e Merkel - declarou intolerável qualquer capacidade nuclear iraniana, pouco espaço retórico para recuo é deixado se isso se materializar. [12] No passado, o medo da retaliação iraniana contra as instáveis posições americanas no Iraque provavelmente teria sido suficiente para deter tal ataque. Mas a influência de Teerã em Bagdá não é mais a mesma. Uma vez confiante de que o Iraque se tornaria em breve uma República Islâmica irmã, não pode mais ter certeza de que as relações entre os dois serão melhores do que entre os vários estados sunitas da região. No momento, o regime de Maliki sabe de que lado passa a manteiga no pão - o Irã nunca poderia igualar os dólares e as armas que recebe dos EUA, enquanto as pretensões de Sistani à preeminência sobre vários teólogos do outro lado da fronteira são de longa data. Ainda não está claro se as milícias de Moqtada al-Sadr agora são igualmente viáveis.

Ainda assim, até o momento, o Pentágono se opõe a qualquer aventura que possa arriscar estender suas forças através de uma zona de guerra que se estenderia do Litani ao Oxus, se a Guarda Revolucionária fomentasse operações no Líbano ou no oeste do Afeganistão. A ameaça de Teerã de retaliar com mísseis convencionais contra cidades israelenses também não deve ser descartada. Há também outros aliados de Washington a serem considerados. Israel e seus lobistas podem ser os principais impulsionadores da agitação contínua contra o Irã, mas não estão sozinhos. A monarquia saudita, uma ditadura confessional sui generis, continua temerosa de que uma combinação Teerã-Bagdá possa desestabilizar a Península: os xiitas constituem uma grande maioria no Bahrein e na região produtora de petróleo do próprio estado saudita. Mas os sauditas também estão cientes de que qualquer ataque direto a Teerã pode representar uma ameaça ainda maior ao seu governo, provocando revoltas xiitas que podem engolfá-los. Para Riad, é preferível uma rota alternativa em análise em Washington - inserir a Turquia na equação regional como um destacamento sunita do império, reforçando os petrodólares sauditas oferecidos à Síria para romper com o Irã. Isso serviria como um contra-ataque contra qualquer futuro eixo Teerã-Bagdá e isolaria o Hezbollah de Damasco, suavizando-o para outro ataque das IDF.

Querem reinventar Cabul

Da Palestina passando pelo Iraque até o Irã, Obama agiu como mais um fiel servidor do império norte-americano, perseguindo os mesmos alvos que seus predecessores, pelos mesmos meios, embora com retórica mais emoliente. No Afeganistão, foi mais longe, ampliando a frente de agressão, com escalada na violência tecnológica e territorial. Quando Obama tomou posse, o Afeganistão já estava ocupado pelos EUA e forças satélites, por mais de sete anos. Na campanha eleitoral, Obama – determinado a superar Bush naquela ‘guerra justa’ – pediu mais ataques com os aviões-robôs não tripulados para esmagar a resistência afegã; e mais invasões por terra, além da invasão pelos aviões-robôs no Paquistão para interromper de vez as linhas de apoio que vinham da fronteira. Aí está promessa bem cumprida. Nesse momento, mais 30 mil soldados estão sendo mandados às pressas para o Hindu Kush. Com eles, o exército norte-americano de ocupação chegará aos 100 mil soldados, comandados por um general escolhido por Obama em razão do sucesso de suas brutalidades no Iraque, onde suas unidades formavam uma elite especializada em assassinatos e torturas. Simultaneamente, está a caminho uma massiva intensificação do terror aéreo sobre o Paquistão. No que o New York Times delicadamente designou como “uma estatística que a Casa Branca não divulgou”, o jornal informou aos leitores que “desde a posse do presidente Obama, a CIA moveu mais ataques com aviões-robôs, os drones Predator, contra território paquistanês, do que ao longo dos oito anos de governo do presidente Bush” [13].

Não há mistério algum sobre a razão dessa escalada. Depois de invadir o Afeganistão em 2001, os EUA e seus auxiliares europeus impuseram lá um governo-fantoche inventado por eles mesmos, montado num encontro em Bonn, chefiado por um quadro da CIA e assessorado por um sortimento de senhores-da-guerra tadjiques, com uma coorte de ONGs que os cercam como pajens em corte medieval. Esse constructo-fantoche jamais gozou sequer de alguma mínima legitimidade local, nem aquela estreita mas legítima base com que contava o regime dos Talibã. Instalado em Cabul, os fantoches concentraram-se na exclusiva tarefa de enriquecer. Ajudas desencaminhadas e roubadas, corrupção generalizada, narcóticos – duramente reprimidos pelos Talibãs – corriam soltos. Karzai e companhia acumularam fortuna imensa: mais de 75% de todos os fundos enviados ao Afeganistão pelos países doadores acabaram diretamente dentro dos cofres dos aliados de Karzai, da Aliança do Norte ou de empresários privados usados por eles como intermediários. A construção de um novo hotel 5-estrelas e de um shopping center tornaram-se prioridades, em país que é um dos mais pobres do mundo; e os assassinatos e a tortura converteram em rotina a poucos passos do hotel e do shopping center; a base-prisão de Bagram converteu-se em câmara de horrores ante a qual Guantánamo pareceria civilizada. A produção de ópio alcançou números que jamais alcançara em todos os tempos, crescendo mais de 90% em relação aos níveis de 2001, quando estava confinada às regiões controladas pela Aliança do Norte; espalhou-se para sul e oeste, sob a batuta do clã Karzai. A massa dos afegãos mais pobres recebeu pouco ou nada dos benefícios da nova ordem imposta, exceto maiores perigos e risco de morte muito mais alto, quando as forças reorganizadas dos neo-Talibãs começaram a atacar os exércitos ocupantes, e bombas da OTAN começaram a chover sobre vilas e aldeias. A tal ponto que Karzai viu-se várias vezes obrigado a protestar. [14]

Em junho de 2009, os guerrilheiros afegãos controlavam vastas áreas do país e tinham vários agentes infiltrados na polícia e nas unidades militares oficiais. Adotando táticas de IEDs [ing. Improvised Explosive Device] desenvolvidas no Iraque para ataques em estradas e suicidas-bombas, estavam infligindo pesadas baixas na ocupação ocidental e seus colaboradores. No próprio campo imperial, crescia o desassossego e a confusão. [15] Os funcionários norte-americanos, militares e diplomatas, contradiziam-se publicamente, sem qualquer acordo sobre até que ponto os EUA deveriam servir como avalistas da farsa de democracia que Karzai encenava como se fossem eleições; uns apoiavam, outros rejeitavam. Naquele evento, depois de veementes denúncias de fraude pelo primeiro mandatário dos EUA em Washington, e depois de manifestar-se favorável a um segundo turno de eleições, Obama consumou a farsa ao congratular-se publicamente com Karzai, por uma vitória mais visivelmente fraudada, até, que a de Ahmadinejad, dois meses antes; na ocasião, o presidente Obama não economizou palavras duras. Diferente do regime em Teerã, que tem base social de legitimidade, diminuída hoje, mas ainda existente, o que se faz passar por governo em Cabul é um implante ocidental na região, que se desintegrará da noite para o dia, no instante em que for abandonado pela guarda pretoriana da OTAN que lá está para protegê-lo.

Pendurado em Islamabad, Paquistão

Desesperadamente necessitado de alguma vitória em sua ‘guerra justa’ escolhida, Obama lançou-se no clássico movimento de ‘fuga para adiante’, despachando força expedicionária ainda maior e estendendo a guerra também ao país vizinho, onde se suspeita que o inimigo encontre ‘paraísos seguros’. Desde o início de seu governo, já estava inventada uma nova zona ‘integrada’ de guerra, uma nova entidade formada de Paquistão e Afeganistão, mas rebatizada como “Af-Pak”. Uma torrente de emissários foi despachada para Islamabad para comandar o Estado paquistanês na direção das missões de repressão e violência que passavam a ser atribuição sua. [16] Os 2.460 quilômetros de fronteira entre o Afeganistão e o que é hoje o Paquistão são limite muito poroso desde que o Império Britânico demarcou a Linha Durand, em 1893. 16 milhões de pashtuns vivem no sul do Afeganistão, 28 milhões na Província Fronteira Noroeste, no Paquistão. É impossível policiar aquela fronteira, e praticamente não se vêem os deslocamentos nas duas direções, porque as várias tribos que por ali circulam falam o mesmo dialeto e muitas vezes já estão unidas em famílias comuns por casamentos intertribais, dos dois lados. Os guerrilheiros afegãos buscam e encontram abrigo em praticamente toda a região, o que não é segredo para ninguém. Para que a OTAN ou o Exército Paquistanês conseguissem deter esse fluxo, teriam de mobilizar no mínimo 250 mil soldados em campanhas de aniquilação semelhantes às de Chiang Kai-shek nos anos 30. No governo de Musharraf – e sob as ameaças do Pentágono, de que se o Paquistão não concordar, será bombardeado até ser devolvido à Idade da Pedra –, o Exército Paquistanês converteu-se, de patrão em inimigo de morte dos Talibãs no Afeganistão, mas sempre só nas camadas superficiais. O Exército Paquistanês sabe perfeitamente bem que está sendo obrigado a influenciar Cabul a favor da Índia... Índia a qual, por sua vez, não perdeu tempo e já pôs Karzai sob suas asas. Musharraf fez o máximo que pôde para satisfazer os EUA, permitindo que soldados das Forças Especiais e aviões-robôs teleguiados, os drones Predator, invadam sem qualquer restrição o Paquistão, e delatando todos os agentes da al-Qaeda de que teve notícia. Mas, de fato, Washington jamais engoliu completamente a ideia de que esse tipo de ‘segurança’ bastasse, o que, numa espécie de reação de desconfiança, faz com que, cada dia mais, aumente o desprezo que a maioria dos paquistaneses sente por quem negocie com os EUA.

Quando Obama chegou ao poder, dois desenvolvimentos haviam alterado essa cena. Incessantemente empurrado pelo Pentágono, entre 2004 e 2006 Musharraf mandou o Exército Paquistanês nove vezes para as Áreas Tribais de Administração Federal [ing. Federally Administered Tribal Areas (FATA)], os sete setores montanhosos não incluídos na jurisdição da Província da Fronteira Noroeste – onde a autoridade do governo central sempre foi vestigial –, para deter a infiltração dos Talibãs. Como resultado só conseguiu estimular na população solidariedade cada vez maior e desejo sempre crescente de participar da resistência afegã. Assim chegou-se a dezembro de 2007, com a formação da Tehrik-i-Taliban paquistanesa, guerrilha brutal e nativa dedicada a combater diretamente contra Islamabad e Musharraf. (Ao contrário do que supõe o ocidente, esse grupo não é subsidiário ou fruto dos neo-Talibãs afegãos, como o comprova o levante de Mullah Omar contra o ocidente. Muito claramente, Omar insistia em que o alvo não seria o Exército Paquistanês; que o inimigo real sempre foram EUA e OTAN.)

Em 2008, o próprio Musharraf foi derrubado. Foi substituído na presidência pelo infame viúvo de Benazir Bhutto, Asif Zardari, escroque conhecido e desacreditado, que se ofereceu como espantalho a serviço dos EUA. A embaixadora dos EUA, Anne Patterson – recém desembarcada depois da missão de armar o governo Uribe na Colômbia – em pouco tempo já se servia da boa-vontade de Zardari. E os frutos não tardaram a brotar. Em abril de 2009, Zardari ordenou que o Exército ocupasse o distrito de Swat na Província da Fronteira Noroeste, que dois meses antes havia sido tomada pela brutal milícia Tehrik-i-Taliban Paquistanesa (TTP). Violento assalto com armamento militar pesado empurrou os guerrilheiros TTP de volta às montanhas e criou dois milhões de refugiados expulsos de suas casas e terras. Empolgado por esse impressionante sucesso humanitário, Obama forçou Zardari a mandar o exército para a própria área tribal de administração federal, FATA, em outubro, para empurrar para o ralo os guerrilheiros Talibãs – e já pouco importava que fossem afegãos ou paquistaneses, desde que fossem empurrados para o ralo – do Waziristão Sul e Bajaur. Mais centenas de milhares de homens e mulheres e crianças das tribos daquelas regiões foram expulsos de suas casas e terras, com o ronco dos bombardeiros dos EUA explodindo sobre (literalmente) suas cabeças, enquanto corriam desesperados sem saber para onde ir.[17] Em novembro, o Exército do Paquistão anunciou “o fim da ofensiva”. A guerrilha aparentemente foi varrida da face da terra

Até que ponto pode avançar esse tipo de limpeza étnica doméstica, e a que tipo de resultados levará, ainda não se sabe. O que já se sabe é que, ao forçar o Exército do Paquistão a atirar contra as tribos paquistanesas, com as quais o Exército e todos os militares sempre viveram em bons termos, Obama obra para desestabilizar mais uma sociedade, no interesse do império dos EUA. Hoje, os ataques por homens e mulheres-bombas estão convertidos em tragédias semanais nas grandes cidades do Paquistão – vãos e desesperados atos de vingança contra a repressão na região da fronteira. Zardari e sua trupe cambaleiam, depois que a imunidade que Musharraf lhe garantira, nas acusações de corrupção, foi derrubada na Suprema Corte do Paquistão. Há boa chance de que o PPP [ing. Pakistan Peoples Party], partido já corroído pelos vermes, e desgraça que assola o país desde o segundo mandato de Benazir Bhutto, rache e desapareça depois do fim de Zardari. [18] Washington resistirá ao fim desse escroque e escroqueria, mas pode confiar plenamente nos generais estrelados do Exército para que lhe ofereçam substituto funcional à altura, como sempre aconteceu no passado. O Exército Paquistanês jamais produziu oficialato jovem patriótico capaz de eliminar o alto comando, expulsar as agências estrangeiras e impor reformas, como viu-se algumas vezes na América Latina e no mundo árabe. A subserviência do Exército do Paquistão aos EUA é estrutural, mesmo que nem sempre tenha sido total. Dependente de massivos aportes de dinheiro e equipamento norte-americanos, o Exército do Paquistão não se atreve a desafiar Washington abertamente, mesmo quando obrigado a agir contra seus próprios interesses; muito encobertamente, sempre buscou manter alguma margem de autonomia, enquanto persiste a confrontação com a Índia. Arrasará seus próprios cidadãos, se os EUA assim ordenarem, sim; mas não a ponto de incendiar irremediavelmente as áreas tribais, nem colaborará até o final para extirpar toda a resistência nas áreas de fronteira.

Duplicating Saigon?

With this expansion, what are the prospects for Obama’s ‘just war’? Comparing the American with the Soviet occupation of Afghanistan, two major differences stand out. The regime created by the us is far weaker than that protected by the ussr. The latter had a genuine local basis, however much it abused it: never just an alien graft, the pdpa generated an army and administration capable of surviving the departure of Soviet troops. The Najibullah government was eventually overthrown only thanks to massive outside assistance from the us, Saudi Arabia and Pakistan. But in that assistance lies the second decisive contrast. Unlike the fighters who entered Kabul in 1992, bankrolled and armed to the teeth by foreign powers, the Afghan resistance of today is all but completely isolated: anathema not only to Washington, but to Moscow, Beijing, Dushanbe, Tashkent, Tehran, able at most to count on a sporadic, furtive tolerance from Islamabad.

That is why comparisons with Vietnam, though they are telling in so many other respects—moral, political, ideological—in military terms are less so. At one level Obama’s arrogant escalation of the war in Afghanistan could be said to combine the hubris of Kennedy in 1961 with that of Johnson in 1965, even of Nixon in 1972, whose bombing of Cambodia bears more than one resemblance to current operations in Pakistan. But there is no draft to disaffect American youth; no Soviet or Chinese aid to sustain the guerrilla; no anti-imperialist solidarity to weaken the system in its homelands. On the contrary, as Obama likes to explain, no less than 42 countries are lending a hand to help his embarrassing marionette in Kabul dance a good show. [19] No world-historical spectacle could be more welcome than the American proconsul fleeing once again by helicopter from the roof of the embassy, and the motley expeditionary forces and their assorted civilian lackeys kicked unceremoniously out of the country along with him. But a second Saigon is not in prospect. Monotonous talk of the end of American hegemony, the universal cliché of the period, is mostly a way of avoiding serious opposition to it.

If a textbook illustration were needed of the continuity of American foreign policy across administrations, and the futility of so many soft-headed attempts to treat the Bush–Cheney years as exceptional rather than essentially conventional, Obama’s conduct has provided it. From one end of the Middle East to the other, the only significant material change he has brought is a further escalation of the War on Terror—or ‘Evil’, as he prefers to call it—with Yemen now being sighted as the next target. [20] Beyond, the story is much the same. Renditions—torture by proxy—are upheld as a practice, while their perpetrators continue to lounge at their ease in Florida or elsewhere, ignoring extradition warrants under Obama’s protection. Domestic wire-taps continue. A coup in Central America is underwritten. New military bases are set up in Colombia.

Imitando Wilson

Ainda assim, seria um erro pensar que nada mudou. Nenhum Governo é igual ao outro e cada Presidente deixa a sua marca. Substancialmente, muito pouco do domínio imperial americano mudou sob Obama. [21] Mas propagandisticamente, houve uma atualização significativa. Não é por acaso que um importante colunista - e um dos mais inteligentes - conseguiu, apenas meio ironicamente, listar os cinco eventos mais importantes de 2009 como tantos discursos de Obama. [22] No Cairo, em West Point, em Oslo, o mundo foi presenteado com uma homilia edificante após a outra, cada discurso repleto de todos os eufemismos flagrantes que os redatores de discursos da Casa Branca podem reunir para descrever a brilhante missão da América no mundo, e declaração modesta de admiração e senso de responsabilidade em levá-lo adiante.

"Devemos dizer abertamente uns aos outros as coisas que guardamos em nossos corações" é o tom característico. ‘Nosso país carrega um fardo especial nos assuntos globais. Derramamos sangue americano em muitos países em vários continentes. Gastamos nossa receita para ajudar outros a se reconstruir dos escombros e desenvolver suas próprias economias. Juntamo-nos a outros para desenvolver uma arquitetura de instituições - das Nações Unidas à OTAN e ao Banco Mundial - que proporcionam a segurança comum e a prosperidade dos seres humanos”. 'A luta contra o extremismo violento não terminará rapidamente e se estenderá muito além do Afeganistão e do Paquistão... Nosso esforço envolverá regiões desordenadas, estados falidos, inimigos difusos'. ‘Nossa causa é justa, nossa determinação inabalável. Seguiremos em frente com a confiança de que o certo faz o poder”. No Oriente Médio, há “tensões” (o termo ocorre nove vezes em seu discurso à claque de Mubarak em al-Azhar) e uma “crise humanitária” em Gaza. Mas “os palestinos devem renunciar à violência” e “o povo iraquiano está em situação melhor” com as ações americanas. Em Oslo: ‘Não se engane: o mal existe no mundo’. ‘Dizer que a força às vezes pode ser necessária não é um apelo ao cinismo – é um reconhecimento da história; as imperfeições do homem e os limites da razão.” No Cairo: “Resistir pela violência e matar é errado”. Resumindo: se os EUA ou Israel travam uma guerra, é um dever moral lamentável. Se palestinos, iraquianos ou afegãos resistem a eles, é um beco sem saída imoral. Como Obama gosta de dizer, “Somos todos filhos de Deus” e “Esta é a visão de Deus”. [23]

Se a banalidade sonora e a hipocrisia blindada são as marcas desse estilo presidencial, isso não o torna menos funcional para a tarefa de servir e reparar as instituições imperiais que Obama e Clinton agora presidem. Nada irritava mais a opinião internacional do que a falta de unção necessária com a qual Bush e Cheney muitas vezes cuidavam de seus negócios, expondo aliados e audiências de outra forma favoráveis à liderança americana a verdades inconvenientes que eles prefeririam não ouvir. Historicamente, o modelo para a atual variante da Presidência imperial tem sido Woodrow Wilson, um cristão não menos piedoso, cuja cada segunda palavra era paz, democracia ou autodeterminação, enquanto seus exércitos invadiam o México, ocupavam o Haiti e atacavam a Rússia, e seus tratados entregou uma colônia após a outra para seus parceiros na guerra. Obama é uma versão de segunda mão do mesmo, sem nem mesmo Quatorze Pontos para trair. Mas ainda não pode ir muito longe para satisfazer aqueles que anseiam por isso, como o prêmio a Obama do que García Márquez uma vez chamou de Prêmio Nobel da Guerra mostrou graficamente. Depois de mentir o suficiente para os eleitores - prometendo paz e entregando a guerra - Wilson foi reeleito para um segundo mandato, embora não tenha terminado bem para ele. Em tempos mais combativos, Johnson foi forçado a renunciar em ignomínia por seu belicismo, sem poder enganar os eleitores novamente. Doze anos depois, um desastre em Teerã ajudou a afundar Carter. Se os recentes reveses para os democratas na Virgínia Ocidental e em Nova Jersey - onde os eleitores democratas ficaram em casa - se tornarem um padrão, Obama poderá ser o terceiro presidente de um mandato, abandonado por seus partidários e ridicularizado por aqueles que ele tanto tenta conciliar.

Notas:

[1] ‘Remarks with Israeli Prime Minister Binyamin Netanyahu’, Jerusalém, 31/10/2009, em http://www.state.gov/secretary/rm/2009a/10/131145.htm.

[2] Em entrevista à Rádio do Exército de Israel, em hebraico, a filha do juiz Goldstone, Nicole Goldstone, disse: “Meu pai aceitou esse trabalho, porque acreditava que estaria trabalhando pela paz para todos, também para Israel. (...) Não foi fácil. Meu pai não esperava ver e ouvir o que viu e ouviu”. E disse ao entrevistador que, dependesse de seu pai, o relatório teria sido muito mais duro. Deve-se acrescentar que, não fosse pela participação de uma advogada paquistanesa, Hina Jilani, na mesma missão de investigação, o relatório teria sido muito mais ‘macio’.

[3] Os israelenses impuseram a sanção máxima: se Abbas endossasse o Relatório Goldstone, cancelava-se o negócio de telefonia com uma empresa israelense, e o pessoal da OLP perderia empregos e comissões.

[4] Deve-se registrar que ambos, o Bispo Tutu e Ronnie Kasrils, ex-ministro de Defesa do governo de Mandela, discordam veementemente dessa analogia. Para ambos, as condições nas quais vivem os palestinos nos territórios ocupados é muitas vezes pior do que a dos negros nos bantustões

[5] Ver ROSE, David, ‘The Gaza Bombshell’, Vanity Fair, April 2008.

[6] Por exemplo, ver Ari Shavit, ‘Netanyahu is Positioning Himself to the Left of Rabin’, Haaretz, 6/12/2009.

[7] Obama speech at Camp Lejeune, North Carolina, 27 February 2009.

[8] Cultural Cleansing in Iraq: Why Museums were Looted, Libraries Burned and Academics Murdered, edited by Raymond Baker, Shereen Ismael and Tareq Ismael, London 2009, contains detailed figures and sources, amongst which the fact that from 2003–07, Washington only allowed 463 refugees, mainly professional Iraqis of Christian origin, into the United States. For an illuminating survey of the history of Iraqi oil and the privatized looting now under way, see Kamil Mahdi, ‘Iraq’s Oil Law: Parsing the Fine Print’, World Policy Journal, Summer 2007.

[9] Here is the Economist: ‘Old habits from Saddam Hussein’s era are becoming familiar again. Torture is routine in government detention centres . . . Iraqi police and security people are again pulling out fingernails and beating detainees, even those who have already made confessions. A limping former prison inmate tells how he realized, after a bout of torture in a government ministry that lasted for five days, that he had been relatively lucky. When he was reunited with fellow prisoners, he saw that many had lost limbs and organs. The domestic-security apparatus is at its busiest since Saddam was overthrown six years ago, especially in the capital. In July the Baghdad police reimposed a nightly curfew, making it easier for the police, taking orders from politicians, to arrest people disliked by the Shia-led government.’ See ‘Could a Police State Return?’, 3 September 2009.

[10] General Petraeus recently announced that attacks on us forces in Iraq were down to ‘only’ 15 a day: Financial Times, 2 January 2010. Not Maliki but Muntadhar al-Zaidi, the Baghdad shoe-thrower, represents the sentiments of most Iraqis, regardless of ethnic or confessional origin.

[11] ‘It takes the masseuse, Mila from Kyrgyzstan, an hour to commute to work by bus on this sprawling American base. Her massage parlour is one of three on the base’s 6,300 acres and sits next to a Subway sandwich shop in a trailer, surrounded by blast walls, sand and rock’, writes Marc Santora: ‘Big us Bases Are Part of Iraq, but a World Apart’, New York Times, 8 September 2009.

[12] In Illinois in 2004, I watched Obama interviewed on network television in the run-up to the Senate election he subsequently won. Asked whether he would back Bush if he decided to bomb Iran, the future President did not hesitate for a moment. He put on a warlike look and said that he would.

[13] David Sanger, ‘Obama Outlines a Vision of Might and Right’, New York Times, 11 December 2009.

[14] Most recently on 27 December when a us black-ops unit killed 10 civilians on the same day as Ahmadinejad’s militias killed 5 demonstrators in Tehran.

[15] See the letter from Matthew Hoh, a former Marine captain who served as a political officer in Iraq and subsequently Afghanistan, and resigned in September 2009. ‘The Pashtun insurgency, which is composed of multiple, seemingly infinite, local groups, is fed by what is perceived by the Pashtun people as a continued and sustained assault, going back centuries, on Pashtun land, culture, traditions and religion by internal and external enemies . . . In both rc East and South, I have observed that the bulk of the insurgency fights not for the white banner of the Taliban, but rather against the presence of foreign soldiers and taxes imposed by an unrepresentative government in Kabul . . . If honest, our stated strategy of securing Afghanistan to prevent al-Qaeda resurgence or regrouping would require us to additionally invade and occupy western Pakistan, Somalia, Sudan, Yemen, etc.’ See Ralph Nader, ‘Hoh’s Afghanistan Warning’, CounterPunch, 4 November 2009.

[16] Inter-Risk, the Pakistani subsidiary of us defence contractor DynCorp, was recently raided by local police, who seized ‘illegal and sophisticated weaponry’. The company’s boss, a retired Captain Ali Jaffar Zaidi, informed reporters that us officials in Islamabad had ordered the import of prohibited weapons ‘in Inter-Risk’s name’, promising that payment would be made by the us embassy. Anwar Abbasi, ‘Why the us security company was raided’, The News, 20 September 2009.

[17] For the estimated number of refugees in Swat and fata, see Mark Schneider, ‘fata 101: When the Shooting Stops’, Foreign Policy, 4 November 2009. Schneider is Senior Vice President of the impeccably Establishment International Crisis Group.

[18] The us-brokered deal that allowed Zardari and his late wife to return to the country during the Musharraf period was pushed through via a hurriedly concocted ‘National Reconciliation Ordnance’ pardoning politicians charged with various crimes. Last November, the National Assembly in Pakistan refused to vote in favour of renewing the Ordnance. The re-instated Chief Justice did the rest. On 16 December 2009, a cold, crisp winter afternoon in Islamabad, the full bench of the Supreme Court of Pakistan—sixteen senior judges and the Chief Justice—declared the Ordnance null and void. Few doubt that the Zardari interregnum is almost over. This particular us drone can now be returned safely to base in Dubai or Manhattan.

[19] In Oslo Obama could duly congratulate the Nobel Peace Prize committee on the Norwegian troop contingent in Afghanistan, along with those from Albania, Armenia, Australia, Austria, Azerbaijan, Belgium, Bosnia and Herzegovina, Bulgaria, Canada, Croatia, the Czech Republic, Denmark, Estonia, Finland, France, Georgia, Germany, Greece, Hungary, Iceland, Ireland, Italy, Jordan, Latvia, Lithuania, Luxembourg, Macedonia, the Netherlands, New Zealand, Poland, Portugal, Romania, Singapore, Slovakia, Slovenia, Spain, Sweden, Turkey, Ukraine, the United Arab Emirates and the uk.

[20] On 27 December 2009 Obama announced the doubling of us military expenditure on Yemen. The Economist noted that ‘On his [Obama’s] watch American drones and special forces have been busier than ever, not only in Afghanistan and Pakistan but also, it is reported, in Somalia and Yemen’: 30 December 2009.

[21] Hence in part the disenchantment of many erstwhile Obama partisans, which has surfaced with striking rapidity compared to the relatively long liberal love affair with Bill Clinton. Nonetheless, their explanations have tended to blame structural constraints rather than the incumbent himself: Garry Wills sees the well-meaning president as caught in the cogs of the us imperial state apparatus (‘The Entangled Giant’, New York Review of Books, 8 October 2009), while Frank Rich has angrily attacked lobbyists for undermining Obama’s ‘promise to make Americans trust the government again’ (‘The Rabbit Ragu Democrats’, New York Times, 3 October 2009). For Tom Hayden, the ‘expedient’ decision to boost force levels in Afghanistan is ‘the last in a string of disappointments’, despite the fact that Obama had pledged to do so in his campaign; but though Hayden is removing his bumper sticker, he will still be ‘supporting Obama down the road’ (‘Obama’s Afghanistan Escalation’, Nation, 1 December 2009).

[22] Gideon Rachman, ‘The Grim Theme Linking the Year’s Main Events’, Financial Times, 23 December 2009.

[23] ‘Remarks by the President on a New Beginning’, Cairo, 4 June 2009; ‘Remarks by the President to the Nation on the Way Forward in Afghanistan and Pakistan’, West Point, 1 December 2009; Nobel Peace Prize acceptance speech, Oslo, 11 December 2009; ‘Remarks by the President to the Ghanaian Parliament’, Accra, 11 June 2009. The tropes of ‘imperfect man’ and ‘limited reason’ are borrowed from the vapourings of Reinhold Niebuhr, pastor of Cold War consciences, for whom see Gopal Balakrishnan, ‘Sermons on the Present Age’, below. Niebuhr could, however, on occasion be less of a humbug than his pupil. Rather than pious guff about the ‘two suffering peoples’, he had the honesty to call a Zionist spade a spade: in 1942, observing that ‘the Anglo-Saxon hegemony that is bound to exist in the event of an Axis defeat will be in a position to see to it that Palestine is set aside for the Jews’, he argued that ‘Zionist leaders are unrealistic in insisting that their demands entail no “injustice” to the Arab population’. The latter would have to be ‘otherwise compensated’. (‘Jews after the War—ii’, Nation, 28 February 1942.)

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