1 de fevereiro de 2010

Vida e época da primeira New Left

NLR's founding editor recalls the emergence of the British New Left out of the double conjuncture of 1956 - Hungary and Suez - and identifies the cross-currents, cultural and political, that nourished its initial cohort.

Stuart Hall 



Tradução / A “primeira” New Left nasceu em 1956, em uma conjuntura – e não apenas um ano – marcada, por um lado, pela repressão à Revolução Húngara, pelos tanques soviéticos, e, por outro, pela invasão britânica e francesa à zona do Canal de Suez1. Os dois eventos, cujo impacto dramático foi agravado pelo fato de terem ocorrido no curto prazo de poucos dias entre um e outro, desmascararam a violência subjacente e a agressão latente dos dois sistemas que dominaram a vida política do período – o stalinismo e o imperialismo ocidental –, de modo a abalar todo o mundo político. Em um sentido mais profundo, eles definiram para as pessoas da minha geração as fronteiras e os limites do tolerável na política. Os socialistas do período “pós-Hungria”, pareceu-nos, deveriam levar em seus corações o sentimento de tragédia que a degeneração da Revolução Russa no stalinismo representou para a esquerda no século XX. A “Hungria” pôs fim a determinado tipo de inocência socialista. Contudo, por outro lado, “Suez” sublinhou a enormidade do equívoco em crer que a redução da Union Jack2 em algumas ex-colônias, necessariamente, tivesse assinalado o “fim do imperialismo”, ou que os ganhos reais do Estado de bem-estar social e da ampliação da afluência material significaram o fim da desigualdade e da exploração. “Hungria” e “Suez”, assim, foram liminares, experiências de marcação de fronteira; simbolizaram a dissolução da Idade do Gelo política. 

A New Left veio à existência no rescaldo desses dois eventos. Ela tentou definir um terceiro espaço político em algum lugar entre essas duas metáforas históricas –  “Hungria” e “Suez”. Sua ascensão significou para os adeptos da esquerda da minha geração o final dos silêncios impostos e dos impasses políticos da Guerra Fria, bem como a possibilidade de um avanço em direção a um novo projeto socialista. Pode nos ser útil começar, aqui, com a própria genealogia. O termo “new left” é comumente associado a “1968”; porém, para a geração de “1956” dessa New Left, “1968” já era uma segunda mutação, ou talvez até mesmo uma terceira. Nós tínhamos emprestado a expressão, na década de 1950, de um movimento conhecido como nouvelle gauche, uma tendência independente na política francesa, associada ao semanário France Observateur e a seu editor-chefe, Claude Bourdet. Como figura de liderança na Resistência Francesa, Bourdet personificava a tentativa, depois da Guerra, de abrir uma “terceira via” na política europeia, independente das duas posições dominantes na esquerda, capitaneadas pelo stalinismo e pela social-democracia, que suplantasse os blocos de poder militar da OTAN e do Pacto de Varsóvia e, ainda, que se opusesse às presenças soviética e norte-americana na Europa. 

Essa “terceira via” fazia paralelo às aspirações políticas de muitas pessoas que se juntaram para formar o início da New Left britânica. Alguns de nós tínhamos encontrado Bourdet em Paris, em uma conferência convocada para considerar a criação de uma Sociedade Socialista Internacional, por intermédio das divisões da Europa Ocidental e Oriental. O principal protagonista da ideia na Grã-Bretanha era George Douglas Howard Cole, um austero e corajoso veterano da esquerda independente, o qual, na época, ensinava política na Universidade de Oxford. Embora fosse um exímio historiador do socialismo europeu e um estudioso do marxismo, o socialismo de Cole era enraizado nas tradições do Guildismo3, de cooperação e controle da produção por parte dos “trabalhadores”. Sua crítica à nacionalização burocrática de estilo “morrisoniano” foi bastante influente na formação de muitos socialistas da minha geração que almejavam formas estadistas de socialismo. 

A New Left representou o encontro de duas tradições ligadas, porém diferentes – e também de duas experiências políticas ou, então, de duas gerações. Uma delas foi a tradição que eu denominaria, por falta de um termo melhor, “humanismo comunista”, simbolizada pela New Reasoner e seus fundadores, John Saville, Edward Thompson e Dorothy Thompson. A segunda talvez fosse mais bem descrita como a tradição do “socialismo independente”, cujo centro de gravidade residia na geração dos estudantes de esquerda da década de 1950, que manteve certa distância das afiliações “partidárias”. Foram pessoas desse último estrato que, em um primeiro momento, produziram, a partir da desintegração das ortodoxias em 1956, a Universities and Left Review. Eu pertenço a essa segunda tradição. 

Chegadas 

Pode ajudar a entender esse momento se eu falar de minha trajetória pessoal. Cheguei a Oxford com uma bolsa Rhodes, vindo mais ou menos diretamente do colégio jamaicano, em 1951. Eu diria que minha posição política era, principalmente, “anti-imperialista”. Era simpático à esquerda, tinha lido Karl Marx e fui influenciado por ele quando estudante na Jamaica, mas, na época, não poderia me denominar marxista no sentido europeu do termo. De qualquer forma, estava preocupado com o fracasso do marxismo ortodoxo em lidar mais adequadamente com os problemas da raça e da etnicidade no “Terceiro Mundo”, com as questões do racismo ou, ainda, com a literatura e a cultura, que me preocupavam, intelectualmente, como aluno de graduação. Pensando agora retrospectivamente, eu me identificaria, no período, como um daqueles tipos descritos por Raymond Williams, em Cultura e sociedade, seguindo, como estudioso da literatura, o combate entre os Leavisistas4 e os críticos marxistas – obrigado a reconhecer que o “Scrutiny venceu”5. Não porque ele estava certo – sempre fomos críticos do elitismo conservador do programa cultural do Scrutiny –, mas porque os modelos marxistas alternativos eram muito mecânicos e redutores (inclusive, nós ainda não tínhamos acesso a Lukács, Benjamin, Gramsci ou Adorno). Na frente política mais ampla, eu era um crítico ferrenho a tudo o que eu sabia sobre o stalinismo, seja ele como sistema, seja como modelo de política. Eu o opunha ao modelo de um socialismo democrático, e não pude apreender a relutância dos poucos comunistas que conhecia em reconhecer a verdade daquilo que todos sabiam sobre as suas consequências desastrosas para a sociedade soviética e para a Europa Oriental. 

Tal qual o restante do pequeno número de alunos do “Terceiro Mundo” em Oxford, minhas principais preocupações políticas eram com as questões coloniais. Tornei-me muito envolvido nas políticas estudantis na West Indian. Nós debatíamos, principalmente, o que estava ocorrendo “em casa”, na expectativa de que, em pouco tempo, estaríamos todos lá novamente e envolvidos nessas questões. Discutimos sobre a West Indian Federation6 e as perspectivas de uma nova ordem econômica no Caribe; a expulsão da esquerda do Partido PNP [People’s National Party] de Manley, na Jamaica, sob as pressões da Guerra Fria; a derrubada do governo Jagan, na Guiana Britânica, com a suspensão da constituição e o movimento das tropas britânicas. Não houve “política para negros” na Grã-Bretanha, e a migração pós-guerra tinha apenas começado. 

Mais tarde, quando comecei a ter um interesse maior pela política britânica, entrei em contato com a esquerda de Oxford. Não havia nenhum movimento político de esquerda britânico de “massa” ou alguma grande questão política popular aos quais fosse possível se filiar. A escolha parecia ser entre um Partido Trabalhista, que, naquele momento, estava profundamente comprometido com uma visão de mundo atlantista, e as trevas da extrema esquerda. A primeira vez que me aventurei em uma reunião de discussão do Grupo Comunista foi para debater com o Partido Comunista (PC) a aplicação do conceito marxiano de classe à sociedade capitalista contemporânea. Na época, eu sentia que esse era um movimento extremamente ousado – tal era o clima de medo e suspeita que prevalecia. Depois de 1954, no entanto, esse clima começou a mudar. Houve um renascimento lento e hesitante do debate na esquerda, e então um grupo começou a surgir pautando essas discussões. Muitos de nós participamos do “Grupo Cole” (como seu seminário na política era conhecido), o qual, embora formalmente fosse uma oportunidade para estudantes de graduação, duplicou, como um vasto grupo de discussão da ampla esquerda. Alguns dos primeiros contatos e amizades, que mais tarde se cimentaram com a formação da New Left, foram forjados lá. 

É difícil evocar, atualmente, o clima político de Oxford, em 1950. A Guerra Fria dominava o horizonte político, posicionando todos e polarizando cada tópico a partir de sua lógica binária sem qualquer piedade. “Recomendar a admissão da China na ONU era provocar o opróbrio de ‘simpatizante-colaborador’7 [fellow- -traveller]; dizer que o caráter do capitalismo contemporâneo mudou era ser classificado como um ‘liberal keynesiano’”, como o primeiro editorial da ULR (Universities and Left Review) colocou8. O “degelo” começou com o debate sobre uma série de questões contemporâneas: o futuro do trabalho e a esquerda na esteira do renascimento conservador, a natureza do Estado social e do capitalismo no pós-guerra, o impacto da mudança cultural na sociedade britânica nos primeiros anos “abastados” da década. O ritmo desse debate foi acelerado pelas revelações de Khrushchev, no XX Congresso do PCUS (Partido Comunista da União Soviética). A resposta para “1956” e a formação de uma nova esquerda não poderiam ter ocorrido sem esse período anterior de “preparação”, em que um número de pessoas, lentamente, começou a ganhar a confiança para envolver-se em um diálogo que passou a questionar os termos da discussão política ortodoxa e atravessar as fronteiras organizacionais existentes. 

Esses fios foram condensados, dramaticamente, pelos acontecimentos de “1956”. Os tanques soviéticos em Budapeste acabaram com qualquer esperança de que uma marca mais humana e democrática do comunismo pudesse evoluir na Europa do Leste, sem trauma prolongado ou alguma convulsão social. “Suez” colapsou a ilusão aconchegante de que (para adaptar, aqui, a frase de Tawney) “você poderia esfolar o tigre do capitalismo-imperialista listra por listra”. A demonstração em Trafalgar Square Suez foi o primeiro comício político em massa de seu tipo, na década de 1950; pela primeira vez, eu encontrei a polícia montada face a face e também pela primeira vez ouvi Hugh Gaitskell e Nye Bevan falando em público. A denúncia feroz de Bevan ao Éden, lembro-me, dispersou pombos assustados em voo. Um dos resultados do fermento de “1956”, nesse sentido, foi a publicação de duas revistas, Universities and Left Review e New Reasoner, que, posteriormente fundidas, em 1960, formaram a “primeira” New Left Review. 

Um novo estudante de esquerda

Como e por que motivo isso ocorreu naquele momento? E por que, de todos os lugares possíveis, aconteceu particularmente em Oxford? Na década de 1950, as universidades não eram, como vieram a se tornar mais tarde, centros de atividade revolucionária. Uma minoria de estudantes de esquerda privilegiados, debatendo o capitalismo de consumo e o aburguesamento cultural da classe trabalhadora, em meio às “espirais de sonhos”9 [dreaming spire], pode parecer, agora em retrospecto, um fenômeno político bastante marginal. No entanto, o debate foi acompanhado com uma intensidade feroz, conscientemente contraposta à confiança frágil e casual do tom dominante de Oxford, definido pelas tentativas dos “Hooray Henries”10 da época de reviver Brideshead revisited11. De fato, Oxford também conteve seus enclaves rebeldes: desmobilizou jovens soldados veteranos nacionais, sindicalistas do Ruskin College, “os garotos bolsistas” e as garotas locais e do exterior. Embora eles não fossem capazes de redefinir a cultura dominante, esses outsiders vieram a constituir uma cultura intelectual minoritária – para não dizer sitiada. Esses eram os “partidários da ULR”. 

A esquerda de Oxford era muito diversificada. Havia um pequeno número de membros do Partido Comunista – incluindo Raphael Samuel, Peter Sedgwick e Gabriel Pearson –, principalmente em Balliol, onde Christopher Hill era tutor em História Moderna. Paralelamente, havia também uma grande massa de apoiadores do Labour Club, a maioria firmemente ligada à Fabian Society12, aos trabalhadores e a posições reformistas, alguns com seus olhos fixos, de modo inabalável, nas futuras carreiras parlamentares. Finalmente, havia os “independentes”, incluindo algumas pessoas sérias do Labour, que não estavam intelectualmente alinhadas a nenhum desses dois campos, mas se viam empurradas de modo desconfortável a eles. O último grupo atraiu mais do que seu quinhão de exilados e imigrantes, o que reforçou seu cosmopolitismo. Charles (Chuck) Taylor era um estudioso francês-canadense da Rhodes, e algo um tanto ambíguo, uma espécie de marxista católico; Dodd Alleyne era de Trinidad; eu, jamaicano; Sadiq al-Mahdi mais tarde iria desempenhar papel significativo no Sudão; Clovis Maksoud era membro fundador do Partido Ba’ath sírio. Alguns, como Alan Lovell, um pacifista do País de Gales; Alan Hall, um classicista escocês; e Raphael Samuel, Gabriel Pearson, Stanley Mitchell e Robert Cassen, judeus, eram o que se poderia chamar hoje de emigrados internos. 

O local de nossos debates era o Clube Socialista, uma organização de esquerda moribunda, mais ou menos abandonada desde os tempos da Frente Popular dos anos 1930, que nós reanimamos. Ficou claro que debates semelhantes estavam sendo desenvolvidos em outras universidades e que deveria haver alguma plataforma comum para essa esquerda estudantil emergente. Isso explica a palavra “Universities” no título da revista que estávamos produzindo. A outra metade de seu título incômodo e nem um pouco comercial sinalizava nossa preocupação com as questões culturais, por intermédio de um link simbólico com a Left Review, uma ampla e pouco ortodoxa publicação literária e cultural das décadas de 1930 e 1940, mais receptiva aos novos movimentos culturais (por exemplo, em sua abertura às correntes modernistas) do que qualquer outra revista “partidária” comparável da época – Brecht, inclusive, fora publicado na Inglaterra nessas páginas. O advento de 1956, no entanto, destruiu as fronteiras universitárias dos debates e nos catapultou para o turbilhão nacional e internacional das políticas de esquerda. A primeira edição de Universities and Left Review, que surgiu na primavera de 1957, teve quatro editores: Raphael Samuel e Gabriel Pearson, que deixaram o PC depois do evento “Hungria”, Charles Taylor e eu, representando “os independentes”. Seu conteúdo e seus colaboradores – Isaac Deutscher, Bourdet, Lindsay Anderson, Thompson, Cole, Eric Hobsbawm, Graeme Shankland, escrevendo sobre planejamento urbano, David Marquand, sobre o filme Lucky Jim13, Joan Robinson, Basil Davidson – demonstram, claramente, essa tradução para um estágio mais amplo. 

As tradições marxistas inglesas

A New Left tinha, na mesma medida, importantes – embora muito diferentes – raízes de outra tradição, representadas pelo New Reasoner. Essa tendência teve sua formação nas políticas da Frente Popular e Comunista da Grã-Bretanha. Alguns dos “Reasoners” – Edward Thompson, John Saville, Rodney Hilton, Christopher Hill, Victor Kiernan, Eric Hobsbawm – tinham pertencido a um enclave único, o Grupo de Historiadores do Partido Comunista, que, sob inspiração da pouco conhecida Dona Torr, desenvolveu uma leitura altamente independente e original da história britânica, assim como uma forma de política marxista que estava muito mais em contato com o radicalismo popular inglês, bastante distinto em estilo e inspiração do que sustentava a liderança do Partido Comunista, por meio de figuras poderosas – mas profundamente sectárias –, como Palme Dutt.

As revelações do XX Congresso estimularam, dentro do partido, uma reavaliação dolorosa de toda a experiência stalinista; o New Reasoner apareceu, pela primeira vez, nesse contexto, como boletim de oposição interna insistindo em um “ajuste de contas” aberto e público. Foi só depois que eles perderam sua luta pelo direito de expressar o que foram oficialmente definidas como opiniões de “facções” – e as disciplinas do centralismo democrático mobilizadas contra eles – que a maioria dos “Reasoners” ou deixou o partido ou foi expulsa; assim, o New Reasoner apareceu como jornal independente de esquerda. A última questão do Reasoner foi planejada e produzida antes de Suez e da Hungria; mas, para ele, esses eventos estavam “circunscritos historicamente”: 

Mesmo a urgência da crise egípcia não pode disfarçar o fato de que os acontecimentos de Budapeste representam um ponto de viragem crucial para o nosso partido. A agressão do imperialismo britânico é mais feia e cínica do que as agressões imperialistas anteriores. Mas a crise no mundo comunista, agora, é de um tipo diferente[3].

Por isso, a New Left representou o encontro de duas tradições políticas diferentes. Como isso ocorreu e de que maneira funcionou? Os detalhes da organização da fusão entre as duas revistas podem ser rapidamente resumidos. Elas continuaram a publicar em conjunto por um tempo, anunciando e promovendo cada uma a outra. Depois de um período, contudo, os dois conselhos editoriais começaram a reunir-se regularmente em torno de uma agenda política mais ampla, a fim de nomear membros do conselho editorial em comum e para recrutar novos membros. Ambos os conselhos estavam cada vez mais preocupados com a luta para manter a viabilidade financeira e comercial das duas publicações. Ainda mais urgente foi o custo em capital humano. Para muitos de nós, a vida normal tinha sido mais ou menos suspensa em 1956. Alguns não tinham parado de girar em círculos, desde então, e se encontravam, com efeito, em um estado de exaustão política extrema. Havia também, de forma positiva, oportunidades que estavam faltando antes para criar uma plataforma política mais ampla, unida à nossa posição. Enquanto estávamos conscientes de nossas diferenças, nossas perspectivas aproximavam-nos cada vez mais nos meses de colaboração. Dessa variedade de fatores saiu a decisão de fundir, e, com candidatos apropriados, como Thompson e outros não dispostos a contribuir, eu temerariamente concordei em me tornar o primeiro editor da New Left Review, com John Saville atuando como presidente do conselho editorial. 

A primeira New Left Review 

A New Left Review nesse formato durou dois anos. Acredito que ela nunca tenha sido um periódico mais bem-sucedido ou distinto do que qualquer um de seus antecessores. O ritmo bimestral e as pressões para nos conectarmos com questões políticas imediatas nos tornaram mais uma “revista” de esquerda do que propriamente um “periódico”. Isso exigiu uma mudança de estilo jornalístico e editorial que não se encaixava na intenção política original e em relação à qual o conselho não estava preparado. Havia diferenças de ênfase e de estilo de trabalho no interior do conselho editorial, o que transformou o principal peso político e de autoridade do movimento, bem como o pequeno grupo editorial de trabalho, que começou a se reunir próximo ao número 7 da Carlisle Street, em Soho. 

Os “New Reasoners” – Edward e Dorothy Thompson, John Saville e outros da equipe Reasoner, como Ronald Meek, Ken Alexander e Doris Lessing – pertenciam a uma geração política formada pela experiência da Frente Popular e dos movimentos antifascistas dos anos 1930, dos movimentos de resistência europeus durante a Guerra, das campanhas da “Segunda Frente” pela “amizade com a União Soviética” e da virada popular à esquerda, refletida na vitória do Labour, em 1945. Embora alguns comunistas mais jovens da tendência na ULR também pertencessem a tal tradição, sua relação com ela fora sempre diferente. Em sua esmagadora maioria, o centro de gravidade da geração ULR estava irrevogavelmente localizado no “pós-guerra”. E essa não foi uma diferença de idade, mas de formação mesmo – uma questão de gerações políticas, dentro das quais a Guerra constituiu a linha divisória simbólica. Essas diferenças criaram tensões sutis que submergiram devido à nova publicação. 

As diferenças de formação e de estilo político de trabalho foram ampliadas pela localização das duas tendências em dois ambientes sociais e culturais bastante distintos. A base da The New Reasoner estava em Yorkshire e no Norte industrial. Embora houvesse muitos leitores em outros lugares, estava organicamente enraizada no interior de uma cultura política provincial – não apenas no movimento dos trabalhadores, mas também em organizações, como a Yorkshire Peace Committee – e parecia fortemente desconfiada em relação a “Londres”. A ULR também atraiu o apoio de várias partes do país, mas ela dizia respeito muito mais ao que os “Reasoners” viam como o eixo “cosmopolita” ou de “Oxford-Londres”. Apesar de não os entendermos conscientemente na época, os ULR-ERS eram modernistas, se não realmente “cosmopolitas”. Como um colonial que eu era, certamente me sentia em casa, de maneira instintiva, na cultura mais socialmente anônima e metropolitana, embora lamentasse a falta entre os ULR de ligações orgânicas em relação à vida da classe trabalhadora não metropolitana. 

Já devia estar claro que, mesmo dentro dos conselhos editoriais dos periódicos originais, a New Left estava longe de ser monolítica e, certamente, nunca se tornou culturalmente ou politicamente homogênea. As tensões foram, em sua maior parte, manipuladas de forma humana e generosa. Entretanto, qualquer leitor mais atento das revistas, rapidamente, será capaz de identificar os pontos reais de diferença e, por vezes, os debates ferozmente disputados que vieram à tona em suas páginas. Por isso, seria muito errado tentar reconstruir, retrospectivamente, uma “New Left” essencial, bem como impor a ela uma unidade política que nunca possuiu. No entanto, ainda que quaisquer dois membros nunca fizessem a mesma listagem de características, havia um conjunto de temas relacionados que ordenou um assentimento amplo o suficiente para torná-la distinta como formação política. Minha leitura é aqui centrada no argumento de que qualquer perspectiva para a renovação da esquerda tinha que começar com uma nova concepção de socialismo e com uma análise radicalmente nova das relações sociais, da dinâmica e da cultura do capitalismo do pós-guerra. Longe de constituir um modesto exercício de atualização, esse foi um projeto intelectual de longo alcance, ambicioso e multifacetado. No que se refere ao socialismo em questão, significava chegar a um acordo com as experiências deprimentes, tanto do “socialismo realmente existente” quanto da “democracia social realmente existente”, e transformar, à luz dessas experiências, a própria concepção de “político”. Já no que concerne a essa última questão, o que chamamos de moderno “capitalismo corporativo” tinha formas econômicas, organizacionais, sociais e culturais muito diferentes. Ele funcionava segundo uma “lógica” diferente daquela do capitalismo empresarial, descrita nas teses clássicas de Marx ou embutida na linguagem e na teoria da esquerda e inscrita em suas agendas, instituições e em seus cenários revolucionários. Para muitos de nós (embora não para todos), essa luta para fundamentar o socialismo a partir de uma nova análise de “nossos tempos” foi primária e originária – ou seja, de onde todo o projeto da New Left começou. 

O diagnóstico dominante oferecido era o de que estávamos entrando em uma sociedade “pós-capitalista”, em que os principais problemas de distribuição social tinham sido resolvidos pelo boom do pós-guerra, acoplado à expansão do Estado de bem-estar, à regulação macroeconômica keynesiana e à revolução gerencial com “face humana”. Todos esses foram elementos que, mais tarde, vieram a ser conhecidos como “corporativismo” – grande capital, grande Estado – ou, de outro ponto de vista, como o “consenso do pós-guerra”. Eles levaram a uma erosão das culturas de classe tradicionais e ao “aburguesamento” da classe trabalhadora. Contrapondo-se a esse cenário, estava o argumento da “Velha Esquerda”, que acreditava que, enquanto o sistema continuasse a ser claramente capitalista, nada de significativo iria mudar. As classes e a luta de classes eram as mesmas de sempre, e questionar isso era trair a causa revolucionária. 

A maioria dos integrantes da New Left, todavia, recusou essa lógica binária. As novas formas de propriedade, a organização corporativa e a dinâmica da acumulação e do consumo modernos requeriam uma análise mais atualizada. Esses processos tiveram efeitos sobre a estrutura social e a consciência política da época. Mais amplamente, a propagação do consumismo tinha desarticulado muitas atitudes culturais tradicionais e hierarquias sociais, e isso gerou consequências para a política, para partidários da mudança e para as instituições e agendas da esquerda, com as quais o socialismo teve que chegar a um acordo. Mesmo faltando muito material nativo ainda para seguir em frente, alguns analistas americanos – Riesman, Galbraith, Wright Mills –, que estavam na vanguarda desses desenvolvimentos, forneceram nossa principal aquisição em relação a esses argumentos. 

Cultura e política

Intimamente ligado a isso tudo estava o argumento acerca da contraditória e politicamente indeterminada “deriva” do social e da mudança cultural. Tais mudanças pouco induziram a uma transformação da sociedade de modo claro, embora, ambiguamente, elas desmantelassem muitas das antigas relações e formas sobre as quais a esquerda estava edificada, bem como o projeto de socialismo que tinha sido historicamente construído. 

Novamente, havia pelo menos duas versões que competiam sobre isso. Uma afirmava que, desde que a estrutura de classes britânica fundamental permanecesse a mesma, a “mudança” seria apenas de um tipo “sociológico” mais superficial. Isso destacou diferenças incidentais e, sobretudo, estilísticas em áreas marginais de estudo, tais como as novas atitudes e o estilo de vida entre os jovens, os novos padrões da vida urbana, o movimento de êxodo das cidades do interior, a crescente importância do consumo na vida cotidiana, o “enfraquecimento” de antigas identidades sociais, e assim por diante, o que não tocava “o fundamental”. Essa abordagem fundamentalista correspondia, por outro lado, a uma implacável celebração da mudança em si, e sobre a qual a nova mídia de massas investiu maciçamente. Com a expansão do “novo jornalismo” e a emergência da televisão comercial, a sociedade parecia enfeitiçada pelas imagens de si própria em movimento, refletindo suas iluminadas facetas consumistas. Novamente, a New Left insistiu em não ocupar nenhuma dessas alternativas simplistas, optando por uma “terceira” e mais complexa descrição. Não havia consenso entre nós sobre os termos em que entendíamos essas mudanças (a troca entre eu, Edward Thompson e Raphael Samuel em minha obra especulativa, “A Sense of Classlessness”, nas páginas da ULR, é um locus classicus desse debate), mas estávamos de acordo sobre a significância deles. Em minha visão, muito disso foi criativo, embora caótico e impressionista sobre a “imagem do mundo” que vinha das páginas da New Left, cujo frescor e vitalidade (tanto quanto seu caráter utópico) são devidos aos esforços de se esboçar os sentidos dos inconstantes contornos da mudança. Esse foi, de fato, um ponto em que os investimentos da New Left nos debates sobre cultura emergiram em um momento inicial. Primeiro porque era no domínio cultural e ideológico que a mudança social parecia se fazer mais dramaticamente visível. Segundo porque a dimensão cultural não nos parecia secundária, mas sim uma dimensão constitutiva da sociedade – isso reflete parte da longa desavença entre a New Left e o reducionismo e o economicismo da metáfora base-superestrutura. Terceiro porque o discurso da cultura nos parecia fundamentalmente necessário para qualquer linguagem na qual o socialismo pudesse ser reescrito. A New Left, portanto, deu os primeiros e vacilantes passos no sentido de colocar questões de análise e política cultural no centro de sua política. 

De modo diferente, a New Left lançou um ataque contra a limitada definição de “política” e buscou projetar em seu lugar uma “concepção expandida do político”. Se essa ideia não se disseminou tão rápido quanto o princípio feminista de “o pessoal é político”, certamente, abriu-se para a crítica dialética entre “problemas privados” e “questões públicas”, que afastou a concepção convencional de política. A lógica implicada nessa postura sugeria que aquelas “dimensões ocultas” deveriam ser representadas nos discursos “do político” e que as pessoas comuns poderiam e deveriam organizar-se, onde quer que estivessem, em torno de questões da experiência imediata; deveriam começar a articular suas insatisfações, em uma linguagem existencial, e construir uma agitação a partir desse ponto – tal era a fonte de nosso muito debatido “humanismo socialista”. A definição expandida do político também ocasionou o reconhecimento da potencial proliferação de ambientes de conflito social e grupos partidários pela transformação. Embora fôssemos a favor de um sindicalismo forte, contestávamos também a ideia de que somente aqueles do “âmbito da produção” poderiam fazer a revolução.

A crítica ao reformismo e ao seu singular representante britânico, o trabalhismo, foi perpetrada pelo discurso alargado sobre “o político”. Nós buscávamos uma transformação mais radical e estrutural da sociedade: em parte porque estávamos comprometidos com muitas das perspectivas fundamentais do programa socialista clássico; em parte porque víamos, no capitalismo moderno, uma maior concentração do poder social e podíamos traçar o impacto da “mercantilização” em regiões mais afastadas das áreas de exploração do trabalho assalariado; mas, acima de tudo, por conta da crítica mais ampla “à civilização e à cultura capitalistas”. Ninguém expressou o caráter constitutivo e fundamental desse argumento feito pela e na New Left mais profundamente do que Raymond Williams. Foi nesse sentido que permanecemos “revolucionários”, embora tenhamos retido pouca fé em uma tomada vanguardista do poder do Estado. A oposição entre “reforma” e “revolução” parecia, para muitos de nós, ultrapassada: é mais uma maneira de depreciar e amaldiçoar os outros do que, propriamente, um real valor histórico- -analítico em si. Nós procurávamos, então, de diferentes maneiras, superar tal oposição. 

Desse e de outros modos significativos, a tendência dominante da New Left era “revisionista”, sobretudo no que se refere ao trabalhismo e ao marxismo. Nós surgimos e vivemos ainda hoje na era dos “muitos marxismos”. Poucos de nós – se é que algum – poderiam ser descritos depois de 1956 como “ortodoxos”; principalmente, porque, embora sustentássemos diferenças acerca de quanto do marxismo poderia ser transposto sem “revisão” à segunda metade do século, todos recusávamos a enxergá-lo como doutrina rígida e acabada ou, então, como texto sagrado. Por exemplo, foi de considerável importância para nós a redescoberta, por meio de Chuck Taylor, dos Manuscritos econômico-filosóficos, de Marx, com seus tópicos sobre a alienação, o ser genérico e as “novas necessidades”, que Taylor trouxe de Paris, em 1958, e que apenas pouco tempo depois ganhou uma versão em inglês. 

Os clubes da New Left 

Havia muitos outros temas que qualquer abordagem compreensiva seria obrigada a discutir: o debate acerca do “socialismo humanista”; as análises sobre o Terceiro Mundo e, em conexão com as Campanhas para o Desarmamento Nuclear, o “neutralismo”, a OTAN e o desarmamento; a cultura popular e a mídia. Entretanto, tendo em vista que a New Left é, frequentemente, rotulada como uma formação fundamentalmente intelectual, seria mais apropriado lembrar os leitores que a “primeira” New Left, embora de modo errôneo, se pensava mais 227 2014 Vida e época da primeira New Left como um movimento do que simplesmente como periódico. De forma resumida, depois da publicação do primeiro número, a ULR convocou sua primeira “reunião com leitores”, em uma pouco auspiciosa tarde de domingo, que foi sucedida pela fundação do Clube Londrino da ULR. Nos primeiros anos, o Clube (posteriormente chamado de London New Left Club) atraiu aos seus encontros semanais entre trezentos e quatrocentos espectadores, vindos de todo o espectro da esquerda. Em certo momento, isso forneceu um ponto focal de contenção extremamente importante, vivo e frequentemente controverso para as pessoas sem comprometimento político formal. Era algo que diferia da típica organização ou seção da esquerda, já que o propósito não era recrutar membros, mas engajá-los em uma cultura política de esquerda, em uma frente ampla, por meio da argumentação, do debate e da educação. 

O Clube se tornou um importante e independente centro para a esquerda política de Londres, particularmente depois que fundou uma sede permanente – por intermédio de outra atitude desesperadoramente arriscada, porém inovadora e brilhante, de Raphael Samuel –, no Partisan Café, na rua Carlisle. Esse foi o primeiro “Bar-Café” esquerdista em Londres, com um clube e uma biblioteca no piso superior. No quarto piso, fixamos os escritórios da ULR, que depois serviram à NLR. Após a fusão, numerosos clubes de esquerda se espalharam pelo país. O último número da NLR que editei, o 12°, listou trinta e nove clubes em diferentes condições politicamente vitais. Os clubes refletiam em seus programas e composições o caráter cultural e político de suas localidades: os Clubes de Manchester e Hull tinham proximidade com o movimento local de trabalhadores; a Liga Socialista de Fife estava ligada, por meio de Lawrence Daly, a um movimento socialista independente entre os mineiros na Escócia; os Clubes de Croydon e Hemel Hempstead tinham mais um sentimento “inter-classista” ou, ainda, “novo supraclassista”. 

Desde muito cedo, o Clube Londrino da New Left encampou o pioneirismo na propaganda e na panfletagem da primeira CND (Campanha para o Desarmamento Nuclear) Aldermaston March, pioneirismo esse que os filiados do clube apoiaram em massa. Esse foi o princípio de estreitas relações entre a New Left, o movimento moderno pela paz no Grã-Bretanha e a origem da CND como organização política de massas. Entre suas outras atividades, o Clube da New Left em Londres tornou-se muito envolvido com os distúrbios de 1958, em Nothing Hill, e com as lutas antirracistas do período na região de North Kensington. Participamos dos esforços para estabelecer associações de moradores na região; ajudamos a proteger os negros que, no auge dos “problemas”, foram molestados e acossados pelas multidões brancas enfurecidas entre a estação de Nothing Hill e suas casas; e piquetamos o Mosley e outros grupos de extrema direita. No curso desse trabalho, primeiro tropeçamos nos fortes traços de racismo dentro do Partido Trabalhista – Rachel Powell, membro ativo do clube, desenterrou o escândalo do “Rachmanismo” e a exploração pelo senhorio branco em Nothing Hill. 

Peter Sedgwick, certa feita, observou apuradamente que a New Left era menos um movimento que um “milieu”. Ele assinalou, inclusive, para a falta de uma estrutura organizacional mais firme, uma concepção solta de liderança, hierarquias planificadas, ausência de filiação, regras, regulamentos, programa partidário ou uma “linha” que caracterizasse a New Left, em agudo contraste com outras tendências políticas e setores da extrema esquerda. Essas características eram produto de nossas críticas às formas de organização do leninismo e do centralismo-democrático, bem como de nossa ênfase na auto-organização e na política participativa, que hoje podemos ver, retrospectivamente, como “prefigurativa” de muito do que estava por vir. Sedgwick deve também ter obliquamente comentado sobre a baixa participação da classe trabalhadora – ou, para ser mais preciso, sobre a “competição entre classes”, embora não entre todas elas, na maioria dos clubes da New Left. Isso poderia ser visto – como de fato era – como uma séria fraqueza; porém, por incrível que pareça, também produzia algumas compensações. Os clubes eram particularmente fortes em estratos sociais emergentes e cenários de classes mais rapidamente mutáveis em recomposição-decomposição do pós- -guerra na Grã-Bretanha. Esse fato nos separou não do trabalhador comum, pois tínhamos muitos deles como apoiadores ativos, mas da cultura política do movimento trabalhista tradicional e dos quadros revolucionários dos demais setores. No entanto, isso concedeu à New Left um acesso privilegiado ao afiado, atritado e contraditório processo de mudança social. 

Prática prefigurativa

Com todas as suas fraquezas, os clubes representavam o projeto da New Left de ser um novo tipo de entidade socialista: não um partido, mas um “movimento de ideias”. Eles foram um sinal de que, para nós e para a esquerda, a “questão da agência” tinha se tornado profundamente problemática. Adotamos essa abordagem em parte por convicção, mas também porque imaginávamos que um movimento de pessoas comuns na política – quebrando a crosta de opiniões convencionais e alinhamentos ortodoxos em suas vidas, a partir de um aspecto concreto, começava- -se a “tomar atitudes por si próprios” – seria politicamente mais significante do 229 2014 Vida e época da primeira New Left que a maioria das “linhas mestras”. Outro motivo foi que vimos na CND o embrião de uma nova forma de mobilização – além, por assim dizer, dos grandes batalhões do partido –, capaz de refletir em torno de certas forças sociais emergentes e aspirações características de seu tempo e em relação à qual era necessário à esquerda desenvolver uma nova prática política. 

A CND foi uma das primeiras desse tipo específico de “movimento social” a aparecer na política, no pós-guerra – um movimento popular com um impulso radical inequívoco e um conteúdo implícito anticapitalista, formado mediante auto-organização na sociedade civil, em função de um tema concreto, mas sem uma clara composição de classe e mais atraente às pessoas por meio das linhas fortemente marcadas da identidade de classe tradicional e das lealdades organizacionais. Já era possível reconhecer nesses novos movimentos alguns produtos da sociedade moderna e aspectos do antagonismo social que tinham atestado a dificuldade de se construir algo dentro da agenda organizacional da esquerda tradicional – como o movimento dos direitos civis, em seu tempo, as questões feministas e sexuais, os problemas ecológicos e ambientais, a política de comunidade, direitos sociais [welfare rights] e as lutas antirracistas, nos anos 1970 e 1980. Sem esses movimentos sociais, entretanto, nenhuma mobilização política de massas ou movimento para transformações radicais seriam, hoje, concebíveis. 

Finalmente, o que a CND levantou para a New Left – como sempre fazem os novos movimentos sociais – foi o problema de como articular esses novos impulsos e forças sociais com a classe política da esquerda tradicional e como, por meio dessa articulação, o projeto da esquerda poderia ser transformado. O fato de que não tivemos maior sucesso que a esquerda teve quando tentou construir um “bloco histórico” a partir dos interesses sociais heterogêneos, movimentos políticos e agendas, de modo a construir uma prática política hegemônica das e com as diferenças, não nega a urgência da tarefa. O que podemos aprender da “primeira” New Left é quais questões colocar, e não quais respostas produzir. 

No que concerne ao Partido Trabalhista, pode-se dizer que muitos dos que estavam na New Left ou que se encontravam ao redor dela eram membros do partido. Muitos não. Como movimento, nossa posição frente ao partido era bem clara. Nossa independência dos vínculos organizacionais, controles, rotina e disciplina partidária eram essenciais ao projeto político que tínhamos em mente. O voto da maioria, no unilateralismo na Conferência do Partido Trabalhista, para o qual muitos de nós fizemos campanha, foi um claro exemplo de “derrota-na-vitória”, como resultado dos erros na campanha vitoriosa de uma plataforma com novas posições políticas populares. No interior da máquina, a CND murchou e reduziu-se a uma espécie de talismã, um fetiche das resoluções das conferências do partido, um joguete das manobras do voto em bloco, sem tocar o solo da consciência política ou a atividade de pessoas reais. 

Ao mesmo tempo, reconhecemos o fato de o socialismo na Grã-Bretanha ter sido inextrincavelmente ligado ao destino e à sorte do trabalhismo. Reconhecemos o Partido Trabalhista como aquele que, por bem ou por mal, hegemonizou a grande maioria da classe trabalhadora organizada com uma política reformista. Honramos sua ligação histórica com o movimento sindicalista. Entendemos que esse foi o motor da revolução do “Estado de bem-estar”, de 1945, que nunca subestimamos, porque representou uma reforma, em vez de uma derrubada, do sistema. Permanecemos profundos críticos da Fabian Society e da cultura trabalhista do partido, de seu “estatismo”, sua carência de enraizamento popular na vida política e cultural das pessoas comuns, sua suspeita burocrática de qualquer ação independente ou “movimento” fora de seus limites, assim como seu profundo anti-intelectualismo. Opusemo-nos a seus procedimentos profundamente antidemocráticos do voto em bloco e ao “constitucionalismo” vazio do partido. Ademais, reconhecemos que, gostássemos ou não, o Partido Trabalhista havia representado a estratégia grevista na política britânica, o que ninguém pode ignorar. 

Nós, entretanto, desenvolvemos uma política aberta e polêmica em relação à liderança de Geitskell15, por um lado, e à perspectiva do “nada-mudou, reafirme Cláusula 4” da esquerda tradicional, por outro; assumimos – aqui e em todo lugar – uma terceira posição, abrimos um “terceiro front”. Nos debates revisionistas dos anos 1950 e 1960, opusemo-nos ao “pós-capitalismo”, às teses da “face humanizada do capitalismo corporativo”, propostas em O futuro do Socialismo, de Crosland16, enquanto o tomávamos como um formidável e inteligente oponente. Insistimos – inclusive contra o imobilismo doutrinário da maior parte do trabalhismo e do sindicalismo de esquerda – sobre a necessidade de fundamentar as perspectivas da esquerda em análises mais renovadas das condições do capitalismo pós-guerra e da mudança social. Algumas pessoas continuaram a trabalhar nisso desde dentro do Partido Trabalhista; outras trabalharam de fora dele. Não enxergávamos como poderia haver uma linha “mestra” nesse aspecto, enquanto havia tão pouca relação entre o que as pessoas queriam politicamente e o veículo para se atingir isso. Nossa estratégia era, portanto, contornar esse caminho e, como alternativa, envolver as pessoas, qualquer que fossem suas filiações, na atividade e no debate político independentes. 

Essa estratégia “paralela” requereu, como condição necessária, a manutenção de periódicos, clubes, uma rede de contatos e formas de demonstração, argumentos e propaganda para se articular essa “terceira posição”, que não estava sujeita à rotina do HQ17 (headquarter) do Trabalhismo, em Transport House, mas que fora pensada para retornar ao partido e ter efeitos políticos internos, reverberando, assim, no movimento dos trabalhadores. Chamamos essa estratégia de “um pé dentro, um pé fora”. 

Indo em direção ao povo

Que tipo de liderança organizacional essas estratégias pressupunham? A metáfora para a qual constantemente retornávamos era a da “propaganda socialista”. Conforme Edward Thompson relata em New Reasoner:

A New Left não se coloca como organização alternativa em relação àquelas já existentes no campo; em vez disso, oferece duas coisas àqueles que estão dentro ou fora das organizações existentes – uma propaganda específica de ideias e certos serviços práticos (periódicos, clubes, escolas, etc).[4]

A noção de uma “propaganda socialista de ideias” foi, é claro, emprestada direta e explicitamente de William Morris e das relações entre os intelectuais, forjadas na Liga Socialista, lutando para se tornarem o que Gramsci chamou de “orgânicos” da classe trabalhadora. Tínhamos sido inspirados pelo capítulo “Making socialists”, do livro William Morris: romantic to revolutionary, de Thompson. De fato, o primeiro editorial da NLR foi formatado, em suas extremidades, por uma passagem de Morris no artigo “Commonweal”, de julho de 1885: “O movimento trabalhista não está em sua fase insurrecional”. Eu acrescentei: “Nós estamos em nossa fase missionária”19.

Embora não estivesse totalmente teorizada, essa concepção de liderança estava fundamentada em certos pressupostos manifestos. O primeiro era a necessidade de desafiar o habitual anti-intelectualismo do movimento trabalhista britânico e superar a tradicional divisão entre intelectuais e classe trabalhadora. O segundo era o repúdio a três modelos alternativos: as concepções “vanguardistas” e “democrático-centralistas” da liderança revolucionária; a noção fabianista de “especialistas” da classe-média atuando no interior da máquina do Estado, a fim de proporcionar o socialismo para a classe trabalhadora; e a tradicional fé da esquerda trabalhista em relação aos mecanismos constitucionais, às resoluções de conferências, à vitória por votação em bloco e à conquista eleitoral ligeiramente mais à “esquerda”20. O terceiro era nossa visão de que as mudanças na sociedade britânica produziram um grande número de novas camadas sociais, que, no pós-guerra, tiveram acesso à educação e à propaganda socialista. Quarto, tínhamos uma profunda convicção de que, contra o economicismo stalinista, trotskysta e trabalhista assemelhados, o socialismo era um movimento democrático consciente, e os socialistas eram produzidos, e não nasciam ou se criavam por leis inevitáveis da história ou do processo objetivo do modo de produção em si. 

Também desafiamos a visão predominante de que a assim chamada sociedade afluente pudesse erodir o apelo da propaganda socialista – como se o socialismo somente pudesse emergir da miséria e da degradação. Nossa ênfase nas pessoas agindo por si próprias, “construindo o socialismo desde baixo” e no “aqui e agora” não estava esperando por alguma revolução abstrata que transformasse tudo em um piscar de olhos; por isso, à luz da re-emergência desses temas após 1968, provou-se contundentemente prefigurativa, tal como afirmamos no primeiro número da NLR:

Tivemos de ir a bairros e cidades, universidades e cursos técnicos, clubes da juventude e almoços de sindicatos – como disse Morris – para produzir socialistas ali. Atravessamos 200 anos de capitalismo e 100 anos de imperialismo. Por que as pessoas deveriam – naturalmente – tornarem-se socialistas? Não há lei que diga que o Movimento Trabalhista, como uma grande máquina inumana, deva trilhar seu caminho em direção ao socialismo ou que nós podemos, a qualquer momento [...], contar com a pobreza e a exploração para dirigir a população, como animais cegos, rumo ao socialismo. Socialismo é, e permanecerá sendo, uma fé ativa em uma nova sociedade, para a qual nos voltamos como seres humanos pensantes e conscientes. O povo deve ser confrontado com a experiência, chamado à “sociedade de iguais”, não porque as coisas nunca estiveram piores, mas porque essa sociedade é melhor do que a melhor das sociedades capitalistas de consumo, e porque a vida é algo a ser vivida, e não algo pelo qual se passa, assim como o chá pelo coador[7].

Tal postura pode parecer inocente e, certamente, foi tomada como “utópica” e “populista” desde o início. No entanto, foi populista no sentido Narodnik, de “ir até o povo” e em termos do que eles/nós precisavam/ávamos se/nos tornar, mais do que no sentido de massagear o consenso popular com apelos cínicos que lhes apontem o que é melhor. Tínhamos uma instintiva, se não bem formulada, noção de que o projeto socialista deveria estar enraizado aqui e agora, e conectado à experiência vivida: com aquilo que sempre aprendemos a chamar de “nacional-popular”. O “povo”, é claro, é sempre uma construção discursiva, e a distorção de um preciso referente social, no populismo dos primórdios da New Left, foi certamente significativo. Contudo, há mais do que um tipo de populismo, e isso pode, apesar de seus problemas, estar articulado tanto à direita quanto à esquerda, servindo tanto para colocar em curto-circuito quanto para desenvolver antagonismos populares. O “populismo” do início da New Left era, com certeza, do segundo tipo, tal como Edward Thompson, seu principal arquiteto, argumenta em New Reasoner:

O que distinguirá a New Left será sua ruptura com a tradição de fragmentação interna do partido e sua renovação da tradição de livre associação, educação socialista e atividade direcionada ao povo como um todo [...]. Insistirá que o Movimento Trabalhista não é uma coisa, mas uma associação de homens e mulheres; que os trabalhadores não são recipientes passivos das condições culturais e econômicas, mas seres intelectuais e morais [...]. Apelará ao povo com argumentação racional e desafio moral. Irá contrariar o materialismo burguês e o anti-intelectualismo da velha esquerda, recorrendo para tanto à totalidade dos interesses e potencialidades humanas e construindo novos canais de comunicação entre os trabalhadores industriais e os especialistas em artes e ciências. Deixará de postergar as necessidades do socialismo para um hipotético período “pós-revolucionário” e procurará promover no presente, em particular nos grandes centros de concentração da classe trabalhadora, um rico senso comunitário.[8]

As tensões e contradições envolvidas nesse “populismo” nunca foram completamente resolvidas. As rápidas mudanças na estrutura social, no período pós-guerra, que nós constantemente tentamos caracterizar sem, no entanto, fixá- -las precisamente, dividiram de modo desigual a New Left; falhamos ao tentar erigir essas diferenças em um novo “bloco histórico”, embora essa fosse nossa intenção implícita. As tensões aludiam à oposição entre o norte provinciano e uma Londres cosmopolita, como versões posteriores da divisão Norte/Sul – mas que eram muito mais complexas do que essa simples oposição sugere. Não obstante, elas eclipsaram diferenças importantes no ritmo e no caráter da decomposição e recomposição social, na sociedade britânica do pós-guerra, e veio para ficar, de forma metonímica, em meio ao chão diversificado da política, sem prover um princípio de articulação. As tensões entre intelectuais e ativistas eram um problema contínuo e largamente tácito, conectado à questão mais ampla do status incerto do intelectual na vida cultural inglesa em geral e o filisteísmo inábil da esquerda. Atravessando todas essas tensões, em outra direção, estavam as quase totalmente disfarçadas questões do gênero – o fato de que a maior parte das lideranças do corpo editorial era constituída por homens e que a grande parcela do trabalho real recaía sobre as mulheres: a usual divisão sexual do trabalho, reproduzida tão frequentemente na esquerda. Sobre essa última questão, a New Left manteve-se – como fazia o restante da esquerda – profundamente inconsciente. 

Nós esperávamos que os clubes desenvolvessem suas próprias organizações, lideranças e canais de comunicação independentes (talvez até seus próprios panfletos e boletins), deixando o periódico livre para desenvolver seu projeto. Mas nos faltaram recursos para que isso acontecesse, o que exacerbou, nos clubes, o sentimento de que eles não tinham nenhum controle sobre a revista, e, no conselho editorial, o receio de que um periódico de ideias pudesse não circular efetivamente pelos comitês. Essa foi, com efeito, a última questão, que veio acompanhada de pressões transversais e que precipitou minha demissão voluntária da editoria da New Left, em 1961.

Não tentei fazer, aqui, uma avaliação completa da New Left, que eu vejo como apenas um primeiro estágio de constituição de um novo tipo de esquerda política. Parece-me absurdo tentar realizar seu registro detalhado ou impor, retrospectivamente, uma consistência que ela não possui. Suas forças e fraquezas, seus erros e enganos ainda permanecem e são incontestáveis – para serem ensinados, mais do que para serem repudiados. Não obstante, faço uma distinção mordaz entre o que fizemos e como fizemos e o projeto mais amplo. Permaneço comprometido com este último como sempre fui. O “terceiro espaço” que a “primeira” New Left definiu e tentou apreciar de modo aberto me parece a única esperança para a renovação do projeto socialista e democrático, em nossos novos e desconcertantes tempos.

Notas

1. Este ensaio é dedicado à memória de Alan Hall, com quem compartilhei muitas das experiências daqueles tempos. Conheci Alan quando ele veio de Aberdeen para Balliol, em 1952. Em seguida, ele lecionou clássicos em Keele e foi um arqueólogo apaixonado pelas ruínas greco-romanas em Anatólia. Desempenhou papel central no início da New Left (incluindo a passagem da primeira para a segunda geração), mas morreu, tragicamente, em seus cinquenta anos, antes de ter oportunidade de se registrar na história da New Left. “The first New Left: life and times” foi originalmente apresentado como paper, em 1988, na conferência “Out of Apathy”, acerca da New Left, realizada em Oxford. Uma versão mais longa apareceu na coleção Out of apathy: voices of the New Left thirty years on, Londres, 1989, editado por Robin Archer e outros. 
2. Editorial, Universities and Left Review 1, Spring 1957, p. i. 
3. E. P. Thompson, ‘Through the Smoke of Budapest’, Reasoner, November 1956. 
4. Thompson, ‘The New Left’, New Reasoner 9, Summer 1959, p. 16. 
5. Hall, ‘Introducing NLR’, NLR 1/1, Jan-Feb 1960, p. 2.
6. Thompson, ‘The New Left’, p. 16. 
7. Hall, ‘Introducing NLR’, p. 3.

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