27 de setembro de 2010

Pequena mudança

Por que a revolução não será tuitada.

Por Malcolm Gladwell

The New Yorker

A mídia social não pode fornecer o que a mudança social sempre exigiu. SEYMOUR CHWAST

Tradução / ÀS QUATRO E MEIA da tarde da segunda-feira 1º/2/1960, quatro universitários se sentaram ao balcão da lanchonete de uma loja Woolworth's no centro de Greensboro, na Carolina do Norte. Eram calouros na North Carolina A&T, faculdade para negros localizada a pouco mais de 1 km dali.

"Um café, por favor", disse um deles, Ezell Blair, à garçonete.

"Não atendemos crioulos aqui", ela respondeu.

O comprido balcão em L comportava 66 pessoas sentadas; numa das pontas, comia-se de pé. Os assentos eram para os brancos. A área onde se comia de pé era para os negros. Outra funcionária, uma negra encarregada da estufa, tentou convencê-los a sair: "Vocês estão sendo burros, seus ignorantes!". Eles não se mexeram.

Por volta das cinco e meia as portas principais da loja foram fechadas. Os quatro continuaram lá. Por fim, saíram por uma porta lateral. Do lado de fora, formara-se uma pequena multidão, incluindo um fotógrafo do jornal "Record", de Grensboro. "Volto amanhã, com o A&T College inteiro", disse um dos universitários.

Na manhã seguinte, o protesto havia se expandido e o grupo somava 27 homens e quatro mulheres, em grande parte do mesmo alojamento dos quatro manifestantes originais. Os homens estavam de terno e gravata. Todos levaram material e ficaram no balcão, estudando. Na quarta, veio a adesão dos alunos do colégio "para crioulos" de Greensboro, a Dudley High, e o número de manifestantes subiu a 80. Na quinta, já eram 300, incluindo três brancas, do campus local da Universidade da Carolina do Norte.

No sábado, o protesto contava 600 pessoas, espalhadas pelas calçadas em torno da loja. Adolescentes brancos assistiam, acenando com bandeiras da Confederação.1 Alguém soltou um rojão. Ao meio-dia, chegou o time de futebol americano da A&T. "Lá vêm os baderneiros", berrou um dos estudantes brancos.

Na segunda seguinte, o protesto já havia chegado a Winston-Salem, a 40 km dali, e Durham, a 80 km. No dia seguinte, veio a adesão dos alunos do Fayetteville State Teachers College e do Johnson C. Smith College, em Charlotte, seguidos, na quarta, pelos alunos do St. Augustine's College e da Universidade Shaw, em Raleigh. Na quinta e na sexta, o protesto atravessou as divisas do Estado e novas manifestações surgiram em Hampton e Portsmouth, na Virgínia; em Rock Hill, na Carolina do Sul; e em Chattanooga, no Tennessee. No final do mês, manifestações semelhantes estavam sendo realizadas em todo o sul dos Estados Unidos, chegando até o Texas, no oeste.

"Perguntei a cada um dos estudantes que encontrei como tinha sido o primeiro dia de protesto em seu campus", escreveu o cientista político Michael Waltzer ?em artigo na revista "Dissent". "A resposta foi sempre a mesma: 'Foi uma febre. Todo mundo queria participar'."

Por fim, cerca de 70 mil estudantes aderiram. Milhares deles foram detidos, e outros tantos se radicalizavam. Esses acontecimentos do começo dos anos 60 se tornaram uma guerra dos direitos civis que engolfou o sul dos Estados Unidos até o final da década -e tudo aconteceu sem e-mail, mensagens de texto, Facebook ou Twitter.

Dizem que o mundo passa por uma revolução. As novas ferramentas de redes sociais reinventaram o ativismo social. Com Facebook, Twitter e que tais, a relação tradicional entre autoridade política e vontade popular foi invertida, o que facilita a colaboração mútua e a organização dos desprovidos de poder e dá voz às suas preocupações.

Quando 10 mil pessoas saíram às ruas na Moldova, no leste europeu, segundo trimestre de 2009, em protesto contra o governo comunista, a ação ganhou o nome de revolução via Twitter, por causa dos meios utilizados para arregimentar os manifestantes.

Meses depois, quando protestos estudantis abalaram Teerã, o Departamento de Estado americano tomou a providência inusual de solicitar ao Twitter que suspendesse uma pausa programada para manutenção do site, pois o governo não desejava que uma ferramenta tão vital estivesse inativa no auge das manifestações. "Sem o Twitter, o povo do Irã não se teria sentido capaz e confiante o bastante para sair em defesa da liberdade e da democracia", escreveu o ex-assessor de segurança nacional Mark Pfeifle, clamando para que o Twitter ganhasse o Prêmio Nobel da Paz.

Se antes os ativistas eram definidos por suas causas, agora são definidos pelas ferramentas que empregam. Os guerreiros do Facebook entram na internet para pressionar por mudanças. "Vocês são a nossa grande esperança", disse James Glassman, ex-alto funcionário do Departamento de Estado, a uma plateia de ciberativistas em recente conferência patrocinada por Facebook, AT&T (companhia telefônica), Howcast (site de vídeos), MTV e Google.

Sites como o Facebook, disse Glassman, "oferecem aos EUA uma considerável vantagem competitiva diante dos terroristas. Algum tempo atrás, eu disse que 'a Al Qaeda está jantando a gente na internet'. Já não é mais assim. A Al Qaeda continua parada na Web 1.0. A internet agora é interatividade e conversação".

São alegações fortes e intrigantes. Que importa quem janta quem na internet? As pessoas que estão no Facebook são mesmo a nossa grande esperança? Quanto à chamada revolução via Twitter na Moldova, Evgeny Morozov, pesquisador na Universidade Stanford que vem sendo um dos mais persistentes críticos do evangelismo digital, aponta que a importância do Twitter é quase nula na Moldova, onde existem pouquíssimas contas desse serviço.

E o que aconteceu lá tampouco parece ter sido uma revolução, especialmente porque as manifestações -como sugeriu Anna Applebaum em artigo no "Washington Post"- na verdade podem ter sido uma encenação organizada pelo governo. (Num país paranoico com o revanchismo romeno, os manifestantes hastearam uma bandeira da Romênia na sede do Parlamento.)

Já no caso do Irã, as pessoas que usaram o Twitter para comentar as manifestações viviam quase todas no Ocidente. "É hora de esclarecer o papel do Twitter nos acontecimentos do Irã", escreveu Golnaz Esfandiari meses atrás, na revista "Foreign Policy". "Em resumo: no Irã, não houve revolução via Twitter."

O elenco de blogueiros proeminentes, como Andrew Sullivan, que defendeu o papel da rede social no Irã, acrescentou Esfandiari, não entendeu direito a situação. "Jornalistas ocidentais que não conseguiam -ou nem mesmo tentavam- se comunicar com gente no Irã simplesmente percorriam a lista de 'tweets' em inglês, contendo a tag #iranelection", 2 escreveu ela. "Enquanto isso, ninguém parece ter se perguntado por que pessoas que supostamente tentavam coordenar os protestos no Irã não estariam se comunicando em farsi, mas em outro idioma".

Parte dessa grandiloquência é previsível. Inovadores tendem ao solipsismo. Volta e meia se empenham em enquadrar em seus novos modelos os fatos e experiências mais díspares.

Como escreveu o historiador Robert Darnton, "as maravilhas da tecnologia de comunicação no presente produziram uma falsa consciência sobre o passado -e até mesmo a percepção de que a comunicação não tem história, ou nada teve de importante a considerar antes dos dias da televisão e da internet".

Mas há mais um fator em jogo nesse desproporcional entusiasmo em relação às redes sociais. Cinquenta anos depois de um dos mais extraordinários episódios de sublevação social na história dos EUA, parece que esquecemos o que é ativismo.

No começo dos anos 60, Greensboro era o tipo do lugar onde a insubordinação racial era rotineiramente reprimida com violência. Os quatro primeiros universitários a se sentar ao balcão reservado aos brancos estavam apavorados. "Se alguém tivesse chegado por trás de mim e gritado 'bu', acho que eu cairia no chão", disse um deles mais tarde.

No primeiro dia, o gerente notificou o chefe de polícia, que imediatamente enviou dois policiais para a loja. No terceiro dia, um grupo de brutamontes brancos apareceu na lanchonete e se postou ameaçadoramente atrás dos manifestantes, proferindo epítetos como "crioulo de cabelo ruim". Um líder local da Ku Klux Klan apareceu. No sábado, enquanto a tensão crescia, alguém telefonou e deu um alarme falso de bomba e a loja teve de ser evacuada.

Os perigos eram mais claros no Mississippi Freedom Summer Project de 1964, outra campanha pioneira do movimento pelos direitos civis. O Student Nonviolent Coordinating Committee recrutou centenas de voluntários não remunerados no norte dos EUA, quase todos brancos, para lecionar nas Freedom Schools, alistar eleitores negros e promover os direitos civis no sul profundo.

"Ninguém pode ir sozinho a lugar nenhum, muito menos de carro e à noite", eram as instruções dadas aos voluntários. Poucos dias depois de chegarem ao Mississippi, três deles -Michael Schwerner, James Chaney e Andrew Goodman- foram sequestrados e assassinados; até o final daquele verão, 37 igrejas negras seriam incendiadas e dezenas de casas usadas como abrigos foram atacadas com bombas; voluntários foram espancados, alvejados e perseguidos por picapes repletas de homens armados. Um quarto dos participantes do programa desistiram. Ativismo que desafia o status quo -e ataca problemas profundamente enraizados- não é para bundas-moles.

O que leva uma pessoa a esse tipo de ativismo? Doug McAdam, sociólogo na Universidade Stanford, comparou os desertores do programa Freedom Summer com os que optaram por ficar, e descobriu que a diferença crucial, ao contrário do que se poderia esperar, não era o fervor ideológico. "Todos os inscritos -tanto os que ficaram quanto os que desistiram- estavam altamente comprometidos com a causa e eram partidários articulados das metas e valores do programa", concluiu.

O fator decisivo foi o grau de conexão pessoal entre a pessoa e o movimento pelos direitos civis. Pedia-se a todos os voluntários que fornecessem uma lista de contatos pessoais -as pessoas que desejavam manter a par de suas atividades-, e assim a probabilidade de ter amigos que também estivessem indo ao Mississippi era bem mais alta entre os que ficaram do que entre os que abandonaram o programa. O ativismo de alto risco, concluiu McAdam, é um fenômeno de "vínculos fortes".

O padrão se repete em boa parte de casos. Um estudo sobre as Brigate Rosse [Brigadas Vermelhas], grupo terrorista italiano dos anos 70, constatou que 70% de seus recrutas já tinham pelo menos um grande amigo na organização. O mesmo se aplica aos homens que aderiram aos Mujahideen do Afeganistão. Até mesmo manifestações revolucionárias que parecem espontâneas, como as que conduziram à queda do Muro de Berlim, na Alemanha Oriental, são, em seu âmago, fenômenos de vínculos fortes.

O movimento oposicionista da Alemanha Oriental consistia em centenas de grupos, cada qual formado por cerca de uma dúzia de membros. Cada grupo tinha contato limitado com os demais: na época, apenas 13% dos alemães orientais tinham telefone. Tudo o que sabiam era que, nas noites de segunda, diante da igreja de São Nicolau, no centro de Leipzig, as pessoas se reuniam para expressar sua ira contra o Estado. E o determinante primário daqueles que compareciam eram os "amigos críticos" -quanto mais amigos críticos ao regime uma pessoa tivesse, maior a probabilidade de adesão ao protesto.

Portanto, um fato crucial sobre os quatro calouros que foram à lanchonete segregada de Greensboro -David Richmond, Franklin McCain, Ezell Blair e Joseph McNeil- eram as ligações mútuas que mantinham. McNeil dividia o quarto com Blair no alojamento da A&T. No andar de cima, Richmond dividia o quarto com McCain; e Blair, Richmond e McCain foram alunos da Dudley High School.

Os quatro levavam cerveja às escondidas para o alojamento e conversavam noite afora, no quarto de Blair e McNeil. Tinham na memória o assassinato de Emmett Till, em 1955; o boicote aos ônibus de Montgomery, no Alabama, no mesmo ano; e o confronto em Little Rock, no Arkansas, em 1957.

Foi McNeil que apareceu com a ideia do protesto na Woolworth's. Discutiram o assunto por quase um mês. Um dia, McNeil entrou no quarto e perguntou aos amigos se estavam prontos.

Houve uma pausa e McCain disse, de um jeito que só funciona entre amigos que passaram longas madrugadas conversando: "Vocês vão arregar ou vamos em frente?". Ezell Blair tomou coragem para pedir aquele café, no dia seguinte, porque estava na companhia de seu colega de quarto e de dois grandes amigos desde o ensino médio.

O ativismo associado às redes sociais nada tem em comum com isso. As plataformas dessas redes são construídas em torno de vínculos fracos. O Twitter é uma forma de seguir (ou ser seguido por) pessoas que talvez nunca tenha encontrado cara a cara. O Facebook é uma ferramenta para administrar o seu elenco de conhecidos, para manter contato com pessoas das quais de outra forma você teria poucas notícias. É por isso que se pode ter mil "amigos" no Facebook, coisa impossível na vida real.

Sob muitos aspectos, isso é maravilhoso. Há força nos vínculos fracos, como observou o sociólogo Mark Granovetter. Nossos conhecidos -e não nossos amigos- são a nossa maior fonte de novas ideias e informações. A internet nos permite explorar a potência dessas formas de conexão distante com eficiência maravilhosa.

É sensacional para a difusão de inovações, para a colaboração interdisciplinar, para integrar compradores e vendedores e para as funções logísticas das conquistas amorosas. Mas vínculos fracos raramente conduzem a ativismo de alto risco.

Em um livro chamado "The Dragonfly Effect - Quick, Effective, and Powerful Ways to Use Social Media to Drive Social Change" [O Efeito Libélula - Maneiras Rápidas, Efetivas e Poderosas de Utilizar Redes Sociais para Promover Mudanças Sociais, ed. Jossey-Bass], o consultor de negócios Andy Smith e Jennifer Aaker, professora na escola de admininistração de empresas de Stanford, contam a história de Sameer Bhatia, jovem empresário do Vale do Silício que um dia descobriu estar sofrendo de leucemia mielálgica aguda. O caso serve como perfeita ilustração sobre as virtudes das redes sociais.

Bhatia precisava de um transplante de medula óssea, mas não encontrou doador entre seus parentes e amigos. As chances seriam maiores caso o doador tivesse sua etnia, e havia poucos doadores do sul da Ásia no banco de dados de medula óssea americano.

Por isso, o sócio de Bhatia enviou um e-mail no qual explicava o problema do amigo a mais de 400 de seus conhecidos, que por sua vez o encaminharam a seus contatos; páginas de Facebook e vídeos no YouTube foram criados para a campanha Help Sameer. Por fim, quase 25 mil novos doadores se inscreveram no banco de dados e Bhatia encontrou um compatível com ele.

Mas como a campanha conseguiu a adesão de tanta gente? Porque não pedia nada de mais aos participantes. É a única forma de conseguir que alguém que você não conhece de verdade faça alguma coisa em seu benefício. Dá para conseguir que milhares de pessoas se inscrevam como doadores porque fazê-lo é facílimo. Basta enviar uma amostra simples de material genético -no altamente improvável caso de que a medula óssea do doador seja compatível com alguém que precise- passar algumas horas no hospital.

Doar medula óssea não é trivial. Mas não envolve risco financeiro ou pessoal; não implica passar um verão inteiro sendo perseguido por picapes repletas de homens armados. Não requer confronto com normas e práticas sociais arraigadas. Na verdade, é o tipo do engajamento que só traz elogios e reconhecimento social.

Os evangelistas das redes sociais não compreendem essa distinção; parecem acreditar que um amigo de Facebook e um amigo real são a mesma coisa, e que se inscrever em uma lista de doadores no Vale do Silício, hoje, é ativismo no mesmo sentido que pedir um café num restaurante segregado de Greensboro em 1960.

"As redes sociais são especialmente eficazes para reforçar a motivação", escreveram Aaker e Smith. Mas não é verdade. As redes sociais são eficazes para ampliar a participação -mas reduzindo o nível de motivação que a participação exige.

A página da Save Darfur Coalition no Facebook tem 1.282.339 membros, cuja doação média é de nove centavos de dólar per capita. A segunda maior entidade de assistência a Darfur no Facebook tem 22.073 membros, e suas doações per capita são de 35 centavos de dólar. A Help Save Darfur tem 2.797 membros, que doaram, em média, 15 centavos de dólar.

Um porta-voz da Save Darfur Coalition disse à revista "Newsweek" que "não avaliamos necessariamente o valor de alguém para o movimento com base nos montantes doados. Este é um mecanismo poderoso para promover o envolvimento de uma população crítica. Eles informam a comunidade, participam de eventos, fazem trabalho voluntário. Não é algo que se possa medir por números".

Em outras palavras, o ativismo no Facebook dá certo não ao motivar pessoas para que façam sacrifícios reais, mas sim ao motivá-las a fazer o que alguém faz quando não está motivado o bastante para um sacrifício real. Estamos muito longe do balcão da lanchonete de Greensboro.

Os estudantes que participaram de protestos no sul dos EUA nos primeiros meses de 1960 descreveram o movimento como "uma febre". Mas o movimento dos direitos civis tinha mais de campanha militar que de contágio.

No final dos anos 50, 16 protestos semelhantes haviam sido organizados em diversas cidades sulistas, 15 dos quais formalmente coordenados por organizações de direitos civis como a NAACP [sigla em inglês da Associação Nacional para o Progresso da População de Cor] e a CORE [sigla em inglês de Congresso da Igualdade Racial]. Possíveis locais para protestos foram mapeados. Traçaram-se planos. Ativistas do movimento promoveram sessões de treinamento e retiros com potenciais participantes.

Os quatro de Greensboro surgiram como produto desse trabalho de base: eram membros do Conselho da Juventude da NAACP. Tinham fortes ligações com o diretor da seção local da organização. Foram informados sobre a onda anterior de protestos em Durham, e participaram de uma série de reuniões do movimento em igrejas ativistas.

Quando os protestos se espalharam pelo sul a partir de Greensboro, a difusão não ocorreu de modo aleatório. Os protestos surgiram em cidades que já tinham células do movimento -núcleos de ativistas dedicados e treinados, prontos para converter a "febre" em ação.

O movimento dos direitos civis era ativismo de alto risco. Era também, e isso é importante, ativismo estratégico: um desafio ao establishment, montado com precisão e disciplina. A NAACP era uma organização centralizada, com comando em Nova York, segundo procedimentos operacionais altamente formalizados.

Na Southern Christian Leadership Conference, Martin Luther King Jr. (1929-68) exercia inquestionável autoridade. A igreja negra tinha posição central no movimento e, como aponta Aldon Morris em seu "The Origins of the Civil Rights Movement", esplêndido estudo publicado em 1984, mantinha uma divisão de tarefas cuidadosamente demarcadas, com diversos comitês permanentes e grupos disciplinados.

"Cada grupo tinha uma missão definida e coordenava suas atividades por meio de estruturas de autoridade", escreve Morris. "Os indivíduos eram responsáveis pelas tarefas que lhes eram designadas e conflitos importantes eram resolvidos pelo pastor, que em geral exercia a autoridade final sobre a congregação."

Essa é a segunda distinção crucial entre o ativismo tradicional e sua variante on-line: as redes sociais não se prestam a esse tipo de organização hierárquica.

O Facebook e sites semelhantes são ferramentas para a construção de redes e, em termos de estrutura e caráter, são o oposto das hierarquias. Ao contrário das hierarquias, com suas regras e procedimentos, as redes não são controladas por uma autoridade central e única. As decisões são tomadas por consenso, e os vínculos que unem as pessoas ao grupo são frouxos.

Essa estrutura torna as redes imensamente flexíveis e adaptáveis a situações de baixo risco. A Wikipédia é um exemplo perfeito. Não há um editor instalado em Nova York que direcione e corrija cada verbete. O esforço de produção de cada entrada é auto-organizado. Caso todos os verbetes da Wikipédia sejam apagados amanhã, o conteúdo será rapidamente restaurado, porque é isso que acontece quando uma rede de milhares de pessoas dedica tempo a uma tarefa espontaneamente.

Há, no entanto, muitas coisas que redes não fazem direito. As montadoras de automóveis, sensatamente, usam uma estrutura de rede para organizar suas centenas de fornecedores, mas não para projetar os carros. Ninguém acreditaria que a articulação de uma filosofia coerente de design funcionasse melhor na forma de um sistema organizacional disperso e sem líderes.

Carecendo de uma estrutura centralizada de liderança e de linhas de autoridade claras, as redes encontram dificuldades reais para chegar a consensos e estabelecer metas. Não conseguem pensar de modo estratégico; são cronicamente propensas a conflitos e erros. Como fazer escolhas difíceis sobre táticas, estratégias ou orientação filosófica quando todo mundo tem o mesmo poder?

A Organização para a Libertação da Palestina (OLP) surgiu como rede, e, em ensaio recentemente publicado no periódico "International Security", os especialistas em relações internacionais Mette Eilstrup-Sangiovanni e Calvert Jones argumentam que esse é o motivo para que a organização tenha encontrado tantos problemas ao crescer: "Traços estruturais característicos das redes -ausência de autoridade central, autonomia irrestrita de grupos rivais e incapacidade de arbitrar disputas por meio de mecanismos formais- tornaram a OLP excessivamente vulnerável à manipulação externa e às disputas internas".

"Na Alemanha dos anos 70", os dois prosseguem, "os terroristas de esquerda, muito mais unidos e bem-sucedidos, tendiam a se organizar hierarquicamente, com gestão profissional e clara divisão de tarefas. Estavam geograficamente concentrados nas universidades, onde podiam estabelecer liderança central, confiança e camaradagem por meio de reuniões regulares, cara a cara".

Era raro que entregassem seus companheiros de armas nos interrogatórios da polícia. Já seus equivalentes na direita se organizavam como redes descentralizadas e não mantinham disciplina semelhante. Era comum que esses grupos fossem infiltrados, e que seus membros, quando detidos pela polícia, entregassem facilmente seus companheiros. De forma semelhante, a Al Qaeda era mais perigosa quando mantinha uma hierarquia unificada. Agora que se dissipou em rede, vem se mostrando bem menos eficaz.

As desvantagens das redes pouco importam quando não estão interessadas em mudança sistêmica -caso desejem apenas assustar, humilhar ou fazer barulho-, ou quando não precisam pensar estrategicamente. Mas, se o objetivo é combater um sistema poderoso e organizado, é preciso uma hierarquia. O boicote ao serviço de ônibus em Montgomery exigiu a participação de dezenas de milhares de pessoas que dependiam do transporte público para ir ao trabalho e voltar todo dia. E durou um ano.

A fim de persuadir as pessoas a se manterem fiés à causa, os organizadores encarregaram cada igreja negra local de manter o moral alto e montaram um sistema alternativo de transporte solidário que contava com 48 telefonistas e 42 pontos de parada. Até mesmo o Conselho de Cidadãos Brancos, King afirmou mais tarde, reconheceu que o sistema de transporte solidário funcionava com "precisão militar".

Quando King foi a Birmingham, no Alabama, para o confronto decisivo com o comissário de polícia da cidade, Eugene "Bull" Connor, contava com orçamento de US$ 1 milhão e uma equipe de 100 funcionários em período integral, já instalados na cidade e divididos em células operacionais. A ação foi dividida em fases, que se intensificavam gradualmente e eram mapeadas com antecedência. O apoio foi mantido por meio de sucessivas assembleias, num rodízio entre as igrejas da cidade.

Boicotes, protestos e confrontos não violentos -armas preferenciais do movimento pelos direitos civis- são estratégias de alto risco. Deixam pouca margem para conflito e erro. No momento em que um único manifestante abandona o roteiro e reage a uma provocação, a legitimidade moral de todo o protesto fica comprometida. Os entusiastas das redes sociais sem dúvida gostariam que acreditássemos que a tarefa de King em Birmingham seria imensamente facilitada se ele pudesse usar o Facebook para se comunicar com seus seguidores e se contentasse em enviar tweets de uma cela.

Mas as redes são confusas -pense no padrão incessante de correção e revisão, emendas e debates, que caracteriza a Wikipédia. Caso Martin Luther King tivesse tentado um "wiki-boicote" em Montgomery, teria sido esmagado pela estrutura do poder branco. E que uso teria uma ferramenta de comunicação digital numa cidade na qual 98% da comunidade negra podia ser contatada na igreja, todo domingo? Em Birmingham, King precisava de disciplina e estratégia, o tipo de coisas que as redes sociais não são capazes de fornecer.

A bíblia do movimento das redes sociais é "Here Comes Everybody", de Clay Shirky, professor na Universidade de Nova York. Ele procura demonstrar o poder de organização da internet e começa pela história de Evan, que trabalhava em Wall Street, e de sua amiga Ivanna, que esqueceu seu smart-phone, um caro Sidekick, no banco de um táxi nova-iorquino.

A companhia telefônica transferiu os dados do celular perdido de Ivanna a um novo aparelho e assim a proprietária e Evan descobriram que o Sidekick estava em posse de uma adolescente do Queens, que vinha usando o aparelho para tirar fotos de si mesma e de suas amigas.

Quando Evan lhe enviou um e-mail pedindo que devolvesse o celular, Sasha respondeu que ele era um "bundão branco" que não merecia tê-lo de volta. Irritado, ele montou uma página na web com uma foto de Sasha e uma descrição do ocorrido. Encaminhou o link aos amigos, que o repassaram a outros amigos. Alguém localizou a página do namorado de Sasha no MySpace e um link para ela foi criado no site.

Alguém descobriu o endereço dela na web e gravou um vídeo mostrando a casa quando passou de carro por lá; Evan postou o vídeo no site. A história ganhou destaque no Digg, um site agregador de notícias. Evan passou a receber dez e-mails por minuto. Criou um fórum on-line para que seus leitores contassem suas histórias, mas as visitas eram tantas que o servidor vivia caindo.

Evan e Ivanna procuraram a polícia, mas o boletim de ocorrência definia o celular como "perdido", e não "roubado", o que significava que, na prática, o caso estava encerrado.

"Àquela altura, milhões de leitores estavam acompanhando", escreve Shirky, "e dezenas de veículos da mídia convencional haviam mencionado a história". Cedendo à pressão, a polícia de Nova York reclassificou o celular como "roubado". Sasha foi detida e a amiga de Evan conseguiu o Sidekick de volta.

O argumento de Shirky é o de que esse é o tipo de coisa que jamais poderia ter acontecido na era anterior à internet -e ele tem razão. Evan não teria conseguido localizar Sasha.

A história do Sidekick jamais teria sido divulgada. Um exército de pessoas não se teria formado para participar da batalha. A polícia não teria cedido à pressão de uma pessoa só, por algo tão trivial quanto um celular perdido. O caso, na opinião de Shirky, ilustra "a facilidade e rapidez com que um grupo pode ser mobilizado para o tipo certo de causa" na era da internet.

Na opinião de Shirky, esse modelo de ativismo é superior. Mas, na verdade, não passa de uma forma de organização que favorece as conexões de vínculo fraco que nos dão acesso a informações, em detrimento das conexões de vínculo forte que nos ajudam a perseverar diante do perigo.

Transfere nossas energias das entidades que promovem atividades estratégicas e disciplinadas para aquelas que promovem flexibilidade e adaptabilidade. Torna mais fácil aos ativistas se expressarem e, mais difícil, que essa expressão tenha algum impacto.

Os instrumentos de redes sociais estão aptos a tornar a ordem social existente mais eficiente. Não são inimigos naturais do status quo. Se, na sua opinião, o mundo só precisa de um ligeiro polimento, isso não deve lhe causar preocupação. Mas se você acredita que ainda existem lanchonetes por serem integradas ao mundo, essa tendência deveria incomodá-lo.

Grandiloquente, Shirky encerra a história do Sidekick perdido perguntando: "O que virá a seguir?" -e, sem dúvida, imagina futuras ondas de manifestantes digitais.

Mas ele mesmo já respondeu à pergunta. O que virá é a mesma coisa, repetidamente. Um mundo feito de redes e vínculos fracos é bom para coisas como ajudar gente de Wall Street a recuperar celulares das mãos de garotas adolescentes. Viva la revolución.

Esclarecimento: o relato deste artigo sobre a ocupação de Greensboro vem de "Lunch at the Five and Ten" (1970) de Miles Wolff.

Publicado na versão impressa da edição de 4 de outubro de 2010.

Malcolm Gladwell é redator da The New Yorker desde 1996.

19 de setembro de 2010

A história e seus ardis

O lulismo posto à prova em 2010

Folha de S.Paulo

Talita Virgínia/Folhapress

RESUMO
André Singer aplica às eleições de 2010 sua tese do "realinhamento" do eleitorado brasileiro, caracterizado pela adesão das classes baixas ao "lulismo" (por verem em Lula a possibilidade de ascensão social sem confronto) e pelo afastamento da classe média tradicionalmente petista, após o escândalo do mensalão.

André Singer

CONTA-SE QUE CERTA VEZ o engenheiro Leonel Brizola teria levado o metalúrgico Lula ao túmulo de Getúlio Vargas em São Borja (RS). Lá chegando, o gaúcho pôs-se a conversar com o ex-presidente. Depois de algumas palavras introdutórias, apresentou o líder do PT ao homem que liderou a Revolução de 1930: "Doutor Getúlio, este é o Lula", disse, ou algo parecido. Em seguida, pediu que Lula cumprimentasse o morto. Não se sabe a reação do petista.

Será que algum dos personagens do encontro pressentiu que, naquela hora, estavam sendo reatados fios interrompidos da história brasileira? Desconfio que não.

Os tempos eram de furiosa desmontagem neoliberal da herança populista dos anos 1940/50. Mesmo aliados, em 1998 PT e PDT -praticamente tudo o que restava de esquerda eleitoralmente relevante- perderiam para Fernando Henrique Cardoso no primeiro turno. O consulado tucano parecia destinado a durar pelo menos 20 anos e trazer em definitivo o neoliberalismo para o Brasil.

BRECHA 

Foi por uma brecha imprevista, aberta pelo aumento do desemprego no segundo mandato de FHC, que Lula encontrou o caminho para a Presidência da República. Para aproveitá-la, fez substanciais concessões ao capital, pois a ameaça de radicalização teria afastado o eleitorado de baixíssima renda, o qual deseja que as mudanças se deem sem ameaça à ordem.1

Apesar da pacificação conquistada com a "Carta ao Povo Brasileiro" ter sido suficiente para vencer, o subproletariado não aderiu em bloco. Havia mais apoio entre os que tinham renda familiar acima de cinco salários mínimos do que entre os que ganhavam menos do que isso, como, aliás, sempre acontecera desde 1989. Ainda que as diferenças pudessem ser pequenas, elas expressavam a persistente desconfiança do "povão" em relação ao radicalismo do PT.

Depois de 2002, tudo iria mudar. A vitória levaria ao poder talvez o mais varguista dos sucessores do dr. Getúlio. Não em aspectos superficiais, pois nestes são expressivas as diferenças entre o latifundiário do Sul e o retirante do Nordeste. Tampouco no sentido de arbitrar, desde o alto, o interesse de inúmeras frações de classe, fazendo um governo que atende do banqueiro ao morador de rua. Dadas as condições, todos os presidentes tentam o mesmo milagre.

O que há de especificamente varguista é a ligação com setores populares antes desarticulados. Ao constituir, desde o alto, o povo em ator político, o lulismo retoma a combinação de autoridade e proteção aos pobres que Getúlio encarnou.

BURGUESIA EM CALMA 

Mas em 1º de janeiro de 2003 ninguém poderia prever o enredo urdido pela história. Para manter em calma a burguesia, o mandato inicial de Lula, como se recorda, foi marcado pela condução conservadora nos três principais itens da macroeconomia: altos superavits primários, juros elevados e câmbio flutuante. Na aparência, o governo seguia o rumo de FHC e seria levado à impopularidade pelas mesmas boas razões.

De fato, 2003 foi um ano recessivo e causou desconforto nos setores progressistas. Ao final, parte da esquerda deixou o PT para formar o PSOL. Mesmo com a retomada econômica no horizonte de 2004, Brizola deve ter morrido em desacordo com Lula, por ter transigido com o adversário.

Ocorre que, de maneira discreta, outro tripé de medidas punha em marcha um aumento do consumo popular, na contramão da ortodoxia. No final de 2003, dois programas, aparentemente marginais, foram lançados sem estardalhaço: o Bolsa Família e o crédito consignado. Um era visto como mera junção das iniciativas de FHC. O segundo, como paliativo para os altíssimos juros praticados pelo Banco Central.

Em 2004, o salário mínimo começa a se recuperar, movimento acelerado em 2005. Comendo o mingau pela borda, os três aportes juntos começaram a surtir um efeito tão poderoso quanto subestimado: o mercado interno de massa se mexia, apesar do conservadorismo macroeconômico.

Nas pequenas localidades do interior nordestino, na vasta região amazônica, nos lugares onde a aposentadoria representava o único meio de vida, havia um verdadeiro espetáculo de crescimento, o qual passava despercebido para os "formadores de opinião".

PASSO DECISIVO 

Quando sobrevém a tempestade do "mensalão" em 2005 -e, despertado do sono eterno pela reedição do cerco midiático de que fora vítima meio século antes no Catete, o espectro do dr. Getúlio começa a rondar o Planalto-, já estavam dadas as condições para o passo decisivo.

Em 3 de agosto -sempre agosto-, em Garanhuns (PE), perante milhares de camponeses pobres da região em que nascera, Lula desafiou os que lhe moviam a guerra de notícias: "Se eu for [candidato], com ódio ou sem ódio, eles vão ter que me engolir outra vez".

Até então, a ligação entre Lula e os setores populares era virtual. Chegara ao topo cavalgando uma onda de insatisfação puxada pela classe média. Optou por não confrontar os donos do dinheiro. Perdeu parte da esquerda. Na margem, acionou mecanismos quase invisíveis de ajuda aos mais necessitados, cujo efeito ninguém conhecia bem.

Foi só então que, empurrados pelas circunstâncias, o líder e sua base se encontraram: um presidente que precisava do povo e um povo que identificou nele o propósito de redistribuir a renda sem confronto.

PLACAS TECTÔNICAS 

Os setores mais sensíveis da oposição perceberam que fora dada a ignição a uma fagulha de alta potência e decidiram recuar. A hipótese de impedimento foi arquivada, para decepção dos que não haviam entendido que placas tectônicas do Brasil profundo estavam em movimento.

Em 25 de agosto, um dia depois do aniversário do suicídio de Vargas, Lula podia declarar perante o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social que a página fora virada: "Nem farei o que fez o Getúlio Vargas, nem farei o que fez o Jânio Quadros, nem farei o que fez o João Goulart. O meu comportamento será o comportamento que teve o Juscelino Kubitschek: paciência, paciência e paciência". Uma onda vinda de baixo sustentava a bonomia presidencial.

O Lula que emerge nos braços do povo, depois da crise, depende menos do beneplácito do capital. Daí a entrada de Dilma Rousseff e Guido Mantega em postos estratégicos, o que mudou aspectos relevantes da política macroeconômica. Os investimentos públicos, contidos por uma execução orçamentária contracionista, foram descongelados no final de 2005. O salário mínimo tem um aumento real de 14% em 2006.

POLARIZAÇÃO 

Para o público informado, a constatação do que ocorrera ainda demoraria a chegar. Foi preciso atingir o segundo turno de 2006 para que ficasse claro que o povo tinha tomado partido, ainda que em certos ambientes de classe média "ninguém" votasse em Lula.

A distribuição dos votos por renda mostra a intensa polarização social por ocasião do pleito de 2006. Pela primeira vez, o andar de baixo tinha fechado com o PT, antes forte na classe média, numa inversão que define o realinhamento iniciado quatro anos antes.

Embora, do ponto de vista quantitativo, a mudança relevante tenha se dado em 2002, o que define o período é o duplo movimento de afastamento da classe média e aproximação dos mais pobres. Por isso, o mais correto é pensar que o realinhamento começa em 2002, mas só adquire a feição definitiva em 2006. Como, por sinal, aconteceu com Roosevelt entre 1932 e 1936.

SEGUNDO MANDATO 

Assentado sobre uma correlação de forças com menor pendência para o capital, o segundo mandato permitirá a Lula maior desenvoltura. Com o lançamento do PAC, fruto de um orçamento menos engessado, aumentam as obras públicas, as quais vão absorver mão de obra, além de induzir ao investimento privado.

Em 2007, foi gerado 1,6 milhão de empregos, 30% a mais do que no ano anterior. A recuperação do salário mínimo é acelerada, com aumento real de 31% de 2007 a 2010, contra 19% no primeiro mandato, conforme estimativa de um dos diretores do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada)2. A geração de emprego e renda explica os 70% de aprovação do governo desde então.

Nem mesmo a derrubada da CPMF, com a qual a burguesia mostrou os dentes no final de 2007, reduziu o ritmo dos projetos governamentais. A transferência de renda continuou a crescer. Foi só ao encontrar a parede do tsunami financeiro, no último trimestre de 2008, que se interrompeu o ciclo ascendente de produção e consumo. Teria chegado, então, segundo alguns, a hora da verdade. Com as exportações em baixa, o lulismo iria definhar.

COMPRAR SEM MEDO 

Mas o lulismo já contava com um mercado interno de massa ativado, capaz de contrabalançar o impacto da crise no comércio exterior. A ideia, difundida pelo presidente, de que a população podia comprar sem medo de quebrar, ajudou a conter o que poderia ser um choque recessivo e a relançar a economia em tempo curto e velocidade alta.

Além da desoneração fiscal estratégica, como a do IPI sobre os automóveis e os eletrodomésticos da linha branca, o papel dos bancos públicos -em particular o do BNDES- na sustentação das empresas aumentou a capacidade do Estado para conduzir a economia. Numa manobra que lembra a de Vargas na Segunda Guerra, Lula utilizou a situação externa para impulsionar a produção local.

Surge uma camada de empresários -Eike Batista parece ser figura emblemática, como notava dias atrás um economista-, dispostos a seguir as orientações do governo. A principal delas é puxar o crescimento por meio de grandes obras, como as de Itaboraí -o novel polo petroquímico no Estado do Rio-, as de Suape (PE) e de Belo Monte, na Amazônia. Cada uma delas alavancará regiões inteiras.

Por fim, a aliança entre a burguesia e o povo, relíquia de tempos passados que ninguém mais achava que pudesse funcionar, se materializa diante dos olhos. Que o estádio do Corinthians em Itaquera não nos deixe mentir.

PROJETO PLURICLASSISTA 

A candidatura Dilma representa o arco que o lulismo construiu. A ex-ministra, por sua biografia, é talhada para levar adiante um projeto nacional pluriclassista. O fato de ter sido do PDT até pouco tempo atrás não é casual. A mãe do PAC tem uma visão dos setores estratégicos em que a burguesia terá que investir, com o BNDES.

O povo lulista, que deseja distribuição da renda sem radicalização política, já dá sinais de que o alinhamento fechado em 2006 está em vigor. Em duas semanas de propaganda eleitoral na TV, Dilma subiu 9 pontos percentuais e Serra caiu 5. À medida que os mais pobres adquirem a informação de que ela é a candidata de Lula, o perfil do seu eleitorado se aproxima do que foi o de Lula em 2006. Ou seja, o voto em Dilma cresce conforme cai a renda, a escolaridade e a prosperidade regional.

A classe média tradicional, em que pese aprovar o governo, continuará a votar na oposição, como demonstram a dianteira de Serra em Curitiba e o virtual empate em São Paulo, municípios em que o peso numérico das camadas intermediárias é significativo.

Parte delas, sobretudo entre os jovens universitários, deverá optar por Marina Silva. Isso explica por que os que têm renda familiar mensal acima de cinco salários mínimos dão 12 pontos percentuais de vantagem para a soma de Serra e Marina sobre Dilma na pesquisa Datafolha concluída em 3/9.

O problema da oposição é que esse segmento reúne apenas 14% do eleitorado, de acordo com a amostra utilizada pelo Datafolha, enquanto os mais pobres (até dois salários mínimos de renda familiar mensal) são 48% do eleitorado. Nesse segmento, Dilma possui uma diferença de 22 pontos percentuais sobre Serra e Marina somados! Se vier a ganhar no primeiro turno, será graças ao apoio, sobretudo, dos eleitores de baixíssima renda, como ocorreu com Lula na eleição passada.

REALINHAMENTO 

A feição popular da provável vitória de Dilma confirma, assim, a hipótese que sugerimos no ano passado a respeito da novidade que emergiu em 2006. Se estivermos certos, por um bom tempo o PSDB precisará aprender a falar a linguagem do lulismo para ter chances eleitorais. Não se trata de mexicanização, mas de realinhamento, o qual significa menos a vitória reiterada de um mesmo grupo e mais a definição de uma agenda que decorre do vínculo entre certas camadas e partidos ou candidatos.

Quando um governo põe em marcha mecanismos de ascensão social como os que se deram no New Deal, e como estamos a assistir hoje no Brasil, determina o andamento da política por um longo período. Num primeiro momento, trata-se da adesão dos setores beneficiados aos partidos envolvidos na mudança -o Partido Democrata nos EUA, o PT no Brasil.

Com o passar do tempo e as oscilações da conjuntura, os aderentes menos entusiastas podem votar em outro partido, mesmo sem romper o alinhamento inicial. Foi o que aconteceu com as vitórias do republicano Eisenhower (1952 e 1956) e dos democratas Kennedy (1960) e Johnson (1964).

Mas para isso a oposição não pode ser extremada, como bem o percebeu a hábil Marina Silva. Até certa altura da sua campanha, José Serra igualmente trilhou esse caminho. Foi a fase em que propôs cortar juros e duplicar a abrangência do Bolsa Família.

Depois, tragado pela lógica do escândalo, retornou ao caminho udenista da denúncia moral, que só garante os votos de classe média -o que, no Brasil, não ganha eleição. Convém lembrar que no ciclo dominado pelo alinhamento varguista, a UDN só conseguiu vencer com um candidato: Jânio Quadros, que falava a linguagem populista. Fora disso, resta o golpe, sombra da qual estamos livres.

DURAÇÃO 

Qual será a duração do ciclo aberto em 2002, completado em 2006, e, aparentemente, a ser confirmado em 2010? O realinhamento abrange, por definição, um período longo. O último que vivemos, dominado pelo oposicionismo do MDB/PMDB, durou 12 anos (1974-86) e foi sepultado, quem sabe antes do tempo, pelo fracasso em controlar a inflação. A resposta para o atual momento também deve contemplar a economia.

Por isso, as condições de manter, pelo menos, o ritmo de crescimento médio alcançado no segundo mandato de Lula, algo como 4,5% de elevação anual do PIB, estarão no centro das preocupações do novo presidente. Sem ele, as premissas do lulismo ficam ameaçadas. Recados criptografados sobre a necessidade de reduzir a rapidez do crescimento e de fazer um ajuste fiscal duro já apareceram na imprensa, dirigidos a Dilma, provável vencedora.

O capital financeiro -apelidado na mídia de "os mercados"- vai lhe cobrar o tradicional pedágio de quem ainda não "provou" ser confiável. Caso os reclamos de pisar no freio não sejam atendidos, sempre haverá o recurso de o BC -cuja direção deverá continuar com alguém como Henrique Meirelles, senão o próprio- aumentar os juros. O aumento real do salário mínimo no primeiro ano de governo, que dependerá da presidente, pois o PIB ficou estagnado em 2009, será outro teste relevante.

CABO DE GUERRA 

Convém notar que, no segundo mandato de Lula, ainda que de modo relutante, o BC foi obrigado a trabalhar com juros mais baixos. Mas o cabo de guerra será reiniciado no dia 3 de janeiro de 2011. Com os jogadores em posse de um estoque de fichas renovados pela eleição, uns apostarão em uma recuperação do espaço perdido, outros numa aceleração do caminho trilhado no segundo mandato.

O PMDB, elevado à posição de sócio importante da vitória, atribuiu-se, na campanha, o papel de interlocutor com o empresariado. O PT, possivelmente fortalecido por uma bancada maior, deverá, pela lógica, fazer-lhe o contraponto do ângulo popular. A escolha dos presidentes da Câmara e do Senado, em fevereiro, servirá de termômetro para o balanço das respectivas forças.

O futuro do lulismo dependerá de continuar incorporando, com salários melhores, os pobres ao mundo do trabalho formal. Em torno desse ponto é que se darão os principais conflitos e se definirá a extensão do ciclo. Alguns analistas da oposição alertam para a proximidade de um índice de emprego que começará a encarecer a mão de obra e gerar inflação. Como mostra Stiglitz,3 é a conversa habitual dos conservadores para brecar a expansão econômica.

Por fim, não se deve esquecer que uma palavra decisiva sobre esses embates virá de São Bernardo, onde residirá o ex-presidente, bem mais perto da capital do que foi, no passado, São Borja.

Aguardam-se os conselhos de Vargas e Brizola, dos quais poderemos tomar conhecimento naquelas mensagens psicografadas por Elio Gaspari.

Notas

1. Ver André Singer. "Raízes Sociais e Ideológicas do Lulismo", "Novos Estudos", 85, nov 2009.
2. Ver João Sicsú. "Dois Projetos em Disputa". "Teoria e Debate", 88, mai/jun 2010.
3. Ver Joseph Stiglitz, "Os Exuberantes Anos 90", Companhia das Letras, 2003.

Ao constituir, desde o alto, o povo em ator político, o lulismo retoma a combinação de autoridade e proteção aos pobres que Getúlio encarnou

Empurrados pelas circunstâncias, o líder e sua base se encontraram: um presidente que precisava do povo e um povo que identificou nele o propósito de redistribuir a renda sem confronto

Em 2006, pela primeira vez, o andar de baixo tinha fechado com o PT, antes forte na classe média, numa inversão que define o realinhamento iniciado quatro anos antes

A aliança entre a burguesia e o povo, que ninguém mais achava que pudesse funcionar, se materializa diante dos olhos. Que o estádio do Corinthians em Itaquera não nos deixe mentir

1 de setembro de 2010

O colapso de Wall Street e o regresso à economia baseada na realidade

Esta é uma resenha do livro de John Cassidy, How Markets Fail: The Logic of Economic Calamities (New York: Macmillan Publishers, 2009).

Robert Pollin
Monthly Review Volume 62, Number 4 (September 2010)

Tradução / Durante a última geração, a economia dos EUA, bem como a maior parte do resto da economia global, foram dominadas pela ideia de que o capitalismo de mercado livre produz crescimento dinâmico, estabilidade financeira e que se chegue tanto quanto é possível a uma sociedade justa. Os apoiantes deste quadro pró-mercado sustentam que as intervenções governamentais para encorajar o crescimento, a estabilidade, ou mesmo a justiça, produzirão quase sempre mais danos do que benefícios. Este modo de pensar tem sido a base intelectual da era da desregulamentação financeira nos Estados Unidos – daí o desmantelamento do sistema regulador Glass-Steagall que foi construído no meio dos escombros da queda da bolsa de 1929 e da consequente Depressão dos anos 30. A administração Clinton forneceu os últimos pregos no caixão da regulamentação financeira com a aprovação da Lei de Modernização dos Serviços Financeiros em 1999.

Escrevendo em Julho de 2010, no recente rescaldo da mais profunda crise dos mercados financeiros desde a década de 1930, é evidente que a defesa em nome dos mercados financeiros não regulamentados entrou em colapso de forma tão decisiva como o fizeram os próprios mercados. A crise teria sido muito pior ainda, se não fossem as operações de resgates massivos do governo que sustentaram tanto o sistema financeiro como a despesa agregada na economia.

Além disso, o colapso de 2008-09 não foi uma mera aberração. As crises financeiras têm sido uma característica regular dos Estados Unidos e da paisagem económica global desde que o impulso para a desregulamentação começou a sério no final dos anos 70. Considere-se o registo dos vinte anos anteriores ao desastre de 2008-09: um colapso da bolsa de valores em 1987; a crise de Caixas de Poupança e Crédito e o seu resgate em 1989-90; a crise dos “mercados emergentes” de 1997-98 – que derrubou, entre outros, a Long-Term Capital Management, o super fundo de cobertura, liderado por dois laureados com o Prémio Nobel da Economia, especializados em finanças – e o rebentar da bolha da bolsa de valores dot-com em 2001. Cada uma destas crises poderia ter produzido um colapso ao estilo de 1930, na ausência de operações de salvamento em larga escala do governo. Além disso, como Charles Kindleberger deixa bem claro no seu estudo clássico Manias, Panics, and Crashes, tais crises tinham feito parte dos ritmos regulares das economias capitalistas antes do estabelecimento do sistema regulador Glass-Steagall nos Estados Unidos e regimes comparáveis em outras economias avançadas.

O novo livro de John Cassidy, How Markets Fail: The Logic of Economic Calamities é uma contribuição importante para uma pilha já pesada de livros, relatórios, dissertações e manifestos que tentam explicar o que correu tão mal desta vez. Como muitas das melhores contribuições para esta nova literatura, Cassidy fornece uma narrativa esclarecedora das causas da crise, incluindo discussões sobre a bolha imobiliária, o mercado hipotecário subprime, os mercados de instrumentos financeiros derivados, e como todo este edifício de engenharia financeira e turbo-carregado de alta tecnologia, construído pelas mentes mais espertas de Wall Street, se desmoronou. Cassidy também explica como a maioria dos grandes atores do mercado financeiro – Goldman Sachs, Citibank, J.P. Morgan e alguns outros – conseguiram ser resgatados pelo Tesouro dos Estados Unidos e pela Reserva Federal. A alternativa na altura – dado que uma reestruturação radical do sistema financeiro não era uma solução viável a curto prazo – era permitir que centenas de milhões de pessoas inocentes experimentassem efeitos ainda mais terríveis da imprudência de Wall Street.

Ao contar a história da crise, Cassidy reserva um desprezo especial para Alan Greenspan, o Presidente da Reserva Federal de 1987 a 2006, que insistiu incansavelmente na desregulamentação financeira durante o seu mandato, apesar de ele próprio ter dirigido múltiplas operações de resgate financeiro para evitar os piores efeitos do constante desmantelamento da lei Glass-Steagall. Greenspan ganhou completamente o “opprobrium” de Cassidy, mas continuava a ser injusto destacá-lo como o único alto responsável. Certamente, Robert Rubin e Larry Summers, que serviram ambos como Secretário do Tesouro sob o Presidente Clinton, foram co-conspiradores iguais a Greenspan na promoção da agenda de desregulamentação sob Clinton. Além disso, a partir dos anos 70, grandes maiorias dos partidos democrata e republicano apoiaram de bom grado a agenda de desregulamentação que Wall Street iria elaborar em seu nome. Saltando para o presente, talvez o erro mais caro até à data da presidência Obama tenha sido colocar o mesmo Larry Summers com o alto cargo da política económica, com vários outros acólitos de Robert Rubin a ocuparem também posições importantes.

O foco na teoria económica

O que distingue o livro de Cassidy do resto da nova literatura não é a sua narrativa “per se”, de qualquer aspeto da crise, mas sim a sua decisão de enquadrar o seu livro no contexto dos debates sobre a teoria económica. De facto, o livro está dividido em três secções, com apenas a terceira final centrada nos acontecimentos de 2007-09. O primeiro terço do livro é sobre a teoria económica ortodoxa pró-mercado livre, o que Cassidy chama de “economia utópica”. O termo encaixa, porque, como Cassidy deixa claro, a única forma dos teóricos económicos poderem chegar à conclusão de que o capitalismo de mercado livre é um sistema viável é através de considerarem hipóteses heroicas – ou seja, “utópicas” – sobre o comportamento humano e ignorando centenas de anos de evidência histórica.

No segundo terço do livro, Cassidy pesquisa então o que ele denomina “economia baseada na realidade”. Esta secção cobre várias vertentes do pensamento económico que fornecem explicações sobre a razão pela qual as operações do capitalismo de mercado livre quebram frequentemente. John Maynard Keynes é certamente a figura imponente entre os contribuidores do século XX para este grupo, e Cassidy faz um bom trabalho ao descrever o trabalho de Keynes. Mas as discussões de Cassidy nesta secção variam amplamente em torno de várias questões, incluindo a proteção ambiental e o mercado de carros usados, para além da sua principal preocupação, as operações dos mercados financeiros.

O primeiro ponto geral a sublinhar sobre estas duas primeiras secções do livro sobre a teoria económica – que compreende dezasseis capítulos no total – é que elas não são secas e intimidantes, ao contrário do que se poderia razoavelmente antecipar por ter talvez seguido um curso de economia introdutória ou mergulhado na maioria dos livros-texto habituais. Pelo contrário, a escrita de Cassidy nestes capítulos é clara e animada. Entre outras características, estas secções incluem esboços biográficos de muitos dos principais contribuidores para a literatura da teoria económica, à maneira da obra clássica de Robert Heilbroner, The Worldly Philosophers. Assim, Cassidy dedica corretamente muita atenção a Milton Friedman, sem dúvida o expoente mais influente da economia de mercado livre no século XX. Mas Cassidy também discute os laços estreitos de Friedman com o governo fascista do Chile, que chegou ao poder em 1973, num violento golpe que derrubou o governo democraticamente eleito do primeiro presidente socialista do país, Salvador Allende.

Mas a característica mais significativa e surpreendente dos capítulos teóricos de Cassidy é que, que eu saiba, ele é o primeiro comentador amplamente lido a dar o grande macroeconomista financeiro Hyman Minsky e o igualmente grande economista marxista e co-editor fundador da Monthly Review, Paul Sweezy, como duas figuras de um pequeno punhado de pessoas que reconheceram e alertaram para os padrões de crescente fragilidade financeira que, a seu tempo, produziriam os desastres de 2008-09. Assim, Cassidy oferece um sentido de justificação para leitores de longa data da revista Monthly Review, como eu, relativamente à marginalização experimentada por Sweezy e o seu co-autor e co-editor de Monthly Review Harry Magdoff, durante os anos 70 e 80, quando publicavam a primeira principal vaga de artigos sobre finanças na Monthly Review. Estes artigos notáveis foram posteriormente recolhidos em livros, incluindo The End of Prosperity (1977) e Stagnation and the Financial Explosion (1987).

Globalmente, então, How Markets Fail é um trabalho de considerável envergadura, oferecendo novas perspetivas sobre uma vasta gama de tópicos ao longo dos vinte e três capítulos. Mas Cassidy também vai colocando as várias vertentes do livro numa narrativa abrangente sobre como é que a abismal “economia utópica” tem servido como um quadro analítico para a gestão dos mercados financeiros contemporâneos. Isto mesmo enquanto a “economia baseada na realidade”, incluindo Minsky e Sweezy no topo da pilha, há muito que eram recursos disponíveis mas não utilizados para compreender como criar mercados financeiros estáveis.

Da economia utópica ao neoliberalismo

Ao ler o ataque total de Cassidy à economia utópica, é fácil esquecer quão profundamente esta abordagem foi capaz de dominar a teoria económica e a elaboração de políticas em todo o mundo desde a década de 1970 até à crise de 2008-09, e que ainda, até hoje, terá apenas cedido pequenos pedaços de território da teoria económica. Afinal, esta abordagem é a pedra angular do que veio a ser conhecido como neoliberalismo, o modelo de política económica de formato único com que se insiste que a agenda do mercado livre é sempre superior às intervenções governamentais, exceto em situações em que as grandes empresas e as grandes finanças requerem o apoio do governo para sobreviverem.

Como Cassidy discute, houve três figuras gigantes da economia neoliberal no passado recente: Friedrich Hayek e Robert Lucas, para além de Milton Friedman, todos eles laureados com o Prémio Nobel da Economia. Já na década de 1930, Hayek ganhou fama ao argumentar que as economias socialistas, mesmo aquelas que proporcionavam um amplo espaço para interacções de mercado, bem como o planeamento governamental, estavam condenadas ao fracasso. Isto porque, se não se permite o livre funcionamento dos mercados, duros e de negociação dura – não a versão fraca de imitação que surgiria dentro da armadilha do aço de uma economia socialista planeada – as pessoas seriam incapazes de obter a informação de que necessitam para tomar decisões económicas eficazes. Os argumentos de Hayek foram largamente negligenciados quando os apresentou pela primeira vez, mas ele ganhou imenso prestígio após o colapso do socialismo de estilo soviético em 1989. Após a queda do Muro de Berlim, até muitos esquerdistas chegaram à conclusão de que, à luz da experiência histórica, Hayek tinha conseguido bem melhor do que Oskar Lange, um socialista polaco e eminente economista da Universidade de Chicago por direito próprio, nos seus famosos debates sobre a viabilidade do socialismo de mercado.

Hayek apresentou importantes ideias sobre o papel dos mercados enquanto máquinas de processamento de informação eficazes. Mas a interpretação que Hayek fez desta questão foi tipicamente unilateral- na verdade “utópica” – porque ignorou todas as formas como esta máquina era propensa ao fracasso. Como Cassidy discute longamente, no mundo real, as pessoas quase sempre tomam decisões nas suas transacções de mercado com base em informação incompleta ou, dito de outra maneira, informação distorcida. Um exemplo recente importante disto foi a experiência de milhões de proprietários de casas nos EUA que contraíram hipotecas subprime sem compreenderem que os seus pagamentos de juros aumentariam acentuadamente cerca de um ano depois de aceitarem inicialmente o empréstimo a taxas iniciais muito baixas. Além disso, mesmo que tenhamos informações precisas sobre o mercado, as nossas capacidades cognitivas para processar estas informações são também limitadas. Vários investigadores discutidos por Cassidy, nomeadamente Joseph Stiglitz, George Akerlof, Herbert Simon, e Daniel Kahneman, foram galardoados com prémios Nobel da economia por desenvolverem importantes conhecimentos sobre estas questões.

Mas o fracasso mais espetacular dentro do panteão da economia utópica tem de ser Robert Lucas. Lucas seguiu Milton Friedman, tanto como o impulsionador da Universidade de Chicago como o macroeconomista neoliberal mais influente da sua geração. Nos primeiros anos da minha própria carreira como professor de macroeconomia graduado nos anos 80, Lucas foi considerado como o padrão de ouro absoluto entre os jovens macroeconomistas do pensamento dominante em economia. Este grupo de pessoas agarrou-se firmemente à ideia de que se o leitor, professor, e os seus estudantes não estavam de alguma forma a regurgitar Lucas, então não estavam a ensinar-aprender economia de forma séria. Como o próprio Lucas observou em 1980, “não se pode encontrar bons economistas com menos de quarenta anos que se identifiquem ou o seu trabalho como Keynesianismo... Nos seminários de investigação, as pessoas já não levam a sério a teorização keynesiana; o público começa a sussurrar e a rir-se uns para os outros”.

Mas para quem entrou no campo para tentar pensar seriamente sobre o mundo em vez de apenas seguir a moda da época, era óbvio desde o primeiro passo que o modelo Lucas era extremo. Isto torna-se claro ao seguir, por exemplo, a sua análise altamente influente que explica a futilidade das intervenções de política monetária como meio de reduzir o desemprego numa recessão. Para começar, Lucas assumiu que as pessoas levavam na cabeça um modelo totalmente trabalhado e preciso de como a macroeconomia funciona. No caso de a Reserva Federal tentar estimular a economia e expandir as oportunidades de emprego através da redução das taxas de juro, todas as pessoas racionais, trabalhando com os modelos macroeconómicos precisos nas suas cabeças, saberiam que esta iniciativa acabaria por causar inflação. Mais precisamente, calculariam a inflação que seria produzida pela intervenção da Reserva Federal e, como tal, saberiam também que esta aceleração da taxa de inflação iria desgastar o quanto poderiam comprar com o salário dado que estavam a receber. Os trabalhadores perceberiam, portanto, que seriam estúpidos em fornecer o mesmo nível de esforço de trabalho até os seus salários serem aumentados para os compensar pelo aumento da inflação. Do mesmo modo, os desempregados recusariam ofertas de emprego cujos salários não tivessem em conta a erosão do seu poder de compra que resultaria da inflação que teriam previsto de forma precisa.

Lembro-me de nos anos 80 ter desafiado os meus alunos de doutoramento a ajudar-me a realizar com precisão, mesmo que fosse só um dos múltiplos cálculos que Lucas afirmou que qualquer pessoa podia e fazia regularmente. Escusado será dizer que todos nós falhámos a tarefa, e não tenho dúvidas de que o próprio Lucas também teria falhado. A razão era simplesmente que não havia maneira possível de alguém saber tudo o que Lucas afirmava alegremente que toda a gente sabe, como é óbvio. Alguma vez houve um grande líder intelectual tão completamente fora de contacto com as realidades fora da porta do seu escritório, ou mesmo dentro da sua própria cabeça?

No entanto, as afirmações de Lucas sobre as capacidades de super-cálculo dos desempregados serviram um propósito importante: foi a base da sua conclusão de que qualquer esforço do governo para criar empregos iria inevitavelmente cair-lhe na cara, e apenas produzir uma inflação mais elevada. Da perspetiva de Lucas, a boa notícia sobre a sua conclusão quanto à futilidade das intervenções políticas governamentais foi a sua outra principal conclusão de que, sempre e em todo o lado, tais intervenções eram desnecessárias, uma vez que o mercado livre podia manter o crescimento económico e o pleno emprego por si só.

Minsky, Sweezy/Magdoff, e Realidade

Contra o fracasso objetivo de Lucas e da sua corte, Hyman Minsky, desde os anos 50 até à sua morte em 1996, construiu um quadro analítico que explicava como os mercados financeiros desregulamentados produzirão sempre instabilidade e crises. Cassidy selecionou bem ao estabelecer o modelo de Minsky como peça central analítica do seu livro.

Como Cassidy descreve, a chave para Minsky na compreensão da instabilidade financeira é traçar as mudanças que ocorrem na psicologia dos investidores à medida que a economia sai de um período de crise financeira e recessão ou depressão, e entra numa fase de aumento dos lucros e crescimento. Saindo de uma crise, os investidores tenderão a ser cautelosos, uma vez que muitos deles terão sido afetados financeiramente durante a recessão de que se acabou de sair. Por exemplo, eles manterão grandes reservas de dinheiro como almofada para se protegerem contra crises futuras.

Mas à medida que a economia emerge da sua queda e os lucros sobem, as expectativas dos investidores tornam-se cada vez mais positivas. Tornam-se ansiosos por prosseguir ideias de investimento de risco, tais como empréstimos hipotecários subprime colateralizados. Tornam-se também mais dispostos a deixar diminuir as suas reservas de dinheiro, uma vez que o dinheiro inativo não gera lucros, enquanto compram veículos especulativos, tais como títulos hipotecários subprime, que poderiam produzir retornos de 10% ou mais.

Mas estes movimentos significam também que os investidores estão a enfraquecer as suas defesas contra a próxima crise financeira. É por isso que, na opinião de Minsky, as retomas da economia, que se desenrolam sem regulação, encorajam inevitavelmente os excessos especulativos em que surgem bolhas financeiras. Minsky explicou que, num ambiente não regulado, a única forma de parar as bolhas financeiras é deixá-las rebentar. Os mercados financeiros caem então numa crise e segue-se uma recessão ou depressão.

Aqui chegamos a uma das intuições cruciais de Minsky – que as crises e recessões financeiras servem de facto um propósito nas operações de uma economia de mercado livre, mesmo quando provocam estragos na vida das pessoas, incluindo as de dezenas de milhões de inocentes que nunca investem um cêntimo em Wall Street. O argumento de Minsky é que, sem crises financeiras, uma economia de livre mercado não tem forma de desencorajar as inclinações naturais dos investidores para riscos cada vez maiores na procura de lucros cada vez maiores.

No entanto, na sequência da calamitosa Depressão dos anos 30, os economistas keynesianos tentaram conceber medidas que pudessem suplantar as crises financeiras como o regulador “natural” do sistema. Este foi o contexto em que foi criado o sistema do capitalismo do grande governo pós-Segunda Guerra Mundial. O pacote incluía dois elementos básicos: regulamentações concebidas para limitar a especulação e canalizar recursos financeiros para investimentos socialmente úteis, tais como habitações unifamiliares; e operações de resgate do governo para evitar depressões ao estilo de 1930, quando as crises financeiras eclodiram de uma maneira ou de outra.

Minsky argumenta que tanto o sistema de regulamentação financeira, como as operações de resgate, foram, em grande parte, bem sucedidas. É por isso que, desde o final da Segunda Guerra Mundial até meados dos anos 70, os mercados financeiros, nos Estados Unidos e a nível mundial, foram muito mais estáveis do que em qualquer período histórico anterior. Mas mesmo durante o período do próprio New Deal, os titãs dos mercados financeiros já lutavam veementemente para eliminar, ou pelo menos para rebentar com a regulação financeira. Na década de 1970, quase todos os políticos dos EUA – democratas e republicanos – se tornaram dóceis para com a alta finança. Para Minsky, as consequências eram previsíveis.

O paradigma de Wall Street, de acordo com Minsky, não abordava todas as dificuldades do capitalismo de mercado livre. Em particular, o seu modelo negligencia os problemas que surgem das enormes disparidades de rendimento, riqueza e poder que são tão endémicas para o capitalismo de mercado livre como as suas tendências para a instabilidade financeira.

É aqui que o trabalho de Sweezy e Magdoff começa a preencher um buraco gigantesco. Como os leitores regulares de MR sabem bem, a análise de Sweezy/Magdoff da financeirização estava intimamente ligada à sua estrutura mais ampla, explicando como o capitalismo avançado enfrentava problemas crónicos de procura global insuficiente e, correspondentemente, oportunidades de investimento rentável inadequadas. Da sua perspetiva, a financeirização da economia – incluindo o encorajamento na criação de bolhas especulativas – era o principal meio através do qual os capitalistas podiam criar novas oportunidades de investimento para si próprios. Como Sweezy e Magdoff escreveram em MR já em 1987, “Será a sociedade do casino um entrave significativo ao crescimento económico? Absolutamente não. O crescimento que a economia tem tido nos últimos anos, para além daquele atribuível a uma acumulação militar em tempo de paz sem precedentes, tem sido quase inteiramente devido à explosão financeira”.

Tal como com Minsky, Sweezy e Magdoff também não desenvolveram um quadro totalmente adequado para compreender as bolhas e crises financeiras. Existem lacunas e deficiências significativas em ambas as abordagens que precisam de ser trabalhadas por outros investigadores, como é o caso de todos os programas de investigação que sejam socialmente significativos. Mas isto levanta uma questão maior: por que razão, nos últimos trinta anos, foi algo na ordem dos 90 por cento dos economistas profissionais da macroeconomia que trabalharam em aspectos do quadro Friedman/Lucas, enquanto menos de 1 por cento estavam a desenvolver a abordagem Minsky/Sweezy? Cassidy, infelizmente, ignora esta questão, talvez porque a resposta é óbvia. Quaisquer que sejam as suas falhas em termos de coerência intelectual ou relevância, o modelo Friedman/Lucas – e o neoliberalismo em geral – faz um trabalho notável ao serviço dos interesses das grandes empresas e dos ricos, enquanto a abordagem Minsky/Sweezy desafia a legitimidade do capitalismo de mercado livre e dos seus beneficiários. Isto é especialmente verdade quando se faz um único pequeno ajustamento ao modelo Friedman/Lucas, que é a inovação chave do neoliberalismo, em oposição ao liberalismo clássico. Ou seja, o neoliberalismo tem tudo a ver com permitir que o mercado livre rebente, incluindo especialmente em Wall Street, mas que também não hesitará em defender os resgates governamentais quando surgirem as inevitáveis crises financeiras. Visto desta forma, os resgates de Wall Street não são apenas absolutamente necessários para manter o capitalismo a flutuar; são também centrais para manter a legitimidade da teoria económica dominante e favorável aos negócios.

Cassidy termina o livro How Markets Fail com um apelo às armas: “Antes que a vontade política de reforma se dissipe, é essencial colocar Wall Street no seu lugar e confrontar a economia utópica com a economia baseada na realidade”. No entanto, ao longo do seu longo e cuidadoso estudo, ele nunca se concentra seriamente na forma como podemos traduzir os conhecimentos da economia baseada na realidade num conjunto viável de políticas e instituições que possam tanto reconstruir sistemas financeiros estáveis como, mais fundamentalmente, começar de novo a avançar o projeto histórico de criação de economias democráticas sustentáveis e igualitárias. Esta é uma lacuna que obviamente terá de ser preenchida por um vasto leque de economistas baseados na realidade, ao lado de cidadãos que não estão dispostos a servir de bode expiatório quer para os grandes esquemas de Wall Street, quer para as bizarras proposições da economia utópica.

Colaborador

Robert Pollin (pollin@econs.umass.edu) é professor de economia e codiretor do Instituto de Pesquisa de Economia Política (PERI) da Universidade de Massachusetts-Amherst. Seus livros incluem Novas Perspectivas em Macroeconomia Monetária: Explorações na Tradição de Hyman P. Minsky (coeditor, 1994) e Contours of Descent (2004). Esta é uma resenha de How Markets Fail: The Logic of Economic Calamities, de John Cassidy (Nova York: Farrar, Straus and Giroux, 2009), 400 páginas, US$ 28,00, capa dura.

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