27 de setembro de 2012

Entre os alauítas

Os alauítas são uma das várias minorias na Síria, mas sempre foram vistos como um caso especial.

Nir Rosen


Vol. 34 No. 18 · 27 September 2012

Tradução / O que define o coração da Síria alawita são as cerimônias fúnebres, os funerais. Em Qirdaha, na montanhosa província da Latakia, terra natal da família Assad, vi dois policiais, com motocicletas adornadas com flâmulas com a imagem de Bashar-al-Assad, que subiam uma ladeira. Faziam a escolta de uma ambulância que conduzia o corpo de um tenente-coronel do Exército Sírio. Homens postados na calçada, ao meu lado, davam tiros de metralhadora para o alto, homenagem ao morto. Meus anfitriões e intérpretes locais davam sinais de embaraço. Prefeririam que eu não assistisse àquelas manifestações; disseram que era primeira vez que acontecia. “É o enterro de um mártir”, disse um deles. – “Então, para nós, é como um casamento”. Crianças com uniformes escolares e professores também postados nas calçadas, jogavam arroz e pétalas de flores na direção do cortejo. Cantavam “Só há um Deus e Deus ama os mártires”. Centenas de pessoas vestidas de negro andavam pelas ruas da cidade na direção do santuário local, para a cerimônia fúnebre. De todos os lados, ouviam-se cânticos de “Bem-vindo, oh mártir. Queremos Assad! Todos queremos Assad!”

Era abril, sexto mês de minha viagem pela Síria. Depois que saímos dali, chegaram notícias de outro funeral, ali perto, na vila de Ras al-Ayn, perto da costa. Uma vila de 700 habitantes já tinha então sete mártires, soldados do Exército Sírio; seis desaparecidos ou capturados; e muitos feridos.

“Todos os dias enterramos mártires”, diz um oficial. “Sacrificaram-se pela Síria”. Um homem, ao lado, falou sobre “os crimes deles”; “eles” mataram o soldado porque o soldado era alawita. Um dos meus guias reclama. Diz que não deve usar termos sectários sobre o conflito. “A oposição não nos deixou escolha” – diz um soldado. “Em matéria de negociação, só querem matar”.

Os alawitas – a seita xiita ortodoxa que é a religião dos Assads, cujos crentes permanecem na maioria fiéis ao presidente e ao governo – são cerca de 10% da população. A maioria dos sírios – cerca de 65% – são árabes sunitas. Os alawitas são uma das várias minorias, como os curdos sunitas e cristãos, os drusos, os xiitas não alawitas e os ismailis. Mas os alawitas sempre foram vistos como caso especial.

Os alawitas pouco conhecem dos fundamentos teológicos da própria religião, que é assunto de estudo só por especialistas iniciados. Mas a crença na transmigração das almas, na reencarnação, e na divindade de Ali, primo do Profeta – numa trindade constituída de Ali, Maomé e um de seus companheiros, Salman al Farisi – põem os alawitas em ponto bem distante do centro da curva do Islã dominante. Para muitos alawitas, a religião é menos uma fé rigorosa e impositiva, que uma expressão da própria cultura do grupo.

A identidade alawita gera algum complexo de inferioridade e medo da dominação sunita. Os alawitas gostam de reencenar a história da própria opressão. “O destino dos alawitas jamais foi invejável” – escreveu a historiadora palestina Hanna Batatu. – “Sob os otomanos, foram abusados, vilipendiados e degradados por vários tipos de exclusão; não poucas vezes, suas mulheres e crianças foram capturadas e oferecidas à venda”. Foram praticamente servos dos senhores feudais sunitas que os otomanos impuseram. Só em 1920, quando começou o mandato francês, o poder da elite sunita foi reduzido, e as minorias, entre as quais os alawitas, começaram a gozar de alguma precária mobilidade social. Os alawitas muito reivindicaram, sem sucesso, que os franceses lhes dessem estado à parte, que os protegeria do domínio dos sunitas.

Para os alawitas, a doutrina pan-arabista do Partido Ba’ath, que tomou o poder mediante um golpe, em 1963, foi o meio que encontraram para superar uma identidade sectária. O exército e os empregos no funcionalismo público deram-lhe meios para escapar das vilas empobrecidas. Rapidamente, pessoas de todos os tipos, emigrados do campo para as cidades, mas, sobretudo, alawitas, passaram a dominar os escalões iniciais do exército, os corpos de oficiais e as academias militares. Em 1971, Hafez al-Assad, alawita e ex-piloto da força aérea, já então Ministro da Defesa da Síria, comandou um golpe contra um rival Ba’athista. Quando Hafez morreu em 2000, depois de permanecer trinta anos no poder, seu filho Bashar foi empossado na presidência. Naquele momento, os alawitas haviam-se convertido, de minoria perseguida e marginalizada, em grupo protegido pelo Estado; e o Estado, por sua vez, havia-se convertido em núcleo da identidade alawita.

“Estímulo poderoso para tentar construir a coesão na atual conjuntura, é o grave temor, entre os alawitas de todos os níveis e escalões da sociedade, de que os alawitas sofrerão consequências muito graves, se o atual regime entrar em colapso” – escreveu a historiadora Batatu, em 1981.

Historicamente, os alawitas sempre se mantiveram à margem do Islã que Assad-pai teve de insuflar na Síria, na “islamização” indispensável para que a maioria sunita o aceitasse como presidente da Síria. Os alawitas veem-se como mais “liberais” e mais seculares que os muçulmanos em geral. Podem consumir bebidas alcoólicas; homens e mulheres usam roupas ocidentais; e homens e mulheres interagem livremente em todos os espaços públicos. Não raras vezes, suas opiniões divergem completamente da opinião dos sunitas, mais conservadores. Os alawitas lembram o levante da Fraternidade Muçulmana nos anos 1980s como tempo de violência, quando o regime lutou contra terroristas, até esmagá-los; para os sunitas, foi tempo em que o regime perseguiu brutalmente os sunitas, coletivamente. Naqueles dias, era difícil encontrar um sunita, membro da oposição, que não tivesse perdido um tio, ou que não tivesse pai ou avô na cadeia, preso durante a repressão que se seguiu ao levante coordenado pela Fraternidade Muçulmana. Até agora, a oposição nada disse sobre o que será feito das centenas de milhares de prisioneiros que permanecem nas prisões, no caso de o regime de Assad cair. Os alawitas entendem que têm bons motivos para ter medo.

Na província litorânea de Tartus e em outras partes da região em que vivem os alawitas, foram instalados incontáveis novos postos de controle e revista, comandados por grupos leais a Assad, pelo Exército Sírio ou por membros paramilitares de comitês de resistência popular, em que se misturam uniformes militares e trajes civis. O interior da região armou a própria defesa.

Estive em maio na cidade de Xeique Badr, nas montanhas da província de Tartus. Ali haviam sido mortos 43 membros da resistência local; sete haviam sido capturados, ou eram dados como desaparecidos. Quando eu entrevistava o prefeito, em seu gabinete, veio a notícia de que acabava de chegar mais um soldado ferido. O primeiro mártir da cidade de Xeique Badr foi morto em Daraa, em abril de 2011, um mês depois de iniciado o levante. O mais recente, um coronel morto em Damasco, havia sido enterrado dois dias antes da minha chegada.

A cidade é conhecida por ser terra natal do Xeique Saleh al-Ali, herói da luta anticolonial, que lutou contra os franceses. “Num famoso discurso, ele rejeitou a ideia de estado alawita independente, porque amava a Síria” – disse-me o prefeito, citando de memória partes daquele discurso; ao lado, Abu Haidar, homem da segurança, ouvia. “Não acreditamos em Hafez al-Assad porque fosse alawita, mas porque foi grande patriota” – disse ele. – “Que governo permaneceria no poder por 40 anos, sem o consentimento do povo?”. O prefeito reagiu estremeceu, quando lhe perguntai como responderia a novo presidente que a Síria viesse a ter. Como a maioria dos alawitas que encontrei, não conseguem sequer imaginar governo na Síria, sem algum Assad. Um dos homens que assistia à entrevista perguntou como era possível que – na Líbia, na Tunísia, no Egito, na Arábia Saudita e em toda a parte – o ocidente apoiasse islamistas em vez de “movimentos mais seculares e mais avançados”?

O prefeito, como muitos apoiadores do regime de Assad, acredita que esteja em curso na Síria uma conspiração de fundamentalistas islamistas.

Para eles, os levantes na Tunísia, no Egito e na Líbia não foram irrupções espontâneas de protesto popular, mas conspiração organizada para a qual se uniram os EUA, a Fraternidade Muçulmana e os países do Golfo Árabe. “Não é movimento popular. É movimento salafista” – disse um deles. “O que conseguiram, afinal, as revoluções na Tunísia, Líbia e Egito?” – perguntou Abu Haidar. A ascensão de islamistas ao poder naqueles três países tornou os alawitas sírios ainda mais desconfiados de que o fim do governo Assad venha, algum dia, a significar qualquer tipo de mudança para melhor.

Perguntei a Abu Haidar, o homem da segurança, por que Bashar só começara suas (tímidas) reformas depois que começaram os protestos na Síria em março de 2011. Respondeu-me como respondem os apoiadores do regime, que os eventos de 2003 (invasão do Iraque), 2005 (assassinato do Primeiro-Ministro libanês Rafiq al-Hariri e retirada dos sírios do Líbano), 2006 (guerra de Israel contra o Líbano), 2008 (disputas internas no Líbano) “nos tiraram a liberdade para promover reformas”. Perguntei então se as forças de segurança não haviam atirado contra manifestantes desarmados. Todos responderam que não e insistiram em que o regime proibiu o uso de armas contra manifestantes. Não sei se proibiu ou não, mas sei que houve tiros contra manifestantes. Em seis meses na Síria, estive presente em mais de uma centena de manifestações da oposição. Atiraram contra mim em várias daquelas manifestações. Uma vez, um jovem que estava ao meu lado e atirara uma pedra, recebeu tiros no abdômen e morreu na calçada.

Para viajar em segurança por áreas alawitas, contratei, para me acompanhar, um sargento do exército, dispensado do serviço ativo, de nome Abu Laith, nascido em Rabia, cidade na área rural de Hama. No ano que o conheci jamais o vi comer, mas fumava narguilé cada vez que tinha uma chance; falava constantemente ao telefone, em negociações de seu segundo emprego, como contrabandista de cigarros. Seu salário era de 17 mil liras mensais, cerca de £160. “Não temos conexões no Estado”, contou-me. Por isso, não conseguia emprego no funcionalismo civil: “os únicos empregos que nos restam são o Exército ou serviços de segurança”. Na venda de cigarros contrabandeados, conseguia ganhar 1.000-1.500 liras extras por dia. Vários de seus irmãos estavam ou no Exército ou na Polícia. Dirigindo por áreas que não conhecia, várias vezes perguntou às pessoas como fazer para evitar áreas sunitas. Em alguns pontos, os locais abriram estradas alternativas através de cidades alawitas e cristãs; pelas paredes, viam-se setas pintadas nas paredes, indicando o caminho, para que ônibus e outros carros pudessem evitar os pontos ocupados pela oposição. Quando nos aproximávamos de áreas sunitas, Abu Laith carregava a pistola Makarov. “Vou sair-lhes caro” – explicou. “A coisa mais importante é não morrer sem dar-lhes trabalho”. Falou-me sobre a centena de homens de sua força de segurança regional que haviam sido mortos. Outros duzentos foram feridos. Cinco de seus primos foram mortos.

A maioria dos homens de Rabia servem no Exército ou em forças de segurança em outras partes do país. Muitos vivem em complexos de hospedagem para militares, ou arranjaram casa e família na periferia da grande Damasco onde vivem operários alawitas. Qudsaya, subúrbio sunita de Damasco, inclui dois “enclaves” alawitas: Wurud e “Guarda Republicana”, nome que homenageia os soldados que ganharam casas ali. As duas áreas são contíguas a bairros de operários sunitas; desde o início do levante, começaram os conflitos entre as duas comunidades. Muitos dos prédios foram construídos ilegalmente e às pressas, em terras do Estado. As autoridades fingem que não veem esses acordos informais, porque os moradores são elementos chave das forças de segurança. Aqui, como nas vilas de onde vieram os moradores, há poucas estradas pavimentadas e praticamente não há serviços públicos. Apesar do abandono, são fiéis apoiadores do regime, a guarda pretoriana que se vê nas ruas. Os homens da segurança que nos cercavam argumentaram que a pobreza em que vivem é prova de que os alawitas não extraem qualquer benefício do regime. “Nunca pedimos coisa alguma e nada queremos, além de viver em segurança”.

Quando Abu Laith levou à sua cidade, Rabia, notícias sobre nossa chegada espalharam-se rapidamente. Milhares de moradores organizaram manifestação que pareceu instantânea, espontânea e sincera, de apoio ao regime, no centro da vila, ao lado de uma estátua de Hafez al-Assad segurando um ramo de oliveira e uma espada. A estátua, paga pelos moradores, foi erigida depois do início do levante. Por trás da estátua, um gigantesco pôster com uma foto de Hafez e Bashar. Sobre o pôster, alguém escrevera “Rabia é a toca do leão”, jogo de palavras com assad, que significa “leão”. Fui levado de casa em casa, para que todos pudessem falar dos parentes mortos e feridos, e dos 42 mártires de Rabia. Disse a um grupo de homens da cidade que, quando visitara cidades onde havia bases operacionais da oposição, como Baba Amr em Homs, também ouvira contar de pais e filhos que haviam sido martirizados. “Nossos filhos estavam simplesmente indo trabalhar” – respondeu um coronel do Exército cujo sobrinho foi morto em Idlib. “Há grande diferença entre matar um homem que saiu de casa para ir trabalhar para o Estado, e matar alguém armado que atira contra o Estado. Pode-se dizer que cinco soldados assassinados num posto de passagem foram assassinados por manifestantes pacíficos?”.

Ao longo do ano que passou, os alawitas de Rabia tiveram vários conflitos com moradores sunitas das vilas próximas. No verão, os alunos da cidade não puderam viajar até Hama para os exames escolares, porque a oposição bloqueara a estrada. Cerca de trinta famílias alawitas que viviam em vila próxima, de maioria sunita, mudaram-se para Rabia, sentindo que já não estariam seguros onde viviam antes. As famílias desalojadas de onde viviam sentiram-se frustrados com a resposta que receberam do governo. “Não tínhamos armas. Tivéssemos, teríamos ficado e lutado” – disse-me um velho. “Deveriam ter-nos mandado tanques. Mas a oposição bloqueou todas as estradas. Queremos que o Estado resolva nossos problemas e que o Exército nos devolva às nossas casas. O Exército tem de entrar nessas vilas. Mas estão ocupados, agora, em Hama. Por que o Estado move-se tão devagar?”. O pai de Abu Laith, soldado aposentado, concordou. “Só o Exército poderá resolver isso” – disse ele. “Se respondermos nós mesmos, será visto como violência sectária e as outras vilas sunitas unem-se contra nós. Estamos em menor número”.

De Rabia, parti para o noroeste, na direção de Aziziya, uma remota vila alawita que lutou contra os sunitas da vila vizinha de Tamana. Como em muitas vilas alawitas, a maioria dos homens trabalha ou no Exército ou na segurança. Os sunitas vizinhos apoiam, todos, a oposição; e houve operações de milícias sunitas na área, desde a primavera. Salhab, a vila mais próxima, de tamanho significativo, está acolhendo centenas de mães e crianças alawitas que fugiram de suas casas. A luta entre Aziziya e Tamana não dá sinais de estar amainando. Encontrei várias famílias em estado bem próximo da histeria. Uma mulher recém-chegada a Salhab gritava: “Saímos de lá sob fogo! Nossa dignidade é preciosa! Nosso líder é respeitável. Os sunitas são traidores. Tudo por Bashar!”

“Pedimos reforços ao Estado” – outra queixa várias vezes repetida – “mas não mandaram reforços.” Todos concordam que as relações com os vizinhos sunitas sempre foram amistosas e próximas, até o levante. “Éramos vizinhos” – disse-me uma das mães. – “Comíamos juntos, nos visitávamos, uns as casas dos outros. Houve incitamento sectário. De repente, havia gente nas ruas, gritando, praguejando.” Apesar da frustração com o regime que não os está protegendo – crítica que se ouve em muitas comunidades alawitas –, querem mostrar que sua devoção a Bashar não diminuiu. “Eles podem matar todos nós” – disse uma mulher. “Mas se um de nós restar vivo, continuará a apoiar o presidente.” Há aí uma contradição intrigante. Os alawitas veem-se eles mesmos como os cidadãos mais pobres do país, originários de vilas pobres, negligenciados por Damasco. Mesmo assim, se declaram dispostos a deixar-se matar pelo Estado que, segundo eles mesmos, não os está protegendo.

No início do levante, conheci o Dr. Yahya al-Ahmad, figura influente das áreas de alawitas de classe média de Homs. Naquele momento, sua principal preocupação era trabalhar junto aos seus amigos sunitas para reduzir as tensões sectárias. Eu estava sentado sobre a laje de sua casa durante uma daquelas reuniões, quando atiradores escondidos, de repente, abriram fogo contra nós. Ninguém foi ferido. O Dr. Al-Ahmad e seus amigos suspeitaram de que os atiradores não fossem membros da oposição, mas extremistas leais ao regime. Quando nos encontramos novamente, no início de 2012, as coisas haviam-se deteriorado – a casa havia sido atacada duas vezes com morteiros pela oposição; e o Dr. Al-Ahmad tivera de mudar-se e passava quase todo o tempo numa cidade próxima. Em torno da casa, praticamente todas as lojas estavam fechadas. O Dr. Al-Ahmad contou que alguns alawitas haviam sido sequestrados; e que outros alawitas haviam retaliado. Perguntei quantos alawitas haviam sido mortos. “Mortos? Você quer números? Paramos de contar. Os números deixaram de ter importância”. Meus amigos na oposição várias vezes disseram praticamente a mesma coisa sobre seus mortos.

“Homens armados controlam as coisas” – Yahya continuou. – “Estou armado. É uma resposta. Se o Estado não nos dá segurança, então é conosco. Como alawita, você não pode depender só do Estado. E se os homens que fazem a vigilância caem no sono?” A posição de Yahya mudou. “Há um ano, se você me perguntasse quem poderia substituir Bashar al-Assad eu teria pensado num ou noutro nome. Pergunte hoje, e lhe direi que só aceito Bashar al-Assad”. Mas há nele a mesma ambivalência que se vê em muitos alawitas. “Bashar enfraqueceu a segurança na vida diária. Aí está uma das causas do que se vê hoje”. Tentei que ele reconhecesse o número inadmissível de civis mortos nos ataques do governo contra o povo. “Gente inocente é morta todos os dias” – respondeu ele. “Ninguém pode distinguir, ante um homem armado contra você, se ele é culpado ou inocente. Que governo, no mundo inteiro, aceitaria não se defender?”.

Um alto dirigente do Exército, responsável por Homs, dentre outras cidades, disse-me que 80 oficiais com comandos e sem estão presos por “erros” – abusos, atrocidades, tortura – e que pelo menos dez devem esperar sentenças de 15 anos. A asserção pareceu sem sentido, face à violência do regime contra civis. (Se o Exército Sírio fez qualquer tentativa para disciplinar seu pessoal, não foi divulgada.) Os alawitas não erram, ao sentir que, se se considera a fúria da repressão, o estado sírio está perdido, sem saber o que fazer para protegê-los. Esse sentimento, sobretudo, é o que levou ao crescimento de milícias leais ao Estado, cada dia mais fortes e cada dia mais independentes, que agem em plena impunidade e não raras vezes criam problemas para o governo de Assad. As milícias foram responsáveis por vários massacres em Homs e Hama, mas Bashar não está em posição que lhe permita controlar seus seguidores mais renitentes.

Um engenheiro em Homs, alawita que se aliou à oposição, disse-me que a primeira vez que viu milícias legalistas em ação foi em março de 2011. “Não tinham qualquer comando ou organização. Não eram organizados por ninguém, além deles mesmos” – disse ele. Mas em julho já estavam organizados. E hoje operam por conta própria... Nada mais perigoso numa guerra civil que a gente que vive dela e depende financeiramente dela. Vi acontecer no Líbano. Em Homs o que temos é aberta guerra civil”.

Nos tempos de Hafez al-Assad, a expressão shabiha, que significa “fantasmas”, designava os criminosos e contrabandistas organizados que cooperavam com as forças de segurança. Alguns eram do clã Assad – o irmão de Bashar é famoso por ter esmagado elementos da shabiha Assad que escaparam ao seu controle – mas nunca, em momento algum, foram alawitas. Contudo, quando o levante começou, a palavra shabiha muito rapidamente passou a aplicar-se a milícias legalistas; com o tempo, já designava qualquer força leal ao governo de Assad. Em seguida já se ouviam, nas manifestações pró-regime, cantos dirigidos à oposição e que diziam: “Somos a shabiha! Deem adeus à liberdade! Shabiha para sempre!”.

Um oficial de segurança disse-me que há milhares de shabiha – comitês populares – nas áreas periféricas alawitas de Homs. Não são milícias pagas, disse ele; mas continuam a receber os salários de funcionários públicos que recebiam antes, embora já não compareçam aos locais de trabalho. Reportam-se aos prefeitos locais. “Podem prender qualquer um, de Khaldiyeh ou Bayada [dois bairros sunitas, em Homs]” – disse ele. – E entregam o prisioneiro ao Exército. Trabalham coordenados com o Exército”.

O engenheiro de oposição em Homs foi mais claro: “Shabih é gente que ama Bashar mais do que Bashar se ama ele mesmo. Shabih é uma cultura, não uma pessoa. Eles se sentem acima da lei, sentem que são a lei... Por hora, o estado ainda pode controlá-los, mas não sei se conseguirão controlá-los no futuro. Atualmente, o estado está usando os shabih. O estado criou essa gente”. Os alawitas que se unem à oposição, acrescentou, são vistos como traidores da seita. Alguns alawitas ativos na oposição em Homs, como ele, já morreram nas mãos dessas milícias legalistas: em abril de 2011, numa das principais praças de Homs, uma manifestação pacífica da oposição, da qual participaram até alguns alawitas, terminou num massacre cometido por homens dos comitês populares de apoio a Bashar e do Exército.

O que será dos alawitas, se o regime cair, e o que será da base de apoio popular que está com Assad, são perguntas diferentes. Entre os que apoiam Bashar há outras minorias, além dos alawitas – para nem falar dos muitos sunitas que o apoiam. Desde o início o governo apresentou a oposição como motivada por sectarismo – acusação que estimula ainda mais o sectarismo que parece deplorar. Mas o governo cuidou atentamente de não manifestar qualquer tipo de preferência sectária – o que deixou os alawitas ainda mais desamparados, apesar de sua manifesta solidariedade. Os que defendem Bashar dizem que há diversidade em seu campo; e que a oposição é quase completamente sunita. Mas oficiais e soldados sunitas sempre estiveram lado a lado em unidades de elite do exército, como a 4ª Divisão e a Guarda Republicana. E muitos intelectuais da oposição já admitiram abertamente que, se a base de apoio ao governo de Bashar fosse composta só de alawitas, o regime já teria caído há muito tempo. Se se tratasse exclusivamente de conflito entre sunitas e alawitas, Bashar perderia o apoio que os sunitas sempre lhe garantiram na Síria; e estaria reduzido ao apoio de 10% da população, mais alguns grupos de outras minorias.

Quando perguntei a Abu Rateb, líder do conselho militar de Homs, o que aconteceria ao Exército e aos comitês populares da shabiha, e às centenas de milhares de alawitas armadas, se o governo de Bashar caísse, ele respondeu que eu estava exagerando nos números. Previu o que chamou de “chacina”, mas sentia que uma alternativa para Bashar acabaria por emergir de dentro do sistema e levaria a um acordo. “Bashar é a figura central para ales. Sem Bashar, ficam sem espinha dorsal e perdem a motivação”. Depois de uma transição difícil, pode nascer uma nova Síria, “uma Síria livre, justa e democrática”. Um dos líderes da guerrilha anti-Bashar em Duma, o principal bairro dos subúrbios de Damasco, disse-me que muito se preocupa com combates entre sunitas e alawitas em vilas como Aziziya e Tamana. “Não podemos dizer que nós temos direito de viver aqui, e eles não” – disse ele. Mas “depois da revolução os alawitas voltarão ao lugar natural deles. Quando já não tiverem qualquer autoridade”.

Evidentemente não se sabe qual seria o tal “lugar natural”. Terão de deixar as cidades e voltar para suas áreas rurais étnicas tradicionais? Uma nova geração de especialistas em Síria ativos pelos jornais ocidentais já está discutindo a possibilidade de criar-se um estado alawita à parte. Mas nada ouvi sobre isso dos próprios alawitas. Há muito tempo a Síria é o principal projeto desses alawitas; o modo pelo qual se envolveram foi deixar as vilas tradicionais e mudar-se para uma versão de modernidade.

É possível que terminem cercados em alguma espécie de enclave autônomo, como resultado de uma guerra civil que venha a ser vencida pela oposição. Mas esse não é desejo dos alawitas. Estão convencidos de que combatem hoje pelos velhos ideais do Partido Ba’ath, do nacionalismo sírio e árabe.

De qualquer modo, nenhum estado alawita seria jamais viável: o território tradicional dos alawitas jamais ofereceu o mínimo necessário para que os alawitas ali permanecessem; ali não há serviços nem empregos; e a comunidade seria integralmente dependente de diferentes tipos de apoios externos. É possível que a “revolução síria” acabe nisso. Mas esse jamais foi o objetivo de ninguém.

24 de setembro de 2012

A fábrica de mentiras

Como a política se tornou um negócio

Jill Lepore

The New Yorker

O campo de consultoria política era desconhecido antes que Leone Baxter e Clem Whitaker fundassem Campaigns, Inc., em 1933.

“Eu, Governador da Califórnia, e Como Erradiquei a Pobreza”, livro de Upton Sinclair, é provavelmente a mais excitante peça de campanha eleitoral jamais escrita. Em vez do vazio de sempre, Sinclair, autor de 47 romances, entre os quais, e mais famoso, “A Selva” [The Jungle] escreveu... um romance, uma peça de ficção. “Eu, Governador da Califórnia”, publicado em 1933, anunciava a candidatura de Sinclair sob a forma de uma história ‘no futuro’, na qual Sinclair é eleito governador em 1934 e, já em 1938 havia erradicado a pobreza. “Que me conste”, o autor observava, “é a primeira vez que um romancista decidiu tornar realidade a própria ficção”.

O livro tinha apenas 64 páginas, mas vendeu 150 mil exemplares em quatro meses. Capítulo 1: “Numa noite, em agosto de 1933, cinco membros do Comitê Central do Partido Democrata no Condado reuniram-se para a 16ª Assembleia Distrital do Estado da Califórnia”. Pode não parecer grande coisa, se você esqueceu que, naquele momento, a Califórnia era estado de partido único: em 1931, praticamente todas as 120 cadeiras na Assembleia estadual eram ocupadas por Republicanos; nenhum representante Democrata tinha comitê de alcance estadual na Califórnia. Vale lembrar também que o desemprego, no estado, estava em 29%. Voltando àquela reunião, em agosto de 1933: “O objetivo da reunião era discutir com Upton Sinclair a possibilidade de registrar-se como membro do Partido Democrata e, nessa condição, apresentar-se como candidato ao Governo da Califórnia”. E se Sinclair, socialista conhecido, uma vida inteira dedicada ao socialismo, concorresse como Democrata? Que magnífica virada na trama!

A coisa realmente esquenta depois que Sinclair adota, como slogan de campanha, a frase “END POVERTY IN CALIFÓRNIA” [Erradicar a pobreza na Califórnia] (“Alguém lembrou que com as iniciais dessas palavras podia-se escrever “EPIC” [épico]”); como emblema de campanha, atropela a águia e o falcão (“pessoalmente, não tenho nenhuma simpatia por aves de rapina” – o candidato repete) em favor de uma abelhinha trabalhadeira (“abelhas trabalham duro e, melhor que isso, são muito bem equipadas para a autodefesa”); expõe seu programa de fábricas e fazendas em cooperativa que implementaria sua filosofia de “produção para o uso”, não para o lucro; propõe acabar com os impostos sobre produtos comprados e criar um imposto sobre a renda, algo como 30% sobre tudo que alguém ganhe acima de 50 mil dólares/ano; e promete, não só abrir as portas do Inferno, mas, sobretudo, ser eleito.

Seja como for, foi terrível choque para praticamente todo o mundo quando, em agosto de 1934, Sinclair obteve a indicação do Partido Democrata, com mais votos do que qualquer candidato em qualquer primária na Califórnia jamais obtivera. Acontece assim também no romance – que é o que torna a leitura tão excitante (ou, para muita gente, tão apavorante): constatar que aconteceu, passo a passo, o que Sinclair imaginara que aconteceria. Capítulo 4: “Notícias de que os eleitores Democratas da Califórnia associaram o Partido ao plano EPIC causaram furor em todo o país.” É verdade! “Resultou em ampla discussão do plano em revistas nacionais, o que levou à constituição de um Comitê EPIC Nacional.” Na prática, foi isso! “Declaração de apoio a Sinclair para Governador, assinada por uma centena de grandes autores, e grupos de intelectuais, por todo o país, recomendando a adoção do plano EPIC para outros estados e municípios. Grupo de economistas de visão apoiaram o plano e cartas chegavam, de grande grupo de senadores dos EUA e de cerca de 50 deputados”. O.K., essa parte nunca aconteceu.

Em 1934, Sinclair explicou o que acontecera naquele ano eleitoral, numa continuação não ficcional do romance, que levou o título de “Eu, Candidato a Governador, e Como Fui Detonado” [“I, Candidate for Governor, and How I Got Licked]. “Quando eu era menino, o presidente da Universidade de Harvard escreveu sobre “o intelectual na política” – Sinclair começou. “Narro aqui como um intelectual entrou na política e o que lhe aconteceu”. “Como fui Detonado” foi publicado em capítulos em 50 jornais. No relato, Sinclair conta como, imediatamente depois da Convenção Democrata, o Los Angeles Times passou a publicar, na primeira página, um Box com frases de autoria de Upton Sinclair; e continuou, sem parar, todos os dias, por seis semanas, até a abertura das urnas. “Lendo aquilo, todos os dias” – Sinclair escreveu – “compreendi que a eleição estava perdida”.

Sinclair foi detonado – escreveu ele mesmo – porque a oposição montou o que Sinclair chamou de “uma fábrica de mentiras”. “Contaram-me que havia uma dúzia de jornalistas vasculhando bibliotecas e copiando cada palavra que eu algum dia publicara.” Acharam frases que escreveu em romances, falas de personagens de ficção, e publicavam, todos os dias, como se o próprio Sinclair as tivesse dito. “Tinham uma legião de especialistas em química política, fabricando venenos para lançar nos ares da Califórnia todos os dias, um por dia, por cem dias”. Na verdade, naquele momento, foram apenas dois jornalistas. E a empresa não se chamava Fábrica de Mentiras. Chamava-se Campaigns Inc. (Campanhas e Cia. Ltda.).

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Campaigns, Inc. foi a primeira empresa de consultoria política da história universal, fundada em 1933 por Clem Whitaker e Leone Baxter. Whitaker, 34 anos, começara a vida como jornalista júnior, bem júnior, de fato: começou a trabalhar como repórter aos 13 anos. Aos 19, já era editor de Cidade, no jornal Sacramento Union; poucos anos depois, colunista de Política do San Francisco Examiner. Era extrovertido e enturmável, tinha orelhas enormes, fumava muito e jamais parava de falar e datilografava só com os dedos indicadores. Criou uma agência de distribuição de notícias por telégrafo, Capitol News Bureau, e distribuía matérias para 80 jornais. Em 1930, vendeu sua empresa para a United Press. Três anos depois, foi contratado, por seu engenho político, por, dentre outros, Sheridan Downey, Democrata proeminente, para ajudá-lo a derrotar um referendum patrocinado pela empresa Pacific Gas and Electric. Downey também contratou Baxter, viúva, 36 anos, que escrevera para o Portland Oregonian, e sugeriu que se unissem as forças, dela e de Whitaker.

Baxter era mignonne, rosto bonito, cabelo ruivo, elegante. Costumava dizer “Oh, ele foi tão fofo” – de quem gostava. Whitaker usava ternos sempre maiores ou menores que ele; os vestidos de Baxter caíam nela como cairiam em Audrey Hepburn. Whitaker e Baxter começaram os negócios da empresa Campaigns, Inc.. Derrotaram o referendo. Whitaker divorciou-se. Em 1938, casou com Baxter. Viviam em Marin County, em casa com piscina aquecida. Começavam o dia com um café da manhã de duas horas, para planejar o dia. Ela às vezes o chamava de Clem; ele sempre a chamou de Baxter.

Em 1934, quando Sinclair ganhou a indicação como candidato dos Democratas, escolheu Downey como candidato a vice-governador (“Uppie and Downey” era o apelido da dupla.) Trabalhar para o Democrata Downey fora uma aberração para Whitaker e Baxter, gente que, como se dizia, “só trabalha à direita da rua”. A empresa Campaigns, Inc., especializara-se em campanhas políticas para empresas, sobretudo para monopólios do tamanho da Standard Oil e Pacific Telephone & Telegraph. A Pacific Gas & Electric ficou tão impressionada, que contratou Campaigns, Inc. com exclusividade.

A consultoria política é quase sempre vista como descendente da indústria da publicidade. Melhor será dizer que a indústria da publicidade é que nasceu como modalidade da consultoria política. Como o cientista político Stanley Kelley explicou certa vez, quando a moderna publicidade nasceu, os grandes clientes tinham tanto interesse em promover uma agenda política quanto uma agenda comercial. Monopólios como Standard Oil e DuPont tinham péssima imagem junto ao grande público: eram vistos como gananciosos e cruéis e, no caso da empresa DuPont, que fabricava munição, sinistra. Então, contrataram empresas de publicidade para encher a opinião pública com ideias positivas sobre “grandes corporações” e, não por acaso, também para apressar a aprovação de leis pró-business. É esse tipo de coisa que Sinclair estava falando quando ele disse que a história americana era uma batalha entre negócios e democracia, e "Até agora", ele escreveu, "o Big Business ganhou todas as escaramuças".

Como muitos Republicanos da Califórnia, Clem Whitaker e Leone Baxter, que eram propagandistas a soldo da Liga Californiana Contra o Sinclairismo, ficaram horrorizados ante a possibilidade de ter Sinclair no governo do estado. Tinham de trabalhar rápido. Foram contratados apenas dois meses antes das eleições, por George Hatfield, candidato a vice-governador numa chapa Republicana que levava, na cabeça, o governador então no cargo, Frank Merriam. Mas não foram contratados para eleger ninguém. Foram contratados para destruir Sinclair. Começaram por trancarem-se, os dois, numa sala, por três dias, com tudo que Sinclair algum dia publicara. “Upton foi derrotado” – disse Whitaker mais tarde, “porque escrevera livros. Daí nasceram os boxes diários no L.A. Times. Um deles, por exemplo:

SINCLAIR SOBRE O MATRIMÔNIO: 
A santidade do casamento. ... Eu tive tanta crença ... não tenho mais.

A frase, como Sinclair explicou em “Como Fui Detonado”, foi tirada de uma passagem, em seu romance de 1911, “Love’s Pilgrimage”, na qual um dos personagens escreve carta de absoluta depressão a um homem que estava tendo um caso com sua mulher. (A novela, detalhe que, adiante, gerou terrível embaraço para Sinclair, é relato autobiográfico de um desastrado primeiro casamento, que terminara em 1912, quando Sinclair pediu o divórcio e citou um evento de adultério. Em 1913, casou-se com sua segunda esposa e viveram juntos até a morte dela, em 1961.) “Claro que as citações não tinham importância alguma” – Baxter disse mais tarde. “Mas só tínhamos um interesse: impedir que ele chegasse ao governo do estado”.

Sinclair perdeu. Provavelmente, teria sido péssimo governador. Mas não é disso, absolutamente, que se trata.

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Nenhum desenvolvimento único alterou o funcionamento da democracia americana no último século, tanto quanto a consultoria política, uma indústria desconhecida antes da Campaigns, Inc. Nas décadas intermediárias do século XX, os consultores políticos substituíram os chefes partidários quando o direito de exercer o poder político foram obtidos não por votos, mas por dinheiro. Whitaker e Baxter foram as primeiras pessoas a fazer da política um negócio. “Um eleitor, um consumidor” ouvia-se ainda há pouco tempo, como mantra repetido por uma dessas empresas de consultoria política. A frase também foi criada por Campaigns Inc. O “gerenciamento” político de campanhas eleitorais é hoje indústria diversificada, de muitos bilhões de dólares, com “coordenadores” de campanha, redatores de discursos, “pesquisadores”, jornalistas e publicitários que têm papel definitório em tudo, da campanha para eleger o presidente dos EUA às campanhas para eleger o Comitê financeiro da escola do quarteirão. (Atualmente, as campanhas nunca terminam. E os consultores não têm de se ocupar só das campanhas: eles também têm de governar! Mitt Romney, perguntado pelo corpo editorial do Wall Street Journal sobre como selecionaria os membros de seu Gabinete, disse que, provavelmente, contrataria McKinsey para decidir). Mas, por muitos anos, Whitaker e Baxter não tiveram concorrentes, razão pela qual, entre os anos de 1933 a 1955, venceram 70 das 75 campanhas nas quais trabalharam. As campanhas para as quais trabalharam, porque escolheram trabalhar nessas, não em outras, e o modo como conduziram as campanhas modelaram a história do estado da Califórnia e a história dos EUA. De fato, Campaigns, Inc. continua, até hoje, a modelar a política nos EUA.

Em 1934, Upton Sinclair foi detonado, mas muitos candidatos da linha “EPIC” de “Erradicar a Pobreza na Califórnia” foram eleitos, pelo Partido Democrata. A Califórnia tornou-se estado de dois partidos. 24 candidatos pró-EPIC, entre os quais um advogado de Los Angeles de nome Culbert Olson, assumiram como deputados na Assembleia estadual e, quatro anos depois, Olson, já líder da bancada EPIC no estado, foi eleito governador. Olson nomeou Carey McWilliams, também advogado em Los Angeles, além de jornalista e autor de livros, para dirigir a Divisão Estadual na Califórnia para Imigração e Moradia.

Em 1938, McWilliams, amigo de Sinclair, fizera campanha pró-Olson enquanto escrevia “Factories in the Field: The Story of Migratory Farm Labor in Califórnia” – que é como versão não ficcional, de “As vinhas da Ira”. Os dois livros foram publicados em 1939. O de Steinbeck foi proibido, e os Republicanos da assembleia estadual da Califórnia tentaram extinguir a Divisão Estadual na Califórnia para Imigração e Moradia, exclusivamente para conseguir a demissão de McWilliams.

Em 1942, os Republicanos que apoiavam a candidatura do Advogado Geral do Estado, Earl Warren, no esforço para tirar Olson do governo do Estado, convenceram Warren a contratar Whitaker e Baxter para dirigir sua campanha eleitoral. Warren aceitou, meio relutante. Nos anos posteriores à detonação do sinclairismo, Whitaker e Baxter haviam incorporado algumas novas ferramentas à sua caixa de ferramentas de campanha eleitoral. Em 1939, com panfletos como “Enganando os Famintos”, a empresa Campaigns, Inc. havia liderado o esforço para derrotar um projeto de lei estadual, para a Califórnia, a “Proposition 1”, objeto de referendo conhecido como “Ovos com presunto”, que teria criado um imposto de 3% para assegurar pensão de 30 dólares por semana a todos os cidadãos com mais de 50 anos: “ovos com presunto às quintas-feiras”. (Adiante, Harper noticiou: “Em ação típica de campanha de propaganda, imprimiram dez milhões de panfletos; enviaram 50 mil cartas para “indivíduos e funcionários chaves de grupos organizados”; compraram 70 mil polegadas de espaço publicitário em 700 jornais; produziram 3.000 spots de propaganda que distribuíram por 109 estações de rádio; spots filmados e curtas-metragens para exibir em salas de 160 cinemas; 1.000 cartazes gigantes e 18-20 mil cartazes menores.”). Em 1940, produziram material para a campanha presidencial do Republicano Wendell Willkie, que incluía um manual para oradores, com instruções sobre como enfrentar Democratas que houvesse entre o público: “em vez de referir-se ao oponente como “Partido Democrata” ou “Governo do New Deal”, repita sempre, exclusivamente, o nome do candidato”.

Whitaker e Baxter trabalhavam como uma só cabeça, sem falhas. Respondiam junto ao telefone. Liam a correspondência um do outro. Anualmente trocavam de postos: um ano, o presidente era Whitaker, com Baxter vice-presidente da empresa; ano seguinte, o contrário. Ganharam montanhas de dinheiro. Cobravam, por exemplo, para uma campanha de referendo, algo entre 25 mil e 75 mil dólares. Exigiam controle completo sobre o orçamento, para despesas de campanha. (Uma de suas regras: reserve sempre 75% do orçamento que haja para o último mês antes da votação.) A empresa lucrava algo próximo de 250 mil dólares por ano. E Campaigns, Inc. era só uma parte do império. Whitaker e Baxter também comandavam uma agência de publicidade, Clem Whitaker Advertising Agency, que cobrava de cada cliente comissão de 15% por anúncio veiculado. Tinham um serviço de distribuição de releases por telégrafo,Califórnia Feature Service, que distribuía um clipping de noticiário político semanal, a 1.500 “formadores de opinião”, além de charges, editoriais e artigos para 300 jornais. Pequenos jornais do interior do estado viviam praticamente de reproduzir o que quer que recebessem da Agência Califórnia Feature Service; publicavam tudo, quase sempre press releases mal disfarçados como material de editoria, sempre a favor da posição política e do político que Campaigns, Inc. estivesse sendo paga para promover. O truque era distribuir clippings suficientemente disfarçados para passar pelo controle de editores cansados, que nem viam que usavam, como se fosse matéria jornalística, o que não passava de material de propaganda. Um editor de jornal californiano costumava aplicar um teste aos seus jornalistas: “Onde está a ‘pegadinha’?” Lia o material que recebia da Feature Service e os jornalistas tinham de detectar a frase de propaganda.

Whitaker e Baxter não estavam apenas inventando novas técnicas; estavam escrevendo um manual de operação para usuários. Jamais gaste dinheiro em lobby: enrole os eleitores. “Nossa concepção de política prática é que se você constrói um caso suficientemente sólido para convencer ‘o pessoal lá em casa’, não é preciso ter o senador na gaveta,” Baxter explicou. Seja pessoal: é mais fácil vender gente [o candidato], que causas. Se você não tem oposição, se o seu candidato não tem opositor, invente uma oposição, um opositor. Uma vez, trabalhando numa campanha para evitar que o prefeito de San Francisco fosse intimado para depor à Polícia, Whitaker e Baxter construíram toda a campanha contra “O homem sem cara” – ideia de Baxter – que assumiria a prefeitura, no caso de o prefeito sofrer impeachment. Baxter desenhou numa toalha de mesa um homem gordo, fumando um charuto, que se via por baixo de um chapéu que encobria o rosto; e fez reproduzir o desenho em milhares de cartazes pela cidade, com a pergunta: “Quem se esconde por trás da intimação ao Prefeito?”.

Finja que você é a Voz do Povo. Whitaker e Baxter compraram tempo em rádios, patrocinado por um “Comitê Contra a Convocação”. Uma voz cavernosa dizia “A verdade é que a Prefeitura será destruída, trancada, chaveada, cercada, para uso exclusivo do homem sem cara.” O prefeito não foi intimado a depor. Ataque, ataque, ataque, ataque. Whitaker dizia sempre: “Ninguém vence com campanha de defesa”.

Jamais subestime a oposição. A primeira coisa que Whitaker e Baxter sempre fizeram, ao assumir uma campanha, era ‘hibernar’ por uma semana, para escrever um Plano de Campanha. Depois, escreviam o Plano de Campanha da Oposição, no qual antecipavam os movimentos de reação à campanha deles. Não há campanha sem “mote”. O “mote” tem de ser bem simples. Se rimar, melhor. (“For Jimmy and me, vote ‘yes’ on 3”). Não dê explicações. “Quanto mais você se explica, mais difícil arrancar o voto” – dizia Whitaker. Repita sempre a mesma coisa, repita e repita. “Calculamos que se tenha de atrair sete vezes a atenção do eleitor, para fechar uma venda”. (Whitaker) Sutilezas jogam contra. “Palavras curtas, que colam na cabeça: é o que conta.” (Baxter). “Eles têm de morder a isca”. Simplifique, simplifique, simplifique. “Ergue-se uma muralha” – Whitaker advertiu –, “se você inventa de fazer o Sr. e a Sra. Eleitor Norte-americano Médio trabalharem ou pensarem”.

Se há faísca, assopre. “Esse país precisa de partidarismo” – disse Whitaker. Nunca fuja da controvérsia. Ao contrário, crie controvérsias, incendeie as controvérsias. “O norte-americano médio não quer que o eduquem; não quer ser conscientizado; sequer deseja aplicar algum esforço, mínimo que seja, para ser um bom cidadão” – saberes de Whitaker. “Mas há dois meios pelos quais você pode fazê-lo interessar-se na campanha. Só dois, que já comprovamos que funcionam.” Invente uma guerra (“eles gostam de uma boa briga, socos, pancadaria”), ou, então, invente um show (“eles gostam de filmes, gostam de mistérios, gostam de fogos de artifício e desfiles”): “Assim, se não se pode brigar, que seja o show. Se você armar um circo, um bom show de circo, o Sr. e Sra. Norte-americano Médio sairão para olhar”.

Ao vencedor, tudo. “Se você é contratado para lançar um novo modelo de carro” – disse Whitaker – “o cliente não espera que, no primeiro ano, ele seja o primeiro em vendas no país. Mas, em campanhas políticas, ninguém paga placê, não interessam o segundo colocado nem a beleza do show. É vencer ou vencer. Se quiser continuar no ramo, vença”.

Em 1942, o problema com Earl Warren era a seriedade. Baxter disse que, para conseguir o voto das mulheres, ele e a esposa teriam de permitir fotografias de toda a família, com vasta divulgação. A esposa de Warren, Nina, proibiu. “Não queria explorar a família” – contou Baxter. “Mas nós sabíamos que, sem a família, adeus eleição”. A foto foi feita – Earl, Nina e seis filhos. Pareciam o coral da Família Von Trapp de “A noviça rebelde”. Campaigns, Inc., distribuiu três milhões de fotos pelo país.

Mesmo assim, a imagem de Warren, solene, sem jamais sorrir, não ajudava. Vamos usar, então, a seriedade, se é só o que temos. Baxter passou a dizer que a Califórnia precisava, isso sim, de um homem sério, resoluto, em tempos de guerra. “Em tempos de guerra, o eleitor vota anormalmente, movido ainda muito mais pelas emoções” – Whitaker escreveu. “Nessa campanha, os eleitores terão de ouvir o rufar dos tambores e o explodir das bombas da guerra... O tema da campanha tem de ser “Convocação às armas, em defesa da Califórnia!”.

Warren parecia homem “de defesa”, em parte porque, como advogado geral do estado, defendera o confinamento, em campos de concentração, dos japoneses-americanos. “Se os Japs forem soltos”, dizia ele, “ninguém nunca saberá se está diante de um Jap normal ou de um Jap sabotador”. (Warren adiante, manifestou profundo remorso por essa política e, em entrevista que deu em 1972, até chorou). Carey McWilliams era das raras vozes dentro do governo que se opunha aos campos de concentração para japoneses em território dos EUA. Em campanha, Warren jurou que, se eleito, seu primeiro ato no governo seria demitir McWilliams.

Nos últimos 30 dias antes da eleição, Whitaker e Baxter anunciaram em 400 jornais impressos e em 500 rádios. Congestionaram o espaço. Puseram caminhões de som nas ruas, para fazer barulho de buzinas e motores. Atacaram as políticas econômicas de Olson. Redigiram um manual para discursos a favor de Warren; incluía roteiro para “Fala de seis minutos” e “Fala de 15 minutos”. (E um conselho: procure nunca falar mais que 15 minutos – as pessoas ficam entediadas – e em nenhum caso fale mais que meia hora).

Warren ganhou, mas ele não gostou do jeito que ele ganhou. Pouco antes das eleições, depois que Whitaker e Baxter emitiram um comunicado de imprensa sem a aprovação, ele os demitiu. Eles nunca o perdoaram.

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No outono de 1944, Warren foi acometido de uma grave infecção renal. A doença o fez pensar sobre os altos custos do atendimento médico, sempre em alta, e os efeitos catastróficos que uma doença repentina teria sobre uma família menos provida de recursos que a dele. “Cheguei à conclusão de que o único modo de remediar essa situação é criar uma espécie de seguro-saúde” – escreveu em suas memórias. Mandou sua equipe desenvolver uma proposta. “Concluímos que o seguro-saúde deveria ser recolhido pelo Sistema de Seguridade Social. Depois de alguns estudos, decidiu-se que empregados e empregadores no SSS teriam de contribuir com 1% e 1,5% do valor dos salários recebidos e pagos”. Depois de reunião com a Associação Médica da Califórnia, Warren não esperava oposição dos médicos. Assim, em janeiro de 1945, no discurso de início de ano, de relatório de feitos e perspectivas para o futuro do estado do Estado da Califórnia, ele anunciou sua proposta, de criar um seguro-saúde abrangente e compulsório.

Earl Warren iniciou sua carreira política como conservador e terminou como esquerdista, um dos mais odiados da história dos EUA. O que houve? Uma das respostas é: Whitaker e Baxter.

Contratados pela Associação Médica da Califórnia com remuneração anual de 25 mil dólares, para combater o plano do governador Warren, Whitaker e Baxter tomaram uma peça de lei que todos tinham apreciado muito e ensinou a população da Califórnia a odiá-la. “Não se pode bater em alguém, sem porrete” – a dupla gostava de dizer. Lançaram uma campanha a favor de os californianos comprarem, privadamente, cada cidadão, o seu próprio seguro-saúde. Inventaram uma Semana da Compra do Seguro-Saúde Voluntário, movida a 40 mil polegadas de publicidade pelos jornais em mais de 400 jornais. A semana aconteceu em 53 dos 58 condados do estado da Califórnia. Whitaker e Baxter distribuíram pelo país mais de 9 mil médicos, todos com discursos preparados. Criaram um slogan: “Medicina politizada não é boa medicina”.

Dessa vez, fizeram lobby direto sobre os editores de jornais. Whitaker se jactava de que “nosso pessoal telefonou pessoalmente para mais de 500 redações de jornais”, para convencer os editores a mudar de lado. Muitos daqueles jornais viviam dos anunciantes que lhes chegavam pela Campaigns, Inc., e recebiam centenas de artigos gratuitos, semanalmente, enviados pela Agência California Feature Service. “Em três anos” – Whitaker contabilizou – “o números de jornais que apoiavam a medicina do Estado caiu, de 50 para 20. O número de jornais que se opunham ao seguro-saúde compulsório saltou, de cerca de 100, para 432”.

Inventaram um inimigo. Enviaram 27 mil cópias de um panfleto intitulado “A Questão da Saúde”, em que se via um homem, uma mulher e uma criança numa selva – “uma floresta de medo” – ameaçados por esqueletos que tinham na boca, em vez de dentes, a palavra “LEI”. Whitaker e Baxter distribuíram 2,5 milhões de outro panfleto, intitulado “Medicina Politicamente Controlada”. Imprimiram cartões postais para que os eleitores enviassem pelo Correio aos senadores:

Prezado Senador: 
Por favor, vote contra todas as propostas de lei que visem a criar o Seguro Compulsório de Saúde. Há leis demais nesse país. Ninguém tem qualquer interesse em ouvir opinião de algum “médico do Estado”, nem de pagar a ele mesmo sem estar doente. Esse sistema foi inventado na Alemanha – é um dos pilares da monstruosidade contra a qual os nossos rapazes lutam em terras distantes. Não podemos permitir aqui a mesma monstruosidade.

Em 1945, a proposta de lei de Warren foi derrotada, por apenas um voto de diferença. Biógrafo de Warren, G. Edward White anotou: “O desmonte de seu plano de saúde foi uma confirmação, para Warren da natureza do processo político, onde quem advogue a favor de programas sociais e humanos, é atropelado pelos interesses mais mesquinhos, mais baixos, mais vingativos”. Warren reapresentou o mesmo projeto de lei. Outra vez Whitaker e Baxter o derrotaram. “Invadiram como um tufão a Assembleia estadual” – Warren escreveu adiante. – “Minha lei não mereceu, sequer, enterro decente”. Foi a mais avassaladora vitória da publicidade política, que o país jamais vira. Evidentemente, não foi a última.


Em 1945, meses depois de Earl Warren ter apresentado a proposta de seguro-saúde obrigatório na Califórnia, Harry Truman propôs um programa nacional público de saúde. “A saúde das crianças norte-americanas, como a educação, têm de ser reconhecidas como responsabilidade pública bem clara” – disse o presidente. Quando os Republicanos assumiram o controle do Congresso em 1946, o programa de seguro-saúde federal de Truman, o qual, como o de Warren, recebia recursos de imposto a ser cobrado sobre os salários, empacou. No seu discurso do Estado da União em 1948, ano de eleições, Truman pediu urgência na aprovação de seu plano – que contava com amplo apoio popular.Em novembro, Truman venceu as eleições. Dias depois, a Associação Médica Americana telefonou para a sede, em San Francisco, da empresa Campaigns, Inc. A Associação Médica Americana contratou Whitaker e Baxter, ao custo de 100 mil dólares anuais, e com orçamento anual de mais de um milhão de dólares, para detonar o plano de Truman. Para pagar tudo isso, a Associação Médica Americana passou a recolher contribuição anual de 25 dólares de todos os médicos associados.

No início de 1949, Whitaker e Baxter, diretores da Campanha Nacional de Educação da Associação Médica Americana, avançaram para a política nacional, instalando o quartel-general da empresa em Chicago, com equipe de 37 profissionais. “Essa campanha terá de despertar e alertar o povo americano, em todas as circunstâncias da vida, até gerar uma cruzada pública e luta fundamental pela liberdade” – lia-se na abertura do plano da campanha. – “Qualquer outro plano de ação, se se considera a deriva mundial rumo ao socialismo e ao despotismo, nos arrastará ao desastre”. Mas quando Whitaker disse à imprensa de Washington, num almoço, que o FBI estava aterrorizando a Associação Médica Americana, o Washington Post reagiu: melhor que a Associação dos Médicos e os paus-mandados de Whitaker e Baxter parem, isso sim, de se “autoflagelar em campanha neurótica, tentando aterrorizar a opinião pública dos EUA, cada vez que o governo propõe algum plano nacional de Saúde ou uma Secretaria de Bem-estar Social”.

Whitaker e Baxter foram a Washington e convenceram 100 congressistas a permitir que lessem as cartas que recebiam dos eleitores. No início da campanha, Whitaker contou, as cartas chegavam “na proporção de 4,5 cartas a favor, para uma carta contra” o plano de Truman. Whitaker e Baxter puseram mãos à obra. “Nove meses mais tarde, a proporção era de 4 cartas contra, para uma a favor”.

Nessa altura, a empresa Campaigns, Inc. já era vista, pelo menos por um punhado de críticos, como empreendimento nebuloso e nefando. “Mas não há mistério algum” – Whitaker insistiu. Em manobra brilhante, Whitaker redigiu um “Esboço Simplificado da Campanha Contra o Seguro Compulsório de Saúde” e distribuiu – centenas de milhares de exemplares – a repórteres e editores, dentre outros ‘formadores de opinião, e a todos os deputados e senadores.

Dentro do quartel-general de Campaigns, Inc. circulava outro Plano de Campanha, muito mais detalhado, datilografado e marcado “CONFIDENCIAL. NÃO DEVE SER PUBLICADO” (Esse plano está hoje arquivado, como outros documentos da empresa, nos Arquivos do Estado da Califórnia, em Sacramento.) Ali se lê, dentre outras coisas:

1. O objetivo imediato é derrotar o programa compulsório de seguro-saúde a ser votado no Congresso. 2. O objetivo de longo prazo é por fim, para sempre, na agitação a favor da medicina socializada nesse país, pelos seguintes meios: acordar o povo norte-americano para o perigo que é um sistema de saúde pública, politicamente controlado e regulado pelo governo; convencer o povo, mediante campanha nacional ampla de educação, das superiores vantagens da medicina privada como é hoje praticada nos EUA, se comparada aos sistemas médicos dominados pelo Estado em outros países; e estimular o crescimento de sistemas de seguro-saúde privados, de adesão voluntária, para separar doença e choque econômico e aumentar a oferta de atenção médica para o povo dos EUA.

Como Whitaker e Baxter escreveram, numa versão prévia do plano: A questão básica é se continuaremos a ser nação livre, na qual o indivíduo pode traçar o próprio destino, ou se daremos os poucos passos que faltam na direção de nos converter em Estado Socialista ou Comunista. Temos de pintar o quadro, com palavras vívidas, que absolutamente todos entendam, de Alemanha, Rússia – e no final, de Inglaterra. Definiram o slogan “Mantenha a política fora da medicina”. E decidiram reutilizar o golpe que já funcionara contra o plano de Warren: passaram a chamar o plano de Truman de “medicina socializada”.

No esforço para doutrinar todos os médicos, enfermeiras e farmacêuticos nos EUA sobre os perigos da medicina socializada, puseram o pé na estrada. Whitaker, falando num encontro com 200 médicos do Conselho das Associações Médicas da Nova Inglaterra, disse:

Hitler e Stalin e os governos socialistas da Grã-Bretanha todos usaram o ópio da medicina socializada para suprimir a dor da liberdade perdida e induzir o povo à passividade e a não resistência. Se permitirmos que o contágio da medicina socializada que vem do Velho Mundo atinja o Novo Mundo, será o começo do fim de todas as instituições livres nos EUA. Será simples questão de tempo, até que todas as estradas de ferro, fábricas de aço, indústrias de energia, bancos, fazendas e outras propriedades sejam também estatizadas.

A propaganda política, disse ele, era a derradeira esperança de salvar a democracia: "Vamos levar a julgamento os inimigos da saúde dos norte-americanos, ante o tribunal da opinião pública. E o povo decidirá."

Para esse objetivo, a Campanha de Educação Nacional distribuiu milhões de mensagens por Correio. Nem sempre foram bem recebidas. “RECEBI SUA CARTA PARA ME METER MEDO. RIDÍCULA. DÁ PENA.” – respondeu um irado farmacêutico de Stamford, New York. – “ESPERO QUE O PRESIDENTE TRUMAN CONSIGA O QUE DESEJA. BOA SORTE AO PRESIDENTE TRUMAN”.

Whitaker e Baxter gostavam de referir-se ao trabalho que faziam como “campanhas de base”. Nesse caso, falavam da luta contra a medicina socializada: “A Associação Médica Americana nessa campanha está levando a discussão até o povo dos EUA, numa cruzada de base que esperamos que, com a ajuda de vocês e de dezenas de milhares de outros, chegará a cada esquina desse país.” Nem todos estavam convencidos de que uma agência de publicidade, nababescamente remunerada para distribuir 7,5 milhões de panfletos intitulados “O Voluntariado é o American Way” pelos consultórios médicos dos EUA seria exatamente “movimento de base”. “Prezados senhores” – um médico escreveu de volta –, “Quanto, mesmo, vocês têm para gastar nesse “lobby de base” de vocês: 2,5 ou 3,5 milhões de dólares?”.

A campanha de Whitaker e Baxter contra o projeto de seguro-saúde nacional custou à Associação Médica Americana quase cinco milhões de dólares e durou mais de três anos. Mas, sim, converteu a reforma necessária, sensível, popular da saúde pública nos EUA, em espantalho tão assustador que, mesmo hoje, milhões de americanos ainda têm medo dela.

Truman estava furioso. Sobre o que, em seu projeto, pudesse ser apresentado como “medicina socializada”, Truman disse à imprensa, em 1952, que não fazia nem alguma remota ideia do que fosse. E tinha mais um comentário a fazer: “Nada, nesse projeto de lei, é mais parecido com socialismo do que o dinheiro que a Associação Médica Americana paga à empresa de Whitaker e Baxter para desmantelar, falsificar e expor à população o meu programa de saúde, pelo que ele não é”.

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Carey McWilliams jamais tirara os olhos de Whitaker e Baxter, desde “Uppie and Downey”, desde “Ovos com presunto”, desde Earl Warren. Escreveu o plano de uma matéria para The Nation, sobre Whitaker e Baxter. Seu editor, Harold Field, quis publicar imediatamente, mas McWilliams discordou. Disse que precisava ira a San Francisco e “escavar os fatos”.

Escreveu para Whitaker e Baxter, solicitando uma entrevista. “As perguntas são a sério, sem arame farpado e sem truques” – prometeu. “Não tenho intenções ocultas: estou apenas curioso.” E encontrou-se com o casal. E gostou deles. Não concordava com a agenda política deles e, mais grave, entendia que o negócio deles era péssimo para a democracia. Redigiu a matéria e, em maio de 1950, enviou um rascunho para Whitaker e Baxter. Eles leram e devolveram ao autor, com pequenas mudanças, correções de detalhes factuais. Mas o texto que revisaram os deixou muito desapontados.

“Não somos os tipos diabólicos que você descreveu” – Whitaker escreveu a McWilliams. “Estou desapontado por vocês terem ficado desapontados” – McWilliams respondeu. “Vocês não acham que o máximo que se pode esperar nesse assunto é o máximo de abertura e boa vontade, acuidade factual e respeito aos fundamentos do fair play?”.

A matéria “O governo de Whitaker e Baxter” foi publicada em The Nation, dividida em três partes, em abril e maio de 1951. Whitaker e Baxter escreveram a McWilliams: “Parece a nós dois que, apesar de você não nos ter poupado de afirmações pesadas, nos pontos em que supunha que estivesse fazendo o maior bem, você, com certeza, não fez qualquer injúria pessoal a Whitaker e Baxter. Tudo considerado, pode ser até um reforço. Agradecemos por tudo, Carey, profundamente”.

McWilliams, como Whitaker e Baxter com certeza logo perceberam, jogara por regras diferentes das suas. Não foi ingênuo nem simplório. Não os agrediu. Explicou demorada e detalhadamente o que havia a explicar. Não construiu um inimigo. Não tirou de contexto o que a dupla lhe disse. Não inventou frases. Nenhuma mentira.

“Nos círculos sindicais e de esquerda na Califórnia as pessoas têm calafrios quando se menciona os nomes de Whitaker e Baxter” – escreveu em The Nation – “mas é preciso reconhecer que eles sabem como falar ao povo. Sim, tem quantidades monstro de dinheiro para gastar; mas não se pode dizer que seus opositores sejam pés-rapados”. Falou, por exemplo, das quantidades de dinheiro também monstro com que contam os sindicatos, por exemplo. Mas McWilliams, isso sim, estava convencido de que Whitaker e Baxter tinham excessivo poder. No caso da Associação Médica Americana, por exemplo, disse McWilliams, “a dupla escreveu um roteiro político do qual os médicos, originalmente considerados peso-pesados na defesa de interesses de uma específica indústria, emergem como cruzados da saúde do povo”. Inacreditável. E muito perigoso. “Trata-se de gerenciamento de alta especialização, da política: somos governados por Whitaker e Baxter”. Vivemos exatamente assim, hoje.

A matéria não passou totalmente despercebida. Em 1952, muitos médicos desligaram-se da Associação Médica Americana. James H. Means, professor de Medicina, na cátedra Jackson, de Harvard, e médico-chefe do Massachusetts General Hospital, explicou que não queria continuar a pagar contribuições que haviam sido usadas para apoiar uma atividade que ele considerava “contrária ao bem-estar público e indigna, como profissão”.

Naquele outono, a Associação Média Americana dispensou os serviços de Whitaker e Baxter, explicando que os manter sob contrato comprometeria ostatus não partidário da Associação. Whitaker e Baxter não se incomodaram: foram imediatamente contratados pela campanha presidencial de Eisenhower-Nixon.

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Em 1952, a televisão foi usada, pela primeira vez, numa campanha presidencial. Em 1948, menos de 3% dos lares norte-americanos tinham aparelho de televisão; em 1952, a proporção aproximava-se rapidamente dos 50%. Naquele ano, os Republicanos gastaram $1,5 milhão em anúncios de televisão; os Democratas, $77 mil. Na televisão, viam-se spots a favor de Eisenhower – “I Like Ike” e “The Man from Abilene”, temas baseados em pesquisa de George Gallup, apresentadas como documentários. Eram semelhantes aos noticiários de “March of Time”.

Eisenhower era tão pouco habituado a equipamentos de gravação, que uma vez, frente a um microfone ligado, rugiu: “Como funciona essa merda?” Mas, como todos os candidatos que concorreram a presidência depois dele, foi ensinado, treinado, adestrado, empoado e polido. E deu certo. Num spot de TV intitulado “Eisenhower Responde aos EUA”, um jovem negro diz: “General, os Democratas me dizem que as coisas nunca andaram tão bem...” Eisenhower responde “E como poderia ser verdade, se os EUA têm um déficit de milhões, e ainda há combates na Coreia? Nossa realidade é trágica”. Então, olha reto, firme, direto para a câmera. “É mais que hora de mudança”.

Em 1953, Earl Warren tornou-se Procurador Geral de Justiça dos EUA. A campanha “Impeach Earl Warren” começou quase imediatamente depois de Warren ter redigido seu voto no caso Brown vs. Comitê de Educação, em 1954. O voto declarava inconstitucional a segregação racial nas escolas. Em 1955, Carey McWilliams assumiu o posto de editor-chefe de The Nation. Em 1956, Whitaker e Baxter trabalharam nas Relações Públicas para a Convenção Republicana de Indicação do candidato, em San Francisco. Antes disso, foram ouvidos numa Comissão Especial do Senado de Investigação de Atividades Políticas, Lobbyinge Contribuições de Campanha. Whitaker disse à Comissão que se opunha ao financiamento público de campanhas eleitorais e era favorável a que se suspendessem todas as restrições que pesavam sobre doações de grandes corporações a campanhas eleitorais. A comissão não sabia como classificar os ‘consultores políticos’ de campanhas eleitorais. Deveriam ser definidos comolobbyists? Como Comitês de Ação Política? A atividade deveria ser regulada? Whitaker insistiu que o trabalho que sua empresa fazia era, sim, “organização de base” e não deveria ser cerceado por nenhum tipo de regulação.

Adiante, ainda em 1953, Whitaker e Baxter, trabalhando com a empresa californiana Baus and Ross, fez campanha a favor da “Proposition 4”, uma lei que favorecia a indústria do petróleo e lhe dava novas possibilidades de perfuração. O projeto de lei fora redigido pelos advogados da Standard Oil. Whitaker e Baxter venceram. A intervenção considerada decisiva, naquele caso, foi terem modificado o nome da lei: passou a chamar-se Lei de Preservação para Petróleo e Gás.

Em 1958, o filho mais velho, do primeiro casamento de Whitaker, Clem Whitaker Jr., com dois sócios, compraram a empresa Campaigns, Inc. Em 1960, quando Nixon concorreu à presidência, a Campaigns, Inc., coordenou sua campanha na Califórnia. “É indispensável partir para a ofensiva – e atacar” – um dos sócios de Whitaker Jr. aconselhou. Melhor esquecer “os Democratas de esquerda que não votarão em Nixon nem que recebesse apoio pessoal direto de Jesus Cristo e Karl Marx, que baixassem numa das sessões espíritas de Eleanor Roosevelt”. Nixon venceu na Califórnia, mas não se elegeu presidente. Era horrível na televisão. “A televisão, mais que qualquer outra coisa, fez virar a maré” – disse Kennedy. Naquele momento, os Democratas começavam, eles também, a contratar empresas de “consultoria política” para eleições. Todos contrataram. Foi uma corrida armamentista.

Clem Whitaker Pai morreu de enfisema em 1961. Quatro anos depois, quando Ronald Reagan concorreu ao governo da Califórnia, contratou outra empresa californiana, Spencer-Roberts. Spencer-Roberts seguia à risca o livro de regras de Whitaker e Baxter. “Quer saber de uma coisa, Stu?” – Reagan disse a Stuart Spencer em 1966. “Política é como show business... A abertura tem de ser grandiosa. Depois, você se segura como pode. E no fim, encerramento apoteótico”.

Upton Sinclair morreu num asilo, em New Jersey, em 1968. Naquele ano, H. R. Haldeman deixou o emprego de gerente em Los Angeles da agência de publicidade J. Walter Thompson, para dirigir a campanha presidencial de Nixon. Haldeman oferecera seus serviços a Eisenhower-Nixon em 1952, e trabalhara para a campanha do vice-presidente em 1956. Aprendera o ofício com o melhor dos melhores. “Whitaker e Baxter eram os grandes das velhas campanhas” – disse uma vez, relembrando o passado. – “O vovô”.

“Eleitores são basicamente preguiçosos, basicamente desinteressados de fazer qualquer esforço para compreender do que estamos falando” – William Gavin, conselheiro político de Nixon escreveu num memorando. “Raciocinar exige grau mais alto de disciplina, de concentração; a impressão é mais fácil” – escreveu noutro memorando. “A razão puxa o eleitor para trás, assalta-o, exige que ele se manifeste, que concorde ou discorde. A impressão o envolve, convida-o, sem fazer nenhuma exigência intelectual. (...) Quando argumentamos com o eleitor, exigimos que ele faça o esforço de responder. Tentamos capturar a inteligência dele e, para muita gente, pensar inteligentemente é o trabalho mais difícil e cansativo que há. As emoções acordam mais facilmente, estão mais próximas da superfície, são mais maleáveis”.

A campanha de Nixon analisou filmes do candidato na televisão. Falta emoção. “Ele usa os braços muito ‘previsivelmente’ e sacode-se demais” – disse Roger Ailes, conselheiro-chefe da equipe de Richard Nixon para televisão, em 1968. “Mas melhor nem comentar, para não inibi-lo”. Ailes é hoje presidente da rede Fox News.

Depois da morte de Clem Whitaker, Leone Baxter continuou a dirigir empresa só sua, Whitaker and Baxter International. Morava numa cobertura no Fairmont Hotel em San Francisco. Gostava de trabalhar nos bastidores. Só muito raramente, em toda sua vida – morreu em 2001, aos 95 anos – deu entrevistas. Nos anos 1960s abriu uma exceção. Foi-lhe perguntado se “Os procedimentos que a senhora inventou no início desse jogo, e utilizou com tanto sucesso ao longo dos anos, ainda funcionam hoje? Ou a senhora achou necessário alterá-los?”.

“Eu diria que as regras básicas, absolutamente não mudaram” – ela respondeu. – “As estratégias não mudaram”. Houve a televisão, claro. “Mas diria que a filosofia das campanhas políticas absolutamente não mudou, nem uma linha. As ferramentas mudaram. A filosofia, não”.

Também lhe perguntaram se “as Relações Públicas políticas realmente transferem o poder político para os especialistas, os RP, que fazem Relações Públicas?”.

“Pode acontecer, sem dúvida, e aconteceu, em alguns casos” – disse ela, cautelosa. “Nessa profissão de comandar a mente dos homens, aí está a razão pela qual sinto que o poder tem de estar sempre nas mãos dos mais éticos, dos que tenham melhores princípios, de gente que realmente se preocupa com o mundo em que vive. Não sendo assim, o poder acabará nas mãos de gente que não tem qualquer interesse pelo mundo em que vive. Nesse caso, sim, pode ser coisa de alto, alto poder destrutivo”.

15 de setembro de 2012

Fúria no Oriente Médio é alimentada por processo caótico de transição na região

Salem H. Nasser

Folha de S.Paulo

Um filme, de péssimo gosto, e a fúria toma conta do mundo muçulmano.

De imediato, a resposta tem por alvo os EUA. Isso se explica por algo mais do que o simples fato de ter sido o estopim produzido, financiado ou exibido nesse país.

A essa responsabilidade os revoltosos somam a percepção negativa, e rancorosa, que têm do papel do país nos universos combinados do Oriente Médio, do mundo árabe e do muçulmano.

A frustração e a raiva decorrem do que é percebido como a atuação imperial de quem tem uma presença militar incômoda e ubíqua, manipula os destinos dos povos como se fossem marionetes, apoia regimes despóticos, sufoca as aspirações do povo palestino, e, finalmente, desrespeita o islã.

Diante desse quadro, o discurso do presidente Barack Obama no Cairo em 2009, em que propôs aos islâmicos um novo começo, é visto como palavras ao vento, há muito esquecidas.

Esse sentimento informa a revolta e a violência contra as instalações americanas, ainda que não tenha sido, ao que parece, a razão imediata da morte dos diplomatas na Líbia, que deve ser posta na conta de organizações que travam a sua guerra particular com os Estados Unidos.

E justamente, a ação mais desenvolta dessas organizações é uma das consequências de um processo de transição, potencialmente fecundo, mas em alguma medida caótico, por que vem passando o mundo árabe.

Quando o curso natural da transição é corrompido ou desviado por ações arbitrárias, como no caso da Líbia, e como foi antes disso no Iraque e no Afeganistão, o caos ganha uma feição específica: a multiplicação dos agentes detentores de meios de violência.

Talvez seja um lembrete importante no que concerne à Síria.

As mudanças nos países árabes também iluminam o fato de que o islã, enquanto identidade, cultura e religião, constitui uma componente inescapável do tecido social e da vontade popular.

No Ocidente, onde se estabeleceu historicamente, e persiste, uma perigosa combinação de ignorância e fobia em relação ao islã, estamos despreparados para aceitar o fato de que há aqueles que percebem de modo diferenciado o sagrado e para quem ele continua a ser justamente isso, sagrado.

SALEM H. NASSER é coordenador do Centro de Direito Global da Faculdade de Direito da Fundação Getulio Vargas

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