30 de setembro de 2015

O jovem Ho Chi Minh

Quando jovem em Paris, Ho Chi Minh abraçou um internacionalismo radical.

Ian Birchall

Nguyen-Ai-Quoc (mais tarde conhecido como Ho Chi Minh) falando no congresso fundacional do Partido Comunista francês em dezembro de 1920. Michael Goebel

Tradução / Setenta anos atrás este mês, em dois de setembro, em Hanói, o Viet Minh, liderado por Ho Chi Minh, publicou a Declaração de Independência da República Democrática do Vietnã. Ho era pouco conhecido no Ocidente até então, mas nos anos 1960 seu nome era cantado por manifestantes no mundo todo, para quem ele se tornou um símbolo da vontade e habilidade do Terceiro Mundo para enfrentar o imperialismo americano.

Em uma época anterior, ele era conhecido como Nguyen-Ai-Quoc, o beneficiário de uma educação privilegiada que, supostamente, disse que assim que ouviu o slogan “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”, quis conhecer a França. Mas, a lei colonial proibia os vietnamitas nativos de sair do país; o único meio pelo qual ele poderia ir para a Europa era conseguindo um trabalho em um navio. Ele viajou primeiro para Londres, depois para Paris.

Os contatos iniciais de Nguyen chegando à França parecem ter sido com a esquerda sindicalista. Ele visitou a Librairie du travail, uma livraria trabalhista, onde ficavam os escritórios de La Vie ouvrière, um jornal sindicalista revolucionário de Pierre Monatte e Alfred Rosmer, que tinham sido alguns dos internacionalistas mais consistentes do primeiro dia da Primeira Guerra Mundial.

Ele passou a se juntar ao Partido Socialista Francês (SFIO), que estava no meio de um intenso debate para decidir se deveria se filiar a recém-formada Internacional Comunista, criada no rescaldo da Revolução Russa.

O SFIO reuniu-se no Congresso em Tours em dezembro de 1920 para tomar sua decisão. O Congresso votou pela filiação, tornando-se o Partido Comunista Francês (PCF), com uma minoria socialista se separando por uma aversão ao domínio percebido dos bolcheviques russos na Internacional Comunista.

Nguyen falou como delegado, contando aos reunidos como sua terra natal era “vergonhosamente oprimida e explorada”, além de ser “envenenada” pelo álcool e ópio. Prisões eram mais numerosas do que escolas, e liberdade de imprensa não existia. Ele exortou que “o Partido deve fazer propaganda socialista em todas as colônias” e concluiu com um apelo: “Camaradas, salvem-nos”!

Ele foi aplaudido, mas certamente tocou alguns nervos doloridos. Ele foi interrompido duas vezes. Na primeira ocasião, Jean Longuet, neto de Karl Marx, gritou para defender sua própria reputação: “Eu tenho interferido para defender nativos”! Um pouco depois, quando um delegado sem nome interrompeu, Nguyen respondeu com um corte “silêncio, parlamentares”!

As palavras de Nguyen tinham um peso especial, uma vez que a condição da afiliação do partido exigia que os partidos comunistas

expusessem os truques e trapaças dos “seus” imperialistas nas colônias, para apoiar todo movimento de libertação colonial, não meramente em palavras, mas em ações, para exigir a expulsão dos seus próprios imperialistas dessas colônias, para inculcar entre os trabalhadores do seu país uma atitude genuinamente fraterna para com os trabalhadores da colônia e as nações oprimidas, e para lançar uma agitação sistemática entre as tropas do seu país contra qualquer opressão dos povos coloniais.

Um meio pelo qual o PCF tentou implementar sua nova política foi encontrar meios de se relacionar com o grande número de assuntos coloniais.

É estimado que entre 1914 e 1918, mais de 900.000 homens das colônias foram enviados para o conflito europeu – mais de meio milhão de soldados, pelo menos 250.000 do Norte da África e mais muitos milhares da Indochina, e ainda cerca de 220.000 trabalhadores. O PCF estabeleceu uma organização para aqueles de origem colonial vivendo na França, a Union inter-coloniale (UIC União Intercolonial), e em abril de 1922 começou uma publicação Le Paria editada por Niguyen-Ai-Quoc.

Le Paria foi um pouco desalinhado e claramente subfinanciado, e sua circulação foi sempre baixa. No entanto, reuniu um pequeno, porém dedicado grupo de camaradas comprometidos com a luta anti-imperialista. Estes incluíam não só Nguyen-Ai-Quoc, mas também um jovem norte africano, Hadjali Abdelkader, que se apresentou como candidato eleitoral pelo partido em 1924.

No curso da campanha, ele recrutou um trabalhador fabril chamado Messali Hadj. Juntos eles fundaram a Étoile Nord-Africaine, a primeira organização a pleitear a independência argelina, da qual a FLN (Frente de Libertação Nacional) dos anos 1950 foi, em última análise, descendente.

Le Paria, desse modo, semeou, pelo menos, algumas das sementes das duas grandes guerras de libertação nacional que dominaram a política francesa nas duas décadas seguintes a Segunda Guerra Mundial. Trinta e seis edições do Le Paria apareceram entre 1922 e 1926, usualmente impressas em uma única folha de grande formato, seu título flanqueado por caracteres chineses e árabes.

O interesse principal do jornal era a situação do império colonial da França. Nguyen-Ai-Quoc escreveu sobre a “crueldade inacreditável” de um “funcionário sádico” na administração colonial, e contrastou a barbaridade da prática colonial da França com a tradicional imagem da política republicana.

Evocando a figura feminina da Marianne, que desde a Revolução Francesa tem sido vista como a personificação da república, ele escreveu:

Há uma ironia dolorosa em observar que a civilização, simbolizada em suas várias formas – liberdade, justiça, etc. – pela gentil imagem da mulher, e arranjada por uma categoria de homem que são reputados por serem campeões na cortesia em relação às senhoras, deve fazer o símbolo vivo sofrer o mais ignóbil tratamento e ataca-lo vergonhosamente em seu comportamento, sua modéstia e sua própria vida.

Atenção igual foi dada para a luta por liberdades políticas, notavelmente liberdade de imprensa, e houve um protesto contra o serviço postal interferindo na correspondência para Le Paria. O jornal encorajou várias campanhas, em particular protestando contra a visita a Paris do imperador de Annam, Kai Dinh.

Le Paria apenas raramente levantou a demanda pela independência para os territórios coloniais. O principal impulso para as demandas do jornal foi por um fim da repressão e brutalidade nas colônias e pelas populações coloniais terem direitos iguais aos cidadãos da França metropolitana.

Para este fim, a unidade entre as classes trabalhadoras da Europa e Indochina foi encorajada. Em maio de 1922, em artigo para o jornal diário do PCF, L’Humanité, Nguyen-Ai-Quoc reconhece a profundidade da ignorância e preconceito que existia entre ambos, trabalhadores metropolitanos e coloniais.

Após citar Lenin sobre a necessidade de trabalhadores metropolitanos apoiarem as lutas nas nações subordinadas, observou com tristeza: “infelizmente, ainda há muitos militantes que pensam que uma colônia não é nada além de um país cheio de areia com o sol brilhando; alguns coqueiros verdes e alguns homens de cor, e isso é tudo”.

Enquanto isso, a maioria dos habitantes coloniais era ou repelida pela ideia do bolchevismo ou a identificava puramente com nacionalismo. Quanto a minoria educada, eles poderiam entender o que comunismo significava, mas não tinham interesse em vê-lo estabelecido; “como o cachorro da fábula, eles preferem vestir um colarinho e ter o seu pedaço de osso”.

Por isso ele argumentou:

Da ignorância mútua dos dois proletários preconceitos nascem. Para o trabalhador francês, o nativo é um ser inferior, insignificante, incapaz de entender e ainda menos de agir. Para o nativo, os franceses – quem quer que seja – são todos exploradores perversos. Imperialismo e capitalismo não falham em tirar vantagem dessa desconfiança recíproca e essa hierarquia racial artificial para obstruir a propaganda e dividir forças que deveriam se unir.

E ele concluiu: “Em face dessas dificuldades o que deveria fazer o partido? Intensifique a propaganda para supera-las”.

Diante disso, Le Paria argumentou pela unidade entre trabalhadores metropolitanos e coloniais. Em agosto de 1922, “Apelo às Populações Coloniais,” exortou: “Em face do capitalismo e imperialismo, nossos interesses são os mesmos; lembre as palavras de Karl Marx; trabalhadores de todos os países, uni-vos”. Na próxima edição, Max Cainville-Bloucourt insistiu: “Irmãos coloniais, é indispensável para vocês perceberem que não há salvação possível para vocês fora da conquista do poder político na Europa pelas massas trabalhadoras”.

Esta mensagem atingiu principalmente as colônias. Sua impressão inicial parece ter sido 1.000, subindo apenas para 3.000. A maioria destas foi para as colônias; de 2.000 cópias apenas 500 ficaram na França, enquanto 500 foram pra Madagascar, 400 para o Daomé, 200 para Magrebe, 100 para a Oceania, e 200 pra Indochina.

Já que a distribuição era clandestina, e cópias eram frequentemente apreendidas pela polícia, é difícil saber quão amplamente o jornal foi de fato distribuído. Mas Le Paria certamente fez sucesso em construir um entusiasmado time de ativistas que carregaram o jornal apesar da relativa apatia das camadas mais amplas dos membros do PCF.

Le Paria desapareceu virtualmente depois de setembro de 1925, com apenas uma última edição em abril de 1926. Havia conflitos crescentes entre o minúsculo quadro colonial do partido e o aparato burocrático. Lentamente, mas com toda certeza, o quadro entusiasmado e corajoso que construiu o Le paria foi dispersado. Nguyen-Ai-Quoc/Ho Chi Minh foi levado para Moscou em 1923 e logo abraçou o stalinismo dominante, linha comunista oficial.

Diminuindo o internacionalismo

O espírito do internacionalismo proletário que instruiu a pequena equipe de pioneiros entorno de Le Paria desapareceu junto com Ho Chi Minh, cimentando o relacionamento desigual da esquerda francesa com o imperialismo.

Em nenhum lugar isso foi mais claro do que no Sudeste Asiático. A Indochina Francesa foi formada pela primeira vez em outubro de 1887, depois da guerra Sino-Francesa. Um dos arquitetos da colonização foi Jules Ferry, primeiro ministro até 1885. Ferry foi um racista evidente que disse à Assembleia Nacional em 1885, “Nós devemos dizer abertamente que as raças superiores… tem o dever de civilizar as raças inferiores”.

Sua outra realização notável foi o estabelecimento da educação livre, compulsória e secular na França. Embora isso seja, algumas vezes, visto como parte da herança da esquerda, isso foi parte das suas aspirações imperiais. Se a França fosse se tornar um grande poder imperial, precisaria de um exército, largamente composto de camponeses, com um forte senso de identidade nacional.

Durante a Segunda Guerra Mundial, a Indochina foi controlada por uma administração colonial francesa controlada pelo regime Vichy pró-Alemanha, que fez um acordo com o Japão em 1940. Em 1945, o Japão ocupou o território. Depois do bombardeio de Hiroshima e Nagasaki, o Japão rapidamente se rendeu. Isso pegou os Aliados um pouco de surpresa; eles esperavam que a guerra continuasse até 1946.

Inicialmente, não foi a França que reocupou o Vietnã, mas a Grã-Bretanha, elas mesma governada por um governo trabalhista. Foi decidido na conferência de Potsdam em julho de 1945 que forças chinesas ocupariam a parte norte da Indochina, e tropas britânicas ocupariam a metade sul.

A França ainda estava se recuperando dos quatro anos de ocupação e precisou de tempo para reorganizar suas forças armadas. Tropas francesas começaram a deixar a Indochina (por navio) apenas em outubro. Forças britânicas, fazendo uso das recentemente derrotadas tropas japonesas, intervieram para garantir que a França estaria apta a recuperar sua colônia.

Charles de Gaulle, que liderou o governo provisório de 1945 da França, capturou o momento pós-guerra em sua transmissão anunciando a fundação da Quarta República.

Nossos postos estão reabrindo. Nossos campos estão sendo arados. Nossas ruínas estão sendo superadas. Quase todos que deixaram a França tem retornado. Estamos recuperando nosso Império. Estamos estabelecidos no Reno. Estamos retomando nosso lugar no mundo.

Os partidos de esquerda que dominaram o governo – comunistas socialistas e democratas cristãos – não fizeram oposição visível às exortações imperialistas de de Gaulle. Na verdade, até 1947, depois que a guerra em grande escala tinha estourado, ministros comunistas respeitaram a disciplina do gabinete votando pelos créditos de guerra (embora os deputados comunistas demostraram sua oposição votando pela abstenção).

Um delegado indochinês que visitou a França em 1946 reportou um encontro com o líder comunista Maurice Thorez em que este declarou que seu partido “não tinha intenção de ser considerado como potencial liquidador das posições francesas na Indochina e que ele desejava ardentemente ver a bandeira francesa voando em todos os cantos da União Francesa”.

O Partido Socialista foi igualmente interessado em preservar o império. O líder veterano Léon Blum favoreceu a fórmula de reconhecimento do Vietnã como em “estado livre dentro da União Francesa”, mas ele justificou isso com uma retórica que era muito aquela do imperialismo: “Há um meio, e um sozinho, de preservar na Indochina o prestígio da nossa civilização, nossa influência política e espiritual, e também aquele dos nossos interesses materiais legítimos, e esse é um acordo sincero na base da independência.”

A Guerra da Indochina começou em 1946, sob Blum como primeiro ministro, parcialmente porque ele falhou ao desafiar a liderança militar francesa, o que fez a guerra inevitável.

Apenas correntes menores da esquerda opuseram-se à recolonização da Indochina. Em 22 de dezembro de 1945, o jornal de esquerde independente Franc-Tireur publicou um vigoroso ataque à política externa francesa, citando uma carta de um soldado francês que comparava as ações francesas na Indochina ao massacre de Oradour, uma das piores atrocidades durante a ocupação nazi na França.

Uma série de fatores afetou o fracasso da esquerda francesa em se opor ao reestabelecimento do Império Francês, incluindo a lealdade do Partido Comunista a Rússia, que a esse ponto não desejava fazer algo que pudesse causar distúrbios ao desafiar o imperialismo do Ocidente.

Mas o principal foi a tradição republicana que dominava o pensamento político francês, especialmente na esquerda. Isso encorajou a noção de que o papel da França no mundo era progressivo, trazendo civilização e iluminação para mais territórios ignorantes – a assim chamada “ação civilizadora”.

Acreditava-se que os habitantes do mundo colonial poderiam e deveriam aspirar a nada mais do que serem cidadãos da República Francesa. É interessante contrastar isso com a abordagem mais pragmática mesmo do governo trabalhista britânico do pós-guerra, que aceitou a independência da Índia; a França agarrou-se a Indochina e Argélia até ser expulsa através de prolongadas e amargas lutas de independência.

O resto da história é bem conhecido. Os franceses lutaram para manter a Indochina, até finalmente serem derrotados na batalha de Dien Bien Phu em 1954. O Vietnã foi dividido, mas o envolvimento americano apoiando seu aliado sul vietnamita levou a mais guerra. Apenas em 1975 o Vietnã finalmente alcançou a independência depois de três décadas de guerra ter deixado uns dois milhões de mortos.

As coisas poderiam ter sido diferentes? Tal especulação é sempre difícil, mas se a esquerda francesa em 1945 tivesse sido fiel aos autênticos princípios internacionalistas, pelos quais o jovem Ho Chi Minh lutou no início dos anos 1920, a história poderia ter tido um curso menos trágico.

Colaborador

Ian Birchall é o autor de Sartre Contra o Stalinismo e de muitos artigos e ensaios sobre a obra de Jean-Paul Sartre.

29 de setembro de 2015

Os arquivos WikiLeaks da América Latina

Telegramas diplomáticos dos EUA revelam um ataque coordenado contra os governos de esquerda da América Latina

Alexander Main e Dan Beeton


Créditos: TelesurTV / Flickr

Tradução / No início deste Verão, o mundo viu a Grécia a tentar resistir a um desastroso “diktat” neoliberal e a receber uma sova dolorosa no processo. Quando o governo de esquerda grego decidiu fazer um referendo nacional sobre o programa de austeridade imposto pela “troika”, o Banco Central Europeu retaliou restringindo a liquidez dos bancos gregos. Com isso acarretou um fechamento prolongado dos bancos e submergiu a Grécia ainda mais na recessão.

Apesar dos eleitores gregos terem rejeitado em massa a austeridade, a Alemanha e o cartel de credores europeu foi capaz de subverter a democracia e obter exatamente o que queria: submissão total à sua agenda neoliberal. Na última década e meia, uma luta similar contra o neoliberalismo vem sendo travada em toda a extensão de um continente e majoritariamente fora do olhar do público. Ainda que Washington inicialmente tenha procurado anular toda a dissidência e frequentemente utilizando táticas mais violentas que as utilizadas contra a Grécia, a resistência da América Latina à agenda neoliberal tem sido parcialmente bem sucedida. É um conto épico que gradualmente vem sendo conhecido graças à contínua exploração do massivo tesouro de telegramas diplomáticos dos Estados Unidos e difundidos pela WikiLeaks.

O neoliberalismo foi firmemente implantado na América Latina bem antes da Alemanha e as autoridades da zona euro terem imposto ajustes estruturais à Grécia e a outros países periféricos endividados. Através da coerção (e.g., condições anexadas a empréstimos do FMI) e doutrinação (e.g., treinamento de “chicago boys” regionais apoiados pelos Estados Unidos), os Estados Unidos tiveram êxito, em meados dos anos 80, em difundir o evangelho da austeridade fiscal, desregulação, “mercados livres”, privatização e cortes draconianos no setor público por toda a América Latina.

O resultado foi incrivelmente parecido ao que vimos na Grécia: crescimento estagnado (quase nenhum crescimento per capita durante vinte anos de 1980-2000), aumento da pobreza, declínio do nível de vida para milhões e muitas novas oportunidades para os investidores internacionais e empresas fazendo dinheiro em pouco tempo. Começando nos finais dos anos 80, a região começou a ter convulsões e a levantar-se contra as políticas neoliberais. No início a rebelião era majoritariamente espontânea e desorganizada — como foi no caso venezuelano das revoltas do “Caracazo” no início de 1989.

Mas depois, candidatos anti-neoliberais começaram a ganhar eleições e, para choque do establishment da política externa dos EUA, um número crescente destes manteve as suas promessas de campanha e começou a implementar medidas anti-pobreza e políticas heterodoxas que reafirmavam o papel do estado na economia. De 1999 a 2008, candidatos com inclinação de esquerda ganharam eleições presidenciais em Venezuelana, Brasil, Argentina, Uruguai, Bolívia, Honduras, Equador, Nicarágua e Paraguai. Muita da história das tentativas dos governos dos EUA para conter e reverter a onda anti-neoliberal pode ser encontrada nas dezenas de milhares de telegramas diplomáticos dos EUA na região, difundidos pela WikiLeaks e datados desde os primeiros anos de George W. Bush até aos primeiros anos da administração do Presidente Obama.

Os telegramas — que analisamos no novo livro, The WikiLeaks Files: The World According to US Empire — revelam os mecanismos do dia-a-dia da política de intervenção de Washington na América Latina (e fazem do mantra do Departamento de Estado de que “os EUA não interfere na política interna de outros países” uma farsa). Apoio material e estratégico é providenciado aos grupos de oposição de direita, alguns dos quais são violentos e anti-democráticos. Os telegramas também pintam uma imagem vívida da mentalidade ideológica de Guerra Fria dos emissários mais velhos e os expõem a tentar usar medidas coercivas que fazem lembrar o recente estrangulamento aplicado à democracia grega.

De forma nada surpreendente, os principais meios de comunicação ignoraram ou falharam em grande medida em expor estas perturbadoras crônicas de agressão imperial, preferindo focalizar os relatos potencialmente embaraçosos dos diplomatas ou as ações ilegais de oficiais estrangeiros. Os poucos especialistas que deram uma análise de fundo aos telegramas afirmaram que não havia uma disparidade significativa entre a retórica oficial dos EUA e a realidade descrita nos telegramas. Nas palavras de um analista de relações internacionais dos Estados Unidos, “não obtemos uma imagem dos Estados Unidos como sendo esse todo poderoso mestre das marionetas a tentar puxar as cordas dos vários governos à volta do mundo para servir os seus interesses corporativos.” No entanto, uma leitura atenta dos telegramas desmente claramente esta afirmação.

“Isto não é chantagem”

No final de 2005, na Bolívia, Evo Morales teve uma vitória esmagadora nas eleições presidenciais com base em uma reforma constitucional, direitos indígenas e a promessa de lutar contra a pobreza e o neoliberalismo. No dia 3 de Janeiro, apenas dois dias após a sua tomada de posse, Morales recebeu uma visita do embaixador David L. Greenlee. O embaixador foi direto ao assunto: O visto dos EUA sobre a ajuda multilateral à Bolívia dependeria do bom comportamento do governo de Morales. Podia ser uma cena do Poderoso Chefão.

[O embaixador] mostrou a importância crucial das [instituições] financeiras internacionais, das quais a Bolívia dependia para assistência, tais como o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional. “Quando pensar no BID, deve pensar nos EUA,” disse o embaixador, “isto não é chantagem, é a simples realidade.”

No entanto, Morales aferrou-se à sua agenda. Durante os dias seguintes forjou planos para regular novamente o mercado de trabalho, renacionalizar a indústria dos hidrocarbonetos e estreitar a cooperação com o arqui-inimigo de Washington, Hugo Chavez. Em resposta, Greenlee sugeriu um menu de opções para forçar Morales a curvar-se perante a vontade do seu governo. Estas incluíam; vetar empréstimos multilaterais de vários milhões de dólares, adiar os já agendados alívios multilaterais da dívida, desencorajar os fundos da Millennium Challenge Corporation (que a Bolívia nunca recebeu até hoje, apesar de ser um dos países mais pobres do hemisfério) e cortar o “apoio material” às forças de segurança bolivianas.

Infelizmente para o Departamento de Estado, em pouco tempo, ficou claro que este tipo de ameaças seriam devidamente ignoradas. Morales já tinha decidido reduzir drasticamente a dependência da Bolívia nas linhas de crédito multilaterais que requisitassem uma habilitação do Departamento do Tesouro dos Estados Unidos. Poucas semanas depois de tomar posse, Morales anunciou que a Bolívia já não estaria dependente do FMI, e deixaria o acordo de empréstimos com o Fundo expirar. Anos mais tarde, Morales, aconselharia a Grécia e outros países endividados da Europa a seguir o exemplo de Bolívia e a “libertarem-se da ordem do Fundo Monetário Internacional.”

Não conseguindo forçar Morales às suas jogadas, o Departamento de Estado começou, então, a centrar-se no fortalecimento da oposição boliviana. A região controlada pela oposição, Media Luna, começou a receber cada vez mais assistência dos Estados Unidos. Um telegrama de Abril de 2007, discute “um maior esforço da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID) para fortalecer os governos regionais como contrapeso ao governo central.”

Um relatório da USAID de 2007 mencionava que o seu Office of Transition Initiatives (OTI) tinha aprovado 101 bolsas por US$4.066.131 para ajudar os governos departamentais a operar mais estrategicamente.” Também se fez chegar fundos aos grupos indígenas que se opunham à visão de Morales para as comunidades indígenas.”

Um ano mais tarde os departamentos de Media Luna, iriam empenhar-se na rebelião contra o governo de Morales, primeiramente com um referendo sobre a autonomia, apesar destes terem sido considerados ilegais pelas autoridades judiciais; e posteriormente apoiando os protestos violentos pró-autonomia que tiveram como consequência pelo menos 20 simpatizantes do governo mortos.

Muitos acreditavam que se estava a desenvolver uma tentativa de golpe de estado. A situação apenas se acalmou com a pressão de todos os outros presidentes da América do Sul, que emitiram uma declaração conjunta de apoio ao governo constitucional do país. Mas enquanto que a América do Sul se unia em apoio a Evo, os Estados Unidos seguiam em comunicação regular com os líderes da oposição do movimento separatista, mesmo quando estes falavam em “rebentar com as condutas de gás” e usar a “violência como uma probabilidade de forçar o governo a levar a sério qualquer diálogo.”

Contrariamente à posição oficial durante os eventos de Agosto e Setembro de 2008, o Departamento de Estado, levou muito a sério a possibilidade de um golpe de estado ou assassinato do presidente boliviano, Evo Morales. Um telegrama revela planos da Embaixada dos EUA em La Paz para tal caso: “[o Emergency Action Committee] irá desenvolver, com [o US Southern Command Situational Assessment Team], um plano de resposta no caso de uma urgência repentina, i.e. um golpe de estado ou a morte do Presidente Morales,” lê-se no telegrama.

Os acontecimentos de 2008 foram o maior desafio até agora da presidência de Morales e a situação em que ele esteve mais perto de ser derrubado. As preparações para uma possível saída da presidência de Morales revelam que os Estados Unidos, pelo menos, acreditaram que a ameaça a Morales era bastante real. O fato de não ter dito nada publicamente apenas sublinha de que lado Washington se posicionava durante o conflito e qual desfecho provavelmente preferiria.

Como funciona

Alguns dos métodos de intervenção usados na Bolívia foram emulados de outros países com governos de esquerda ou com movimentos fortes de esquerda. Por exemplo, após o regresso dos Sandinistas ao poder, em Nicarágua, no ano 2007, a embaixada dos EUA em Manágua trabalhou “a toda a velocidade” para reforçar o apoio ao partido de oposição de direita, o Alianza Liberal Nicaraguense (ALN). Em Fevereiro de 2007, a embaixada reuniu com o coordenador estratégico do ALN e explicou-lhe que os EUA “não providenciavam assistência direta a partidos políticos,” mas — de maneira a ultrapassar esta restrição — sugeriu que o ALN estivesse mais estreitamente coordenado com ONGs amigas que pudessem receber fundos dos EUA.

A líder do ALN disse que “avançaria com uma lista extensiva da lista ONGs que, de fato, apoiam os esforços do ALN” e a embaixada proporcionou-lhe “encontros com os diretores para o país do IRI [Instituto Republicano Internacional] e NDI [Instituto Internacional Democrata para os Assuntos Internacionais].” O telegrama também faz notar que a embaixada iria “dar seguimento ao incremento de angariação de fundos” para o ALN.

Telegramas como este deveriam ser de leitura obrigatória para estudantes da diplomacia dos EUA e aqueles que querem perceber como o sistema de “promoção de democracia” realmente funciona. Através do USAID, Fundação Nacional para a Democracia (NED), NDI, IRI e outras entidades para-governamentais, o governo dos EUA fornece uma ampla assistência aos movimentos políticos que apoiem os objetivos econômicos e políticos dos EUA.

Em Março de 2007, o embaixador dos EUA na Nicarágua pediu ao Departamento de Estado que providenciasse aproximadamente 65 milhões de dólares acima dos níveis de base recentes nos próximos quatro anos — ao longo das próximas eleições presidenciais de maneira a financiar o “fortalecimento dos partidos políticos, ONGs “democráticas” e “pequenas e flexíveis subvenções de decisão rápida a grupos comprometidos em desenvolver esforços críticos que defendam a democracia em Nicarágua, que façam avançar os nossos interesses e se contraponham a aqueles que se mobilizam contra nós.”

No Equador, a embaixada dos EUA opôs-se ao economista de esquerda, Rafael Correa, vencedor destacado nas eleições de 2006 e o levaram ao cargo presidencial. Dois meses antes dessas eleições, o conselheiro político da embaixada alertou Washington que “se podia esperar que Correa se juntasse ao grupo Chavez-Morales-Kirchner de líderes sul americanos nacionalistas-populistas,” e fazia notar que a embaixada tinha “avisado os nossos contatos políticos, econômicos e midiáticos da ameaça que Correa representa para o futuro de Equador e desencorajou as alianças políticas que podiam equilibrar a percepção de Correa com o radicalismo.” Imediatamente após a eleição de Correa, a embaixada enviou um telegrama ao Departamento de Estado com o seu plano de jogo:

Não mantemos ilusões de que as tentativas do Governo dos Estados Unidos possam influenciar a direção do novo governo ou do Congresso, mas esperamos maximizar a nossa influência junto com outros equatorianos e grupos que partilham os nossos pontos de vista. As propostas de reformas de Correa e atitude perante o Congresso e partidos políticos tradicionais, se não for controlada, pode prolongar o período atual de conflitos e instabilidade.

Os maiores medos da embaixada foram confirmados. Correa anunciou que fecharia a base aérea dos EUA em Manta, aumentaria os gastos sociais, e avançaria uma assembleia constituinte. Em Abril de 2007, 80 porcento de eleitores equatorianos validaram a proposta de uma assembleia constituinte e em 2008, 62 porcento aprovaram a nova constituição que consagrava uma série de princípios progressistas, incluindo a soberania alimentar, direito à habitação, saúde e emprego e controle governamental sobre o banco central (um enorme não-não à cartilha neoliberal).

No início de 2009, Correa anunciou que o Equador cumpriria parcialmente com a sua dívida externa. A embaixada estava furiosa com esta decisão e outras ações recentes, como a decisão de Correa de alinhar Equador mais estreitamente com a Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América (ALBA) de esquerda (que tinha sido iniciada pela Venezuela e Cuba em 2004 como contrapeso à Área de Comércio Livre das Américas (ALCA), naquela altura promovida pela administração Bush. Mas o embaixador estava também consciente de que tinha pouca influência sobre ele:

Estamos a transmitir a mensagem em privado de que as ações de Correa irão ter consequências na sua relação com a nova administração de Obama, enquanto evitamos comentários públicos que seriam contraproducentes. Não recomendamos que se termine qualquer programa do Governo dos Estados Unidos que sirvam os nossos interesses uma vez que essa opção apenas enfraqueceria os incentivos de Correa de retroceder para uma posição mais pragmática.

O incumprimento parcial teve sucesso e aforrou ao governo equatoriano aproximadamente 2 bilhões de dólares. Em 2011, Correa recomendou o mesmo tratamento para os países europeus endividados, particularmente Grécia, aconselhando-os a não cumprir os pagamentos da dívida e 'ignorar o conselho do FMI.'

As ruas estão quentes

Durante a Guerra Fria, a suposta ameaça do avanço soviético e cubano serviu para justificar um sem número de intervenções para remover governos de inclinação de esquerda e apoiar regimes militares de direita. De maneira similar, os telegramas do WikiLeaks mostraram como, nos anos 2000, o espectro do “Bolivarianismo” foi usado para validar intervenções contra novos governos de esquerda anti-liberais, como o da Bolívia, representado como tendo “caído sem reservas no abraço venezuelano;” ou do Equador, visto como um “testa-de-ferro” para Chávez”

As relações com o governo de esquerda de Hugo Chávez amargaram desde o início. Chávez eleito presidente pela primeira vez em 1998, rejeitando amplamente as políticas econômicas neoliberais, desenvolveu uma relação estreita com Cuba de Fidel Castro e criticou, bem alto, o assalto da administração Bush ao Afeganistão após os ataques de 9/11 (os EUA retiraram o seu embaixador de Caracas após Chavéz ter proclamado: “Não podes lutar contra o terrorismo com terrorismo”).

Mais tarde fortaleceu o controle governamental do setor petrolífero, aumentando os valores de royalties pagos pelas empresas estrangeiras e usou as receitas do petróleo para financiar o sistema público de saúde, educação e programas alimentares para os pobres.

Em Abril de 2002, a administração Bush validou publicamente um golpe de estado, de pequena duração, que removeu Chávez do poder por quarenta e oito horas. Os documentos da Fundação Nacional para a Democracia, obtidos através da Freedom of Information Act [Lei pela Liberdade de Informação], mostraram que os EUA forneceram fundos para a “promoção da democracia” e treinamento a grupos que apoiassem o golpe de estado e que mais tarde viriam a estar envolvidos em esforços para remover Chávez através de “greves” administrativas que paralisaram a indústria petrolífera, nos finais de 2002 e mergulharam o país em recessão. Os telegramas da WikiLeaks mostram que após essas tentativas falhadas de derrubar o governo eleito venezuelano, os EUA continuaram a apoiar a oposição venezuelana através da NED e USAID.

Em um telegrama de Novembro de 2006, William Brownfield, embaixador naquela altura, explicava a estratégia de USAID/OTI para debilitar a administração de Chávez:

Em Agosto de 2004, o embaixador delineava os 5 pontos estratégicos da sua equipe para o país neste período [2004-2006] que serviriam de guia para a embaixada... o foco da estratégia é: 1) Fortalecimento das Instituições Democráticas, 2) Penetrar na Base Política de Chávez, 3) Dividir o Chavismo, 4) Proteger os negócios vitais dos EUA, e 5) Isolar Chávez internacionalmente.

Os laços apertados que existem entre a embaixada dos EUA e os vários grupos de oposição são evidentes em numerosos telegramas. Um telegrama de Brownfield relaciona a Súmate — uma ONG que teve um papel central nas campanhas de oposição — aos “nossos interesses na Venezuela.” Outros telegramas revelam que o Departamento de Estado fez pressão internacional para que se demonstrasse apoio à Súmate e encorajou apoio financeiro, político e legal dos EUA a esta organização, muito dele canalizado através da NED.

Em Agosto de 2009, a Venezuela foi atingida por protestos violentos de oposição (como tinha ocorrido um variado número de vezes sob Chávez e depois com o seu sucessor Nicolas Maduro). Um telegrama secreto de 27 de Agosto cita o contratante Development Alternatives Incorporated (DAI) referindo-se a “todas” as pessoas protestando naquele momento como “nossos beneficiários”:

[O empregado da DAI] Eduardo Fernandez disse que “as ruas estão quentes” referindo-se aos cada vez maiores protestos contra as tentativas de Chávez de consolidar o poder e que “todas estas pessoas (organizando os protestos) são nossos beneficiários.”

Os telegramas também revelam que o Departamento de Estado providenciou treinamento e apoio a um líder estudante que reconhecidamente tinha liderado multidões com a intenção de “linchar” um governador Chavista: “Durante o golpe de estado de Abril de 2002, [Nixon] Moreno participou nas manifestações no estado de Merida, liderando multidões que marcharam na capital do estado para linchar o governador Florencio Porras do MVR.”

No entanto, uns anos depois disto, outro telegrama mostra: “Moreno participou no International Visitor Program [do Departamento de Estado] em 2004.” Moreno viria mais tarde a ser procurado por tentativa de homicídio e ameaças a uma polícia, além de outras acusações. Também na linha da estratégia dos cinco pontos, como delineava Brownfield, o Departamento de Estado priorizava os seus esforços no isolamento internacional do governo venezuelano e em contrabalançar a sua influência em toda a região. Os telegramas mostram como os chefes das missões diplomáticas na região desenvolveram estratégias coordenadas para contrabalançar a “ameaça” regional.

Assim como a WikiLeaks inicialmente revelou em Dezembro de 2010, os chefes de missão para 5 países sul americanos encontraram-se no Brasil em Maio de 2007 para desenvolver uma resposta conjunta aos alegados “planos agressivos” do Presidente Chávez… de criar um movimento unificado Bolivariano por toda a América Latina.” Entre as áreas de ação que os chefes de missão havia um plano de “continuar a fortalecer laços com aqueles líderes militares na região que partilham a nossa preocupação com Chávez.” Um encontro similar dos chefes de missão dos EUA da América Central — focada na “ameaça” de “atividades políticas populistas na região” — realizou-se na embaixada dos EUA em El Salvador em Março de 2006.

Os diplomatas dos EUA fizeram grandes esforços para tentar prevenir que os governos das Caraíbas e América Central se juntassem à Petrocaribe, um acordo regional de energia de Venezuela que providencia petróleo aos seus membros em termos extremamente preferenciais. Telegramas vindos a público mostram que os oficiais norte-americanos reconheciam, de forma privada, os benefícios econômicos do acordo para os países membros, assim como mostravam preocupação que a Petrocaribe fosse aumentar a influência daVenezuela na região.

No Haiti, a embaixada trabalhou de forma estreita com grandes empresas de petróleo para tentar prevenir que o governo de René Préval se juntasse à Petrocaribe, apesar de reconhecerem que “liberaria 100 milhões de dólares por ano,” como foi reportado por Dan Coughlin e Kim Ives na Nation. Em Abril de 2006 a embaixada “telegrafou” de Porto Príncipe: “Continuaremos a pressionar [o presidente René do Haiti] Preval contra a sua adesão à PetroCaribe. O embaixador verá hoje o conselheiro chefe de Preval, Bob Manuel. Em reuniões anteriores este compreendeu as nossas preocupações e está consciente que um acordo com Chávez iria provocar problemas conosco.”

O histórico da esquerda

Devemos ter em conta que os telegramas do WikiLeaks não mostram vislumbres das atividades mais secretas das agências de informação dos EUA e são provavelmente apenas a ponta do icebergue no que toca às interferências políticas de Washington na região. No entanto os telegramas fornecem evidências alargadas da persistência e dos esforços determinados dos diplomatas dos EUA em intervir contra os governos de esquerda na América Latina, usando a alavancagem financeira e os múltiplos instrumentos disponíveis na caixa de ferramentas para a “promoção da democracia” — e às vezes até através de meios violentos e ilegais.

Apesar do restabelecimento das relações diplomáticas com Cuba por parte da administração Obama, não há indicações de que as políticas em relação à Venezuela e outros governos de esquerda da América Latina tenham mudado significativamente. Não há dúvida que a hostilidade da administração em relação ao governo eleito da Venezuela é inexorável. Em Junho de 2014, o Vice Presidente Joe Biden deu início à Caribbean Energy Security Initiative, visto como um “antídoto” à Petrocaribe. Em Março de 2015, Obama declarou Venezuela como “ameaça extraordinária à segurança nacional” anunciado sanções contra oficiais venezuelanos, uma atitude criticada de forma unânime por outros países na região.

Mas, apesar das agressões incessantes dos EUA, a Esquerda, em grande medida, tem prevalecido na América Latina. Com a excepção de Honduras e Paraguai, onde golpes de estado de direita derrubaram líderes eleitos, quase todos os movimentos de esquerda que chegaram ao poder nos últimos quinze anos mantêm-se ainda hoje no poder.

Principalmente como resultado destes governos, de 2002 a 2013 a taxa de pobreza da região baixou de 44% para 28% após ter, de fato, piorado nas duas décadas anteriores. Estes sucessos e vontades dos líderes de esquerda de correr riscos de maneira a se libertarem do diktat neoliberal, deve hoje ser uma fonte de inspiração para a esquerda anti-austeridade da Europa. É certo que alguns dos governos estão hoje a passar por dificuldades significativas, em parte devido à recessão econômica regional que afetou os governos de direita e de esquerda de igual maneira. Mas visto através das lentes dos telegramas, há boas razões para questionar se todas estas dificuldades são fomentadas internamente.

Por exemplo, em Equador — onde o presidente Correa está sob ataque da Direita e de alguns setores da Esquerda — os protestos contra as novas propostas de impostos progressivos envolve os mesmos homens de negócios, alinhados com a oposição, com quem os diplomatas dos EUA são vistos a definir estratégias nos telegramas.

Em Venezuela, onde um sistema de controlo monetário disfuncional gerou uma enorme inflação, protestos violentos de estudantes de direita desestabilizaram seriamente o país. As probabilidades são extremamente altas de que alguns destas pessoas que protestam tenham recebido financiamentos e/ou treinamento da USAID ou NED, que viram o seu orçamento para Venezuela aumentar 80 porcento de 2012 para 2014.

Ainda há muito mais a aprender dos telegramas da WikiLeaks. Para os capítulos América Latina e as Caraíbas” do “The WikiLeaks Files”, examinamos atentamente centenas de telegramas e fomos capazes de identificar distintos padrões de intervenção dos EUA que descrevemos em maior profundidade no livro (alguns destes já previamente reportados por outros). Outros autores do livro fizeram o mesmo para outras regiões do mundo. Mas há mais de 250,000 telegramas (quase 35,000 só da América Latina) e há sem dúvida muitos outros aspectos referenciáveis da diplomacia dos EUA na atualidade que estão à espera de ser desmascarados.

Tristemente, após a excitação inicial, na altura que os telegramas foram inicialmente divulgados, poucos jornalistas e acadêmicos têm mostrado grande interesse no assunto. Até que isto mude, não teremos uma discrição completa de como os EUA se vêem a si mesmos no mundo e como o seu braço diplomático responde aos desafios à sua hegemonia.

24 de setembro de 2015

A Armadilha de Tucídides: Os EUA e a China estão caminhando para a guerra?

Em 12 dos 16 casos anteriores em que uma potência em ascensão confrontou uma potência dominante, o resultado foi derramamento de sangue.

Graham Allison


Mike Blake / Damir Sagolj / Reuters / alessandro0770 / Shutterstock / Zak Bickel / The Atlantic

Quando Barack Obama se reunir esta semana com Xi Jinping durante a primeira visita de Estado do presidente chinês aos Estados Unidos, um item provavelmente não estará em sua agenda: a possibilidade de que os Estados Unidos e a China se encontrem em guerra na próxima década. Nos círculos políticos, isso parece tão improvável quanto imprudente.

E ainda 100 anos depois, a Primeira Guerra Mundial oferece um lembrete preocupante da capacidade do homem para a loucura. Quando dizemos que a guerra é “inconcebível”, isso é uma afirmação sobre o que é possível no mundo – ou apenas sobre o que nossas mentes limitadas podem conceber? Em 1914, poucos poderiam imaginar uma matança em uma escala que exigia uma nova categoria: a guerra mundial. Quando a guerra terminou, quatro anos depois, a Europa estava em ruínas: o kaiser desaparecido, o império austro-húngaro dissolvido, o czar russo derrubado pelos bolcheviques, a França sangrando por uma geração e a Inglaterra despojada de sua juventude e tesouro. Um milênio em que a Europa havia sido o centro político do mundo chegou a um impasse.

A questão que define a ordem global para esta geração é se a China e os Estados Unidos podem escapar da Armadilha de Tucídides. A metáfora do historiador grego nos lembra dos perigos inerentes quando uma potência em ascensão rivaliza com uma potência dominante – como Atenas desafiou Esparta na Grécia antiga, ou como a Alemanha fez com a Grã-Bretanha um século atrás. A maioria dessas competições terminou mal, muitas vezes para ambas as nações, concluiu uma equipe minha do Harvard Belfer Center for Science and International Affairs após analisar o registro histórico. Em 12 dos 16 casos nos últimos 500 anos, o resultado foi guerra. Quando as partes evitavam a guerra, isso exigia enormes e dolorosos ajustes nas atitudes e ações não apenas do desafiante, mas também do desafiado.

Com base na trajetória atual, a guerra entre os Estados Unidos e a China nas próximas décadas não é apenas possível, mas muito mais provável do que se reconhece no momento. De fato, a julgar pelo registro histórico, a guerra é mais provável do que improvável. Além disso, as atuais subestimações e mal-entendidos dos perigos inerentes ao relacionamento EUA-China contribuem muito para esses perigos. Um risco associado à Armadilha de Tucídides é que o business as usual - não apenas um evento inesperado e extraordinário - podem desencadear conflitos em larga escala. Quando uma potência em ascensão ameaça deslocar uma potência dominante, crises comuns que de outra forma seriam contidas, como o assassinato de um arquiduque em 1914, podem iniciar uma cascata de reações que, por sua vez, produzem resultados que nenhuma das partes teria escolhido de outra forma.

A guerra, no entanto, não é inevitável. Quatro dos 16 casos em nossa revisão não terminaram em derramamento de sangue. Esses sucessos, assim como os fracassos, oferecem lições pertinentes para os líderes mundiais de hoje. Escapar da Armadilha requer um esforço tremendo. Como o próprio Xi Jinping disse durante uma visita a Seattle na terça-feira: “Não existe a chamada Armadilha de Tucídides no mundo. Mas, se os principais países cometerem erros de cálculo estratégico repetidamente, eles podem criar essas armadilhas para si mesmos”.

***

Há mais de 2.400 anos, o historiador ateniense Tucídides ofereceu uma visão poderosa: “Foi a ascensão de Atenas e o medo que isso inspirou em Esparta que tornaram a guerra inevitável”. Outros identificaram uma série de causas que contribuíram para a Guerra do Peloponeso. Mas Tucídides foi ao cerne da questão, concentrando-se no estresse estrutural inexorável causado por uma rápida mudança no equilíbrio de poder entre dois rivais. Observe que Tucídides identificou dois principais impulsionadores dessa dinâmica: o crescente direito do poder crescente, o senso de sua importância e a demanda por mais voz e influência, por um lado, e o medo, a insegurança e a determinação de defender o status quo que isso gera no poder estabelecido, por outro.

No caso sobre o qual ele escreveu no século V a.C., Atenas havia emergido ao longo de meio século como um campanário da civilização, produzindo avanços em filosofia, história, drama, arquitetura, democracia e proezas navais. Isso chocou Esparta, que por um século foi a principal potência terrestre na península do Peloponeso. Na visão de Tucídides, a posição de Atenas era compreensível. À medida que sua influência crescia, também crescia sua autoconfiança, sua consciência de injustiças passadas, sua sensibilidade a casos de desrespeito e sua insistência em que arranjos anteriores fossem revisados para refletir novas realidades de poder. Também era natural, explicou Tucídides, que Esparta interpretasse a postura ateniense como irracional, ingrata e ameaçadora ao sistema que havia estabelecido — e dentro do qual Atenas havia florescido.

Tucídides narrou mudanças objetivas no poder relativo, mas também se concentrou nas percepções de mudança entre os líderes de Atenas e Esparta - e como isso levou cada um a fortalecer alianças com outros estados na esperança de contrabalançar o outro. Mas o emaranhamento funciona nos dois sentidos. (Foi por essa razão que George Washington notoriamente alertou os Estados Unidos para tomarem cuidado com “alianças emaranhadas”.) Quando o conflito eclodiu entre as cidades-estado de segundo nível de Corinto e Corcira (agora Corfu), Esparta sentiu a necessidade de vir em defesa de Corinto, o que deixou pouca escolha a Atenas a não ser apoiar seu aliado. Seguiu-se a Guerra do Peloponeso. Quando terminou, 30 anos depois, Esparta era o vencedor nominal. Mas ambos os estados estavam em ruínas, deixando a Grécia vulnerável aos persas.

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Oito anos antes da eclosão da guerra mundial na Europa, o rei da Grã-Bretanha, Eduardo VII, perguntou a seu primeiro-ministro por que o governo britânico estava se tornando tão hostil à Alemanha de seu sobrinho Kaiser Wilhelm II, em vez de ficar de olho na América, que ele via como o maior desafio. O primeiro-ministro instruiu o principal observador da Alemanha do Ministério das Relações Exteriores, Eyre Crowe, a escrever um memorando respondendo à pergunta do rei. Crowe entregou seu memorando no dia de ano novo de 1907. O documento é uma joia nos anais da diplomacia.

A lógica da análise de Crowe ecoou o insight de Tucídides. E sua questão central, conforme parafraseada por Henry Kissinger em On China, era a seguinte: a hostilidade crescente entre a Grã-Bretanha e a Alemanha derivava mais das capacidades alemãs ou da conduta alemã? Crowe colocou de forma um pouco diferente: a busca da Alemanha por "hegemonia política e ascendência marítima" representa uma ameaça existencial para "a independência de seus vizinhos e, finalmente, a existência da Inglaterra?"

A Grande Frota Britânica a caminho de encontrar a frota da Marinha Imperial Alemã para a Batalha da Jutlândia em 1916 (AP)

A resposta de Crowe foi inequívoca: capacidade era fundamental. À medida que a economia da Alemanha superasse a da Grã-Bretanha, a Alemanha não apenas desenvolveria o exército mais forte do continente. Em breve também "construiria uma marinha tão poderosa quanto pudesse pagar". Em outras palavras, escreve Kissinger, "uma vez que a Alemanha alcançasse a supremacia naval … isso em si – independentemente das intenções alemãs – seria uma ameaça objetiva à Grã-Bretanha e incompatível com a existência do Império Britânico."

Três anos depois de ler esse memorando, Eduardo VII morreu. Os participantes de seu funeral incluíram dois “principais enlutados” - o sucessor de Eduardo, George V, e o Kaiser Wilhelm da Alemanha - junto com Theodore Roosevelt representando os Estados Unidos. A certa altura, Roosevelt (um ávido estudante de poder naval e principal defensor da construção da Marinha dos Estados Unidos) perguntou a Wilhelm se ele consideraria uma moratória na corrida armamentista naval germano-britânica. O kaiser respondeu que a Alemanha estava inalteravelmente comprometida em ter uma marinha poderosa. Mas, como ele explicou, a guerra entre a Alemanha e a Grã-Bretanha era simplesmente impensável, porque “fui criado na Inglaterra, em grande parte; Sinto-me em parte um inglês. Depois da Alemanha, preocupo-me mais com a Inglaterra do que com qualquer outro país.” E, então, com ênfase: "ADORO A INGLATERRA!"

Por mais inimaginável que pareça o conflito, por mais catastróficas que sejam as consequências potenciais para todos os atores, por mais profunda que seja a empatia cultural entre líderes, até mesmo parentes consangüíneos, e por mais interdependentes economicamente que sejam os Estados – nenhum desses fatores é suficiente para evitar a guerra, em 1914 ou hoje.

De fato, em 12 dos 16 casos nos últimos 500 anos em que houve uma rápida mudança no poder relativo de uma nação em ascensão que ameaçou deslocar um estado governante, o resultado foi a guerra. Como sugere a tabela abaixo, a luta pelo domínio na Europa e na Ásia ao longo do último meio milênio oferece uma sucessão de variações sob um enredo comum.

Estudos de caso de Tucídides

Harvard Belfer Center for Science and International Affairs

(Para obter resumos desses 16 casos e a metodologia para selecioná-los, e para um fórum para registrar adições, subtrações, revisões e discordâncias com os casos, visite o Harvard Belfer Center’s Thucydides Trap Case File. Para esta primeira fase do projeto , nós do Belfer Center identificamos os poderes “dominantes” e “ascendentes” seguindo os julgamentos dos principais relatos históricos, resistindo à tentação de oferecer interpretações originais ou idiossincráticas dos eventos. Essas histórias usam “ascensão” e “governo” de acordo com suas definições convencionais, geralmente enfatizando mudanças rápidas no PIB relativo e na força militar. A maioria dos casos nesta rodada inicial de análise vem da Europa pós-Vestfália.)

Quando uma França revolucionária em ascensão desafiou o domínio da Grã-Bretanha sobre os oceanos e o equilíbrio de poder no continente europeu, a Grã-Bretanha destruiu a frota de Napoleão Bonaparte em 1805 e depois enviou tropas ao continente para derrotar seus exércitos na Espanha e em Waterloo. Enquanto Otto von Bismarck procurava unificar uma variedade de estados alemães em ascensão, a guerra com seu adversário comum, a França, provou ser um instrumento eficaz para mobilizar o apoio popular para sua missão. Após a Restauração Meiji em 1868, uma economia e um estabelecimento militar japoneses em rápida modernização desafiaram o domínio chinês e russo do Leste Asiático, resultando em guerras com ambos, das quais o Japão emergiu como a principal potência na região.

Cada caso é, claro, único. O debate contínuo sobre as causas da Primeira Guerra Mundial nos lembra que cada uma delas está sujeita a interpretações conflitantes. Um grande historiador internacional, Ernest May, de Harvard, ensinou que, ao tentar raciocinar a partir da história, devemos ser tão sensíveis às diferenças quanto às semelhanças entre os casos que comparamos. (De fato, em sua aula de Raciocínio Histórico 101, May pegava uma folha de papel, desenhava uma linha no meio da página, rotulava uma coluna de “Semelhante” e a outra de “Diferente” e preenchia a folha com pelo menos um meia dúzia de cada.) No entanto, reconhecendo muitas diferenças, Tucídides nos direciona para uma semelhança poderosa.

***

O principal desafio geoestratégico desta era não são os extremistas islâmicos violentos ou uma Rússia ressurgente. É o impacto que a ascensão da China terá na ordem internacional liderada pelos EUA, que proporcionou paz e prosperidade sem precedentes às grandes potências nos últimos 70 anos. Como observou o falecido líder de Cingapura, Lee Kuan Yew, “o tamanho do deslocamento da China no equilíbrio mundial é tal que o mundo deve encontrar um novo equilíbrio. Não dá para fingir que se trata de mais um grande jogador. Este é o maior jogador da história do mundo.” Todo mundo sabe sobre a ascensão da China. Poucos de nós percebem sua magnitude. Nunca antes na história uma nação subiu tanto, tão rápido, em tantas dimensões de poder. Parafraseando o ex-presidente tcheco Vaclav Havel, tudo isso aconteceu tão rapidamente que ainda não tivemos tempo de ficar surpresos.

Minha palestra sobre esse tópico em Harvard começa com um questionário que pede aos alunos que comparem a China e os Estados Unidos em 1980 com suas classificações atuais. O leitor é convidado a preencher os espaços em branco.

Teste: Preencha os espaços em branco


As respostas da primeira coluna: em 1980, a China tinha 10% do PIB dos Estados Unidos, medido pela paridade do poder de compra; 7% de seu PIB às taxas de câmbio atuais do dólar americano; e 6% de suas exportações. A moeda estrangeira mantida pela China, enquanto isso, era apenas um sexto do tamanho das reservas americanas. As respostas para a segunda coluna: Em 2014, esses números eram 101% do PIB; 60 por cento às taxas de câmbio do dólar americano; e 106% das exportações. As reservas da China hoje são 28 vezes maiores que as dos Estados Unidos.

Em uma única geração, uma nação que não aparecia em nenhuma das tabelas da liga internacional saltou para os primeiros lugares. Em 1980, a economia da China era menor que a da Holanda. No ano passado, o incremento do crescimento do PIB da China foi aproximadamente igual ao de toda a economia holandesa.

A segunda pergunta do meu questionário pergunta aos alunos: a China poderia se tornar a número 1? Em que ano a China poderia ultrapassar os Estados Unidos para se tornar, digamos, a maior economia do mundo, ou o principal motor do crescimento global, ou o maior mercado de artigos de luxo?

A China poderia se tornar a número 1?

  • Fabricante:
  • Exportador:
  • Nação comercial:
  • Economizador:
  • Titular da dívida dos EUA:
  • Destino do investimento estrangeiro direto:
  • Consumidor de energia:
  • Importador de petróleo:
  • Emissor de carbono:
  • Produtor de aço:
  • Mercado automotivo:
  • Mercado de smartphones:
  • Mercado de comércio eletrônico:
  • Mercado de artigos de luxo:
  • Usuário de internet:
  • Supercomputador mais rápido:
  • Titular de reservas estrangeiras:
  • Fonte das ofertas públicas iniciais:
  • Principal motor do crescimento global:
  • Economia:

A maioria fica surpresa ao saber que em cada um desses 20 indicadores, a China já ultrapassou os EUA.

A China será capaz de sustentar taxas de crescimento econômico várias vezes superiores às dos Estados Unidos por mais uma década e além? Se e como o fizer, seus líderes atuais estão falando sério sobre substituir os EUA como a potência predominante na Ásia? A China seguirá o caminho do Japão e da Alemanha e assumirá seu lugar como participante responsável na ordem internacional que os Estados Unidos construíram nas últimas sete décadas? A resposta a estas perguntas é obviamente que ninguém sabe.

Mas se vale a pena dar atenção às previsões de alguém, são as de Lee Kuan Yew, o principal observador mundial da China e mentor dos líderes chineses desde Deng Xiaoping. Antes de sua morte em março, o fundador de Cingapura colocou as chances de a China continuar a crescer várias vezes às taxas dos EUA na próxima década e além como “quatro chances em cinco”. Sobre se os líderes da China estão falando sério sobre substituir os Estados Unidos como a principal potência da Ásia no futuro previsível, Lee respondeu diretamente: “Claro. Por que não... como eles não poderiam aspirar a ser o número um na Ásia e, com o tempo, o mundo?” E sobre aceitar seu lugar em uma ordem internacional projetada e liderada pelos Estados Unidos, ele disse absolutamente que não: “A China quer ser a China e aceita como tal – não como um membro honorário do Ocidente”.

***

Os americanos têm a tendência de dar sermões aos outros sobre por que eles deveriam ser “mais como nós”. Ao instar a China a seguir o exemplo dos Estados Unidos, nós, americanos, devemos ter cuidado com o que desejamos?

Como os Estados Unidos emergiram como a potência dominante no hemisfério ocidental na década de 1890, como eles se comportaram? O futuro presidente Theodore Roosevelt personificou uma nação extremamente confiante de que os próximos 100 anos seriam um século americano. Ao longo de uma década que começou em 1895 com o secretário de Estado dos Estados Unidos declarando os Estados Unidos “soberanos neste continente”, os Estados Unidos libertaram Cuba; ameaçou a Grã-Bretanha e a Alemanha com uma guerra para forçá-los a aceitar as posições americanas nas disputas na Venezuela e no Canadá; apoiou uma insurreição que dividiu a Colômbia para criar um novo estado do Panamá (que imediatamente deu aos Estados Unidos concessões para construir o Canal do Panamá); e tentou derrubar o governo do México, apoiado pelo Reino Unido e financiado por banqueiros londrinos. No meio século que se seguiu, as forças militares dos EUA intervieram em “nosso hemisfério” em mais de 30 ocasiões distintas para resolver disputas econômicas ou territoriais em termos favoráveis aos americanos ou expulsar líderes que julgavam inaceitáveis.

Theodore Roosevelt com tropas dos EUA na Zona do Canal do Panamá em 1906 (Wikimedia)

Por exemplo, em 1902, quando navios britânicos e alemães tentaram impor um bloqueio naval para forçar a Venezuela a pagar suas dívidas com eles, Roosevelt advertiu ambos os países de que seria “obrigado a interferir pela força se necessário” se eles não retirassem suas navios. Os britânicos e alemães foram persuadidos a recuar e resolver sua disputa em termos satisfatórios para os EUA em Haia. No ano seguinte, quando a Colômbia se recusou a arrendar a Zona do Canal do Panamá para os Estados Unidos, os Estados Unidos patrocinaram secessionistas panamenhos, reconheceram o novo governo panamenho horas depois de sua declaração de independência e enviaram os fuzileiros navais para defender o novo país. Roosevelt defendeu a intervenção dos EUA alegando que ela era “justificada pela moral e, portanto, justificada pela lei”. Pouco tempo depois, o Panamá concedeu aos Estados Unidos direitos sobre a Zona do Canal “em perpetuidade”.

***

Quando Deng Xiaoping iniciou a rápida marcha da China para o mercado em 1978, ele anunciou uma política conhecida como “esconde-esconde”. O que a China mais precisava no exterior era estabilidade e acesso aos mercados. Os chineses, portanto, “esperariam nosso tempo e esconderiam nossas capacidades”, que os oficiais militares chineses às vezes parafraseavam como ficar fortes antes de se vingar.

Com a chegada do novo líder supremo da China, Xi Jinping, a era do “esconde-esconde” acabou. Quase três anos depois de seu mandato de 10 anos, Xi surpreendeu colegas em casa e observadores da China no exterior com a velocidade com que se moveu e a audácia de suas ambições. Internamente, ele contornou o governo de um comitê permanente de sete homens e, em vez disso, consolidou o poder em suas próprias mãos; acabou com os flertes com a democratização ao reafirmar o monopólio do Partido Comunista sobre o poder político; e tentou transformar o motor de crescimento da China de uma economia focada na exportação para uma impulsionada pelo consumo doméstico. No exterior, ele tem buscado uma política externa chinesa mais ativa e cada vez mais assertiva na defesa dos interesses do país.

Enquanto a imprensa ocidental é dominada pela história da “desaceleração econômica da China”, poucos param para notar que a taxa de crescimento mais baixa da China permanece mais de três vezes maior que a dos Estados Unidos. Muitos observadores fora da China não perceberam a grande divergência entre o desempenho econômico da China e o de seus concorrentes ao longo dos sete anos desde a crise financeira de 2008 e a Grande Recessão. Esse choque fez com que praticamente todas as outras grandes economias vacilassem e caíssem. A China nunca perdeu um ano de crescimento, mantendo uma taxa média de crescimento superior a 8%. De fato, desde a crise financeira, quase 40% de todo o crescimento da economia global ocorreu em apenas um país: a China. O gráfico abaixo ilustra o crescimento da China em comparação com o crescimento entre seus pares no grupo BRICS de economias emergentes, economias avançadas e no mundo. De um índice comum de 100 em 2007, a divergência é dramática.

GDP, 2007 — 2015

Harvard Belfer Center / IMF World Economic Outlook

Hoje, a China desbancou os Estados Unidos como a maior economia do mundo medida em termos da quantidade de bens e serviços que um cidadão pode comprar em seu próprio país (paridade do poder de compra).

O que Xi Jinping chama de “Sonho da China” expressa as aspirações mais profundas de centenas de milhões de chineses, que desejam ser não apenas ricos, mas também poderosos. No cerne do credo civilizacional da China está a crença – ou presunção – de que a China é o centro do universo. Na narrativa frequentemente repetida, um século de fraqueza chinesa levou à exploração e à humilhação nacional pelos colonialistas ocidentais e pelo Japão. Na visão de Pequim, a China agora está sendo restaurada ao seu lugar de direito, onde seu poder exige reconhecimento e respeito pelos interesses centrais da China.

Uma pintura em xilogravura retrata a Primeira Guerra Sino-Japonesa. (Toyohara Chikanobu / Wikimedia)

Em novembro passado, em uma reunião seminal de todo o establishment político e de política externa chinesa, incluindo a liderança do Exército Popular de Libertação, Xi forneceu uma visão abrangente de sua visão do papel da China no mundo. A demonstração de autoconfiança beirava a arrogância. Xi começou oferecendo uma concepção essencialmente hegeliana das principais tendências históricas em direção à multipolaridade (ou seja, não à unipolaridade dos EUA) e à transformação do sistema internacional (ou seja, não ao atual sistema liderado pelos EUA). Em suas palavras, uma nação chinesa rejuvenescida construirá um “novo tipo de relações internacionais” por meio de uma luta “prolongada” sobre a natureza da ordem internacional. No final, ele garantiu ao público que “a tendência crescente em direção a um mundo multipolar não mudará”.

Dadas as tendências objetivas, os realistas veem uma força irresistível se aproximando de um objeto imóvel. Eles perguntam o que é menos provável: a China exigindo um papel menor nos mares do Leste e do Sul da China do que os Estados Unidos fizeram no Caribe ou no Atlântico no início do século 20, ou os EUA compartilhando com a China a predominância no Pacífico Ocidental que a América tem apreciado desde a Segunda Guerra Mundial?

E, no entanto, em quatro dos 16 casos analisados pela equipe do Belfer Center, rivalidades semelhantes não terminaram em guerra. Se os líderes dos Estados Unidos e da China permitirem que fatores estruturais levem essas duas grandes nações à guerra, eles não poderão se esconder atrás de um manto de inevitabilidade. Aqueles que não aprenderem com os sucessos e fracassos do passado para encontrar um caminho melhor a seguir não terão ninguém para culpar a não ser a si mesmos.

Atores vestidos como soldados do Exército Vermelho marcam o 70º aniversário do fim da Segunda Guerra Mundial, em Pequim. (Kim Kyung-Hoon/Reuters)

A esta altura, o roteiro estabelecido para a discussão dos desafios políticos pede um pivô para uma nova estratégia (ou pelo menos o slogan), com uma curta lista de tarefas que promete relações pacíficas e prósperas com a China. Encaixar esse desafio nesse modelo demonstraria apenas uma coisa: uma falha em entender o ponto central que estou tentando defender. O que os estrategistas mais precisam no momento não é uma nova estratégia, mas uma longa pausa para reflexão. Se a mudança tectônica causada pela ascensão da China representa um desafio de proporções genuinamente tucididianas, as declarações sobre “reequilíbrio” ou a revitalização do “engage and hedge” ou os apelos dos aspirantes à presidência por variantes mais “musculadas” ou “robustas” do mesmo, a pouco mais do que a aspirina para tratar o câncer. Historiadores do futuro compararão tais afirmações com os devaneios dos líderes britânicos, alemães e russos enquanto caminhavam como sonâmbulos até 1914.

A ascensão de uma civilização de 5.000 anos com 1,3 bilhão de pessoas não é um problema a ser resolvido. É uma condição – uma condição crônica que terá de ser gerenciada ao longo de uma geração. O sucesso exigirá não apenas um novo slogan, cúpulas de presidentes mais frequentes e reuniões adicionais de grupos de trabalho departamentais. Gerir esta relação sem guerra exigirá atenção constante, semana a semana, ao mais alto nível em ambos os países. Isso implicará uma profundidade de compreensão mútua não vista desde as conversas entre Henry Kissinger e Zhou Enlai na década de 1970. Mais significativamente, isso significará mudanças mais radicais nas atitudes e ações, por parte dos líderes e do público, do que qualquer um jamais imaginou.

Graham Allison é ex-diretor do Belfer Center for Science and International Affairs da Harvard Kennedy School e ex-secretário assistente de defesa dos EUA para políticas e planos. Ele é o autor de Destined for War: Can America and China Escape Thucydides's Trap?

21 de setembro de 2015

Os credores são os verdadeiros vencedores na Grécia - Alexis Tsipras foi criado para falhar

O líder grego venceu com três promessas que a troika tornará difícil para ele cumprir

Yanis Varoufakis

The Guardian

Aristidis Vafeiadakis/ ZUMA Press/ Corbis

Tradução / Nas eleições gerais na Grécia, realizadas no domingo (20/09), Alexis Tsipras arrancou vitória retumbante, diretamente das mandíbulas da humilhante rendição de julho à troika dos credores. Desafiando partidos de oposição, pesquisas de opinião e críticos dentro de suas próprias fileiras (inclusive esse que vos escreve), segurou-se no governo, com uma maioria reduzida, mas ainda funcional. A questão é se poderá combinar permanecer no governo com manter-se no poder.

Os maiores perdedores foram partidos menores, que tentaram ocupar os polos opostos [do debate] depois do referendo de 5 de julho. A Unidade Popular fracassou redondamente ao não conseguir explorar o luto em que se sentiu a maioria dos que votaram “Não”, depois que Tsipras fez meia volta e deu-lhes as costas, a favor de um acordo que estreitou ainda mais a soberania nacional e promove níveis já tenebrosos de austeridade. O Potami, partido que se posiciona como a menina dos olhos dos reformistas da troika, tampouco conseguiu arregimentar os que votaram “Sim”, em número menor. Com Tsipras absoluto vencedor, agora firmemente no comando do programa da troika e com novos dentes, os partidos pro-troika nada tinham a mais a oferecer.

A grande vencedora é a própria troika. Durantes os últimos cinco anos, leis redigidas por este grupo de credores foram aprovadas no Parlamento grego com maiorias estreitas, o que várias vezes exigiu noites de insônia dos autores. Agora, as leis necessárias para cumprir o terceiro “resgate” serão aprovadas sem dificuldade, com o Syriza comprometido com a aprovação. Quase todos os deputados de oposição (exceto os comunistas do KKE e os nazistas da Aurora Dourada) também já embarcaram na canoa da troika.

Claro, para chegar a esse ponto, foi preciso ferir fundo a democracia grega (1,6 milhão de gregos que votaram no referendo de julho nem se deram o trabalho de voltar às urnas no domingo) –, mas sem grande dano aos burocratas em Bruxelas, Frankfurt e Washington, os quais, em todo o caso veem a democracia como uma espécie de incômodo.

Alexis Tsipras tem agora de implementar uma consolidação fiscal e um programa de reformas projetado para fracassar. Pequenos negócios sem liquidez, sem acesso ao mercado de capitais, têm agora de pagar antecipadamente os impostos pré-calculados sobre receitas projetadas para 2016. As famílias terão de pagar acintosos novos impostos sobre a propriedade de apartamentos não habitados e lojas inoperantes, que não conseguem sequer vender. Consideráveis aumentos nos impostos sobre valores agregados só provocarão mais evasão desses impostos. Semana sim, semana não, lá estará a troika a exigir políticas mais e mais recessivas e antissociais: cortes de aposentadorias, menores benefícios para a infância, mais despejos.

O plano do primeiro-ministro para conter essa tempestade baseia-se em três promessas.

1. O acordo com a troika não terminou, há ainda espaço para negociar detalhes importantes; 2. logo se alcançará o alívio da dívida; e 3. os oligarcas gregos serão contidos.

Os eleitores apoiaram Tsipras porque ele parecia o candidato mais capaz de cumprir essas promessas. A questão é que qualquer capacidade que o primeiro-ministro tivesse já foi severamente podada pelo acordo que ele mesmo assinou.

Quanto à primeira promessa, o poder de negociar que resta à Grécia é mínimo, dada a clara condição imposta pelo acordo já assinado, segundo a qual o governo grego “… concordará [com a [troika] em todas as ações relevantes para que se alcancem os objetivos do Memorando de Entendimento…” (Observem que a troikaabsolutamente não se compromete a concordar com o governo grego!)

Quanto à segunda promessa, o alívio da dívida sem dúvida virá, de algum modo, mas não em doses terapêuticas. O alívio da dívida seria importante, se desse espaço para menos arrocho (metas mais baixas para o superávit primário), para estimular a demanda e atiçar o “instinto animal” dos investidores. Mas já está decidido o mais feroz arrocho (naqueles absurdos superávits primários “obrigatórios” de 3,5% do PIB a partir de 2018), que espantará todos os investidores sensíveis.

A terceira promessa é chave para o sucesso de Tsipras. Depois de ter aceitado mais um empréstimo do tipo prorrogue-e-finja, que limita a capacidade do governo para reduzir o arrocho e cuidar dos mais fracos, a última razão de ser que resta a um governo de esquerda seria dar combate aos oligarcas. Mas a troika é alma gêmea dos oligarcas e os oligarcas são os melhores amigos da troika.

Durante os primeiros seis meses de 2015, quando desafiávamos o monopólio da troika sobre os poderes políticos na Grécia, os mais aplicados defendedores-apoiadores dela eram: a mídia, que é propriedade dos oligarcas, e os agentes políticos a serviço dos mesmos oligarcas. Essa é a gente e esses são os interesses que agora Tsipras adotou! Como poderá ele virar-se contra os próprios padrinhos? Acredito que Tsipras deseje fazer isso, mas a troika já garantiu que todas as armas que restam a ele estejam devidamente desengatilhadas e sem munição (por exemplo, com o desmonte da agência estatal que combatia crimes econômicos, a SDOE).

Em 2014, o primeiro-ministro conservador Antonis Samaras encontrou-se, ele também, no mesmo impasse de ter de implementar um programa fracassado da troika. Recorreu à estratégia de fingir fidelidade à troika ao mesmo tempo em que a acusava de frouxidão, para evitar que o Syriza chegasse ao governo.

Será que Tsipras será mais bem-sucedido nessa operação de fingir comprometimento com mais um programa fracassado da troika? O prognóstico não parece muito luminoso, mas nem por isso devemos descartar Alexis. O fracasso de Samaras explica-se, sobretudo, pela escolta de ultradireitistas que manteve à sua volta e pela subserviência aos oligarcas. O destino de Tsipras dependerá de se seu novo governo permanecerá conectado às vítimas do seu acordo com a troika; de se implementará reformas genuínas para dar aos empresários honestos alguma confiança para investir; e de se usará a intensificação da crise para exigir de Bruxelas concessões reais. Não será fácil. Mas, vale repetir, a vitória, por doce que seja, não é o que mais importa. O que importa é oferecer governo diferente.

Por falar em diferença, o partido da oposição conservadora tentou de tudo para projetar imagem mais suave, mais calma, durante a campanha. Infelizmente, não conseguiram, quando a crise dos refugiados expôs seu segregacionismo aos olhos de todos. Uma comparação entre as boas vindas com que os gregos recebemos os milhares de migrantes sobreviventes e feridos de naufrágios durante as semanas recentes, e os campos de concentração que o governo Samaras construiu, explica que tantos progressistas desapontados tenham reaparecido nas urnas para votar novamente no Syriza.

Em raros momentos de inexplicável otimismo, gosto de imaginar que a cortesia e a gentileza com estrangeiros em dificuldades pode ser o ponto de partida para uma renovada campanha, do governo grego, contra essa visão distópica de Europa, que a troika promove.

10 de setembro de 2015

Olof Palme e a trajetória do estado de bem-estar na Suécia

A carreira de Olof Palme ilustra o grande sucesso do modelo sueco – e sua fraqueza paralisante

Kjell Östberg


David Frost entrevista Olof Palme em 1969

Tradução / Fevereiro marcará trinta anos desde que o Primeiro Ministro sueco Olof Palme foi morto a tiros no centro do Estocolmo. A identidade de seu assassino segue desconhecida.

A Suécia durante o tempo de Palme é muitas vezes vista como o maior exemplo da socialdemocracia: altos padrões de vida e uma relativamente baixa desigualdade de remuneração; baixo desemprego e um avançado sistema de bem-estar social financiado em imposto progressivos e pensões, auxílios-doença, licença maternidade e paternidade remuneradas e creches universalizadas das quais se gabar.

Quando perguntado sobre como seria seu país ideal, o ex-presidente francês George Pompidou, que dificilmente se diria tender à esquerda, respondeu: “A Suécia, com um pouco mais de sol”.

Hoje, a socialdemocracia sueca perdeu muito da sua posição internacional como baluarte para a esquerda socialista. Muitos apontam os anos 80 como o momento em que as coisas começaram a mudar, quando os ganhos do meio século anterior começaram a ser revertidos. Teria o modelo sueco morrido como Olof Palme?

Ainda que ele tivesse apenas 59 anos quando ocorreu seu assassinato, Palme estava no centro da política sueca há mais de trinta anos. Muito havia mudado na Suécia ao longo dessas três décadas – inclusive o perfil político de Palme.

Em 1932, os socialdemocratas chegaram ao posto de primeiro ministro, onde permaneceriam por 44 anos. A aplicação precoce de políticas econômicas keynesianas e os primeiros passos na construção de um “Lar do Povo”, nos anos 30 deram ao partido a imagem de um reformismo robusto.

Pelas muitas décadas em que o partido esteve no poder, no entanto, a Suécia não diferiu tanto de outros países capitalistas industrializados. Após a 2ª Guerra Mundial tornou-se amplamente aceito que o estado deveria expandir e construir a infraestrutura necessária à indústria moderna e ao bem-estar social: estradas para cargas e transporte, moradias e cuidados médicos para os trabalhadores e escolas e educação para a força de trabalho mais altamente qualificada.

A organização e as ambições do setor público diferiram de país para país, certamente. Mas o crescente estado de bem-estar social não foi uma exclusividade sueca.

Quando Palme aderiu ao Partido Socialdemocrata no começo dos anos 50, a sociedade se caracterizava por um amplo consenso social-liberal. O otimismo quanto o crescimento havia se estabelecido após a 2ª Guerra Mundial e a economia transbordava. O partido do qual era filiado não era particularmente radical. Como Eric Hobsbawn escreveu: “Quanto aos partidos socialistas… eles se encaixavam prontamente no novo capitalismo reformado, porque por propósitos práticos eles não tinham qualquer política econômica própria”.

A trajetória de Palme era pouco usual para um socialdemocrata. Um partido amplamente proletário, sua liderança era composta quase inteiramente por homens de origem operária. Palme, em contraste, era nascido em uma família da elite e tivera uma educação tradicional e de alta classe.

Palme começou sua carreira como um guerreiro frio: era o ator internacional central na construção da Conferência Internacional de Estudante Antissoviéticos, um projeto financiado pela CIA e cujo maior propósito era prevenir que estudantes do terceiro mundo se tornassem comunistas. Ele inclusive foi ligado às operações da inteligência sueca.

Ainda assim, sua tarefa estudantil internacional ensinou a Palme o caráter destrutivo e, mesmo de uma perspectiva anticomunista, contraproducente das guerras colonialistas. Após uma visita à Malásia, Palme escreveu: “É um estranho paradoxo que o governo britânico gaste milhões de libras para matar alguns poucos comunistas na floresta e ao mesmo tempo esteja cuidadosamente cultivando um número crescente deles na Universidade da Malaya”.

As visões anticomunistas de Palme o colocaram no centro da socialdemocracia sueca nos anos 50. Formalmente neutra, a Suécia era estreitamente ligada ao ocidente de maneira ideológica, econômica e militar. O país era mesmo visto como o décimo sétimo membro secreto da OTAN, tanto pelos EUA quanto pela União Soviética.

Em outros pontos Palme também estava solidamente no centro do partido, senão à direita. Ele não estava convencido de que os programas sociais deveriam ser universais – não apenas para evitar impostos muito altos – e suas posições eram marcadamente favoráveis aos “negócios”.

Em 1953, Palme teve sua chance. O primeiro ministro Tage Erlander nomeou o jovem socialdemocrata como seu secretário pessoal e, antes dos 30 anos, Palme tornou-se indispensável para Erlander.

Erlander já há muito reclamava de que o partido era árido de debate ideológico. Em Palme ele encontrou um raro parceiro intelectual. Ao fim dos anos 50, a dupla estava lançando as fundações para política socialdemocratas mais firmes.

Seus ideais não vieram da esquerda socialista. A mais importante fonte de inspiração foi o economista liberal estadunidense John Kenneth Galbraith. Em seu livro de 1958 A Sociedade Opulenta [The Afflunt Society], Galbraith reconheceu o desbalanceamento, nas sociedades industriais do ocidente, entre o a iniciativa privada e os serviços públicos, e clamou por mais do segundo e menos do primeiro.

Palme e Erlander formularam uma base ideológica para a socialdemocracia em sua própria sociedade opulenta. O estado de bem-estar social universal proporcionaria segurança econômica a todos os cidadãos, fomentando laços de solidariedade social e dando à nova classe média um interesse material na expansão dos gastos públicos. Altos impostos se tornariam bem-vindos, não desprezados. Isto foi um abandono da política de bem-estar social seletiva que Palme estava capitaneando.

Uma economia mais planejada e um setor público maior não tornam uma economia em socialista. Mas há alguns fatores que distinguiam o sistema político do país e se tornaram de importância decisiva para o próximo passo da socialdemocracia sueca.

Um desses fatores era a força do movimento sindical, que incluía o Partido Socialdemocrata, a confederação sindical LO, um microcosmos de associações educacionais locais, Casas do Povo, organizações de moradores e assim por diante. Outra diferença foi a maneira pela qual os socialdemocratas utilizaram sua influência para construir um estado de bem-estar social, nacional e localmente. Com poucas exceções as instituições de bem-estar social eram inclusivas, universalistas e financiadas, possuídas e geridas pelo poder público. Eram politicamente controladas e isentas da exploração privada.

Isso lançou as bases para uma sociedade potencialmente diferente. Mas foi necessária uma escalada popular para desencadear essas possibilidades.

A radicalização dos anos 60 e 70 foi profunda na Suécia, começando entre a juventude no contexto da Guerra do Vietnã e desafiando tanto o stalinismo quanto a socialdemocracia. Durante os anos 70 o novo movimento feminista aumentou sua força e pressionou as velhas formas. O movimento ambientalista quase foi bem-sucedido em impedir a construção de novas usinas nucleares. Mais importante ainda foi a onda de greves, que começaram com a greve dos mineiros em 1970. A classe trabalhadora, as categorias tradicionalmente radicalizadas, subitamente tomaram o palco e desafiaram a política de conciliação de classes.

Em 1960, Palme observou com interesse radicalismo florescente. E não passou ileso. Por conta de sua forte oposição ao colonialismo e ao racismo, ele achou mais fácil que outros políticos estabelecidos entender o dinamismo das lutas pela libertação no terceiro mundo, Sua receptividade, curiosidade e boas relações com influentes intelectuais lhe permitiram captar a importância desses novos movimentos sociais mais prontamente que outros. A oposição de Palme à guerra dos EUA no Vietnã o tornou uma figura única na política internacional.

Quando as reivindicações por reformas mais profundas encontraram seu caminho no interior da Socialdemocracia, principalmente pelas vozes dos sindicados e movimentos de mulheres, Palme foi frequentemente um dos melhor posicionados para articular a justeza de tais demandas.

Assumindo como primeiro ministro em 1969, Palme prontamente seguiu por uma série de reformas que englobaram aspectos fundamentais da política social e econômica. Na verdade, uma grande parte dos fenômenos tipicamente associados com o estado de bem-estar social sueco foram criados ou substancialmente reformados durantes os primeiros sete anos de Palme. O gasto nacional cresceu de 26% para 38% do PIB.

Um grande número de reformas foram relacionadas às políticas familiares e muitas carregavam a marca da igualdade: subsídios para moradias de pensionistas e para as famílias com crianças pequenas, licença maternidade e paternidade, aumento dos subsídios para os gastos no sustento infantil, um sistema universal de creches e, no começo de 1974, direito ao aborto.

Na metade dos anos 70, a Suécia havia avançado mais que qualquer outra socialdemocracia. Naturalmente, isso não foi graças a uma só pessoa. Ao contrário, é crucial frisar a importância dos velhos e novos movimentos sociais no desenvolvimento do estado de bem-estar social Sueco. A magnitude e o conteúdo de tais reformas não pode ser explicado sem se referir a tais movimentos.

Esses foram também os anos em que Palme fez seu nome internacionalmente como estadista anti-imperialista. Começou com o Vietnã. Já em 1965 ele condenou publicamente a guerra, e seu criticismo se aprofundou sob a pressão dos movimentos em solidariedade aos vietnamitas. Sua comparação, em 1972, entre o bombardeio dos EUA de Hanói e Guernica e as atrocidades nazistas ultrajaram Henry Kissinger, levando Richard Nixon a chamá-lo de “aquele babaca sueco”.

Durante os anos 70 ele permaneceu como festejado participante do diálogo internacional entre o Norte e Sul Global, e usualmente favorecia ao último. Na ONU a Suécia votou contra a guerra em resoluções sobre a África do Sul, Israel/Palestina e pela distribuição do poder econômico global. A Suécia deu apoio material às lutas pela libertação em diversos países africanos. Líderes radicais do terceiro mundo, como Fidel Castro – cuja revolução Palme apoiou – abraçaram o líder sueco como aliado.

Ao mesmo tempo, Palme nunca deixou seu antirracismo e anti-colonialismo interferir com seu desejo de manter os movimentos radicais subordinados aos poderes dominantes. Isso se tornou excepcionalmente evidente durante a Revolução Portuguesa de 74/75, quando Palme usou de todo seu prestígio para ajudar a pacificar a revolta, trazendo o país para o interior da aliança do oeste europeu e mantendo-o na OTAN.

Quanto às relações militares suecas, eram os negócios de sempre. “Agora, quando eu estiver remando com os americanos”, Palme disse a seus generais, “pelo amor de Deus assegurem que teremos uma boa relação com eles [os americanos] ao menos quanto à nossa defesa”.

De fato, para os EUA e outros governos poderosos, Palme tinha uma função distinta: ele era um dos poucos estadistas que poderiam servir como um contato e como uma ponte com os movimentos e regimes radicais. Kissinger viajou a Estocolmo para agradecer a Palme pelo seu papel na Revolução Portuguesa menos de um ano após o fim da Guerra do Vietnã, um indicativo de sua utilidade.

Ainda assim, para muitos dos líderes do terceiro mundo, ele era um dos poucos representantes do mundo desenvolvido que defendia suas causas por uma ordem mundial mais justa. A existência de incontáveis ruas, escolas e praças na África e na América Latina levando o nome de Palme indicam a importância de tal apoio.

De volta ao lar, o escopo das reformas socialdemocratas e o contínuo crescimento do setor público incitaram amigos e adversários a perguntar quando a socialdemocracia de Palme iria transformar fundamentalmente o sistema.

Os sindicatos queriam isso. Em 1976 a LO reivindicou a criação de fundos dos assalariados. Nesta proposta, todo ano uma porção dos lucros das companhias – na forma de ações – seria transferida para fundos controlados pelos sindicatos. Após algo entre 20 e 75 anos, os trabalhadores controlariam a maior parte da maioria das companhias.

A demanda do plano por uma socialização gradual criou distúrbios no partido. Palme e a liderança do partido eram a favor do que chamavam de “socialismo funcional”: aprofundar a democracia, fazer crescer o setor público, aumentar os recursos para o planejamento público, criar leis reduzindo a influência dos empregadores. A propriedade em si, recusavam-se a tocar.

O “Plano Mediner” era um ataque a tal credo, e Palme gastou muitos anos matando os pontos radicais da proposta. Sua reação demonstrou que, a despeito de todas as reformas realizadas, ele não estava disposto a pisar para além das fronteiras do capitalismo.

Os fundos dos assalariados que acabaram por ser decretados, como apontou o biografista de Meidner, Lars Ekdahl, guardavam pouca semelhança com a proposta original. Não havia distribuição de lucros; abriu-se mão de quase todo o poder dos sindicatos sobre a indústria; não havia a determinação de quebrar a sólida concentração de poder e riqueza de uma vez por todas – abriu-se mão da ideia dos fundos como elemento de uma estratégia socialista democrática.

Ao mesmo tempo, a mudança na conjuntura social e econômica estava mudando as condições para mais políticas reformistas, fossem radicais ou de qualquer outro tipo. Com o fim do crescimento do pós-guerra e o começo de um período de maior turbulência, as fundações econômicas do estado de bem-estar social começaram a ser postas em questão.

Friedman passou a substituir Keynes como estrela-guia. E os movimentos sociais, portadores da radicalização, começavam a declinar.

Em acréscimo, o próprio Partido Socialdemocrata encontrou-se fora do poder pela primeira vez em décadas. Entre 1976 e 1982, o partido estava na oposição quando a crise econômica estava em seu pior momento. Quando o partido retornou ao poder após as eleições de 1982, as condições para as políticas socialdemocratas tradicionais haviam mudado completamente.

Em parte, a economia sueca estava seriamente enfraquecida por grandes déficits orçamentários, desemprego significativo e uma alta taxa de inflação. Mas também a própria socialdemocracia começou a se adaptar às políticas econômicas monetaristas e influenciadas pelo neoliberalismo. Isso foi particularmente verdade para um grupo de jovens economistas agrupados ao redor do ministro das finanças de Palme, Khel-Olof Feldt.

No primeiro documento financeiro do governo, se proclamava que uma retomada da produção industrial deveria se dar com o aumento dos lucros das companhias, o consumo deveria ser contido de modo que a poupança geral do país pudesse aumentar e medidas anti-inflacionárias deveriam ser priorizadas. Tudo isso viria às custas do setor público. Se o Plano Mediner havia indignado o centro e a direita do partido, o documento financeiro do governo deflagrou conflitos entre a liderança do partido e a LO.

Ainda no poder no meio dos anos 80, os socialdemocratas tomaram as primeiras medidas em direção à desregulamentação do sistema bancários e do câmbio. Qual foi o papel de Palme neste desenvolvimento? Há poucas indicações de que ele tivesse qualquer intenção de freá-lo. Durante todo o período, ele defendeu seu ministro das finanças contra os ataques da esquerda do partido.

Para Palme, o novo cenário político e econômico não implicava que o potencial reformista havia se exaurido. Enquanto políticos como Feldt queriam reorientar o partido de forma permanente e romper com as antigas políticas econômicas, muito do que estava sendo feito nos anos 80 era, aos olhos de Palme, um mal necessário que iria eventualmente trazer a ordem de volta à economia nacional. A posição de Palme, Feldt explicou, era “mais sobre dar ao partido a oportunidade, através de medidas indesejáveis, de retornar à sua antiga política. Nós tínhamos que nos arrastar através de um túnel. Do outro lado havia uma luz”.

Essa era uma esperança realista? Ou, para retornar a questão inicialmente posta, o modelo sueco morreu com Olof Palme?

A questão não é simples, mesmo porque o “modelo sueco” é, em si próprio, multifacetado. Nitidamente muitas de suas marcas permanecem intactas – uma rede de seguridade social relativamente generosa financiada por impostos – mesmo que o nível dos benefícios tenha sido minado e uma grande parte do setor públicos tenha sido vendida. O movimento sindical sueco – a força verdadeira por trás dessas políticas, e os arquitetos do modelo sueco – permanece comparativamente forte.

Se, por outro lado, consideramos esse modelo como a política socialdemocrata clássica de expansão do estado de bem-estar social e controle da economia, fica evidente que muito desse foi abandonado: políticas keynesianas contra crises, controle financeiro governamental do crédito e dos mercados de câmbio e taxas de juros, um banco nacional sob controle político, a ambição de perseguir uma política industrial nacional ativa, um setor público não apenas amplamente financiado e controlado pelo estado sem interesses lucrativos, construção de moradias públicas e programas de propriedade, e geralmente sistemas de benefícios definidos.

Mesmo se deixarmos a terra firma da análise histórica, há razões para duvidar o quanto Palme teria sido capaz de lutar contra os moinhos da mudança.

Uma razão importante para isso é que a luz no fim do túnel acabou sendo a luz de um trem se aproximando. A política econômica defendida pelo governo Palme ajudou a atirar o país em uma nova e séria crise no começo dos anos 90, que prenunciou uma nova série de medidas de austeridade, desregulações e privatizações.

É óbvio que os líderes políticos socialdemocratas que sucederam Palme foram inábeis ou indispostos a abandonar o curso no qual haviam embarcado, e na verdade o navegaram até o fim.

Então enquanto o Partido Socialdemocrata de hoje possa parecer desajustado a Olof Palme, é importante não ser excessivamente benevolentes em defender o seu legado. Transitando entre o consenso do pós-guerra e a era neoliberal, Palme foi tanto o grande reformista como o facilitador da transferência do poder da política para o mercado.

Palme, o perfeito social democrata cristaliza, portanto, o dilema conjuntural e constitutivo da socialdemocracia. Dessa forma, seu exemplo prova que é a inabilidade da socialdemocracia de pensar para além do capitalismo a fonte de seu declínio terminal.

Sobre o autor

Kjell Östberg is a professor of history at Södertörn University in Sweden.

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