14 de novembro de 2015

Como politizar uma tragédia

We must insist on the political nature of tragedy because politics offers the only way out of violence and injustice.

Sam Kriss


The aftermath of one of yesterday's attacks in Paris. Jacques Brinon / AP

Tradução / Estou escrevendo isso na manhã seguinte, após uma série de ataques violentos em Paris, que deixaram mais de 120 pessoas mortas, e ainda parece insensível até escrever sobre isso. Na maior parte do mundo, há algo muito brutal na idéia de que agora é um bom momento para exigir que outras pessoas ouçam sua opinião muito inteligente.

Se escrever poesia após Auschwitz é barbárie, escrever reflexões em forma de artigo após os ataques em Paris também é uma barbárie. Não politize; não use o assassinato em massa para obter pontos retóricos contra o adversário, não pragueje com je te l'avais bien dit, ("eu bem que te avisei"), não brinque de cabo de guerra com os cadáveres, não aja como se os fatos dissessem respeito a você mesmo, não aja como se fosse uma questão de política.

Na verdade, isto tudo é bastante estranho: a morte é sempre política, e não há nada mais político do que um ataque terrorista. Estes eventos acontecem por razões políticas e têm consequências políticas; ter uma opinião é algo bom, embora frustrante, em tempos de paz, mas é absolutamente essencial em tempos de crise.

No entanto... Surge um sentimento de repulsa assim que as pessoas comentam sobre o fechamento sem precedentes das fronteiras francesas, afirmando que nada disso teria acontecido se a medida tivesse sido tomada antes; quando começam a resmungar sobre a ameaça global do Islã ou sobre a presença dos estrangeiros; quando presunçosamente afirmam que a legislação antiarmas deixou a população indefesa.

Esta tendência não está limitada à direita: há muitos que se dizem de esquerda e que também tratam do massacre como um palco propício à encenação de seus autos de moralidade. E se os agressores fossem brancos? Não estaríamos todos falando sobre saúde mental? Você sabia que não muçulmanos também cometem atrocidades? Por que você se importa com isto, e não com todas as outras tragédias que estão ocorrendo no mundo? Você não consegue perceber que todos estes cadáveres existem apenas para provar que eu estava certo desde o princípio?

Normalmente, o dever de não opinar seria aplicável apenas a um pequeno setor da população, mas nos últimos anos estivemos todos envolvidos. A maioria destas participações acontece na internet, e parece absoluta e inteiramente errado prognosticar solenemente o futuro de centenas de catástrofes pessoais nas mesmas plataformas e da mesma forma como se fala sobre os programas de TV e partidas de futebol.

Boa parte disso tem a ver com as demandas do próprio meio: você se sente constantemente encorajado a dar sua opinião e participar da conversa, a preencher constantemente caixinhas brancas com palavras, já que agora o que você pensa sobre qualquer assunto se tornou extremamente importante. Antes mesmo de você perceber, no ímpeto de dar sua opinião e participar da conversa, já está pisando sobre os mortos. Rabiscamos nossas ideias com sangue. Expressar qualquer coisa que não pesar é monstruoso.

No entanto, veja só o que está sendo dito. Na noite do ataque, o presidente francês François Hollande esteve do lado de fora da casa de shows Bataclan, onde dezenas morreram, para declarar: "vamos lutar, e a luta será impiedosa". Haverá mais guerra, mais mortes e tragédias.

As emissoras de TV estão levando ao ar especialistas que insistem na ideia de que a culpa é dos migrantes e estrangeiros, como se os refugiados levassem consigo a violência da qual fugiram. Mais repressão, mais crueldade, mais pogroms. Ataques terroristas, como todos sabemos, são levados a cabo com o intento de colocar as pessoas umas contra as outras e intensificar a violência do Estado, e é isto o que está ocorrendo: a população está dividida e o Estado anuncia sua determinação em agir com violência.

Isto já é politização da tragédia, e falar abertamente contra esta situação é apenas outra forma de politização: será ela inaceitável?

No dia anterior aos ataques em Paris, dois homens-bomba se explodiram em Bourj el-Barajneh, um subúrbio predominantemente xiita de Beirute, matando 43 pessoas inocentes que tocavam normalmente suas vidas. Agências de notícias como a Reuters noticiaram um ataque contra um "reduto do Hezbollah".

A humanidade das vítimas desapareceu, elas foram brutalmente reduzidas a um partido político que grande parte delas sequer apoia. Não foram tratadas como pessoas, mas sim como um partido, o Hezbollah, como se o que tivesse sido atacado fosse uma fortaleza armada, e não um bairro repleto de famílias. Muitas pessoas manifestaram muito claramente seu horror diante disto. Mas fazê-lo também foi uma forma de politizar a tragédia: isto também era inaceitável?

Quando honestamente mobilizada, a ordem de que não se politize uma morte significa não torná-la parte de outra coisa: ela não diz respeito ao tema com o qual você sempre se importou, não diz respeito a você. Fazer isso é fazer um certo tipo de política. Mas há outro. Insistir na humanidade das vítimas é também um ato político que continuará sendo necessário enquanto a tragédia for transformada em conflito civilizacional ou em desculpa para vitimar os que já são vítimas.

Há a politização que se aproveita da morte para atingir objetivos políticos limitados, e há a politização que recusa qualquer texto padrão pré-determinado a não ser o da libertação. Este último tipo insiste na natureza política da tragédia não para capitalizá-la em prol de uma ou outra narrativa, ou para impor um filtro de direita ou de esquerda sobre as imagens da carnificina, mas porque a política é a saída para tudo isto.

A atrocidade demanda solidariedade. Compaixão absoluta pelas vítimas; por todas as vítimas. Insistir em ter uma opinião, não o desdém de quem acreditava estar certo desde o início, mas solidariedade irresoluta diante da devastação. Lutar contra os que atacam cafés e casas de espetáculo, contra os que bombardeiam cidades com caças e com seus próprios corpos, contra os que abandonam refugiados no frio para fora de suas fronteiras e contra aqueles que os obrigam a deixar sua terra. Lutar: a luta comum de todos os que sofrem, contra o sofrimento.

Sobre o autor

Sam Kriss is a writer living in the United Kingdom. He blogs at Idiot Joy Showland.

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