2 de agosto de 2017

Trump e os trumpistas

O trumpismo, de acordo com Wolfgang Streeck, foi resultado de uma mudança global de classes para grupos de status, exacerbando as divisões sociais entre as elites urbanas neoliberais e a classe trabalhadora tradicional.

Wolfgang Streeck



Tradução / Personalidades estranhas surgem nas fendas de instituições em desintegração. Elas são geralmente marcadas por vestimentas extravagantes, retórica inflada e uma demonstração de poder sexual. O primeiro Trump do pós-guerra foi o rebelde fiscal dinamarquês Morgens Glistrup, o fundador do nacionalista Partido Progressista, que, tendo colocado seus princípios em prática, fora preso por evasão fiscal. Geert Wilders na Holanda e Boris Johnson na Inglaterra são Trumps até em seus penteados. Pim Fortuyn e Jörg Haider foram ambos dandies. Eles morreram com suas melhores roupas e adereços. Beppe Grillo, Nigel Faarage e Jean-Marie Le Pen, são um terço de um Trump cada um.

Trumps geram seu carisma populista entre os trumpistas desafiando a convenção: eles parecem extraordinários para aqueles que estão intimidados mas não impressionados pela maquinaria de controle social. [1] Em retrospectiva, parece que as democracias capitalistas estiveram esperando por seus Trumps, homens e mulheres ansiosos por liberar o discurso público de seu compromisso com o inacreditável. A promessa de Donald Trump – “Make American great again” – é um reconhecimento de que os Estados Unidos são um poder em declínio, embaraçosamente inapto desde o Vietnam para vencer, ou mesmo para terminar, qualquer uma das guerras que iniciou. Quando os Trumps perguntam sobre a OTAN, eles estão questionando sobre por que a OTAN deveria continuar a existir um quarto de século após o fim da União Soviética. Os clamores pelo protecionismo econômico levantaram a questão, tabu de longa data entre a esquerda liberal internacionalista, de saber se os tratados de livre-comércio são realmente benéficos para todos e por que, em particular, o governo dos EUA deveria ter deixado seu país se desindustrializar. Os EUA têm uma elaborada política de imigração, mas ainda há 11 milhões de imigrantes ilegais em seu território. [2] Trumps dizem que isso é estranho, e os trumpistas concordam com eles.

Bonapartismo

No Dezoito Brumário de Luís Bonaparte, Karl Marx contou o golpe de Estado de 1851, por meio do qual o sobrinho de Napoleão I, Luís Bonaparte, tomou o poder, governando a França primeiro como presidente e, um ano depois, como imperador. [3] Ele governou como Napoleão III até 1871, quando o exército prussiano sob o comando de Helmuth von Moltke colocou um fim a sua administração, e também a seu amour-propre. Marx descreveu o bonapartismo como uma forma de governo personalista. Ele surgiu, argumentou Marx, em sociedades europeias imobilizadas, com uma classe capitalista muito dividida, e uma classe trabalhadora muito desorganizada, para influenciar ou orientar o governo. O resultado foi um grau de relativa autonomia estatal, expressando, mesmo que de forma mascarada, um impasse entre classes sociais. [4]

A política bonapartista é conduzida por idiossincrasias de seu Bonaparte. [5] Esta não é um receita para um governo efetivo. Uma vez que uma sociedade capitalista sob o bonapartismo não possui o poder de controlar, ou conter, as forças de mercado, capitalistas podem suportar que seu Bonaparte encene espetáculos de bravatas políticas; nos bastidores, mercados continuam a fazer o que sempre fizeram. Refletindo sobre os dois Napoleões, Marx notou que o primeiro foi uma tragédia, mas, o segundo, uma farsa. [6]

Ninguém deseja ver muitas farsas encenadas no palco da política internacional. A lenta desagregação do capitalismo de Estado dos anos 1970 foi seguida por um colapso catastrófico de seu sucessor neoliberal em 2008, um evento, ou uma série de eventos, que destruiu a credibilidade do neoliberalismo como uma doutrina econômica [7] e deixou os governantes do capitalismo global sem ideias. [8] Há atualmente profundos desacordos ao se questionar se o nível correto da atuação governamental deveria ser nacional ou internacional. Há também um desaparecimento mundial das políticas de centro-esquerda; a fragmentação dos sistemas de partidos nacionais, geralmente fazendo a formação de governos difícil senão impossível; e o simultâneo aumento da desigualdade e do endividamento ao redor das economias capitalistas desenvolvidas. Trump ganhou as eleições presidenciais americanas com o apoio de uma classe desorganizada e decadente, os trabalhadores industriais do centro dos EUA, que são comparáveis, à sua maneira, aos pequenos camponeses de meados do século XVIII de Marx. [9] Hillary Clinton se mostrou incapaz de forjar uma coalizão entre Wall Street e Main Street, ou entre a grande e a pequena burguesia, ou entre o Vale do Silício e os trabalhadores industriais, ou entre as forças do setor financeiro e Bernie Sanders. No lado oposto de um sistema político em decadência, o partido republicano se provou incapaz de preencher o vazio entre o velho republicanismo e o Tea Party, ou entre os modernizadores sociais e os fundamentalistas religiosos, ou entre os hedonistas urbanos e o puritanos rurais, ou entre os intervencionistas internacionais e os protecionistas nacionais.

Fissuras cresceram nas rachaduras, e um sistema com acúmulo de rachaduras abriu um caminho para um outsider como Trump capturar a nomeação republicana. Tivesse o establishment do partido Democrata se defendido tão fragilmente quanto o establishment do partido Republicano, [10] Trump talvez tivesse sido derrotado por Sanders.

A morte da centro-esquerda

No último quarto de século, a centro-esquerda fez um compromisso histórico com o internacionalismo, um movimento que tanto promove quanto exige uma modernização econômica e social. Agora ele está caindo em desuso. É contra esse pano de fundo que Trump e o trumpismo precisam ser entendidos. Nos anos 1990, a centro-esquerda depositou suas esperanças nos mercados internacionais desregulamentados para restaurar o crescimento e consolidar as finanças públicas. Um esforço mundial de restruturação industrial e social se seguiu. A competição internacional pressionou as economias nacionais a se tornarem mais eficientes. Os perdedores foram punidos com salários mais baixos e uma rede de seguridade social reduzida. Os vencedores foram recompensados com maiores lucros e menores impostos. Políticas públicas com esses efeitos dificilmente seriam vendidas para eleitores de centro-esquerda, então elas foram atribuídas à força natural e irresistível da globalização. Nesse sentido, a centro-esquerda esperava escapar da responsabilidade da dor infligida àqueles que a constituem. O amargo remédio não funcionou; e tampouco a centro-esquerda angariou imunidade política. Em todos os países do mundo capitalista desenvolvido, o número de perdedores aumentou até que empresários políticos sentiram a oportunidade e entraram na cena pública.

O surgimento dos trumpistas foi possível pelo declínio da centro-esquerda nos EUA, na Itália, na França, no Reino Unido, na Áustria, na Holanda, e até na Alemanha, onde os perdedores da antiga GDR (Deutsche Demokratische Republik) estavam entre os apoiadores precoces da novo partido de direita, o AfD (Alternative für Deutschland). Aqueles prejudicados pela acelerada internacionalização de suas sociedades se sentiram abandonados pelo seu Estado nacional. As elites no comando dos assuntos públicos foram julgadas culpadas por terem entregue a soberania nacional para organizações internacionais. Essas alegações eram amplamente verdadeiras. O neoliberalismo global enfraqueceu o Estado-nação, e, com ele, a democracia nacional. Os cidadãos mais afetados por esses eventos tiveram apenas seus votos para expressar seu desprazer. Trumpism took off, fueled as much in the United States as elsewhere by popular irritation at the vast public celebration of internationalization. Economic and cultural elites entered an international space rich in their rights, at ease both in and out of national states. If democracy is understood as the possibility of establishing social obligations toward those luckless in the marketplace, the global elites had entered into, or created, a world in which there was a great deal of lucklessness and not many obligations. For those plotting to take advantage of growing discontent, nationalism appeared as an obvious formula both for social reconstruction and political success. The winners and the losers of globalism found themselves reflected in a conflict between cosmopolitanism and nationalism. The old left having withdrawn into stateless internationalism, the new right offered the nation-state to fill the ensuing political vacuum. Liberal disgust at Trumpian rhetoric served to justify the withdrawal of the left from its constituents, and to explain its failure to help them express their grievances in civilized public language. Discontent grew fast.

A presidência de Trump é tanto o resultado quanto o fim da versão americana do neoliberalismo. Tendo começado a desmoronar na era George W. Bush, o regime neoliberal conseguiu ganhar novamente a aparência de vitalidade sob Barack Obama. Com sua saída, ele tendia a colapsar sob o peso de suas contradições, e, de fato, de seus absurdos. A audaciosa tentativa de Clinton de se apresentar como um advogada daqueles americanos que “trabalham duro e respeitam as leis”, enquanto coletava uma fortuna em honorários de palestras no Goldman Sachs, estava destinada a falhar. Também destinada ao fracasso estava a insistência de Clinton de que era um dever histórico dos cidadãos americanos elegê-la como a primeira mulher presidente. Banheiros transgêneros enfureceram todos, exceto aqueles que buscavam acesso a eles, independentemente da tentativa da administração Obama de retratar o acesso aos banheiros como um direito civil. [11] No fundo, ninguém se importava.

Classe, status, partido

Há quase um século, Max Weber operou uma distinção entre classe e status. [12] Classes são constituídas pelo mercado; grupos de status, por um estilo de vida particular e uma reivindicação específica por respeito social. Grupos de status são comunidades sociais locais; classes se tornam classes apenas através da organização. A máquina eleitoral Trumpista mobiliza seus apoiadores como um grupo de status. Ela apela para seu senso compartilhado de honra mais do que para seus interesses materiais [13]. Nisso, o Trumpismo segue o neoliberalismo do New Labour e dos New Democrats, que deletaram a noção de classe de seu vocabulário político. Em seu lugar, eles redefiniram a luta por igualdade social como sendo uma luta pela identidade, ou seja, pelo reconhecimento simbólico e pela dignidade coletiva de um número indefinido de grupos de status cada vez mais específicos. O neoliberalismo não conseguiu antecipar que a perpétua descoberta de novas minorias por especialistas e políticos poderia fazer a desmobilizada classe trabalhadora se sentir abandonada em favor de interesses especiais. Sua descoberta e sagração inevitavelmente rebaixaram os interesses da classe trabalhadora. À medida que os EUA foram transformados em uma política de grupos de status, a classe trabalhadora perdeu seu sentido de identificação com o país como um todo, apenas porque é essa a classe, reduzida a uma identidade e interesse entre outros, que agora é culpada por uma rica variedade de maldades sociais, do racismo e do sexismo à violência armada e ao declínio educacional e industrial. [14]

Com a decolagem da propaganda Trumpista, a centro-esquerda ficou satisfeita em informar os americanos desprovidos de uma identidade acessível que eles estavam prestes a se tornar “uma minoria em seu próprio país”. Mas eles acharam irritante o prognóstico de sua irrelevância; e a celebração desse prognóstico, intolerável. O trumpismo os prometeu uma restauração de sua honra. O país seria reconstruído como um grupo de status unido, defendendo sua integridade contra os imigrantes e as elites urbanas. Exatamente como a política de identidade da centro-esquerda, o trumpismo tem tudo a ver com honra coletiva. Diferentemente da centro-esquerda, ele fala para uma maioria silenciada de uma classe desorganizada. Uma classe que está ressentida por ter sido relegada ao status de uma minoria moral, menos digna de respeito do que as outras minorias em razão de ofensas passadas contra o novo espírito de abertura e diversidade.

A dinâmica eleitoral da vitória de Trump nos Estados Unidos é agora bem compreendida. A eleição foi tanto sobre Clinton perdendo quanto sobre Trump ganhando. Ao contrário de outros trumpistas, Trump não precisou provocar um aumento na participação dos eleitores para vencer. [15]Tendo insultado os apoiadores de Trump como um “conjunto de deploráveis”, Clinton fez suas apostas em uma coleção de grupos de status definidos por cor, gênero, origem nacional, identificação sexual, e outros. Ela cedo concedeu Pensilvânia, Ohio, Michigan e Wiscosin. Clinton também confiou no apoio financeiro de Wall Street e do Vale do Silício, bem como uma esperada infusão de glamour de suas apoiadoras vindas da indústria do entretenimento, como Meryl Streep e Beyoncé. Como uma campeã desses americanos médios, que trabalham duro e respeitam as regras, Clinton se sentiu envergonhada de sua riqueza e das maneiras suspeitas pelas quais ela a alcançou.[16] Trump recebeu a fatia decisiva de seus votos das vítimas da desindustrialização no centro do país. [17]

O resultado foi uma divisão quase perfeita do horizonte político entre as maiorias de Trump no centro e as maiorias de Clinton ao longo das costas. Clinton focou mais em status do que em classe, a classe foi deixada para Trump, que em um ato de gênio político instintivo, fez da classe outro desonrado e esquecido grupo de status. Isso o capacitou a atrair eleitores que ainda estavam em circunstâncias econômicas relativamente confortáveis mas que já não se sentiam suficientemente respeitados pelas forças de modernização cultural. A persona púbica vulgar e indecente de Trump e sua aparência ultrajante não os impediram de apoiá-lo, aparentemente porque o que ele disse estava mais próximo de seus corações do que um discurso público convencional. Seus eleitores tampouco foram dissuadidos pelo fato de ele não ser um especialista em políticas públicas. Apoiá-lo foi uma expressão da perda de sua fé na capacidade da política convencional de resolver problemas. [18] Enquanto o apelo de Trump tinha a ver com respeito, a rejeição de Clinton foi um problema de classe. Mulheres brancas da classe trabalhadora votaram em Trump 62:34, [19] e, comparada a Obama, Clinton perdeu entre os negros e latinos, como também entre os asiáticos. [20]

Cidades versus interiores

Entre as rachaduras estruturais nas sociedades contemporâneas nas quais o trumpismo floresceu está uma clivagem que cresce rapidamente entre as cidades e o interior mais ou menos rural e desindustrializado. Cidades são o crescente polo das sociedades pós-industriais. Elas são internacionais, cosmopolitas, e politicamente pró-imigração, em parte porque seu sucesso na competição global depende de sua habilidade em atrair talento de todas as partes do mundo. Cidades também necessitam de uma oferta de trabalhadores pouco qualificados e com baixa remuneração, que limpam escritórios, providenciam segurança, preparam refeições nos restaurantes, entregam encomendas, e cuidam das crianças de famílias com carreira dupla.[21] A classe média branca já não suporta mais bancar os aluguéis urbanos sempre em alta; eles se encontram vivendo em crescentes comunidades de imigrantes, ou partem e se mudam para pequenas cidades do interior. [22]

A separação geográfica tem consequências culturais e políticas de profunda divisão. Elites urbanas podem facilmente se imaginar mudando de uma cidade global para outra; indo de Nova Iorque para Ames, mas Iowa é outra questão. Fronteiras nacionais são menos salientes para as elites urbanas do que as fronteiras informais entre comunidades urbanas e rurais. À medida que os mercados de trabalho urbanos se tornam globais, os candidatos a emprego vindos do interior são obrigados a competir com talentos de todo o mundo. A globalização cria um incentivo para governos e empregadores não investirem demais em educação. Por que se preocupar? Eles sempre podem caçar mão de obra qualificada em outros países. Essa é a maneira pela qual os EUA combinam um dos piores sistemas educacionais do mundo com as melhores universidades e centros de pesquisa.

Há uma barreira cultural quase insuperável entre o cidade e o campo, algo conhecido há muito tempo pelos habitantes de um e de outro. Os citadinos desenvolveram uma perspectiva multicultural, cosmopolita. Conforme seus valores convergem com seus interesses, o que costumava ser um liberalismo social se moveu em direção a um liberalismo de livre mercado. É claro que, visto da perspectiva das províncias, o cosmopolitismo da elite serve aos interesses materiais de uma nova classe de vencedores globais. O desprezo mútuo é reforçado pelo isolamento autoimposto, ambos os lados falando apenas para e dentro de seus campos, um através da mídia, localizada nas cidades, o outro por meio de canais de internet privados construídos por eles mesmos.

Política do ressentimento

A modernização neoliberal veio junto com um programa de reeducação cultural. As reformas econômicas neoliberais e aguerra da esquerda-liberal contra a tradição, empreendida pelas elites metropolitanas, estão em conexão. A primeira serve como cobertura para a segunda. Ela rouba espaço da política econômica no debate público. Mas ambas versam sobre uma redefinição da solidariedade social e da igualdade econômica. Comunidades sociais baseadas em um sentimento compartilhado estão sempre correndo o risco de abrigar ou recair em uma atitude hostil contra o progresso capitalista. O neoliberalismo defende a conquista individual sobre a solidariedade coletiva. Nos termos da análise seminal de T.H. Marshall sobre o Estado de Bem-Estar europeu, isso equivale a uma reversão do movimento de direitos sociais de proteção coletiva baseados na cidadania em uma comunidade política (nacional) para direitos civis de igualdade de participação em mercados (supranacionais). [23]

Nações são comunidades imaginadas. [24] A construção das nações implicou na criação de instituições formais que estendem os laços de solidariedade comunal, previamente informais, a todos os conacionais. A globalização favoriza o acesso igual de todos aos mercados mundiais. Ela não tem nenhuma utilidade para a cidadania nacional ou para os cidadãos nacionais. Um outro sistema moral está em funcionamento. [25] A reeducação cultural é necessária para apagar a solidariedade tradicional e substitui-la por uma moral de igualdade de acesso e de oportunidades, independentemente de status (tais como “raça, credo, e origem nacional”). A justiça existe tão logo o acesso ao mercado é equalizado. A substituição da solidariedade de classe pelos direitos de status exige ajuste flexível às mudanças nas condições de mercado. A moralidade da mercantilização implica em uma deslegitimação categórica das distinções. A empatia e a benevolência se tornaram deveres morais que dizem respeito a todos, e não apenas aos vizinhos. Direitos sociais são deslocados pelos direitos civis, um processo que, como Hannah Arendt viu claramente em 1948, inevitavelmente dilui, até a quase invisibilidade, qualquer sistema de efetiva proteção social.

Para a política doméstica de um Estado-nação que se submete a uma redefinição neoliberal, isso tem profundas consequências. Classes que lutam pela regulação dos mercados dão lugar a grupos de status que lutam pelo acesso a eles. Não estão em questão os termos de troca e de cooperação entre interesses de classes conflitantes, ou os limites da exploração de uma classe pela outra, mas o fato de grupos de status com acesso já consolidado ao mercado excluírem da competição outros grupos que não possuem esse acesso estabelecido. A moralidade política reside na abertura da concorrência pela remoção de barreiras para a entrada, não na contenção através de limites institucionais para a mercantilização. Para grupos que já possuem acesso ao mercado, isso significa um dever moral, em nome da igualdade, de se permitir ser desafiado pelos recém-chegados, quem quer que eles sejam – cidadãos, imigrantes, ou residentes de outros países –, correndo o risco de serem superados e terem suas vidas interrompidas como um resultado.

A mudança de classe para status deixou os remanescentes da tradicional classe trabalhadora profundamente ressentidos. [26] O trumpismo é a erupção política tardia desse ressentimento. Nos EUA, no Reino Unido, França, Suécia, e Alemanha, a velha classe trabalhadora, reunida em regiões decadentes e eliminada das brilhantes cidades globais, sentiu-se por algum tempo marginalizada por aquilo que entende como uma nova política de direito por vitimização. [27] Seu isolamento moral e econômico foi agravado pela mídia e suas campanhas de reeducação. Arlie Russell Hochschild descreveu as divisões profundas entre comunidades americanas tradicionais e a cultura urbana hegemônica que declara que é um dever moral dos cidadãos ampliar os sentimentos comunitários de compaixão, solidariedade e fraternidade de seus vizinhos e amigos para todos, da espécie para o gênero humano e, então, para a humanidade. [28] Aqueles incapazes de cumprir com a demanda por compaixão conspícua são em larga medida considerados como moralmente defeituosos. É melhor ficar em silêncio. [29] A resistência é punida com a marginalização cultural, que, em um exercício especialmente delicado de ironia social, está em si mesmo se tornando uma forma de vitimização.

Na medida em que o trumpismo é um movimento cultural, ele representa uma reação contra a degradação de uma classe desorganizada; e ele celebra, e geralmente sanciona, um desejo ardente por reabilitação simbólica. A ascendência de Trump, em particular, coincide com uma dramática perda nacional de status na grande arena internacional. A classe trabalhadora americana apoiou fortemente as guerras empreendidas pelos Estados Unidos, e pode ver que ao nunca vencê-las, os Estados Unidos sempre as perderam. A pátria americana sempre esteve emocionalmente envolvida com o poder global. [30] Derrotas sucessivas nessas guerras deixaram profundas feridas em sua consciência coletiva, assim como fez o respeito indiferente dispensado aos veteranos que retornavam dos campos de batalha. Que o país com o mais poderoso exército do mundo tenha tão frequentemente se mostrado incapaz de prevalecer sobre os inimigos, a pátria atribuía a uma liderança covarde e fraca. O orgulho ferido resultou em simultâneos clamores para uma completa retirada de aventuras externas, e para um uso irrestrito da força militar. Trumps parecem emergir facilmente em países com passado colonial – EUA, França, o Reino Unido, a Holanda, e também a Rússia. As lembranças coletivas de estar no centro do mundo, ou ao menos de um mundo próprio, parecem fazer mais difícil aceitar um rebaixamento ao status de um país entre outros.

O wie ist alles fern und lange vergangen [“Oh, como tudo está longe e há tanto transcorrido”] é um sentimento que um povo inteiro pode compartilhar.

Sobre a capacidade de governar do trumpismo

Trump pode governar? Le Pen conseguiria? E Grillo? Em um sistema de governo personalista, defeitos pessoais importam: narcisismo, volubilidade, déficit de atenção. Ainda veremos se Trump tem o tempo, e, de fato, a vontade, para estudar dossiês ou até mesmo para ouvir conselhos. [31] A performance de Trump durante suas primeiras semanas no ofício foi errática, bagunçada e incompetente. No início de sua presidência, parecia concebível que ele pudesse renunciar na primeira metade do mandato, talvez minado pelas agências de inteligência que ele havia insultado durante sua campanha. Ele poderia também ser forçado a renunciar em razão de conflitos de interesse, ou se declarar impedido de servir, sob a 25ª emenda. [32] Os nomeações de seu gabinete, por outro lado, indicam uma tentativa de reconciliação tanto com os militares quanto com o establishment de segurança nacional, comprando a estabilidade no cargo com concessões políticas, especialmente sobre a OTAN, a Rússia, e em assuntos globais em geral.

Um presidente eleito pode se afastar de sua retórica de campanha sem punição popular. Nisso, Trump pode aprender com seu antecessor. Mas mesmo se Trump aprender como governar, não há razão para acreditar que ele irá ser melhor que seus predecessores em lidar com as crises do capitalismo global e do sistema internacional que o levou ao poder. Aumento da desigualdade, elevação da dívida e baixo crescimento não são facilmente curados. O trumpismo é, afinal de contas, uma expressão da crise, não uma solução para ela. Se os trumpistas se sentem atrelados a suas promessas eleitorais, eles precisam colocar um fim à reforma neoliberal. Isso não irá pôr fim ao impasse entre o capitalismo e a sociedade. Na ausência de um compromisso de classe estável entre capital e trabalho, a política está fadada a se tornar instável. Talvez o trumpismo fará sua despedida do neoliberalismo e do livre comércio palatável para o capital aumentando o crédito, a dívida, e a inflação – outra política com a intenção de comprar tempo e nada mais. Ninguém sabe o que os trumpistas farão para fortalecer seu apoio político se o nacionalismo econômico não conseguir produzir os resultados prometidos.

Notas:

[1] Este artigo não é sobre o populismo em geral, mas apenas sobre um subtipo dele, que eu chamo de trumpismo. O populismo tem uma longa e por vezes digna história, que remonta à era progressista dos EUA com o Minnesota Famer-Labor Party e “Fighting Bob” La Follette’s Progressive Party – e em todo caso há populismo de esquerda assim como de direita (Ernesto Laclau, On Populist Reason (London: Verso, 2005); Chantal Mouffe, On the Political (Abingdon: Routledge, 2005). Hoje o populismo se tornou uma palavra pejorativa, usado pelos partidos ligados ao establishment da democracia capitalista do pós-guerra para não dar crédito para seus novos desafios, de ambos os lados do espectro político.

[2] Da mesma forma, trumpistas europeus insistem, com mais e mais sucesso, nas questões acerca do que exatamente a “união cada vez mais estreita do povo europeu”,tal como previsto pelos tratados da União Europeia, significa e o que o status dos Estados-nação dentro dessa união deve significar – um assunto que é estritamente abafado na Europa oficial.

[3] Karl Marx, The Eighteenth Brumaire of Louis Bonaparte (New York: Mondial 2005).

[4] Dentro do marxismo ortodoxo, o conceito de bonapartismo representa o mais significativo desvio do paradigma fundamental de base-superestrutura.

[5] Como Marx escreve sobre Bonaparte: “Apenas porque era nada é que ele poderia ser qualquer coisa.” Citado por Francis Wheen, Karl Marx: A Life (London: W.W. Norton & Co., 2001), p.157.

[6] “Hegel nota em algum lugar que todos os grandes fatos e personagens da história mundial aparecem, por assim dizer, duas vezes. Ele se esqueceu de acrescentar: a primeira como tragédia, a segunda, como farsa.” Karl Marx, The Eighteenth Brumaire of Louis Bonaparte, chap.1.

[7] Jonathan Ostry, Prakash Loungani, and Davide Furceri, “Neoliberalism: Oversold?” Finance & Development 53, no. 2 (2016): 38–41.

[8] See Wolfgang Streeck, Buying Time: The Delayed Crisis of Democratic Capitalism(London: Verso Books, 2014); Mervyn King, The End of Alchemy: Money, Banking, and the Future of the Global Economy (London: W. W. Norton & Company, 2016).

[9] O conceito de desorganização social é ilustrado no capítulo 7 do Dezoito Brumário onde Marx explica por que os camponeses franceses, a principal fonte de apoio de Luís Napoleão, eram incapazes de governar como uma classe ainda que eles fossem a vasta maioria dos cidadãos franceses: “Cada família camponesa tomada individualmente é quase autossuficiente, produz diretamente a maior parte do que necessita, e assim adquire seus meios de vida mais através da troca com a natureza do que em relação com a sociedade... Logo a grande massa da nação francesa é formada pela simples adição de magnitudes homólogas, assim como batatas em um saco formam um saco de batatas.” (Karl Marx, The Eighteenth Brumaire of Louis Bonaparte, chap. VII.)

[10] O que, dada a desordem de seu próprio campo, talvez tivesse ficado feliz com Clinton ganhando a presidência e depois atendendo às demandas núcleo duro do partido Republicano: o capitalismo financeiro.

[11] Para um testemunho ocular fascinante de como Obama experimentou e reagiu à derrota do projeto neoliberal de centro-esquerda, ver David Remnick, “It Happened Here: A Presidente Confronts na Election that Changes Everything – and Imperils his Legacy”, The New Yorker, November 28, 2016, 54–65.

[12] Max Weber, Economy and Society: An Outline of Interpretive Sociology, ed. Günther Roth and Claus Wittich, 2 vols. (Berkeley: University of California Press, 1978).

[13] É por isso que líderes Trumpistas podem ser, e geralmente são, pessoas de muita riqueza mesmo que seus seguidores sejam pobres; ver Luís Bonaparte e seus apoiadores camponeses. Por outro lado, enquanto líderes como Trump podem ser ricos, eles são tipicamente considerados novos ricos por famílias de grande e antiga riqueza.

[14] A política Trumpista de honra e respeito tem um desempenho diferente em ambientes nacionais distintos. Uma razão por que os alemães do leste, generosamente subsidiados pelo governo federal, tão frequentemente votam no Die Linke ou na AfD parece ser que eles acham que suas biografias não são adequadamente apreciadas no país unificado.

[15] Em 2012, 90 milhões de votantes de 220 milhões ficaram em casa (41%), em 2016 foram 93 milhões de 230 milhões (40%).

[16] Há relatos de que a riqueza da família Clinton cresceu de menos 8 milhões de dólares em 2000 para aproximadamente 110 milhões de dólares em 2016. Tom Gerencer, “Hillary Clinton Net Worth,” Money Nation, November 1, 2016. Desatrelar os recursos da família daqueles da Clinton Foundation parece difícil – o que sem dúvida contribuiu para suspeitas generalizadas de corrupção, levantadas pelo servidor de e-mail privado usado por Clinton enquanto era Secretária de Estado, e as taxas cobradas por Clinton para fazer discursosno Goldman Sachs (675 mil dólares por três aparições) com conteúdos que ela se recusou a revelar. Que Trump seja muito mais rico que Clinton aparentemente não teve importância para seus eleitores porque ele fez sua fortuna, no sentido de que ele não a herdou, como um homem de negócios mais do que como um político – o primeiro sendo considerado legítimo, e, o segundo, não.

[17] Sobre as devastações que assolaram a classe trabalhadora americana em razão da desindustrialização, ver o mais recente estudo de Anne Case e Angus Deaton, “Mortality and morbidity in the 21st Century,” Brookings Papers on Economic Activity, March 17, 2017.

[18] Como David Pual Kuhn, com base em dados de pesquisa, escreveu no The New York Timesem 26 de dezembro de 2016:“Sem rodeios, grande parte da classe trabalhadora branca decidiu que o Sr. Trump poderia ser um idiota. Ausente qualquer outro campeão, eles apoiaram o idiota que achavam que estava mais do seu lado - isto é, sobre as questões que mais os preocupavam.”David Paul Kuhn, “Sorry, Liberals. Bigotry Didn’t Elect Donald Trump,” The New York Times, December 26, 2016.

[19] Indicando que a tentativa de forjar um grupo de status politicamente unitário de mulheres de diferentes classes falhou. Mulheres negras (e imigrantes) talvez tenham notado que seus baixos salários como trabalhadoras eram instrumentos para o progresso da carreira das mulheres brancas.

[20] Em relação a isso, o impacto das chamadas fake news só pode ter sido minúsculo. A teoria das fake news sobre o trumpismo pressupõe que mentiras são hoje mais importantes na política do que eram no passado; que fatos reais são facilmente distinguíveis de fatos falsos; e que líderes políticos mais civilizados, como Bill Clinton, George W. Bush e Barack Obama, governaram sem mentiras. Há razões para acreditar que a verdade como moeda política foi degradada pelo mainstream político a tal ponto que os outsiders como Trump não são mais um problema para a maioria dos eleitores. De qualquer forma, se houve algo falso na campanha de 2016, claramente isso inclui a autoapresentação de Clinton como uma candidata representativa da classe trabalhadora americana, em oposição a uma classe política que se enriquecia.

[21] Para a descrição de um observador participante sobre a vida de imigrantes legais e ilegais em uma das maiores cidades globais de hoje, ver Ben Judadh, This is London: Life and Death in the World City, London, Picador, 2016.

[22] Onde eles continuaram social e espacialmente segregados, assim como os grupos imigrantes em seu novo país. Para o caso da França, essa segregação – e seu efeito no comportamento políticoe eleitoral – é impressionantemente descrita por Christophe Guilluy em Le Crépuscule de la France d’en haut, Paris, Flammarion, 2016.

[23] T. H. Marshall, “Citizenship and Social Class,” in Class, Citizenship and Social Development: Essays by T. H. Marshall, Garden City, NY, Doubleday, 1964, 71–134.

[24] Benedict Anderson, Imagined Communities: Reflections on the Origin and Spread of Nationalism, London, Verso, 2006.

[25] Com efeito, isso se sobrepõe ao cosmopolitismo urbano contemporâneo no sentido de rejeitar o nacionalismo e na verdade qualquer outra forma de comunitarismo não apenas como datado mas como moralmente repreensível.

[26] Para o caso dos EUA, ver Katherine Cramer, The Politics of Resentment: Rural Consciousness in Wisconsin and the Rise of Scott Walker, Chicago, University of Chicago Press, 2016. O livro de Cramer retrata com um grau de detalhamento magistral a consciência rural dos moradores de pequenas cidades em Wiscosin que em 2016 se tornaram apoiadores de Trump. O conceito de ressentimento remonta a Friedrich Nietzsche, que se refere a coléricas fantasias de vingança e de restauração da justiça nutridas por derrotados e perdedores eternamente impotentes.

[27] O contraste entre políticas de identidade e a luta de classes em um sentido amplo, seja através de sindicatos ou nas urnas, é que na luta de classes a solidariedade está mobilizada a serviço de interesses próprios enquanto na política de identidade ela significa sacrificar-se pelo interesse de outros grupos. O altruísmo da política de identidade pode então se tornar mais fácil para os que estão economicamente melhor colocados. Para aqueles que não pertencem a esse grupo, ela pode parecer como uma forma de camuflar interesses egoístas sob o manto da caridade – por exemplo, se as classes médias urbanas, economicamente dependentes de uma rica oferta de mão de obra barata, são favoráveis à abertura das fronteiras para a imigração.

[28] Arlie Russell Hochschild, Strangers in Their Own Land: Anger and Mourning on the American Right, New York, The New Press, 2016.

[29] No caso da Alemanha, os destinatários de qualquer tipo debenefício da seguridade social estão propensos a comparar seus direitos àqueles de refugiados ou daqueles que procuram asilo,que são geralmente muito maiores, fazendo com que eles se sintam abandonados por seu governo em favor de estrangeiros.

[30] Parece que aqui estavam as raízes do movimento de milícia dos anos 1990, provocada involuntariamentepela conversa de George H.W. Bush a respeito de uma nova ordem mundial depois da desaparecimento do comunismo. Espalharam-se rumores de que as tropas da ONU estavam prestes a desarmar a “milícia bem ordenada”dos cidadãos americanos. O movimento culminou em um ataque a bomba no Federal Building na cidade de Oklahoma em 1995 que matou 161 pessoas. É concebível que o trumpismo americano inspire-se em parte em sentimentos similares aos do movimento miliciano dos anos 1990.

[31] Mas e Obama? Ele fez isso? Que se lembre que durante sua presidência ele encontrou tempo para jogar nada menos que 38 rounds de golfe todo ano. Sam Weinman, “We’ve Crunched the Numbers, and It’s Official: President Obama Played a Lot of Golf While in Office,” Golf Digest, January 19, 2017.

[32] De acordo com a seção 4:“Sempre que o vice-presidente e a maioria dos diretores principais dos departamentos executivos ou de qualquer outro órgão que o Congresso possa, por lei, estipular, transmita ao presidente pro tempore do Senado e ao presidente da Câmara dos Deputados sua declaração escrita de que o presidente não pode cumprir os poderes e deveres do seu cargo, o vice-presidente assumirá imediatamente os poderes e deveres do cargo como presidente em exercício”.

Sobre o autor

Wolfgang Streeck é sociólogo alemão e diretor do Instituto Max Planck para o Estudo de Sociedades.

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