30 de agosto de 2018

Reservas, para que te quero?

Uso de reservas internacionais para pagamento de dívida não parece uma boa ideia

Laura Carvalho

Folha de S.Paulo

Reuters

Após se aproximar de sua máxima histórica, o dólar fechou em leve queda na última quarta-feira (29), a R$ 4,11. Em meio à reversão dos fluxos financeiros internacionais, a desvalorização acumulada do real já é de 24,27% no ano.

Apesar do desemprego elevado, do baixo crescimento dos salários e da inflação próxima ao piso da meta, analistas já preveem uma elevação da taxa de juros básica pelo BC para evitar uma perda de valor ainda maior da moeda nacional.

A medida, que pode ajudar a deter a saída de capitais especulativos, ajudaria a conter os efeitos da alta do dólar sobre a inflação e a dívida em moeda estrangeira do setor privado. O problema é que os juros mais altos também servem para tornar a recuperação da economia brasileira ainda mais lenta.

Além de pôr em xeque a hipótese de que a aprovação da PEC do teto de gastos em 2016 e a maior credibilidade da equipe econômica é que seriam responsáveis pela queda de patamar na taxa de juros e a valorização do real, o episódio traz à tona discussões mais profundas sobre o (não) funcionamento do regime de metas de inflação.

Na prática, desde seu estabelecimento em 1999, a inflação só ficou dentro da meta e os juros só caíram quando o cenário externo ajudou. Quando os movimentos nos mercados financeiros mundiais foram no sentido de trazer capitais especulativos para o país, o dólar se manteve baixo, contribuindo para ancorar a inflação. Quando houve saída de capitais, o dólar subiu e a inflação acelerou, quase sempre ultrapassando o teto da meta.

O problema é que a maior parte desses movimentos não se deve à política econômica doméstica, e sim a ações no centro do capitalismo financeiro mundial sob as quais não temos nenhum controle.

No artigo de 2015 intitulado "Dilemma not Trilemma: the global financial cycle and monetary policy independence", Hélène Rey, da London Business School, mostrou como a taxa de juros básica fixada pelo banco central americano determina boa parte dos ciclos financeiros globais, restringindo a autonomia da política monetária de cada país.

A autora concluiu que, ao contrário do postulado na hipótese conhecida nos manuais de macroeconomia como trilema da política econômica que estabelece que a política monetária só é independente em meio à mobilidade de capitais caso a taxa de câmbio seja flutuante, os ciclos financeiros globais fazem com que os bancos centrais na periferia não tenham autonomia para fixar a taxa de juros doméstica, independentemente do regime de câmbio implementado.

Nesse caso, como aponta Rey, o ganho de autonomia para a política monetária dependeria de algum tipo de controle sobre os fluxos de capitais para dentro e/ou para fora do país.

Na ausência de tais controles, o que tem nos salvado e evitado uma alta ainda maior dos juros —ou o surgimento de uma crise cambial como a de 1999— é o alto volume de reservas internacionais acumulado nos anos 2000, bem como o baixíssimo percentual de dívida pública denominada em moeda estrangeira.

Países com situação muito menos confortável de reservas e dívida externa, como Argentina e Turquia, têm sofrido ainda mais os impactos desta fase do ciclo financeiro global. No último mês, enquanto o real perdeu 10,64% de seu valor frente ao dólar, a desvalorização do peso argentino chegou a 24,12%, e a da lira turca, a 33,06%.

Em meio a tais evidências, o uso de reservas internacionais para pagamento de dívida pública interna ou realização de investimentos públicos em moeda doméstica, tal qual proposto por candidatos da centro-esquerda, não parece uma boa ideia.

Sobre a autora



Professora da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP, autora de "Valsa Brasileira: do Boom ao Caos Econômico".

28 de agosto de 2018

A grande traição no Equador

O presidente do Equador, Lenin Moreno, foi eleito para continuar a Revolução Cidadã de Correa - mas, em vez disso, decidiu desmantelá-la.

Entrevistado por
Pablo Vivanco

Uma entrevista com
Guillaume Long

Jacobin

Lenin Moreno na Assembleia Nacional em Quito, em maio de 2018. (Equipe de Fotografia Assembleia Nacional/Flickr)

Tradução / Em pouco mais de um ano, a paisagem política no Equador mudou dramaticamente.

Por mais de uma década, a Revolução Cidadã iniciada com Rafael Correa deu grandes passos na redução da pobreza e desigualdade, inclusive tirando da rua e colocando na escola centenas de milhares de crianças, ao mesmo tempo em que aumentava significativamente a classe média equatoriana. 

O país também alcançou estabilidade política e social, depois dos anos de agitação que se seguiram à crise bancária de 1998.

Contudo, a Revolução Cidadã não se deu sem detratores e contradições, incluindo discussões e protestos sobre direitos reprodutivos, indústria extrativa e, mais recentemente, escândalos de corrupção envolvendo figuras-chave do governo. 

Apesar disso, nas eleições de 2017 o Equador parecia ter resistido à tendência de vitória da direita em toda a América Latina. O candidato da Aliança PAIS de Correa, Lenin Moreno, foi eleito numa plataforma de continuidade – mas começam a surgir sinais de uma divergência iminente. 

Moreno e Correa são agora inimigos ferozes, com o governo de Moreno procurando prender seu ex-aliado como fez com o último vice-presidente de Correa, Jorge Glas. A Aliança PAIS separou-se e os aliados de Correa ainda não foram autorizados a registrar um novo partido.

O governo de Moreno aliou-se também com forças políticas da direita para aprovar medidas significativas de “austeridade” e liberalização, enquanto muda a política externa do país para uma disposição amistosa com os EUA. 

A mudança espetacular – que Correa considerou “traição” ou “golpe” – deixou muita gente perplexa.

Guillaume Long foi o último ministro das Relações Exteriores de Correa. Foi também o líder de assuntos internacionais da Aliança PAIS, e encabeçou os esforços para criar um amplo espaço aos partidos de esquerda latino-americanos convocando a Cúpula de Progressistas da América Latina (ELAP). Falou longamente à Jacobin sobre o que acontece no Equador e o estado da esquerda na região.

Pablo Vivanco

As reformas politico-econômicas que, surpreendentemente, foram iniciadas por Lenin Moreno, assim como o rompimento ocorrido na dirigente Aliança PAIS, são exemplos das mudanças tectônicas que estão acontecendo na política do país. O que explica o abandono da lealdade e da plataforma eleitoral de Lenin e seus partidários, muitos dos quais haviam apoiado Correa e a Revolução Cidadã?

Guillaume Long

Há vários fatores internos, o primeiro, é claro, sendo a escolha do sucessor de Correa, pelo próprio Correa, um erro significativo. Entendo que nasceu de boas intenções, quando Correa decidiu não concorrer novamente.

Esse deveria ser um movimento muito democrático. Era provável que Correa vencesse, por outro lado Lenin lutou para vencer, mas venceu com os votos de Correa. Se fizermos uma análise rigorosa do voto a Moreno em 2017, veremos que foi basicamente dos bastiões de apoio popular ao Correísmo.

Mas a ideia era ter alguém que fosse mais de centro, porque tivemos muitas políticas polarizadoras, particularmente em 2015, com um inesperado imposto sobre terras e heranças, que não existia antes. A direita mobilizou-se intensamente e pensamos que alguém como Lenin Moreno, um caráter benevolente que prezava o diálogo, institucionalizaria as coisas. Talvez Correa pudesse até mesmo voltar, quatro anos depois, com uma agenda mais radical, e continuar a transformação.

Mas penso também que foram cometidos vários erros pelos governos de Correa, em particular nos últimos anos. Isso deu mais poder a Lenin, porque havia uma noção de que Correa criava muito conflito. Os erros foram mais estéticos que estruturais, e fizeram de Lenin não apenas um herdeiro de Correa, mas uma alternativa viável para setores que não demonstravam simpatia por Correa.

Quando Moreno afastou-se de Correa, nos primeiros meses, ele capitalizou esse gesto com pessoas que estavam fartas do estilo polarizador de Correa governar. Particularmente nas classes médias, havia um sentimento de que era tempo para um tipo de governo muito mais ecumênico, que pudesse ouvir, que fosse menos conflitivo. Claro, isso foi usado como plataforma para a recuperação do poder e para colocar um fim em todos os tipos de política, inclusive políticas redistributivas de que as elites discordavam.

Claro que houve também fatores exógenos. Os dois últimos anos de governo de Correa foram muito difíceis. Em 2014, a quebra das commodities afetou a economia muito seriamente. Isso significa que, ao invés de terminar seu mandato em alta, Correa terminou na baixa. Agora, paradoxalmente, eu diria que seu melhor governo foi entre 2014 e 2017, quando ele surfou na queda das commodities de forma muito inteligente. O Equador é o único país do seu tipo que não enfrentou uma grande crise por causa da queda das commodities.

Houve também um terremoto, o que contribuiu com o crescimento negativo, fatores de todo tipo. O Equador acertou em muitas coisas: manejou para sair da recessão por meio de investimentos antiausteridade, derrotando o neoliberalismo, demonstrando que a austeridade não funciona nos bons tempos, e funciona ainda menos quando os tempos são difíceis.

Mas as pessoas sentiram que houve uma desaceleração na economia, as coisas ficaram mais duras, ficaram difíceis. Isso permitiu que Lenin viesse com uma agenda de mudanças, mas mudanças que viraram as costas para as reformas, para a transformação, a redistribuição, e retornaram a um estilo conservador de governar, que implica muito menos polarização com as elites.

Nesse processo, Lenin ganhou o apoio da mídia. De repente havia essa enorme hegemonia reconstruída em torno de sua figura, o que lhe permitiu consolidar-se politicamente.

Então, por que as pessoas do projeto político de Correa acompanham Lenin? O governo de Correa sempre foi muito heterogêneo, diria que do Partido Comunista até o centro-direita, era amplo. Havia setores empresariais, mas também movimentos sociais, sindicatos, o Partido Comunista, o Partido Socialista e a Aliança PAIS, que é como um partido de massas, e dentro do PAIS há muitas facções.

Isso significava que a esquerda estava representada em sua totalidade. Correa era radical em certos aspectos, mas em outros era menos radical, incluindo aí seu catolicismo profundamente arraigado, que era problemático para certos setores de seu governo. Alguns desses setores viu Moreno como alguém mais secular.

Naquele momento havia a possibilidade de que Moreno se abriria para algumas dessas frentes, certas reformas de gênero, direitos sexuais e reprodutivos. Agora sabemos que isso não aconteceu. Poderíamos examinar algumas dessas acusações contra Correa, porque eu diria que, com a grande exceção do aborto, nas outras frentes o Equador deu importantes saltos nas questões de gênero e LGBT.

Mas havia uma percepção, em certos setores da esquerda, de que Moreno seria mais progressista nesses temas. Que talvez perdêssemos algum radicalismo no fronte econômico, mas ganhássemos em políticas identitárias.

Não aconteceu, mas esta é a razão pela qual eles o apoiaram.

Pablo Vivanco

Parece paradoxal que, por um lado, a situação atual resulte da fraqueza de Correa e de seu governo; mas por outro, ele poderia provavelmente vencer a eleição. Diante disso, como descreveria o estado da esquerda e da Revolução Cidadã no Equador, hoje?

Guillaume Long

Gostaria que a política fosse menos contraditória, porque as duas coisas são verdadeiras. Penso que Correa teria vencido, mas penso também que foi muito fácil montar uma plataforma anti-Correa. Havia dois amplos setores da sociedade – um que teria votado em Correa e outro que não teria votado em Correa. Penso que Moreno conseguiu eleger-se com uma metade, mas governa com a outra.

Eu diria que a esquerda é quase inexistente hoje, no governo. Aqueles setores que uniram-se ao governo de Moreno pouco a pouco se deram conta de que ele tinha uma agenda liberal, fundamentalmente. Estamos agora vendo todas essas leis entrar em vigor, basicamente trazendo um novo tipo de ajuste estrutural que se afasta do modelo de desenvolvimento que Correa e seu governo implementaram.

Agora todos os ministérios-chave estão nas mãos, não somente da direita, mas da linha dura, incluindo os conselheiros-chave do opositor de Moreno nas eleições de 2017. O novo ministro das finanças foi conselheiro financeiro na campanha eleitoral do opositor de Moreno.

Então, a esquerda ocupa postos marginais no governo do Equador. Tivemos outra demissão semana passada. Ele tinha as mãos amarradas. Houve algumas dúvidas se Moreno ainda podia ser considerado de esquerda, logo nos primeiros meses, inclusive internacionalmente. Mas penso que agora há consenso em todo lugar, inclusive fora do Equador, de que Moreno não constituiu um governo de esquerda e que, de todos as formas possíveis, economicamente, geopoliticamente, em termos de política exterior, é um giro conservador.

Onde está a esquerda? Na oposição. Alguns poucos pequenos partidos estão acompanhando Moreno, mas todos os outros estão hoje na oposição.

O que é incrível é a própria Aliança PAIS. Ela foi fundada por Correa, depois expropriada por Moreno, quando foram expulsas todas as pessoas-chave, os fundadores. Agora, é uma casca vazia. O PAIS foi durante anos o maior partido no Equador e no entanto desmoronou, porque está dividido, tanto em sua expressão parlamentar quanto entre os que permanecem leais a Correa e os que se vendem a Moreno, mas também em sua expressão de base. Nas comunidades de base, onde há menos interesses, menos salários envolvidos, menos poder e menos dinheiro para ser distribuido ao redor, obviamente, uma grande maioria dos apoiadores do PAIS permaneceu leal a Correa.

Isso significa que eles agora estão sem partido, porque o governo de Moreno e as instituições controladas por ele impediram Correa de criar um novo partido.

Moreno conseguiu controlar o PAIS, mas o partido agora é insignificante. Perdeu a maioria no Congresso, não por meio de votos, mas por causa de todos aqueles parlamentares que deixaram o partido. E assim Moreno perdeu a maioria e, perdendo a maioria, teve também que abraçar a direita, porque a única maneira de governar é com essa aliança, que o está pressionando a fazer ajustes estruturais neoliberais.

Assim, a esquerda está na oposição, obviamente dividida numa miríade de diferentes expressões, mas cada vez mais unida contra a virada neoliberal.

Há correistas inveterados, há correistas críticos. Algumas pessoas que eram muito favoráveis a suas políticas socioeconômicas e sua política externa, que fez nascer o Estado-nação soberano, foram críticos de outras coisas, por exemplo, a questão do aborto. Há diferentes tipos de correísmo, e há também a esquerda não correísta. Esta é mais marginal e menor, mas existe e agora estamos vendo pessoas fazendo oposição de esquerda a Correa, incluindo pessoas agressivamente anti-Correa que agora são agressivamente anti-Moreno. Então, a esquerda está se reconfigurando.

Pablo Vivanco

Você mencionou uma esquerda anti-Correa que está se voltando contra Moreno. A quem está se referindo?

Guillaume Long

A esquerda anti-Correa sempre foi pequena e de elite. O único setor não-elitista foi o movimento indígena CONAIE, em declínio acelerado, que, infelizmente, cogovernado por Lucio Gutierrez , vem decaindo. Ainda há alguns remanescentes indígenas, mas nunca foram importantes em termos eleitorais.

Depois há outro tipo de esquerda hard que se denomina maoista, embora eu pense que não tem nada de maoista nela. Está ligada aos sindicatos e ao relacionamento clientelista com o estado. Eram chamados Movimento Popular Democrático e agora são Unidade Popular. Sempre fizeram oposição a Correa, porque ele obviamente limpou os sindicatos e suas relações com o estado.

Não são contra Moreno porque ele lhes deu um grande espaço nos estados, de modo a não ter problemas.

Outros setores da esquerda, particularmente a esquerda liberal, certas elites, estão começando a tornar-se mais críticas. Pode-se, por exemplo, ver acadêmicos e economistas de esquerda, que pensavam que Correa não era suficientemente radical, que sempre faziam críticas à esquerda a Correa, sendo agora ainda mais críticos de Moreno.

Pablo Vivanco

Você vê a “traição” de Lenin como alguma coisa que foi se desenvolvendo, produto de um processo de divergência, ou pensa que houve algo mais nefasto envolvido?

Guillaume Long

Ninguém esperava que Moreno fosse idêntico a Correa, nem esperaríamos que obedecesse a Correa ou fosse seu fantoche. Qualquer pessoa eleita legitimamente deveria ter seu próprio programa de governo e isso era o que todos esperávamos. O que desejávamos, em vários sentidos.

Mas uma coisa é dizer “vou ser meu próprio homem, não uma marionete”, e outra bem diferente é implementar políticas que são exatamente contrárias às que ofereceu às pessoas em sua campanha política. Moreno está implementando o programa e promessas de seu opositor na campanha. Ele até disse diante das câmeras, em tom de brincadeira, que “estava meio que odiando” as pessoas que votaram nele.

Verdadeiros líderes democráticos devem estar conscientes de que são representantes da nação, da totalidade do eleitorado, e não somente daqueles eleitores que votaram nele, mas isso é muito diferente de dizer “estou começado a preferir as pessoas que votaram contra mim”.

Isso é contrário à ideia que há por trás da democracia representativa, de que você tem um programa, faz promessas e então, se é eleito, implementa esse programa. Se não o faz, o que está na verdade dizendo é que está mentindo, que mentiu durante a campanha, que seu programa foi uma mentira, suas promessas foram uma mentira.

Não se pode dizer, como Moreno, “sou a favor da Revolução Cidadã, o que fizemos é realmente importante em termos de nossa soberania, em termos de justiça e redistribuição social” e depois se aproximar dos Estados Unidos, querer expulsar Julian Assange da embaixada, aderir à Aliança do Pacífico, colocar um fim ao processo de paz entre o Exército de Libertação Nacional (ELN) e o governo colombiano no Equador e implementar um agressivo programa de ajuste estrutural neoliberal.

Não se trata apenas de rivalidade pessoal entre dois líderes. Isso é algo maior, que tem consequências geopolíticas. É algo que foi encorajado e celebrado pelas elites do Equador, pelas elites da América Latina e pelas elites dos EUA. Penso que os Estados Unidos estão felizes, pode-se ver isso pela satisfação do embaixador dos EUA em todas as fotos, em cada evento ministerial que é organizado no Equador. Ele aparece com um largo sorriso. Está muito claro, penso, o que está acontecendo geopoliticamente.

Até que ponto foi premeditado ou foi se desdobrando é algo a ser analisado além da retórica política. Os historiadores deverão examinar com rigor se havia um plano desde o início, com envolvimento internacional, inclusive, ou se os Estados Unidos surfaram na onda e deram mais incentivos.

Mas estou absolutamente certo de que esse não é um evento inocente – é parte de um projeto mais amplo, que busca não só colocar um fim nos governos esquerdistas da América Latina, como também enlamear seu legado. Nesse sentido, o governo Moreno insere-se no TINA (There Is No Alternative) – “não há alternativa”– o tipo de fatalismo neoliberal de que medidas anti-austeridade, ou governos de esquerda não podem ter sucesso na América Latina. Isso é o que está em jogo, de fato.

A lama que foi atirada em Correa está tentando mudar o julgamento da história, mas penso que não vão conseguir. Há muitos de nós resistindo, as pessoas têm memória.

Pablo Vivanco

Regionalmente, as coisas também mudaram muito nos últimos anos. Não apenas em termos de resultados eleitorais, mas também questões persistentes em torno das contradições que surgiram com a entrada da esquerda no poder. Ao lado do seu papel como ministro do exterior, você liderou várias iniciativas políticas para o PAIS. Que lições a esquerda do continente pode tirar dessas experiências de governo?

Guillaume Long

Devíamos aprender com nossos erros, evidentemente. O projeto de Correa era criar um estado-nação moderno, num contexto muito pré-moderno. O Equador é, sob vários pontos de vista, um dos estados mais pré-modernos da América do Sul. Correa criou um estado-nação mais estável e moderno, com redistribuição de renda. O Equador tem muito a ensinar à América Latina e à esquerda, foi bem sucedido, economicamente viável – que é a crítica sempre feita à esquerda.

O modelo econômico era interessante em termos de redistribuição, de redução de desigualdade, numa parte do mundo que é a mais desigual. Foi um sucesso também em termos de seus projetos internacionais: soberania, integração e inserção estratégica num mundo multipolar. Esses são os sucessos, mas há coisas em que foi menos bem sucedido.

Penso que hoje é difícil ter um projeto de esquerda sem uma postura mais radical sobre feminismo, particularmente no contexto latino-americano. Também porque o norte global tenta erigir um pedestal dizendo que o sul global ainda é pré-moderno numa série de aspectos.

Sabemos, é claro, que essas questões tendem a avançar com a modernidade, a urbanização e a alfabetização, não se pode separá-las. E tivemos sucesso em alguns aspectos, como por exemplo a representação das mulheres na política. Tivemos um parlamento com muito mais mulheres como representantes legislativas do que a maioria das democracias europeias. Mas penso que a revolução deveria ser não somente social e econômica, deveria também ser feminista, e isso é algo que precisamos fazer.

A simplificação da questão ambiental também é uma ferramenta do imperialismo. Muitos dos problemas ambientais de países latino-americanos, tais como os enfrentados pelo Equador, devem-se em primeiro lugar à ausência da modernidade. Assim, se na Amazônia não há cidades organizadas, com um bom sistema de esgoto, e todo o lixo vai parar nos rios — o que é típico de estados fracos, uma consequência do neoliberalismo —, isso acaba prejudicando mais o meio ambiente do que políticas desenvolvimentistas, frequentemente condenadas.

Há um mito de que fomos vítimas, mas é também verdade que poderíamos ter feito mais para assegurar que nosso desenvolvimento fosse amigável ao meio ambiente. Também poderíamos ter feito mais para mobilizar politicamente a questão ambiental, e criar os tipos certos de aliança política para criar consenso hegemônico sobre os direitos da natureza, que nós consagramos em nossa constituição.

Então, em gênero, direitos reprodutivos, direitos LGBT e meio ambiente, que são as grandes questões do século 21, deveríamos ter feito mais.

No governo Correa havia em geral muita consideração com os bens comuns globais, bens públicos, todas essas coisas com que era necessário lidar em nível internacional, e não apenas superficialmente, com um discurso estilo ONG “a natureza é bela”, sem pensar em termos estruturais e sistêmicos.

Há dois tipos de redistribuição. A primeira é o tipo de redistribuição nacional, em que se redistribui recursos para o povo mais pobre, e que é o grande problema da América Latina, por causa de nossas desigualdades. Mas há o outro tipo de redistribuição, entre países ricos e pobres, e que não se pode fazer por decreto ou política pública. Tem de ser feita pela mudança da matriz improdutiva e seu papel na divisão internacional do trabalho. Essa é a única maneira, porque não há um governo global para promover essa redistribuição.

É onde Correa era forte, onde o Equador era forte. Dez anos não são suficientes para mudar a matriz produtiva, mas a visão esteva sempre voltada para a educação, a educação superior, ciência e tecnologia, energia, desenvolvimento de novos setores. Não apenas usar o dinheiro que recebíamos do petróleo ou outras fontes para redistribuir, mas para investir uma quantia significativa na transformação da economia para a redistribuição global.

Isso é algo que, penso, o Equador pode trazer para a esquerda latino-americana, porque fala-se muito sobre redistribuição doméstica mas muito pouco sobre redistribuição internacional.

Precisamos unir a esquerda e superar nossas diferenças. É sempre mais fácil superar as diferenças estando na oposição do que fazê-lo sendo governo, porque quando você está governando, faz coisas que dividem as pessoas. Mas quando está na oposição, é muito mais fácil encontrar o que Laclau costumava denominar significantes vazios, que fazem uma plataforma ampla e antioligárquica. E peso que, da próxima vez que estivermos no governo, devemos nos esforçar para ter menos divisões do que tivemos neste momento, e tentar manter essa plataforma.

Sobre o autor

Guillaume Long was president of the International Relations Commission of Ecuador’s governing Alianza PAIS party. He was Ecuador’s minister for foreign relations and holds a PhD from the University of London’s Institute for the Study of the Americas.

Sobre o entrevistador

Pablo Vivanco é o ex-diretor do TeleSUR English.

22 de agosto de 2018

Não há problema em ter filhos

Ao invés de desafiar as pressões que o capitalismo exerce sobre a criação dos filhos, os liberais se rendem a elas.

Connor Kilpatrick

Jacobin

Ilustração por Christoph Kleinstück

Tradução / Ter filhos faz mal para o meio ambiente… Ou era para o déficit do país? Não, espere, ter filhos é egoísta porque esse mundo já virou um inferno. Seja lá qual for a sua escolha, o importante é lembrar que, de acordo com um número crescente de liberais e progressistas, a reprodução da espécie equivale à comprar uma mansão imensa e deixar o ar-condicionado no pico, com todas as janelas abertas.

Ou talvez possamos dizer que ter filhos é mais como despejar concreto em um assentamento israelense ilegal? “O egoísmo em se ter filhos é como o egoísmo na colonização de um país”, diz a narradora do aclamado romance de Sheila Heti, Maternidade. “Quão agredida me sinto quando ouço que uma pessoa teve três, quatro, cinco ou mais filhos… Parece uma coisa gananciosa, arrogante, rude.”

Nos últimos anos, só no jornal The Guardian brotaram manchetes como “Você deixaria de ter filhos para salvar o planeta? Conheça os casais que fizeram isso”; “Quer combater as mudanças climáticas? Tenha menos filhos”; “Quebrando um tabu: Os pais que se arrependem de ter filhos”; “Quer salvar seu casamento? Não tenha filhos.”. No New York Times: “Nada de filhos por causa das mudanças climáticas? Algumas pessoas estão considerando isso”. No Business Insider, “Sete razões pelas quais as pessoas não deveriam ter filhos, de acordo com a ciência”. E essa nova lógica tem avançado rapidamente na cultura liberal mais ampla: “A divertida feminista Caitlin Moran diz que o planeta não precisa dos seus bebês”.

Fica difícil não entender a mensagem – e ainda assim, ela parece estar se chocando com ouvidos surdos.

De acordo com um estudo recente do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês), a diferença entre o número de filhos que as mulheres estadunidenses desejam ter e o número que elas provavelmente terão “subiu ao nível mais alto dos últimos 40 anos”. O número de mulheres que querem um filho no futuro só cresceu desde 2002, e a única faixa etária onde houve um ligeiro aumento nas taxas de fertilidade são mulheres entre os quarenta e quarenta e quatro anos.

“A capacidade das estadunidenses de evitar uma gravidez indesejada tem crescido muito mais rapidamente do que a sua capacidade de alcançar uma gravidez desejada”, como colocou o New York Times. Com o sistema de saúde mais caro do mundo (e dezenas de milhões de pessoas ainda sem cobertura), décadas de salários estagnados e a disparada nos custos de educação e moradia, ter filhos nos EUA nunca foi tão caro. O Departamento da Agricultura estima que custará uma média de US $ 233.000 para criar uma criança nascida em 2015 até o seu décimo sétimo aniversário – e isso nem sequer inclui a matrícula na faculdade, outra exorbitância tão unicamente estadunidense. Cada vez mais, trazer uma criança ao mundo é um sonho que muitos simplesmente não podem pagar.

É aí, nesse anti-natalismo misantrópico, que o liberalismo encontra um aliado no conservadorismo. O think tank Brookings Institute coloca o adiamento da paternidade como uma de suas “Três Regras Simples que os Adolescentes Pobres devem Seguir para ingressar na Classe Média”. É uma frase que não difere daquilo que ouvimos de conservadores como George Will por décadas: que você é pobre por causa das escolhas imorais que fez.

Essa linha lembra a campanha descaradamente racista de meados da década de 1990, quando republicanos e o governo Clinton se uniram para denunciar o flagelo das “mães adolescentes solteiras” como uma ameaça mortal à saúde das crianças e aos valores familiares – “uma pedra fundamental de caráter e responsabilidade pessoal”, como a própria proposta de Clinton em 1994 colocava. Na época, outro grupo de democratas foi ainda mais longe e tentou incluir uma provisão que negava às mães solteiras com menos de 21 anos (e aos seus filhos) todos os benefícios do vale-refeição e de auxílio às famílias com filhos dependentes.

Apesar dessa campanha de terrorismo sobre essas jovens mães supostamente sem-vergonha e egoístas, essas mulheres na verdade estavam tomando as melhores decisões para suas famílias. A Dra. Arline T. Geronimus tem defendido que, ao contrário das acusações humilhantes das “mães adolescentes pobres” pelos conservadores e pelos liberais, a escolha de mulheres de baixa renda por ter filhos em uma idade mais jovem representa uma decisão lógica quando confrontadas com as restrições que se tem quando se é pobre nos EUA:

Se ela conseguir encontrar um emprego, os salários e benefícios que ela pode obter podem não compensar os custos em se ser mãe trabalhadora. Ela não pode contar com uma licença maternidade; nem há vagas suficientes nas creches ou a preços acessíveis que a libertem da dependência de parentes para cuidar das crianças uma vez que ela volte ao trabalho… sua maior chance de vínculo na força de trabalho no longo prazo será se os anos pré-escolares de seus filhos coincidirem com seus anos de pico de acesso a apoio social e prático fornecido por parentes relativamente saudáveis.

Com essa enorme lacuna entre os desejos das mulheres e a dura realidade das mães da classe trabalhadora nos EUA, o que poderia explicar esse novo e estranho anti-natalismo de tantos liberais?

Mesmo na França, há muito conhecida pelo seu generoso Estado de Bem-Estar natalista, sua nova ministra da Igualdade de Gênero, de 37 anos, tem sinalizado uma disposição para reescrever os compromissos com as mães até os pífios níveis estadunidenses. “Sempre percebo a energia e o voluntarismo que existem na América”, disse recentemente a francesa Marlène Schiappa à revista New Yorker. “Em relação ao lugar das mulheres, o reflexo na França é dizer: ‘O que o Estado vai fazer por mim?'” Quelle horreur!

Horizontes restringidos, expectativas reduzidas e fazer mais com menos – esse é o programa liberal do século XXI para as massas trabalhadoras. Em outras palavras, é uma continuação do programa de quarenta anos de austeridade do liberalismo, resultado de seu total abandono do movimento sindical. Uma vida decente, uma casa própria e uma aposentadoria confortável – uma magra parcela da imensa riqueza coletiva da nossa sociedade – são promessas há muito tempo abandonadas. Agora, aparentemente, o mesmo acontece com os filhos.

Cada vez mais, o liberalismo se mostra incapaz de imaginar uma saída para o inferno da vida nas margens em 2020. Em vez disso, eles passaram a enxergar o seu papel como um tipo de sentinelas morais: a piedosa observação e administração do colapso. É uma esquerda liberal que já não acredita que pode mudar o mundo e que, nas palavras de Adolph Reed, identifica a sua missão mais importante como simplesmente “dar testemunho do sofrimento”. Eles acreditam que uma política de massas desafiando o capital e o colapso climático é impossível ou simplesmente indesejável. De qualquer maneira, a sua resposta é a mesma – não um movimento trabalhista revivido, mas um novo moralismo de austeridade e auto-sacrifício.

Isso inevitavelmente significa pedir às mulheres que se adaptem à lógica de criar os filhos sob os ditames do mercado, em vez de desafiar essas restrições. “Se vira” e chame isso de vitória.

É uma atitude que teria deixado perplexos tanto homens quanto mulheres na Alemanha Oriental. As mulheres na República Democrática Alemã (RDA) tinham um Estado de Bem-Estar robusto para ajudá-las a criar seus filhos – a creche gratuita começava poucas semanas após o nascimento da criança e incluía café da manhã e almoço -, além de uma taxa de participação na força de trabalho muito maior. O aborto foi legalizado em 1972, anos antes da Alemanha Ocidental. Para as mulheres no lado Oriental, o divórcio também era rápido, fácil e não custava nada. Elas também eram mais propensas a sentir-se confiantes com sua aparência física e relatavam taxas mais altas de satisfação sexual do que suas primas no lado Ocidental. Apesar de todo o seu autoritarismo político, a capacidade de criar filhos na RDA não dependia da capacidade de manter unida uma família nuclear.

Hoje, na Alemanha unificada, as vagas nas creches são caras e competitivas, com uma escassez nacional de 120.000 trabalhadores no setor – todos empregos mal remunerados, é claro. No leste, as taxas de natalidade imediatamente despencaram após a queda do Muro de Berlim. Ainda hoje as mulheres na metade oriental do país continuam tendo filhos significativamente mais cedo que suas irmãs ocidentais e contando com uma diferença salarial menor entre elas e os homens – na metade ocidental do país, essa diferença é comparável à dos EUA.

Atualmente, as únicas nações que se aproximam do compromisso da Alemanha Oriental de oferecer às mulheres esse tipo de liberdade são os países onde as classes trabalhadoras organizadas fizeram incursões bem-sucedidas contra os imperativos do capitalismo. Segundo vários estudos as mulheres mais felizes do mundo são as holandesas – e não as estadunidenses com sua atitude “se vira”. E quase nenhuma delas trabalha em período integral: Graças à mobilização sindical, sua classe trabalhadora conquistou a capacidade de priorizar sua liberdade contra qualquer “dever” ao mercado de trabalho ou aos seus maridos.

Temos aqui, então, a raiz do recente anti-natalismo liberal – a própria lógica do capital. O capitalismo precisa de novos trabalhadores e consumidores; só não quer pagar pelo seu crescimento e instrução. Esses custos, na lógica do capital, devem ser repassados para o indivíduo e a família. É por isso que hoje nos Estados Unidos, o FBI e o departamento de imigração são acionados para impedir o roubo de fórmula para bebês – é preferível trancá-la em caixas de vidro no supermercado do que simplesmente socializá-la e distribuí-la gratuitamente. Em vez do Estado fornecer coletivamente o necessário para a criação das crianças, a polícia literalmente persegue os pais biológicos para obter pensão alimentícia. Nessa visão, é melhor forçar uma família nuclear a permanecer unida do que ter o Estado fornecendo coletivamente serviços de assistência à infância, educação e assistência médica para pais e filhos. É o casamento de espingarda transformado em política pública.

Passamos da visão conservadora do pós-guerra das mulheres como obedientes fábricas de bebês, para outra que diz às mulheres que elas devem adiar a gravidez o tempo que for necessário para que elas possam fazer sua carreira decolar e construir sua marca – possivelmente para sempre. Embora a medicina reprodutiva venha obtendo enormes progressos, a fertilização in vitro, os medicamentos para melhorar a ovulação, o armazenamento dos óvulos e a inseminação artificial são proibitivamente caros. Sem um sistema de saúde verdadeiramente universal, esses avanços científicos estarão sempre reservados para os ricos.

Pedir às mulheres que aguardem para ter filhos até que tenham iniciado uma carreira e economizado dinheiro suficiente é apenas o avesso de ordenar que as mulheres fiquem em casa e façam bebês para seus maridos. De ambas as maneiras se pede às mulheres que não atendam aos seus desejos, e sim a uma abstração todo-poderosa: o mercado, o meio-ambiente, o patriarcado ou mesmo um feminismo falso e distorcido.

É importante que nós profissionais de classe média lembremos que, para a imensa maioria dos trabalhadores, o mercado de trabalho não é um local potencial para a auto-realização e nem nunca será. Em vez disso, é uma arena brutal onde você é forçado a negociar um terço da sua vida para sobreviver. Em 2020, uma carreira do tipo “faça o que você ama” está fora do alcance para todos, exceto para os ricos. O que os profissionais de classe média nunca entenderão – tanto os conservadores que humilham as jovens mães solteiras quanto os liberais que exigem que as mulheres adiem a maternidade até que possam comprar o canguru da Baby Bjorn – é o quão gratificante a criação dos filhos pode ser para aqueles que não têm ilusões de que o capitalismo jamais lhes proporcionará validação.

Como podemos conquistar um programa que socialize os custos para se trazer crianças ao mundo, se tantos liberais e progressistas ainda enxergam o desejo de ter filhos como algo tipo um apartamento compartilhado em Las Vegas – um investimento caro, tolo e brega, voltado principalmente para os jecas? Em vez de propagar essa política grosseira e misantrópica, devemos exigir que o capital pare de repassar os custos da infância para os trabalhadores e para socializá-los – um programa de fornecimento gratuito de kits de itens para bebês como as caixas de maternidade finlandesas e um bom sistema de saúde pública que cubra não apenas todos os cuidados pré-natais e pediátricos, mas que também torne a fertilização assistida em um direito e não um luxo. Um programa que contrate e treine centenas de milhares de pessoas para trabalhar em creches estatais de alta qualidade. A única maneira de conseguirmos isso é através de um movimento trabalhista revivido – e não de artigos bizarros (e inevitavelmente racistas) sobre “controle da população”.

Por que uma mulher de vinte e poucos anos não deveria poder ter um filho e ainda manter a liberdade para embarcar em uma carreira? Por que uma jovem mãe solteira não deveria poder cursar uma faculdade enquanto deixa seu filho em segurança sob os cuidados do Estado? E por que ela deveria precisar encontrar ou “manter” um relacionamento com um homem apenas para poder prover o necessário para seus filhos? Uma verdadeira liberdade para as mulheres significaria a capacidade de abandonar por completo a falsa escolha entre “bebês, formação ou carreira”. No momento, porém, apenas as ricas podem realmente ter todas as opções.

Isso pode ser qualquer coisa, menos justo.

Sobre o autor
Connor Kilpatrick é editor da Jacobin.

20 de agosto de 2018

O império europeu da Alemanha

Na Alemanha atual, argumenta Wolfgang Streeck, os políticos elogiam a "Europa" - enquanto usam discretamente as estruturas da UE para promover os interesses nacionais alemães.

Uma entrevista com
Wolfgang Streeck

Wolfgang Streeck. Matthias Jung / MPIfG

Entrevistado por
Loren Balhorn

Tradução / Um dos sociólogos críticos mais conhecidos no mundo de língua alemã, Wolfgang Streeck, viu o seu trabalho estar a receber uma crescente atenção da esquerda internacional nos últimos anos.

Os seus livros mais recentes têm-se concentrado na crise estrutural do capitalismo e na medida crescente em que ele está em contradição com a democracia – uma contradição para a qual ele não vê nenhuma resolução imediata, levando-o a questionar-se por quanto tempo mais o capitalismo pode sobreviver.

Loren Balhorn, da Jacobin, falou-lhe das perspetivas da União Europeia, do papel do Estado-nação e do espectro do populismo.

Loren Balhorn

Vamos começar com uma pergunta simples: qual é a sua avaliação da grande coligação alemã após os seus primeiros cem dias? É um mal necessário, ou o senhor teria preferido outra coisa?

Wolfgang Streeck

Não, sem preferências. Talvez se houvesse alguma perspetiva de que a ala esquerda do SPD (Partido Social Democrata) na oposição seria forçada a envolver-se mais com os elementos não-sectários do Die Linke, para que algo novo pudesse emergir na interseção onde a esquerda pudesse ter algo que se aproximasse das perspetivas de assumir o poder. Mas teria sido improvável que isso acontecesse mesmo sob um governo “jamaicano”.

Loren Balhorn

Está preocupado com a possibilidade de novas eleições, dada a disputa em curso entre Angela Merkel e o seu parceiro de coligação de direita, Horst Seehofer?

Wolfgang Streeck

Não, de todo. Não faria diferença, exceto que o SPD cairia abaixo de quinze por cento, e os Verdes substituiriam a CSU (União Socialista Cristã, os Democratas Cristãos da Baviera) num governo “Merkel V”.

Loren Balhorn

Vamo-nos alargar o horizonte da nossa atenção. O senhor argumenta que um retorno ao capitalismo democraticamente regulado, que leve em conta os interesses materiais da maioria, só é possível no âmbito do Estado-nação.

Ao mesmo tempo, o senhor denunciou a tendência alemã de considerar a “Europa” como a personificação da moralidade política, em suposta oposição ao nacionalismo destrutivo dos séculos anteriores – apesar de a política da UE, na sua maioria, promover os interesses alemães.


Não seria possível impor limites à hegemonia alemã, por exemplo, através de uma regulamentação salarial e fiscal uniforme entre todos os Estados-Membros? Até ao final da década de 1990, esta exigência era feita por muitos partidos social-democratas, incluindo o SPD.

Wolfgang Streeck

De onde viriam os “regulamentos salariais e fiscais uniformes para todos os Estados-Membros”? O problema é a variedade de estruturas econômicas e sociais nacionais, que se desenvolveram ao longo do tempo. O que está a sugerir exigiria uma revisão uniforme e simultânea das instituições de importância central, que se ajustariam de forma bastante diferente às capacidades econômicas nacionais e aos interesses nacionais. Nenhum líder político, e especialmente nenhum líder politicamente responsável, poderia tentar algo assim.

E, incidentalmente, isso não adiantaria nada quanto à necessidade de acabar com a “hegemonia alemã” que corretamente mencionou. Esta hegemonia existe porque o regime de moeda comum da Europa, como um regime de moeda forte, se encaixa na economia alemã (e em algumas outras economias do norte), mas não funciona para as economias do Mediterrâneo e da França.

Loren Balhorn

Isso parece bastante plausível, mas a maioria das forças progressistas na Alemanha provavelmente rejeitaria uma estratégia de Estado-nação. De onde é que acha que vem esta ideia?

Wolfgang Streeck

Aqui está-se a referir a um problema bastante complexo. Depois da guerra, a Alemanha Ocidental não foi totalmente soberana durante muito tempo e considerou isto como uma merecida punição e um estado de coisas geralmente desejável. Por um lado, os alemães foram punidos pelo “nacionalismo” alemão, enquanto, por outro, tentaram recomendar a desnacionalização da política como o ideal de uma nova ordem mundial para todos os outros.

Paradoxalmente, isso ajudou gradualmente a restaurar a soberania nacional alemã, culminando na reunificação, enquanto nenhum outro país na Europa alguma vez teria considerado colocar a sua soberania nacional em cima da mesa.

Desde a década de 1990, as coisas tomaram sobretudo um outro rumo, já que o supranacionalismo europeu efetivamente deu origem a um império alemão. É por isso que, na Alemanha de hoje, podemos opor-nos ao nacionalismo e ao Estado-nação e, ao mesmo tempo, defender os interesses nacionais alemães sem ter de o admitir. Uma situação ideológica muito confortável – basta olhar para Angela Merkel.

Loren Balhorn

A União Europeia começou como uma tentativa de acabar com a rivalidade entre a França e a Alemanha, ligando o poder diplomático francês à força econômica da Alemanha. Poder-se-ia argumentar que a estrutura da União foi, na sua maioria, continuamente estruturada ao longo deste compromisso.

Acha que as propostas de Emmanuel Macron para “refundar a Europa” têm o potencial de cimentar, a longo prazo, estas falhas nacionais? Ou será que a lógica do interesse nacional está demasiado enraizada na estrutura da própria UE?


Wolfgang Streeck

As propostas do Macron não são nada disso. Ele é completamente vago quando se chega aos detalhes. Qual deve ser a dimensão do orçamento especial da zona euro? Que critérios devem ser utilizados na sua distribuição? De que tipo de “investimentos” é que ele fala? Porquê um “ministro europeu das Finanças”? E é isto suposto ultrapassar as nossas “linhas de falha nacionais”, como lhes chamam? Na minha opinião, não se trata de linhas de fratura, mas sim de fronteiras com as quais podemos e devemos trabalhar, não por ditames do topo para a base, mas através de acordos entre iguais.

Como já disse, ninguém na Europa está realmente a alimentar a ideia de renunciar à soberania nacional – os Alemães apenas fingem que o fazem. Em todo o caso, a soberania nacional é, em primeiro lugar e acima de tudo, uma arma para os pequenos países usarem contra os grandes, e são os grandes países que são incomodados por ela (não pela sua própria soberania, evidentemente). Se os EUA respeitassem a soberania nacional dos pequenos Estados, muitas pessoas teriam sido poupadas a muitos problemas.

E Macron fala constantemente sobre uma “França soberana numa Europa soberana” – não sobre acabar com o Estado-nação francês, mas sobre expandi-lo para a Europa. Outros países terão que encontrar uma maneira de viver com isso, e isso é possível a menos que se tenha ficado bêbado com a ideia de supranacionalismo.

Loren Balhorn

O Presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, afirmou numa recente conferência de imprensa que a Grécia voltaria a ser em breve um “país normal”. Ele e outros tecnocratas europeus estão a tentar vender a Grécia como uma história de sucesso da Zona Euro – uma prova de que a estrutura permanece forte e resistente.

Como vê isto, especialmente tendo em conta a situação crítica em Itália?


Wolfgang Streeck

Essa é a conversa vazia habitual; ninguém a leva a sério. Os problemas estruturais da Grécia e de outros países mediterrânicos foram sempre subestimados, enquanto os problemas da dívida foram exagerados; mas isso é pôr o carro à frente dos bois. Mesmo que a Grécia possa agora voltar a contrair empréstimos – e teríamos primeiro de ver isso acontecer –, as suas estruturas institucionais e econômicas continuam a não ser adequadas a uma moeda forte.

Resta também a década de austeridade que prejudicou toda uma geração jovem, custando-lhes um precioso tempo de vida, para não falar de infraestruturas de serviço público, educação e formação. Isto não é compensado pelo fato de o Estado grego ser agora novamente considerado digno de confiança nos mercados financeiros, se é que o é de fato.

O mesmo se aplica à Itália, que é, no entanto, muito maior do que a Grécia, de modo que nem mesmo um acordo de dívida ao estilo (ostensivo) da Troika poderia funcionar. Os Jean-Claude Junckers deste mundo são como lemingues – ou pelo menos como o mito sobre os lemingues; na verdade, os lemingues são muito mais espertos do que os eurocratas, que marcham para o abismo com os olhos abertos, sempre ansiosos até chegarem ao chão.

Loren Balhorn

Reparei que num artigo recente, “A Europa sob Merkel IV: Balanço de Impotência”, o senhor coloca sempre o termo “populistas” entre aspas, sobretudo em relação a Die Linke e à Alternativa für Deutschland, mas também quando se fala de forças comparáveis noutros países europeus. Trata-se de uma atitude consciente da sua parte e, em caso afirmativo, porquê?

Wolfgang Streeck

Uma decisão consciente, sim. Para mim, o termo é sem sentido, não verificável, uma arma de propaganda. Na linguagem dos partidos centristas estabelecidos, toda a gente que possa ser por eles e para eles considerado perigoso é um “populista”, de Corbyn a AfD. Eles reclamam que “os populistas” “simplificam os problemas” – enquanto Merkel disputou da segunda à última eleição com o slogan, “Já me conhecem”.

O que é “complexo” é para nós decidirmos; o que definimos como “complexo” é demasiado “complexo” para os “populistas”; e não há alternativa às “soluções” que tão laboriosamente temos desenvolvido para os vossos problemas complexos. (“Não há alternativa”, etc.)

Loren Balhorn

Um dos seus livros mais recentes, Buying Time, sugere que o crescente conflito estrutural entre capitalismo e democracia levará à crescente “Hayekização” da Europa. Desde dessa altura, os partidos de direita ganharam uma série de eleições em toda a Europa e Donald Trump foi eleito presidente dos Estados Unidos. Será que se vê confirmado o seu prognóstico?

Wolfgang Streeck

Por “Hayekização” quero dizer a separação institucional intencional e de longo prazo da economia, ou do mercado, da interferência democrática, ou seja, igualitária. Os partidos de direita não são necessariamente neoliberais no sentido de serem não-intervencionistas ou anti-redistributivos, pelo menos na sua retórica. O que eles realmente fazem na prática é toda uma outra questão.

Loren Balhorn

As suas previsões sobre o futuro da UE e do capitalismo em geral parecem ter-se tornado mais sombrias nos últimos anos. Lembro-me de um acontecimento ocorrido em Berlim no ano passado, em que o senhor se descreveu a si próprio como um “pensador apaixonadamente destrutivo”, e em Buying Time afirma explicitamente que os teóricos não têm de oferecer soluções. Mas você vê pelo menos alguma solução econômica possível que permaneça, por enquanto, politicamente obstruída?

Wolfgang Streeck

Se fosse tão simples apresentar-lhe uma solução, não haveria basicamente um problema. Por “destrutivo” quero dizer que eu gostaria de lutar contra esperanças irrealistas colocadas numa qualquer cavalaria prussiana que, como em Waterloo, se mostravam à noite para mudar o decorrer da batalha. O que precisamos, numa situação como a nossa, é do realismo mais claro e sóbrio possível.

Estou convencido de que a política, como de costume, não nos ajudará e que a política de hoje é, quase sem exceção, pouco mais que uma gestão elitista, tecnocrática, profissionalizada e altamente remunerada. Precisamos de uma boa medida de disfuncionamento, de ruptura, não só na economia, mas também e sobretudo na política. Qualquer coisa a menos e não conseguiremos restaurar o controle coletivo sobre as nossas vidas de que tão urgentemente necessitamos.

Esta entrevista apareceu originalmente em Ada Magazin, a revista parceira de Jacobin no mundo de língua alemã.

Colaboradores

Wolfgang Streeck é diretor do Instituto Max Planck para o Estudo das Sociedades, em Colônia, Alemanha. Seu livro mais recente é Tempo comprado: A crise Adiada do capitalismo democrático.

Loren Balhorn é editora colaboradora da Jacobin e co-editora, juntamente com Bhaskar Sunkara, de Jacobin: Die Anthologie (Suhrkamp, 2018).

18 de agosto de 2018

De Enver Hoxha a Bill Clinton

Uma breve história do Exército de Libertação do Kosovo.

James Robertson

Jacobin

Membros do Exército de Libertação do Kosovo entregam suas armas aos fuzileiros navais americanos na vila de Zegra, Kosovo, em 30 de junho de 1999. Departamento de Defesa dos EUA / Wikimedia

Em fevereiro de 1998, a província sérvia de Kosovo entrou em guerra civil. Por dois anos, o nacionalista albanês Exército de Libertação do Kosovo (KLA) conduziu uma campanha de guerrilha de baixo nível contra a polícia militar sérvia na província. Em resposta, as forças sérvias gradualmente intensificaram seus esforços de contra-insurgência, visando aldeias em regiões rurais remotas e ao longo da fronteira com a Albânia.

Enquanto as batidas policiais, assaltos e execuções contra supostos simpatizantes do KLA aumentavam, o apoio ao grupo de guerrilheiros uma vez marginal cresceu.

No verão de 1998, o KLA havia começado uma ofensiva para tomar territórios importantes, incluindo as regiões de Drenica, Dukagjin e Malisheva. Militarmente, a campanha foi um desastre, e as forças sérvias retomaram rapidamente as regiões, levando os combatentes do KLA ao longo da fronteira para a Albânia.

Politicamente, no entanto, o KLA havia vencido uma importante batalha: a ofensiva forçou a questão do Kosovo a entrar para o cenário internacional. Este foi um passo fundamental na estratégia de longo prazo do grupo, que previa a intervenção ocidental como meio de assegurar a independência do Kosovo da República Federal da Iugoslávia.

A estratégia deu frutos. Em março de 1999, em resposta à escalada das hostilidades, as forças da OTAN iniciaram setenta e oito dias de ataques aéreos contra a Sérvia. A retirada subseqüente das forças sérvias e a ocupação da província pela OTAN e depois pelas tropas da ONU abriram as portas para a independência total do Kosovo em 2008.

Que a estratégia do KLA deveria ter confiado na intervenção da OTAN não é uma ironia trivial. O KLA tinha suas raízes em uma vertente ardente de política marxista-leninista que percorreu movimentos nacionais albaneses no pós-guerra. Criticamente virulentos da amizade da Guerra Fria na Jugoslávia com o Ocidente, os marxistas-leninistas do Kosovo tinham olhado para o regime de Enver Hoxha na Albânia como um farol de libertação.

Como uma organização com raízes na ideologia marxista-leninista se encontrou na expansão da OTAN nos Bálcãs? Para explicar essa virada curiosa, precisamos considerar o lugar do Kosovo na mudança da ordem internacional do pós-guerra.

Uma ponte longe demais

Para os comunistas que tomaram o poder na Iugoslávia após a Segunda Guerra Mundial, o Kosovo representou um desafio particular.

Como o coração do reino medieval sérvio, o Kosovo tinha enorme valor simbólico e espiritual na cultura sérvia. No entanto, quando a província foi anexada pelo moderno Reino da Sérvia em 1912, os sérvios haviam se tornado uma minoria entre a população albanesa muito maior do Kosovo.

Após a guerra, os comunistas iugoslavos foram, portanto, solicitados a decidir entre duas reivindicações nacionalistas rivais ao Kosovo - uma baseada nos laços históricos da Sérvia com a região, a outra enraizada no direito dos albaneses à autodeterminação nacional.

Inicialmente, os comunistas iugoslavos e albaneses acreditavam que a questão seria resolvida dentro de uma Federação Comunista dos Bálcãs. Em vez de um ponto de divisão e conflito, o Kosovo seria uma “ponte” que reunisse as comunidades albanesa e sérvia.

A ruptura da Iugoslávia com a União Soviética em 1948, no entanto, acabou com essa proposta. Quando a Albânia se aliou com Stalin contra Tito, quaisquer planos para uma Federação Balcânica foram abandonados. O Kosovo permaneceu formalmente designado como uma "região" da Sérvia, governada diretamente de Belgrado. Longe de uma ponte, a população albanesa era agora estigmatizada como uma quinta coluna na Guerra Fria dos Balcãs.

Após a cisão, a liderança iugoslava descartou as exigências dos albaneses do Kosovo por maior autonomia à medida que tramas irredentistas surgiam em Tirana ou Moscou. Vigilância policial e perseguição de albaneses aumentaram. Mais amplamente, o racismo contra os albaneses como um povo “atrasado” e “primitivo” permeava a sociedade iugoslava e era freqüentemente composto pela pobreza e o subdesenvolvimento de que a província sofria.

Dentro da economia política iugoslava, o Kosovo foi integrado como um exportador de matérias-primas para as repúblicas do norte mais avançadas economicamente. Os fundos federais destinados ao desenvolvimento econômico, portanto, priorizavam as indústrias extrativas da província, especialmente a mineração de carvão. Essas indústrias, no entanto, empregavam apenas uma fração da força de trabalho.

A agricultura, que empregava cerca de 80% da população no final dos anos 1950, foi deixada estagnada. Como resultado, o Kosovo tornou-se o lar de uma subclasse rural crescente, excluída das instituições emergentes do socialismo iugoslavo.

A luz guia do Hoxhaismo

A repressão policial, a pobreza e a discriminação alimentaram o ressentimento nacionalista entre os albaneses do Kosovo. Embora os movimentos nacionais albaneses tivessem se oposto ao governo de Belgrado desde a anexação do Kosovo em 1912, a política da Guerra Fria nos Bálcãs moldou uma nova linguagem para o nacionalismo.

Após a cisão Tito-Stalin, a Iugoslávia e a Albânia seguiram caminhos diferentes para o socialismo. A Iugoslávia, desesperada para assegurar sua independência e desenvolvimento econômico, buscou entrar na ordem liberal do pós-guerra. O modelo iugoslavo de “socialismo de autogestão” facilitou a integração nos mercados ocidentais.

Sob o governo de Enver Hoxha, a Albânia tomou um caminho radicalmente diferente, primeiro aliando-se com a União Soviética contra a Iugoslávia e depois com os chineses contra os soviéticos dez anos depois. O regime de Hoxha permaneceu comprometido com as políticas stalinistas de controle estatal centralizado, uma economia de comando e coletivização agrícola. "Hoxhaism" tornou-se sinônimo de um stalinismo intransigente, desdenhoso do "revisionismo" de Khrushchev e Tito.

Os caminhos divergentes tomados pela Iugoslávia de Tito e pela Albânia de Hoxha moldaram o desenvolvimento ideológico do movimento nacional albanês no Kosovo durante a Guerra Fria.

As políticas de oposição no Kosovo centraram-se no status da província dentro do estado iugoslavo. Desde 1945, o Kosovo recebeu um status semi-autônomo dentro da República da Sérvia. Enquanto as tensões aumentavam com a Albânia, alinhada com a União Soviética, a liderança iugoslava defendeu o governo de Belgrado sobre a província como a maneira mais segura de garantir essa fronteira vulnerável. Os ativistas albaneses do Kosovo, no entanto, argumentaram que a grande população albanesa da Iugoslávia exigia que sua própria república realizasse o desenvolvimento cultural e econômico prometido pelo socialismo.

A rejeição inicial da autonomia albanesa por Belgrado radicalizou os ativistas mais jovens no Kosovo. No início dos anos 1960, estreitas redes de organizações clandestinas começaram a se estender pela província. Enquanto a maioria desses grupos procurava uma república albanesa dentro da Iugoslávia, uma minoria começou a expressar uma demanda ainda mais radical: a total independência e unificação com a República Popular da Albânia.

Foi através destes grupos clandestinos, como o Movimento Revolucionário para a União dos Albaneses do falecido Adem Demaçi, fundado em 1963, que o vocabulário político Hoxhaista começou a circular no Kosovo. O marxismo-leninismo, nesse contexto, estava ligado às aspirações nacionais albanesas.

Essa nova linguagem política diferia nitidamente das políticas nacionalistas ou religiosas mais conservadoras que dominavam o Kosovo e a diáspora albanesa antes da Segunda Guerra Mundial. Através da lente do Hoxhaismo, o objetivo da unificação nacional foi infundido com aspirações para a transformação social revolucionária.

"Isso é comunismo real"

A partir do final da década de 1950, a linguagem e o simbolismo do stalinismo albanês sustentaram as correntes mais radicais do nacionalismo albanês no Kosovo. O apelo do Hoxhaism dependia de sua capacidade de servir a múltiplas aspirações políticas. Primeiro, como ideologia oficial do Estado albanês, era um substituto para o nacionalismo albanês, facilitando a identificação da diáspora com a “pátria mãe”. Nesse sentido, eram menos as nuances da política stalinista do que o objetivo da unificação nacional que emprestava ao Hoxhaismo seu apelo.

Segundo, como aliada da China de Mao, a Albânia oferecia um comunismo aparentemente mais “autêntico” do que o “revisionismo” iugoslavo. Mary Motes, que trabalhava como professora de inglês em Priština na década de 1960, observou esse apelo quando registrou a admiração de um aluno pela República Popular da Albânia: “O poder se foi de hoxas e sacerdotes”, o estudante anunciou para a classe. “As mulheres são livres... o Partido dos Trabalhadores da Albânia eletrificou as aldeias. Não, não há carros, mas Enver Hoxha não tem carro! Isso é comunismo real!

Tendo como pano de fundo o radicalismo global dos anos 60, alguns jovens kosovares idealizaram o stalinismo albanês como uma alternativa vital e revolucionária ao compromisso da Iugoslávia com as potências ocidentais.

Finalmente, a aliança sino-albanesa fomentou a difusão de idéias maoístas no Kosovo e na diáspora albanesa. Como parte de uma subclasse rural marginalizada, os jovens radicais albaneses no Kosovo encontraram muito a admirar na visão do maoísmo sobre a insurreição camponesa e a libertação nacional.

Apesar de sua durabilidade dentro de círculos políticos radicais, no entanto, o Hoxhaismo teve um apelo limitado entre a população mais ampla do Kosovo. Fora da extrema esquerda, a maioria dos albaneses iugoslavos desconfiava do regime de Hoxha.

A limitada détente que emergiu entre Belgrado e Tirana no final dos anos 1960 deu aos albaneses iugoslavos uma oportunidade maior de viajar para a Albânia. A pobreza e a repressão política que presenciaram serviram para dissipar as ilusões de todos, menos dos ideólogos mais fervorosos. Os albaneses do Kosovo estavam particularmente sintonizados com a brutalidade do regime de Hoxha, já que muitos tinham fortes laços familiares com o norte da Albânia, onde a população sofreu intensa perseguição do Estado.

Apesar das ansiedades de linhas-duras dentro das instituições de segurança iugoslavas, portanto, o Hoxhaismo era uma vertente menor do movimento nacional no Kosovo. Sua durabilidade, no entanto, assegurou que continuasse desempenhando um papel desproporcional ao seu apelo social.

Os dois nacionalismos

A partir de 1968, o movimento nacional albanês do Kosovo começou a se dividir em dois campos distintos: uma ala moderada “iugoslava” e uma corrente mais radical, “Hoxhaista”. Em novembro de 1968, um protesto de vários milhares de estudantes em Priština provocou manifestações em toda a província exigindo que o Kosovo recebesse status de república.

A resposta do Estado jugoslavo foi dupla: por um lado, a polícia reprimiu violentamente as manifestações; por outro, a liderança federal introduziu uma onda de reformas. Essas novas políticas defendiam a linguagem e os direitos culturais dos albaneses, determinavam sua promoção a posições de liderança política e ampliavam a autonomia provincial.

O pico dessas reformas veio com a constituição de 1974, que concedeu ao Kosovo o status de república de fato. No final da década de 1970, uma camada de albaneses do Kosovo havia sido integrada à burocracia do Estado iugoslavo e uma intelligentsia local começou a florescer nas cidades maiores. Isso forneceu a base para a ala moderada do movimento nacional albanês no Kosovo. Evitando quaisquer laços com a República Popular da Albânia, esta classe política local buscou maior autonomia através de uma integração mais profunda nas instituições iugoslavas.

As reformas políticas e culturais da década de 1970, no entanto, pouco fizeram para combater a pobreza no Kosovo. No início da década de 1980, por todos os indicadores econômicos, o Kosovo ficou muito aquém da média iugoslava, e a brecha estava crescendo. Enquanto a taxa oficial de desemprego na província era de 27,5%, o desemprego real era muito mais alto, mascarado pelas altas matrículas universitárias, subemprego e emigração em massa.

Além disso, a prioridade concedida às indústrias extrativas continuou a deixara imensa população rural quase intocada pelos programas de desenvolvimento do Estado.

O fracasso da liderança do Kosovo em resolver esses problemas econômicos forneceu solo fértil para a corrente mais radical e “Hoxhaista” do movimento nacional. Ao longo da década de 1970, organizações como o Grupo Revolucionário do Kosovo proliferaram nas crescentes populações de diáspora da Alemanha, Suíça e Estados Unidos. Embora ainda marginal no próprio Kosovo, estes grupos também começaram a encontrar uma audiência entre a crescente população estudantil na Universidade de Priština.

Para esses radicais, a liderança moderada no governo provincial era pouco mais que uma burguesia compradora, servindo a um regime colonial apoiado pelo Ocidente em Belgrado.

A tensão entre essas duas alas do movimento nacional no Kosovo eclodiu na primavera de 1981, quando protestos de estudantes universitários provocaram novamente ondas de manifestações em toda a província. Durante várias semanas, dezenas de milhares de estudantes, trabalhadores, agricultores e jovens desempregados saíram às ruas para condenar a liderança e exigir que o Kosovo recebesse status de república.

A repressão foi rápida e brutal, com o governo provincial enviando milhares de policiais e tropas federais contra a população. O Kosovo passou a assemelhar-se a um território ocupado e, entre março de 1981 e novembro de 1988, estima-se que 584.373 albaneses foram presos, internados ou interrogados.

A repressão generalizada ofereceu a primeira oportunidade real para os grupos Hoxhaistas expandirem sua influência. No início da década de 1980, esses ativistas dispersos e fragmentados se uniram em uma ampla frente popular. Seus esforços levaram à fundação do Movimento dos Povos do Kosovo (LPK), a organização que mais tarde formaria o núcleo do KLA.

Um estado de apartheid

As tensões entre as duas facções do movimento nacional albanês no Kosovo emergiram mais claramente no final dos anos 80, quando Slobodan Milošević subiu ao poder na Sérvia e a federação iugoslava começou a se fragmentar em linhas nacionais.

A ascensão de Milošević assinalou uma crise para a classe política do Kosovo. Mobilizando o nacionalismo sérvio para impulsionar-se ao poder, Milošević jurou “devolver o Kosovo à Sérvia”. Entre 1987 e 1990, a extensa autonomia do Kosovo foi dissolvida e as instituições do Estado e do partido foram expurgadas da maioria de seus membros albaneses. Os albaneses foram dispensados em massa da imprensa, do rádio e da televisão de Kosovo e substituídos pelos sérvios. A Universidade de Priština foi obrigada a reduzir o número de estudantes albaneses e aumentar as quotas de sérvios e montenegrinos.

No início dos anos 1990, o Kosovo tornou-se efetivamente um estado de apartheid. Quando as instituições do Estado provincial se esvaziaram, os membros expurgados da classe política do Kosovo foram forçados a se reagrupar dentro de uma nova organização: a Liga Democrática do Kosovo (LDK).

Fundado em dezembro de 1989, o LDK rapidamente se transformou em uma organização de massas, reivindicando cerca de 700.000 membros em todo o mundo em 1991 e declarando-se “governo no exílio”. Sob a liderança do escritor Ibrahim Rugova, o LDK buscou a independência por meio de uma estratégia de resistência passiva, defendendo o não envolvimento com as instituições sérvias e a criação de instituições paralelas geridas por albaneses. A não-violência, ponderou Rugova, ajudaria a promover a simpatia do Ocidente e, eventualmente, a intervenção estrangeira do lado dos albaneses do Kosovo.

Essa estratégia sofreu um sério golpe em 1995, quando os negociadores internacionais que buscavam a paz nas guerras civis na Croacia e na Bósnia se recusaram a assumir a causa do Kosovo. O Acordo de Dayton, que pôs fim às guerras iugoslavas, deixou o Kosovo firmemente sob o governo de Belgrado.

Nossos amigos em Washington

O crepúsculo da Liga Democrática do Kosovo assinalou a ascensão do Movimento Popular do Kosovo, mais radical. Desde a sua formação no início dos anos 80, a LPK continuou a perseguir um caminho militante para a libertação do Kosovo. Ativistas no exílio estudaram as táticas militares de grupos de libertação, como o ETA, a OLP e o IRA. Eles também debateram a forma apropriada de luta armada no Kosovo: o partido deveria se engajar em prolongada guerra de guerrilha, ou deveria armar a população local para uma insurreição de tipo intifada?

O KLA foi formado em 1993 como o braço armado do Movimento Popular do Kosovo. Nos anos seguintes, os ativistas do KLA organizaram com sucesso uma rede de contatos inseridos em comunidades rurais pobres em todo o Kosovo e simplificaram suas operações de captação de recursos na diáspora.

O fracasso da estratégia pacifista do LDK em 1995 criou o espaço para o KLA sair das margens políticas. Em 1996, o grupo publicou seus primeiros comunicados públicos e iniciou uma campanha de ataques contra a polícia sérvia e os “colaboradores” albaneses.

Embora suas raízes estivessem no marxismo-leninismo da LPK, o KLA que surgiu em 1996 era uma besta política profundamente diferente de seus precursores da Guerra Fria.

A diferença mais óbvia foi o relacionamento do KLA com as potências ocidentais. Como observa Henry Perritt, poucos membros do KLA acreditavam que só a força armada poderia libertar o Kosovo. Em vez disso, a campanha de guerrilha pretendia complementar uma estratégia política mais ampla de provocar a intervenção ocidental no Kosovo para apoiar a autodeterminação albanesa.

Tendo passado décadas condenando o governo de Tito como os “lacaios” revisionistas do imperialismo ocidental, os radicais do KLA agora olhavam para esses mesmos imperialistas como seus últimos salvadores.

Vários fatores explicam essa reviravolta ideológica. Em primeiro lugar, a estratégia da frente popular, à qual a maioria dos grupos hoxhaistas do Kosovo se voltou depois de 1981, priorizou a luta pela libertação nacional sobre a revolução socialista.

A luta de uma subclasse rural contra uma classe política urbana deu origem a esse assunto político nebuloso: "o povo". Esse deslize ideológico facilitou a adoção pelo KLA de um nacionalismo albanês em grande parte à derrocada de sua política de classe.

Em segundo lugar, o colapso do comunismo na Albânia em 1992 expôs com mais clareza a natureza brutal do Estado Hoxhaista, especialmente entre a diáspora. Confiando nessa diáspora para financiamento, a LPK descartou grande parte de sua retórica marxista-leninista.

Terceiro, o fim do comunismo transformou a geopolítica dos Bálcãs. Durante a Guerra Fria, a aliança da Iugoslávia com o Ocidente permitiu que ativistas Hoxhaistas no Kosovo identificassem o "colonialismo sérvio" no Kosovo com o imperialismo ocidental na região. As guerras civis na Croácia e na Bósnia, no entanto, demonstraram o quanto a antiga Iugoslávia de Milošević era alienada do Ocidente.

Quando os estrategistas políticos dos EUA procuraram reaproveitar a OTAN como uma força de segurança internacional, a crise da Iugoslávia ofereceu um campo de testes conveniente para um novo paradigma de "intervenção humanitária".

Atentos às possibilidades que este novo momento geopolítico havia aberto, a liderança do KLA começou a destacar o problema do colonialismo sérvio do imperialismo ocidental, acabando por criticar completamente o último.

Em meados da década de 1990, o KLA manteve pouco da política marxista-leninista que caracterizou o radicalismo albanês do Kosovo durante a Guerra Fria. O caminho para a libertação, acreditavam agora, passava por Washington.

Um estreitamento radical

A intervenção da OTAN ajudou a garantir as condições para o Kosovo declarar unilateralmente a independência da Sérvia em 2008. No entanto, a transformação ideológica do KLA teve várias consequências para a política do Kosovo.

Primeiro, contribuiu para uma mudança para um nacionalismo chauvinista. Embora o Hoxhaismo tivesse estado sempre ligado ao nacionalismo albanês no Kosovo, manteve um espírito internacionalista. Os Hoxhaistas enfatizaram sua solidariedade com outros povos dos Bálcãs e acreditavam em uma futura federação regional. Até o final de 1997, o velho marxista-leninista Adem Demaçi ainda propunha uma federação da Sérvia, Montenegro e Kosovo - “Balkania” - para resolver o crescente conflito.

Este internacionalismo foi alijado da ideologia posterior do ELK, e dentro das suas fileiras foram permitidas correntes mais ardentemente chauvinistas do nacionalismo albanês, muitas vezes com consequências violentas para as minorias sérvias e romanichéis depois da guerra.

Em segundo lugar, a queda da política de classe ajudou a suavizar o caminho para a ascensão do KLA como parte da nova classe dominante.

Após a retirada das forças sérvias em junho de 1999, o Kosovo foi colocado sob a administração das Nações Unidas, que supervisionou a criação de instituições provisórias de governo. A liderança do KLA foi rápida em alavancar seu recém-descoberto apoio popular e o monopólio efetivo da violência para garantir posições poderosas e lucrativas dentro dessas instituições. Como núcleo da nova classe política, os ex-líderes do KLA se comportaram de maneira muito semelhante a seus antecessores, usando instituições do Estado para enriquecer, acumular poder e acertar contas.

Além disso, os estreitos laços que o ex-KLA promoveu com os administradores internacionais significaram que essa classe política estava ligada ao fracasso das instituições da ONU em realizar um desenvolvimento significativo do pequeno Estado devastado pela guerra. É revelador que a resistência à ocupação do Kosovo pela ONU não tenha vindo do antigo KLA, mas sim do movimento anti-colonial Vetëvendosje! (Autodeterminação), cuja liderança cresceu a partir dos protestos estudantis em massa dos anos 90.

Finalmente, a confiança do KLA na intervenção das potências ocidentais forneceu legitimidade à doutrina da “intervenção humanitária” e ao novo paradigma de segurança que os estrategistas norte-americanos desenvolveram para reaproveitar a OTAN. Nesse sentido, precisamos considerar a Guerra do Kosovo como um passo significativo no caminho para a invasão do Afeganistão em 2001 e do Iraque dois anos depois.

O fato de a liderança do ELK não ter considerado as repercussões mais amplas de sua aliança com o Ocidente atesta o estreitamento radical de sua cosmovisão política.

Colaborador

James Robertson é professor assistente de história na Universidade da Califórnia em Irvine.

15 de agosto de 2018

Por quaisquer meios necessários

Precisamos de uma visão abrangente de reconstrução ecológica – e isso significa ter a geoengenharia como parte de nossa visão.

Peter Frase


Rede elétrica perto de Guestrow, Alemanha, em 7 de março de 2017.

Tradução / No início de 2017, houve uma notícia amplamente divulgada sobre a morte da Grande Barreira de Corais. Esta maravilha natural, ao largo da costa da Austrália, se estende por mais de 100 mil quilômetros quadrados. Foi construída e mantida por milhares de anos por bilhões de pequenos organismos e sustenta uma complexa população de vida aquática.

O recife tornou-se mais uma vítima das mudanças climáticas induzidas pelo ser humano. O culpado é um fenômeno conhecido como “branqueamento de corais”, causado pelo aquecimento das águas oceânicas. Os pólipos de corais que criam o recife super-aquecem e expelem as algas que vivem em seus tecidos, tornando-se brancas. Ao longo do tempo, isso leva à morte dos pólipos e, assim, à morte do ecossistema do recife.

O problema do branqueamento de corais tem sido conhecido há algum tempo, mas estudos recentes descobriram que o processo está avançando muito mais rápido do que o esperado – grandes áreas do recife já estão mortas. Em um artigo de março de 2017 no New York Times, um cientista australiano relata encontrar um nível de destruição que não se esperava ocorrer por trinta anos.

As reações à notícia seguiram narrativas ambientalistas previsíveis. Para alguns, foi água para o moinho da moralização verde, mais um testemunho do imperativo inegável de que precisamos mudar para um mundo com zero emissões de carbono. Para outros, foi um chamado desanimador ao niilismo. Afinal de contas, esta foi apenas a última demonstração de que as mudanças climáticas estão acontecendo muito mais rápido do que até mesmo os cientistas mais pessimistas acreditavam. Nessas circunstâncias, é fácil abandonar a esperança de que as instituições políticas possam enfrentar a crise na escala de tempo que ela exige.

Houve, no entanto, outra notícia sobre o recife, que sugeria um imaginário político diferente para a resposta à crise climática. Um grupo de pesquisadores da Universidade de Sydney divulgou um estudo no qual propunham proteger o recife por meio de uma técnica conhecida como “clareamento de nuvens”.

A idéia é simples de se descrever, ainda que radical em suas implicações ecológicas. O objetivo é simplesmente fazer as nuvens refletirem mais luz solar. Isso diminui a quantidade de luz que atinge a superfície da Terra, resfriando-a. Em uma das implementações mais consideradas, isso seria feito por navios atravessando o oceano, convertendo a água do mar em partículas de sal e depois espalhando essas partículas na atmosfera.

Os cientistas propuseram um esforço local de clareamento de nuvens, focado especificamente na proteção do recife. Ao evitar alguns graus de aquecimento, argumentaram eles, ainda pode ser possível salvá-lo.

Isso pode ou não ser realista. De fato, cálculos recentes sugerem que o tempo pode já ter se esgotado para a Grande Barreira de Corais. Mas os pesquisadores sugeriram uma abordagem para a crise climática que tem sido discutida em uma escala muito maior – que é extremamente controversa entre aqueles que estão preocupados com a quebra dos sistemas ecológicos que sustentam a civilização.

O mundo que fizemos

A “geoengenharia”, na definição oferecida pelo programa de geoengenharia da Universidade de Oxford, é “a intervenção deliberada em grande escala nos sistemas naturais da Terra para neutralizar as mudanças climáticas”. O clareamento de nuvens é apenas um item na agenda. Essas propostas implicam reduzir a quantidade de energia solar que atinge a Terra, como no caso do clareamento de nuvens, ou remover ativamente o dióxido de carbono da atmosfera através de algum tipo de captura e retirada. Tais idéias têm atraído o interesse de investidores ricos como Bill Gates e Elon Musk.

É neste ponto que muitos na Esquerda pulam fora do navio. A geoengenharia pode ser facilmente descartada como uma fantasia, a repetição mais absurda de todas da ilusão prometeica de que podemos exercer domínio sobre o mundo natural. Mesmo que a possibilidade desses esforços seja reconhecida, é perturbador pensar que é nossa atual classe dominante que os implementaria, com sua combinação característica de pensamento arrogante de curto prazo e desprezo para com os trabalhadores. E, finalmente, algumas pessoas simplesmente acham inaceitável interferir na natureza dessa maneira, rompendo os processos metabólicos da Terra.

A última objeção é a mais fácil de dispensar, mas também talvez a mais importante. Precisamos reconhecer que somos, e já há muito tempo, manipuladores e gerentes da natureza. Mesmo aqueles que reconhecem isso, em um suspiro ainda cairão em metáforas como “pegada de carbono” reduzida – como se pudéssemos apenas pisar mais levemente e permitir que a natureza se consertasse sozinha. Esta é, paradoxalmente, uma das posições mais antropocêntricas imagináveis, uma vez que presume que é o estado eterno e natural do mundo ser habitável para os seres humanos. Mas Deus não criou o mundo especificamente para nós. A história natural é indiferente aos seres humanos e a todos os outros seres vivos e é caracterizada por mudanças caóticas e extinções em massa, não pelo equilíbrio homeostático.

Além do mais, nós já transformamos irreversivelmente o mundo natural, muitas vezes em nosso detrimento. “Quebrou, pagou!”, como diz a expressão do varejo. E, definitivamente, nós estamos pagando.

Este é o argumento defendido pelo jornalista de ciência Oliver Morton em seu discurso de 2015 a favor da geoengenharia, ‘The Planet Remade’. [‘O Planeta Refeito’] Nesse discurso, ele aborda a ideia popular do “Antropoceno”. O termo se origina com geólogos, que propuseram que nós deixamos para trás o período do Holoceno, iniciando um estágio na história da Terra caracterizado especificamente pela transformação humana do ecossistema.

Há críticas geográficas a esta proposta, mas também existem algumas críticas políticas sérias. Intelectuais de esquerda, como Elmar Altvater, Andreas Malm e Jason Moore, têm questionado toda a noção de “Antropoceno”. De acordo com esses críticos, seria melhor chamá-lo de “Capitaloceno”, uma vez que a degradação da natureza é na verdade atribuível aos métodos de acumulação de capital da classe dominante e não à civilização humana em geral.

Embora este argumento seja baseado em análises históricas bem embasadas, ele é limitado como um guia para a Política. Acusar o Capitaloceno equivale a uma argumentação de origem em retidão moral: “foram vocês, elites dominantes que arruinaram o mundo, não nós!” Seja como for, qualquer sociedade que suceda ao capitalismo herdará o mundo que as sociedades anteriores construíram – e nós já temos feito isso ativamente por mais tempo do que muitas pessoas conseguem perceber.

O livro de Morton ilustra isso por meio de uma intervenção na natureza que recebe bem menos atenção do que o ciclo do carbono que alimenta o aquecimento global: o ciclo do nitrogênio.

O nitrogênio é essencial para a vida, e é abundante na atmosfera. Porém, para ser utilizável para o crescimento de plantas, os átomos de nitrogênio inertes devem ser “fixados” a outro elemento, um processo que, durante milhões de anos, foi feito quase exclusivamente por bactérias do solo.

Isso até o capitalismo industrial surgir.

Tudo termina em merda

A história da gestão humana do ciclo do nitrogênio é literalmente uma história de merda. Nossa história começa na Europa do século XIX, com o químico alemão Justus von Liebig. Foi ele quem notou a importância do nitrogênio para o crescimento das plantas e, portanto, para o abastecimento de alimentos. Além disso, ele observou a maneira específica com que a industrialização capitalista rompeu o ciclo tradicional de nitrogênio.

Em uma sociedade agrária, a comida é consumida onde é cultivada, e os resíduos, sob a forma de estrume e composto, são devolvidos ao solo. Mas na Inglaterra vitoriana, esse ciclo foi interrompido pela industrialização, que atraiu um grande número de pessoas para as cidades. Lá, elas consumiam alimentos cultivados no campo. Os seus resíduos, em vez de retornar ao solo, iam parar nas ruas de Londres, produzindo imundície na cidade e diminuindo a fertilidade do solo no interior. Karl Marx, numa expressão mais tarde popularizada pelo sociólogo John Bellamy Foster, chamou essa disjunção no ecossistema de “fenda metabólica” do capitalismo.

Isso, por sua vez, levou a Grã-Bretanha a enfrentar um problema geopolítico urgente: uma oferta insuficiente de fezes. Ao longo da costa do Peru foi descoberto que os pássaros, por milhares de anos, vinham depositando seus excrementos em ilhas, onde isso se acumulava em enormes quantidades numa substância rica em nitrogênio conhecida como “guano“. Isso podia ser usado como fertilizante, um substituto para o nitrogênio perdido por causa de uma economia urbanizada e um meio para escapar de qualquer limite malthusiano de capacidade de um determinado território para alimentar uma população em crescimento. Durante o período do “imperialismo do guano”, guerras foram travadas para garantir esses suprimentos – mas, no final do século XIX, eles já haviam sido esgotados na maior parte.

Foi nesse ponto que as sociedades capitalistas deram um salto decisivo na gestão humana do ciclo do nitrogênio. Em 1909, o químico alemão Fritz Haber desenvolveu um processo para fixar artificialmente o nitrogênio na amônia, um processo que ainda é usado para produzir fertilizantes comerciais. Agora era possível escapar da dependência da merda, mas a um custo: o processo era extremamente intensivo em energia. Assim, voltamos à questão da crise climática – enquanto a geração de energia depender de combustíveis fósseis, todo alimento é, em essência, um produto do petróleo.

Décadas mais tarde, vivemos agora em um mundo onde mais nitrogênio é fixado em fábricas do que no solo e, conseqüentemente, podemos dar suporte a uma população global de mais de sete bilhões de pessoas. É claro que poderíamos suportar essa população de forma mais eficiente se estivéssemos livres da escassezes artificiais e dos desperdícios impostos pelo capitalismo. E a produção em excesso de nitrogênio, como a emissão em excesso de carbono, tem sérios impactos ambientais que os cientistas ainda estão tentando descobrir como abordar. Mas é difícil enxergar como poderíamos deixar completamente para trás a fixação industrial do nitrogênio, o primeiro grande projeto de geoengenharia da humanidade.

Planejando a natureza

No entanto, a retórica de esquerda continua estando amplamente focada na redução de emissões, ao invés de na atenuação ou na adaptação aos efeitos das mudanças climáticas. Tomemos, por exemplo, o livro ‘This Changes Everything’ [“Isso Muda Tudo”] de Naomi Klein, que explica a urgência da crise climática e a incapacidade do capitalismo de lidar com ela. Klein observa corretamente que as demandas por redistribuição e justiça e um debate fundamental sobre os valores econômicos e sociais são pré-requisitos para soluções climáticas reais. Daí a sua sugestão de que lutar por uma renda mínima garantida pode ser mais urgente do que políticas tecnocráticas, como um imposto sobre o carbono. Mas ela também inclui um capítulo sobre geoengenharia, em que o assunto é tratado com a resposta usual de esquerda, com rejeição, perturbação e desgosto.

O subtítulo do capítulo pergunta zombando se “a solução para a poluição é… poluição?” A atitude desdenhosa em relação ao assunto é, portanto, anunciada logo no início. Da mesma forma, com a citação de abertura de William James: “nossa ciência é uma gota, nossa ignorância é um mar”.

Justo. Porém, como já vimos, nossa ignorância nos levou ziguezagueando até um ponto onde nos fizemos os gestores de um ecossistema inteiro, gostemos disso ou não. Assim como não há uma maneira fácil de fugir da fixação industrial do nitrogênio, é difícil enxergar como poderíamos escapar de uma relação de emaranhamento cada vez maior com o sistema do carbono. Esse é ainda mais o caso, se levarmos a sério a insistência de Klein, e de muitos cientistas, de que as mudanças climáticas provavelmente serão mais severas e rápidas do que se esperava até alguns anos atrás. Ou seja, mesmo que passemos a zero emissões amanhã, o carbono que já foi emitido está aí para ficar e terá efeitos profundos.

Klein acha discussões sobre geoengenharia perturbadoras, pelo mesmo motivo que muitos ambientalistas de esquerda: elas ameaçam ser uma distração da tarefa de transformar nossos sistemas energéticos, políticos e econômicos. Ela observa que o mais popular dos planos agressivos de geoengenharia “não faz nada para mudar a causa subjacente das mudanças climáticas, o acúmulo de gases que capturam o calor”. Isso é, sem dúvida, verdade.

Deixando de lado os charlatães como Newt Gingrich, ninguém acredita que a geoengenharia é uma alternativa a se mudar para um sistema de energia com zero carbono. Em vez disso, faz parte de uma estratégia que combina mitigação e adaptação com descarbonização. Mas a preocupação política é que, até mesmo discutir a manipulação ativa do clima, acobertaria os que usariam esses esquemas como uma desculpa para o capitalismo de combustíveis fósseis continuar os negócios como de costume. Isso posto, algumas pessoas na esquerda perguntam: não podemos simplesmente deixar todas essas coisas para depois da revolução ecossocialista?

Mas colocar na mesa essa conversa nesses termos por si só habilitaria nossos inimigos – e nossos “amigos só de tempo bom”. Afinal, não são apenas trapaceiros empreendedores de tecnologia que iniciaram a estrada em direção à manipulação climática. O aparato da governança global neoliberal também está de olho na geoengenharia.

Considere, por exemplo, a ‘Carnegie Climate Geoengineering Governance Initiative’ ou o “c2g2” [algo como “Iniciativa Carnegie de Governança de Geoengenharia Climática”]. Este é um projeto do ‘Carnegie Council for Ethics in International Affairs’ [“Conselho Carnegie para a Ética em Assuntos Internacionais”], uma organização sem fins lucrativos, cujas origens remontam ao barão ladrão Andrew Carnegie, do século XIX. A c2g2 adota uma visão cautelosa da geoengenharia, afirmando que, embora não sejam “à favor ou contra a pesquisa, o teste ou o uso potencial de tecnologias de geoengenharia climática”, eles vêem a necessidade de “uma discussão mais ampla e por toda a sociedade sobre os riscos, os benefícios potenciais, desafios éticos e de governança criados pela geoengenharia de clima”.

Em princípio, isso parece uma perspectiva sensata, até louvável. Certamente, isso é preferível do que colocar nossa fé em atores privados que não precisam prestar contas para ninguém. Mas o c2g2 é uma cria da ordem capitalista transnacional, e seu conselho está povoado por funcionários da ONU e de ONGs. Se não for criado incômodo para eles, uma “discussão com toda a sociedade” sobre a manipulação climática envolverá apenas as mesmas elites que nos deram órgãos de governança transnacionais como a Organização Mundial do Comércio e a União Européia.

É por isso que a esquerda não pode ignorar esses debates; porque resulta que a geoengenharia não é realmente tão única, ou tão diferente de toda uma série de questões que hoje nos confrontam: É mais um problema que tem escopo global, enquanto nossos movimentos permanecem persistentemente de caráter local. Construir solidariedade internacional é necessário para que possamos apresentar alternativas tanto às visões tecno-utópicas quanto às de liberais-do-tipo-ongs sobre a política climática.

Essa é uma das razões para termos discussões abertas sobre geoengenharia na esquerda: se não o fizermos, a burguesia simplesmente levará em frente seu trabalho sem nós. Mas há outro motivo também: Embora a perspectiva da geoengenharia como uma distração em relação à urgência de acabar com os combustíveis fósseis seja alarmante, devemos também estar atentos a outra armadilha que se encontra na direção oposta. Simplesmente, aqueles que querem enfatizar a severidade da crise climática encontram-se presos entre dois imperativos contraditórios.

Por um lado está a necessidade de convencer as pessoas de que, como diz o título do livro de Klein, isso muda tudo: As rápidas mudanças climáticas são uma realidade, e o capitalismo só pode responder de maneiras que às vezes são ineptas e às vezes, desumanas. Nesta perspectiva, falar de qualquer outra coisa que não seja a necessidade imediata de reduzir a zero as emissões de carbono seria alimentar os argumentos delirantes ou dissimulados daqueles que dizem que não precisaríamos mudar quase nada e que poderíamos confiar em algumas correções técnicas para resolver o problema.

No entanto, uma ênfase no apocalíptico também tem desvantagens severas. A jornalista Sasha Lilley tem advertido contra os perigos do “catastrofismo”. Ela argumenta que “a consciência da escala ou da severidade da catástrofe não leva inevitavelmente alguém a mudar na direção de uma política radical”. Em vez disso, isso pode encorajar a passividade e a quietude. Isso pode assumir a forma pessimista da antecipação de um desastre inevitável, ou a convicção otimista de que o sistema atual necessariamente cairá e será substituído por algo melhor. Nenhuma das versões motiva a ação política.

Este é o propósito de se explorar a perspectiva da geoengenharia em um contexto à esquerda – não como um substituto da descarbonização, mas como parte de um quadro maior de ecossocalismo. Imaginar esse retrato importa, porque a esquerda sempre se motivou para a luta imediata olhando para uma visão de um mundo melhor no futuro. E para que essa visão pareça tanto realista quanto atraente hoje, ela deve abranger tanto o fim dos combustíveis fósseis quanto a intervenção ativa sobre o clima. Caso contrário, nos sobra imaginar um futuro de austeridade e auto-sacrifício na melhor das hipóteses, e de morte apocalíptica na pior.

O aspecto dessa intervenção ainda é uma questão do debate científico, embora seja um tema cada vez mais urgente. Morton se inclina na direção de um programa de pulverização de partículas de aerossol na atmosfera superior, reduzindo assim a quantidade de energia solar que atinge a Terra e agindo contra o efeito estufa do dióxido de carbono. Outras propostas envolvem remover ativamente o co2 da atmosfera e enterrá-lo permanentemente. Mesmo o plantio em massa de árvores, que absorvem co2, pode ser considerado uma forma de geoengenharia.

Alguns, incluindo Klein, se opõem a tudo isso com base em que isso nos comprometeria permanentemente com um projeto de planejamento ecológico controlado por humanos, “levando nossos ecossistemas ainda mais longe da auto-regulação”. Mas o capitalismo já nos comprometeu com esse percurso muito tempo atrás. Ela também se preocupa com um correlato ecológico de sua famosa “doutrina de choque”, na qual “todos os tipos de oposição sensata derretem e todos os tipos de comportamentos de alto risco parecem temporariamente aceitáveis” diante de uma aguda crise ambiental.

A comparação permanece verdadeira, mas não da maneira que Klein pretende. O neoliberalismo da doutrina de choque foi uma resposta à crise real do capitalismo de bem-estar social do pós-guerra, uma crise que pegou a esquerda completamente despreparada. E se não prepararmos uma visão abrangente da reconstrução ecológica, não é irracional se preocupar que a classe dominante – sejam os membros das elites tecnológicas, como Bill Gates, ou os burocratas de um c2g2 – vai aparecer com a sua versão, e a impor pela força.

O que importa é, em última análise, menos as técnicas de geoengenharia do que a forma como são implementadas e por quem. Dessa forma, a geoengenharia assemelha-se aos organismos geneticamente modificados [ou “transgênicos”]: não são intrinsecamente condenáveis, mas são potencialmente monstruosos quando desenvolvidos pelo agronegócio capitalista com o objetivo de maximizar seu lucro.

Em resposta às acusações de arrogância e Prometeísmo, é também importante enfatizar que embora aceitemos a inevitabilidade de tentarmos “planejar” a natureza, o projeto socialista não visa controlar a natureza. A natureza nunca está sob nosso controle, e sempre há consequências não desejadas. Mas assim como não podemos confiar nem no mercado nem em uma elite política para produzir automaticamente resultados econômicos justos, não podemos assumir que uma natureza intocada nos proporcionará um mundo seguro e abundante no qual viver, neste ou em qualquer outro sistema social. E assim, no processo para alcançar a ordem pós-escassez que o biólogo marxista David Schwartzman chama de “comunismo solar“, vamos assumir a tarefa de limpar a bagunça que o capitalismo criou e de criar um antropoceno mais racional, democrático e igualitário do que aquele que agora habitamos.

Talvez isso nem importe. Talvez as mudanças climáticas já tenham ido longe demais, e a geoengenharia seja um mero sonho ingênuo – ou pior, algo que criará efeitos colaterais não intencionais que apenas acelerarão nossa queda. Mas a única alternativa à torcer pelo melhor é resignar-nos com o pior. O projeto socialista está baseado na esperança emancipatória de que, nas palavras d’A Internacional, “um mundo melhor está nascendo”. Se assim for, ele não nascerá a menos que o ajudemos vir à luz.

Sobre o autor

Peter Frase is on the editorial board of Jacobin and the author of Four Futures: Life After Capitalism.

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