5 de outubro de 2013

Políticas públicas muitas vezes traem os propósitos da Constituição de 1998

Lena Lavinas

Folha de S.Paulo

Foi na primavera, 25 anos atrás. Promulgada a nova Constituição, lê-se no seu artigo 6º que "são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados".

Prover, proteger, amparar, prevenir contra riscos e incertezas: o essencial nos foi enfim reconhecido, extensivo a todos sem senões, mulheres e homens, rurais e urbanos, negros, pardos, indígenas ou brancos.

A uniformidade e a equivalência nos benefícios e nos serviços, a universalidade da cobertura e do atendimento e a irredutibilidade nas garantias constitucionais conformaram a identidade de condições que nos faltava para juntos forjarmos uma sociedade igualitária, mais homogênea, mais justa e também, em consequência, mais eficiente.

Assegurados valores e princípios, o desafio dos últimos 25 anos consiste em dispor de mecanismos regulatórios e normas que garantam, de forma reiterada e permanente, cumulativa, essa identidade de condições entre todos os cidadãos. Tecer laços sociais fortes, reciprocidades, que nos recordem, a cada experiência compartilhada, que nos relacionar como iguais é o que há de nos construir como nação.

Afinal, nosso nacionalismo arraigado e reconhecido internacionalmente como vantagem haveria de contribuir para superar essa profunda desigualdade que nos aparta, munidos que estamos de preceitos constitucionais de equidade e justiça social.

Mas ela pouco se move, essa desigualdade. Houve um ligeiro recuo, promissor, é verdade, mas acanhado, resultado, sobretudo, do crescimento com emprego e da centralidade que a Carta Magna conferiu ao salário mínimo ao vinculá-lo a direitos e benefícios. E à norma que foi criada para indexá-lo promovendo redistribuição. Essa, uma boa norma.

Por que tantos tropeços, tantas frustrações nessa trajetória se a direção a seguir nos conforta?

Há quem julgue equivocadamente que tais tropeços se devem à falta de recursos para garantir aquilo que constitui o compromisso político público de construir uma sociedade de iguais.

Pressuposto falso. A engenharia do desenho do orçamento da seguridade social, por exemplo, foi uma belíssima inovação institucional, que gera receita para honrar benefícios previdenciários, assistenciais e prover saúde pública e universal. Toda a população brasileira contribui, e os mais pobres, com maior esforço.

Com crescimento e formalidade, o orçamento da seguridade é não apenas superavitário, mas engorda o orçamento fiscal com dezenas de bilhões anualmente. Só em 2012, foram desviados R$ 58 bilhões que poderiam universalizar a provisão da atenção básica, que hoje atende --e mal-- a só 50% da população.

Porém, em lugar de expandir a atenção básica, crescentemente nas mãos do mercado privado de saúde, que funciona na restrição da oferta de serviços, impondo o subconsumo e, portanto, perda de bem-estar, ouve-se de gestores públicos ser necessário "focalizar para universalizar"!

Definem-se "doenças da pobreza", como prioritárias no atendimento aos pobres, comprometendo o grande diferencial que tem o Brasil "vis-à-vis" outros países em desenvolvimento: um sistema único e universal de saúde, que não carece de recursos para funcionar satisfatoriamente, senão de uma gestão pública consequente e respeitosa de uma institucionalidade definida constitucionalmente. O setor público entroniza a regra do mercado e faz da renda o mecanismo de acesso à proteção em caso de contingência.

Da mesma maneira, a regulação à pobreza se faz na contramão do que reza a Constituição. Condicionalidades são exigidas dos reconhecidamente pobres, para que lhe seja garantido o que de direito. E se faz deles não iguais, tornando ilegítimo o direito derivado da necessidade.

A institucionalidade forte da nossa Constituição é permanentemente ameaçada por regras inadequadas e perniciosas que muitas vezes formatam a política pública e desfiguram seus propósitos.

A estrutura da governança econômica --expressão emprestada a Samuel Bowles-- explica distorções na rota da equidade. O problema não reside no traçado dos nossos sonhos, mas na forma como se faz a gestão da política pública, que atropela e invalida valores universais que elegemos como nossos.

O mercado se expande, cresce o consumo. Isso é bom? Certamente, mas insuficiente, pois a equidade padece. Ela não se mede pela incorporação ao mercado. É tempo --ainda e sempre-- de primaveras que façam florescer nossos ideais de igualdade, palpáveis, factíveis e constitucionalmente amparados.

Sobre a autora


Lena Lavinas é professora do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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