1 de novembro de 2019

Encarando o Antropoceno: uma atualização

Este artigo foi adaptado do posfácio de Angus para a edição alemã (Unrast Verlag, 2020) de seu livro pioneiro Facing the Anthropocene (Monthly Review Press, 2016).

Ian Angus


Ian Angus, Facing the Anthropocene: Fossil Capitalism and the Crisis of the Earth System, Monthly Review Press (2016).


Tradução / Escrevi Facing the Anthropocene (Encarando o Antropoceno) para ajudar a fazer uma ponte entre a ciência do Sistema Terrestre e o ecossocialismo — para mostrar aos socialistas por que devem compreender o Antropoceno e para mostrar aos cientistas do Sistema Terrestre porque devem compreender o marxismo ecológico.

Quando Facing the Anthropocene foi publicado em 2016, refletia, com o melhor da minha capacidade, o estado do conhecimento científico e do debate na época. Mas o mundo não para, então pode ser útil delinear alguns desenvolvimentos recentes importantes na ciência do Antropoceno nos dois principais campos envolvidos: a Geologia, que tem se preocupado principalmente em definir formalmente a nova época; e a ciência do Sistema Terra, que estuda as mudanças globais biológicas, químicas e físicas que estão remodelando as condições de vida neste planeta.

Formalização

Os geólogos dividiram os 4,5 bilhões de anos da Terra em uma hierarquia de éons, eras, períodos, épocas e idades — divisões que refletem as principais mudanças nas condições e formas de vida dominantes na Terra, conforme revelado nos estratos geológicos. Os procedimentos para alterar a Escala do Tempo Geológico, desenvolvidos ao longo de dois séculos, são rigorosos e demorados: não é incomum que uma proposta de alteração seja investigada e debatida por décadas antes de uma decisão ser tomada.

Em 2016, uma clara maioria no Grupo de Trabalho do Antropoceno era favorável ao reconhecimento de uma nova época, mas eles precisavam de evidências estratigráficas mais específicas antes que uma proposta formal pudesse ser feita aos órgãos de regulação da Geologia, onde uma maioria de 60 por cento dos votos é necessária para aprovar qualquer mudança na Escala do Tempo Geológico. A pesquisa subsequente se concentrou em duas questões.

Quando o Antropoceno começou? Em maio de 2019, após extensa avaliação de múltiplas possibilidades, 88 por cento dos membros do Grupo de Trabalho do Antropoceno votaram que uma nova época começou em meados do século XX. Essa foi uma votação vinculante, então outras possibilidades não estão mais em discussão.

Que evidência física nos estratos geológicos — conhecida informalmente como “cavilha de ouro” [“golden spike”] — é o melhor indicador para o novo começo de uma nova época? Muitas possibilidades estão sendo consideradas, cada uma com vantagens e desvantagens. Por exemplo, um estudo de 2018 discute vários exemplos de “depósitos do Antropoceno” apenas na Inglaterra, incluindo precipitação radioativa, plásticos, cinzas de combustíveis fósseis, concreto e vários poluentes químicos que deixam traços duradouros e prontamente identificáveis. Todos eram raros ou inexistentes antes da Segunda Guerra Mundial e todos tem sido largamente depositados desde então.1

Outro artigo recente propõe os resíduos de frangos de corte moderno, que são “morfologica-, genetica- e isotopicamente distintos dos frangos domésticos antes de meados do século XX… [e] simbolizam vividamente a transformação da biosfera para se ajustar aos padrões de consumo humano em evolução, e mostram claro potencial para ser uma espécie-marcadora bioestratigráfica do Antropoceno.”2

Uma cavilha de ouro deve identificar inequivocamente o início de uma nova época e deve estar acessível para estudo por geólogos, agora e no futuro. A escolha de um que seja aceito por geólogos de todo o mundo — uma comunidade que é cientificamente conservadora quanto às mudanças na escala de tempo — exigirá uma pesquisa geológica detalhada. O presidente do Grupo de Trabalho do Antropoceno, Jan Zalasiewicz, descreve o trabalho como “extenso, complicado e caro” e diz que “provavelmente não será antes, no mínimo, do final de 2022, que os dados terão sido coletados e compilados para que a proposta possa ser formulada corretamente.”3 A pandemia de COVID-19, é claro, pode atrasar esse trabalho ainda mais.

Além da geologia

É importante ter em mente que os debates sobre a aceitação formal do Antropoceno são específicos da Geologia. Em outras ciências da Terra, a ideia de que um estágio qualitativamente novo na história planetária começou agora é amplamente aceita e se tornou uma parte fundamental da análise da mudança global.

Em 2018, por exemplo, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) afirmou que o “contexto abrangente” para seu relatório sobre o impacto do aquecimento de 1,5 ºC é que “a influência humana se tornou o principal agente de mudança no planeta, fazendo o mundo passar do período relativamente estável do Holoceno para uma nova era geológica, freqüentemente chamada de Antropoceno. Responder às mudanças climáticas no Antropoceno exigirá abordagens que integrem vários níveis de interconectividade em toda a comunidade global.”4

Na visão do IPCC, “o Antropoceno oferece uma compreensão estruturada da culminação das relações passadas e presentes entre ser humano e meio ambiente e oferece uma oportunidade de visualizar melhor o futuro para minimizar dificuldades , ao mesmo tempo que reconhece a responsabilidade diferenciada e a oportunidade de limitar o aquecimento global e investir em perspectivas para um desenvolvimento sustentável climaticamente resiliente .”5

Essas declarações marcam um importante avanço na abordagem do IPCC quanto às mudanças climáticas, indo além dessa (muito importante) questão isolada e passando a vê-la como parte da emergência global que ameaça a relação metabólica da sociedade com o resto do Sistema da Terra — a questão central na ciência do Antropoceno.

A Ciência do Antropoceno Culpa Toda a Humanidade?

No apêndice de Facing the Anthropocene, mostrei que os cientistas dos Sistemas da Terra vem repetidamente rejeitando as afirmações de que “todo mundo é responsável” pelas mudanças climáticas. Mas, aparentemente porque a palavra Antropoceno deriva do grego anthropos, que significa ser humano, alguns críticos continuam a acusar a ciência do Antropoceno de culpar toda a humanidade pela crise ambiental global. Alguns até afirmam que nomear a nova época de Antropoceno é parte de um esforço deliberado para desviar a atenção da responsabilidade do capitalismo.

Quem ainda acredita nisso deve ler dois artigos científicos recentes.

Em agosto de 2018, proeminentes cientistas do Antropoceno escreveram: “diferentes sociedades ao redor do mundo têm contribuído de maneira diferente e desigual para as pressões sobre o Sistema da Terra e terão capacidades variadas para alterar trajetórias futuras”. Em sua seção de informações suplementares, eles acrescentam: “o bilhão de pessoas mais ricas produzem 60% dos GEEs [gases de efeito estufa], enquanto os três bilhões mais pobres produzem apenas 5%.”6

Ainda mais decisivamente, Will Steffen, que liderou os programas de pesquisa que identificaram e definiram o Antropoceno, desafiou diretamente a afirmação comum de que o crescimento populacional é um dos principais motores da Grande Aceleração. Em um livro de 2019 editado por membros do Grupo de Trabalho do Antropoceno, ele destacou que “quase todo o crescimento populacional de 1950 a 2010 ocorreu nos BRICS e em países pobres … [e] em 2010, os 18% da população mundial que vivem em países da OCDE representaram 74% da atividade econômica global.” Ele concluiu que “capitalistas industriais dos países ricos, não ‘a humanidade como um todo’, são os grandes responsáveis pelo Antropoceno, como visto nos padrões da Grande Aceleração.”7

Essas podem não ser análises ecossocialistas perfeitas, mas certamente explodem o mito de que a ciência do Antropoceno culpa a todos. Vamos acabar com essa confusão.

Em direção à Terra Estufa?

A pesquisa contínua na ciência do Sistema da Terra está produzindo cada vez mais evidências que confirmam, como escreveu o ambientalista radical Barry Commoner cinquenta anos atrás, que “o atual sistema de produção é autodestrutivo; o curso atual da civilização humana é suicida.” Aqui estão alguns exemplos de estudos publicados recentemente:

  • Aquecimento global: os cinco anos mais quentes já registrados foram 2015, 2016, 2017, 2018 e 2019.
  • Biodiversidade: as populações de insetos terrestres caíram 25% desde 1990.
  • Oceano Ártico: a cobertura de gelo no verão está diminuindo cerca de 13% ao ano.
  • Peixes: cerca de 90% das populações de peixes marinhos estão agora totalmente exploradas, superexploradas ou esgotadas.
  • Destruição de terras: Dependendo da localização, o solo fértil está sendo erodido entre dez e cem vezes mais rápido do que o solo novo pode se formar.
  • Desmatamento: em média, uma área de floresta do tamanho do Reino Unido foi perdida todos os anos de 2014 a 2018.

Essa lista poderia ser estendida exaustivamente — quase todas as partes da biosfera estão sendo degradadas a taxas sem precedentes. Mas o Antropoceno envolve mais do que um acúmulo de problemas ambientais. É uma crise do Sistema da Terra — perturbação dos processos biológicos, químicos e físicos globais que interagem constantemente e em que uma mudança em qualquer parte pode afetar o resto. Algumas das pesquisas atuais mais importantes focam no potencial de processos estressados pelo clima desestabilizarem uns aos outros, levando a uma retroalimentação que pode perturbar todo o sistema.

Um relatório de 2018 assinado por dezesseis dos principais cientistas do Sistema Terra do mundo examinou os possíveis efeitos do aquecimento global nos ciclos complexos e retroalimentados que moldam todo o planeta. Eles identificaram dez processos que têm impactos globais e podem ser radicalmente acelerados por aumentos de temperatura relativamente pequenos, incluindo degelo do permafrost, liberação de hidratos de metano do fundo do oceano, absorção de dióxido de carbono pelo oceano e solo enfraquecido, aumento da respiração bacteriana nos oceanos, desmatamento da Amazônia e/ou de florestas boreais, redução da cobertura de neve do norte, perda do gelo marinho ártico e/ou antártico e derretimento dos mantos de gelo polares.

Qualquer um deles poderia acelerar substancialmente o aquecimento global por si só e, se algum ultrapassar um ponto de inflexão, pode desencadear uma “cascata de inflexão” que acelera permanentemente outras. “Por exemplo, a derrubada (perda) do Manto de Gelo da Groenlândia pode desencadear uma transição crítica na Circulação Meridional de Capotamento do Atlântico. Ao causar o aumento do nível do mar e o acúmulo de calor no Oceano Antártico, esses dois efeitos em conjunto acelerar a perda do Manto de Gelo da Antártica Oriental.”

Se tal cascata acontecer, a Terra poderá ser propulsionada de maneira imparável em direção a “uma temperatura média global muito mais alta do que qualquer interglacial nos últimos 1,2 milhão de anos e a níveis do mar significativamente mais altos do que em qualquer momento do Holoceno.” A resultante “Terra Estufa” (“Hothouse Earth”) experimentaria “condições que seriam inóspitas para as sociedades humanas atuais e para muitas outras espécies contemporâneas”.8

Outro estudo publicado na Science examinou como grandes mudanças em trinta sistemas naturais diferentes podem afetar uns aos outros. Eles descobriram que em 45% dos casos, exceder um ponto de inflexão em um sistema pode levar outros ao limite. “Ecossistemas regionais podem ser transformados pelo manejo de ecossistemas distantes e, inversamente, podem eles próprios impulsionar as transformações de outros ecossistemas distantes.”9

Um artigo na Nature em 2019 também abordou “a ameaça crescente de mudanças climáticas abruptas e irreversíveis”. Os autores concluíram:

Se cascatas de inflexão danosas podem ocorrer e um ponto de inflexão global não pode ser descartado, então esta é uma ameaça existencial para a civilização. Nenhuma análise econômica de custo-benefício vai nos ajudar. Precisamos mudar nossa abordagem quanto ao problema do clima... 
O tempo de intervenção restante para evitar inflexões já pode ter encolhido em direção a zero, enquanto o tempo de reação para atingir emissões líquidas nulas é de 30 anos, na melhor das hipóteses. Consequentemente, podemos já ter perdido o controle sobre a ocorrência ou não de inflexões . Uma possível salvação é que a taxa na qual o dano se acumula a partir da inflexão — e, portanto, o risco apresentado — ainda pode estar sob nosso controle até certo ponto. 
A estabilidade e resiliência do nosso planeta estão em perigo. A ação internacional — não apenas palavras — deve refletir isso.10

Ao colocar firmemente as mudanças climáticas no contexto do Antropoceno, estudos como esses desafiam a visão de que o aquecimento global pode ser resolvido por pequenas mudanças e reformas de mercado. Medidas incrementais, como a precificação do carbono, não podem resolver os problemas sistêmicos que estão incessantemente elevando as temperaturas globais e empurrando a Terra para um estado novo e sem precedentes no qual o futuro da própria civilização está em perigo.

Em Facing the Anthropocene, tentei mostrar como as mudanças no capitalismo durante e após a Segunda Guerra Mundial causaram as mudanças globais que os cientistas chamaram de Grande Aceleração. Como resultado, o que Karl Marx chamou de “uma ruptura irreparável no processo interdependente do metabolismo social” tornou-se uma rede inter-relacionada de rupturas globais. O maior desafio que nossa geração enfrenta é reparar essas imensas quebras nos sistemas de suporte de vida da Terra antes que seja tarde demais.

Notas

Jan Zalasiewicz et al., “The Stratigraphical Signature of the Anthropocene in England and Its Wider Context,” Proceedings of the Geologists’ Association (2018): 482–91.

Carys E. Bennett et al., “The Broiler Chicken as a Signal of a Human Reconfigured Biosphere,” Royal Society Open Science, 12 de Dezembro, 2018.

Correspondência privada, 23 de Abril, 2020.

Global Warming of 1.5°C (Geneva: Intergovernmental Panel on Climate Change, 2019), 53.

Global Warming of 1.5°C, 54.

Will Steffen et al.,”Trajectories of the Earth System in the Anthropocene,” Proceedings of the National Academy of Sciences, 6 de Agosto, 2018, 8252–59.

Will Steffen, “Mid-20th-Century ‘Great Acceleration,’” em The Anthropocene as a Geological Time Unit, ed. Jan Zalasiewicz et al., (Cambridge: Cambridge University Press, 2019), 254–60.

Steffen et al., “Trajectories of the Earth System in the Anthropocene.”

Juan C. Rocha et al., “Cascading Regime Shifts within and Across Scales,” Science, 21 de Dezembro, 2018, 1379-83.

Timothy Lenton et al., “Climate Tipping Points — Too Risky to Bet Against,” Nature, 27 de Novembro, 2019, 592-95.

Sobre o autor

Ian Angus edita o site Clima e Capitalismo. Ele é autor de vários livros e artigos, incluindo A Redder Shade of Green (Monthly Review Press, 2017).

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