15 de fevereiro de 2020

Para selar a catástrofe

Não passa de "ajuda" econômica em troca de soberania mutilada

Arturo Hartmann

Folha de S.Paulo

O presidente Donald Trump e o premiê Binyamin Netanyahu concedem entrevista na Casa Branca. Saul Loeb/AFP

Donald Trump não quer mudar radicalmente a realidade nos territórios palestinos com o plano articulado por seu representante (e genro) Jared Kushner. Afinal, as sugestões para temas centrais do embate, como a eliminação do controle palestino sobre Jerusalém Oriental, a anexação do vale do Jordão a Israel e o impedimento do retorno de palestinos no refúgio a seus lugares de origem já têm sido implementadas por Israel à revelia da lei internacional. As duas primeiras, desde a ocupação de Cisjordânia e Gaza, em 1967. A última, desde 1948, como parte dos processos que levaram à criação do Estado judeu em parte da Palestina.

A oferta de Trump é, na verdade, um pacote de “ajuda” econômica de cerca de US$ 27 bilhões, montante a ser coletado com investidores e doadores internacionais, em troca do aceite de uma soberania mutilada —a “visão realista” como recompensa ao consentimento à violência da conquista israelense.

Jerusalém teria suas fronteiras definidas pelo muro levantado desde 2002 sob a alegação israelense de “razões de segurança”, mas que empurra a “Jerusalém palestina” aos subúrbios de Kfar’ Akab, ao norte, e Abu Dis, a leste. A sugestão Trump-Kushner vindica aqueles que viam na barreira um instrumento de anexação do território.

O plano também premia Israel com a soberania sobre o vale do Jordão, extensão de terras agrícolas que suas forças de ocupação já controlam. O Banco Mundial apontava em 2016 que “restrições de movimento e acesso” a essa região custavam ao PIB palestino cerca de US$ 3,5 bilhões por ano.

Como plano de paz, portanto, a proposta inviabiliza-se por princípio ao tentar extrair a aquiescência dos nativos para que nada mude na expropriação de terras e controle de população. Mesmo a liderança palestina, sujeita aos termos de Oslo, recusou as sugestões. Já pedir aos palestinos que renunciem a direitos e conexão com a terra que sustenta sua coesão social parece ambicioso demais.

O que Trump quis de fato modificar envolve o xadrez regional para avançar sobre o Irã, que se fortalece com a normalização das relações de Israel com governos árabes. Para isso, o fato político palestino precisa ser removido. Kushner formulou então a seção 21, pela qual, definido o fim do conflito, acabariam também “todas as reivindicações entre as partes”, tudo a ser lavrado em novas resoluções da ONU.

Sob esse novo “contrato”, autoridades palestinas não poderiam processar Israel, EUA ou qualquer um de seus cidadãos em cortes internacionais. Conclusões da ONU, como as vistas no relatório de 2009 sobre o conflito em Gaza, de que políticas israelenses resultam em violações da lei internacional, ou as informações do Banco de Dados de Empresas nos Assentamentos, lançado nesta semana, deixam de ser constrangimentos para o governo israelense.

Resta saber se governos envolvidos na sustentação de Oslo, nomeadamente europeus, compartilham sobre a necessidade de destruir o horizonte político palestino e o conjunto de direitos associado a ele. A alguns governos árabes, como o saudita, de quem o plano depende financeiramente, e egípcio, politicamente, cabe pesar se sepultar o Estado palestino não lhes causam problemas em casa no caso de parte de suas populações não serem convencidas da ideia de entregar um passe livre a Israel. Trump precisa, também, que um conjunto de governos autoritários, simpáticos à produção de violência israelense, permaneça de pé. A começar pelo dele.

Sobre o autor

Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP) e ex-pesquisador visitante no Instituto de Estudos Árabes e Islâmicos na Universidade de Exeter (Reino Unido)

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