30 de setembro de 2020

Não era pra gente ter que ralar tanto assim, caramba

Hoje trabalhamos mais horas do que nas décadas passadas. Mas não deveria ser assim. Merecemos uma economia mais democrática, na qual tenhamos tempo livre para desenvolver nossos talentos, sair com amigos e familiares e fazer tudo que quisermos.

Uma entrevista com
Jamie McCallum


Nas últimas décadas, os trabalhadores com os menores salários foram os que mais tiveram aumento na quantidade de horas de trabalho. (Thomas Hawk / Flickr)

Entrevistado por
Meagan Day

Em 2014, uma mulher chamada Maria Fernandes morreu por conta de um vazamento de monóxido de carbono no estacionamento de uma loja de conveniência Wawa no norte de Nova Jersey. Ela trabalhava em média oitenta e sete horas por semana em três lojas diferentes da Dunkin’ Donuts na área e estava cochilando em seu carro como costumava fazer entre os turnos, com o motor ligado para aquecer. Um porta-voz da empresa comentou que Fernandes tinha sido uma “funcionária modelo”.

Esta é a história que abre o livro Worked Over: How Round-the-Clock Work Is Killing the American Dream [Esgotados: Como o Trabalho Exaustivo Está Matando o Sonho Americano], de Jamie McCallum. Mas não foi isso que inspirou McCallum, um professor de sociologia no Middlebury College, a estudar o fenômeno do excesso de trabalho nos Estados Unidos.

Em vez disso, o interesse foi despertado por sua observação de que os alunos em ambientes acadêmicos de elite estavam “quase competindo entre si para ver o quão duro eles poderiam trabalhar e para mostrar sua ética de trabalho”, ele disse à Jacobin. “Fiquei interessado em por que pessoas abastadas tratam o trabalho como um distintivo de honra.” Eventualmente, o projeto se expandiu para incluir trabalhadores de todas as outras faixas de renda.

Meagan Day, da Jacobin, falou com McCallum sobre o porquê de muitos trabalhadores de baixa renda terem que trabalhar tanto, o porquê de muitos trabalhadores de alta renda aparentemente quererem trabalhar muito, e como podemos construir uma sociedade que coloque o trabalho em seu devido lugar. Esta entrevista foi levemente editada para maior clareza.

Meagan Day

Como a jornada de trabalho mudou nas últimas décadas?

Jamie McCallum

Acho que quando algumas pessoas falam sobre o livro, elas se concentram nessa estatística, que demonstra que as horas de todos os trabalhadores assalariados aumentaram significativamente desde os anos setenta. Acho que esses dados são muito importantes.

No entanto, se você se aprofundar, encontrará muitas variações. O que achei interessante foi que os trabalhadores de baixa renda aumentaram mais sua jornada. Estamos todos familiarizados com profissionais de colarinho branco sobrecarregados, mas não acho que essa seja a parte mais interessante da história. Então, há uma tendência de excesso de trabalho para todos, mas há uma distribuição desigual desse aumento na quantidade de tempo de trabalho entre diferentes classes de pessoas.

Outra dimensão é o aumento da imprevisibilidade e volatilidade de turnos e horários, o que é, principalmente, o caso de trabalhadores de baixa remuneração do setor de serviços. Em outras palavras, seus horários tornaram-se cada vez mais controlados por seus gerentes e pela tecnologia. Horários imprevisíveis são voláteis por concepção, não apenas por acaso. E eles criam uma vida profissional incrivelmente estressante e agitada.

A última dimensão é o aumento da jornada para as pessoas que simplesmente não têm horas suficientes, o que está conectado à volatilidade. Como a maioria dos empregadores exige quarenta horas de disponibilidade para trabalhar, mesmo que você tenha apenas vinte horas de trabalho, é difícil encontrar um segundo emprego em que você também possa se envolver de forma razoável. Como resultado, muitas pessoas estão sofrendo de desemprego involuntário.

MD

Você pode explicar como os empregadores se beneficiam de ter pessoas disponíveis para quarenta horas, mas trabalhando apenas vinte, e sem saber quais exatamente serão essas horas efetivamente trabalhadas?

Jamie McCallum

Quando eu trabalhava no varejo, sabia minha escala com três semanas de antecedência, eu aparecia e tinha um turno normal. Mas agora, a nova tecnologia permitiu que os chefes agendassem pessoas apenas para os horários em que os trabalhadores são necessários. Em muitos algoritmos de agendamento, uma empresa pode relacionar o clima, a época do ano, a hora do dia e outros tipos de fatores que os ajudariam a determinar o quanto eles podem vender em um determinado dia. E isso os ajuda a definir quantos funcionários de frente eles precisam em uma loja de varejo, por exemplo. Isso, por sua vez, permite que eles paguem menos pela mão de obra e ganhem mais dinheiro.

A outra razão é que os empregadores acham que tornar as horas imprevisíveis e voláteis impede as pessoas de conversar com e conhecer seus colegas de trabalho em turnos regulares, que é como muito da organização política acontece. O interessante é que não funcionou bem assim, e agora há um grande movimento contra as escalas imprevisíveis.

MD

Ao buscar entender os padrões de mudança da quantidade de tempo de trabalho, você oferece três explicações: a econômica, a cultural e a política. Como definiria cada uma delas?

Jamie McCallum

Muitas vezes pensamos no problema do excesso de trabalho em termos individuais, relacionados ao desejo, necessidade ou aptidão de cada pessoa. Mas há múltiplas explicações não individuais do problema que compõem o argumento econômico.

Há um gráfico no livro que mostra o movimento paralelo do coeficiente de Gini, que é uma medida que quantifica a desigualdade, e o aumento de horas de trabalho nas últimas duas décadas. A maior parte dos lucros nos últimos quarenta anos tem ido para as pessoas no topo, enquanto os salários estão estagnados na base. Se os salários estão estagnados, então a principal maneira pela qual as pessoas da classe trabalhadora e até mesmo da classe média, em sua maioria, ganham mais dinheiro é trabalhando mais horas.

Então a desigualdade impulsiona longas jornadas de trabalho. E a força motriz da desigualdade é o poder de classe. A principal medida do poder de classe é o declínio do movimento trabalhista, que foi o meio através do qual as pessoas obtiveram uma redução da jornada de trabalho, bem como um mínimo suficiente de horas, e coisas como o pagamento de horas extras, por um bom tempo. Se você erodir o poder desse veículo pelo qual as pessoas reduzem suas horas, as conquistas simplesmente começam a desaparecer.

O próximo é o argumento cultural, que ajuda a explicar por que especialmente os trabalhadores de alta renda acabam trabalhando longas horas, embora tenham comparativamente mais controle sobre seu tempo, e o tempo livre ostensivamente é um bem social. Por que eles não trabalhariam menos se pudessem?

Encontrei duas razões. Uma é que os trabalhadores de alta renda na verdade estão sujeitos a algumas das mesmas forças de precariedade que os trabalhadores de baixa renda.

A segunda é que a ideologia do trabalho mudou para produzir uma nova ética de trabalho. Essa ideologia prioriza a autorrealização e a individualidade expressiva, e sugere que você obtém isso por meio do trabalho, e obtém mais disso por meio de mais trabalho.

Entrevistei muitos trabalhadores de alta renda, especialmente na indústria de tecnologia, e descobri que trabalhar mais horas era uma espécie de senso de identidade para eles.

A explicação política é que ambos os partidos têm seguido uma política de colocar pessoas pobres para trabalhar nas últimas duas décadas na forma de workfare, exigindo que trabalhadores atendidos por programas sociais trabalhem como contrapartida. Como resultado disso, você tem uma grande quantidade de novas pessoas inundando o mercado de trabalho, o que tem derrubado os salários. Isso tem usurpado totalmente o tempo das pessoas, tempo que era muito necessário para cuidar de crianças ou familiares ou estudar ou o que seja.

MD

Quais são algumas outras demontrações reais do problema do excesso de trabalho, conforme manifestado na vida dos trabalhadores de baixa renda?

Jamie McCallum

O exemplo mais óbvio no livro é a história de uma mulher que morreu enquanto trabalhava dividindo turnos em três Dunkin’ Donuts diferentes no norte de Nova Jersey. Ela morreu enquanto dormia em seu carro, o que fazia frequentemente entre os turnos. Ela trabalhava em média oitenta e sete horas por semana, sustentava um parceiro com filhos e se tornou por um minuto uma figura-propaganda das longas horas de trabalho e da economia de baixos salários. Ela se tornou um símbolo para outros trabalhadores que não tiveram o mesmo destino, mas que, no entanto, estavam sobrecarregados.

Se você andar para cima e para baixo em qualquer rua importante para o setor de varejo em uma cidade grande e conversar com trabalhadores fazendo seus intervalos, como eu fiz, rotineiramente descobrirá que alguns deles começaram seu turno às 9h45 e terminaram às 15h15 — esses horários estranhos que não fazem sentido até você perceber que seus turnos estão sendo divididos. E muitos deles dirão que precisam começar seu próximo trabalho uma hora e meia ou duas horas depois. As estatísticas trabalhistas podem capturar esse tempo como lazer ou tempo livre, mas, na verdade, a maioria das pessoas o gasta correndo para comer, pegando transporte público ou trocando de uniforme.

Um resultado é que o local de trabalho acaba tendo uma grande importância na vida das pessoas. Conversei com muitas que se sentiam e se descreviam como sobrecarregadas, mesmo que trabalhassem menos de quarenta horas por semana, só porque passavam mais tempo procurando trabalho ou correndo entre empregos, que é tempo gasto pensando sobre o trabalho e fazendo atividades relacionadas a ele, mesmo que não estejam sendo pagas. Então, trabalho excessivo e trabalho insuficiente são dois lados da mesma moeda, com uma característica compartilhada de aumento de estresse e intensidade, com as pessoas, às vezes, até os vivenciando simultaneamente.

MD

É mais fácil entender por que trabalhadores de baixa renda estão trabalhando mais, mas vamos retornar ao extremo oposto do espectro de classes. O que explica jornadas mais longas entre aqueles com mais controle sobre seu tempo de trabalho?

Jamie McCallum

Isso foi o mais interessante para mim, acho que em parte porque sou um workaholic notável.

Então, trabalhadores de baixa renda têm visto um aumento maior em suas jornadas de trabalho nas últimas décadas, mas ainda é verdade que trabalhadores de alta renda, em sua maioria homens, lideram o ranking. Por que isso? Essas coisas ideológicas são frequentemente colocadas como se as pessoas simplesmente tivessem uma nova ideia sobre o trabalho, ou o trabalho melhorasse e, portanto, decidíssemos trabalhar mais.

O que eu fiz foi tentar descobrir uma maneira de conectar um fascínio cultural com a ética do trabalho às mudanças materiais reais na forma como as pessoas trabalhavam. Em outras palavras, encontrar uma base política e econômica para essa nova crença na ideologia positiva da ética do trabalho.

Eu remonto isso aos anos setenta, quando os trabalhadores industriais começaram a exigir não apenas salários mais altos e assistência médica, mas empregos mais significativos. Eles se sentiam presos à linha de montagem, presos ao relógio, e quando isso entrou em contato com a política cultural dos anos sessenta e setenta, as pessoas não queriam mais fazer esse tipo de trabalho. Elas queriam fazer algo mais autorrealizável.

Você tem um discurso similar que surge entre pessoas que trabalham em escritórios no final dos anos oitenta e noventa, essa ideia de que o escritório é um inferno e as baias são como uma gaiola. Pense no ótimo filme Como Enlouquecer Seu Chefe. Acho que havia desejos sinceros de ter um trabalho que não fosse tão enfadonho e monótono, com o qual todos nós podemos nos identificar.

Adicione a isso o fato de que o trabalho passou de uma economia majoritariamente industrial para uma economia amplamente de serviços durante esse período. Uma economia de serviços realmente exige que as pessoas participem mais. Você não está apenas parado ao lado da linha de montagem; você tem mais cautela. As pessoas começaram a se ver cada vez mais como indivíduos valiosos para uma equipe. Tornou-se positivo se ver como importante para um processo de trabalho.

Combinando essas coisas, você obtém essa nova demanda por um trabalho melhor, mais significativo e mais individualizado. O que acontece depois é que gerentes, supervisores, gurus de negócios e assim por diante tomam nota e são capazes de repensar e reembalar o trabalho em si como sendo mais relevante e significativo. Os gerentes foram capazes de converter esse desejo por um trabalho com mais propósito em uma nova ética de trabalho, uma nova cultura de trabalho, para trabalhadores de alta renda.

MD

Como as ideias do livro respondem à crise da COVID-19?

Jamie McCallum

Quando a pandemia chegou, meu primeiro pensamento foi: “Ah, não, vou publicar este livro sobre longas jornadas de trabalho quando ninguém está trabalhando, quão bizarro isso será?”

Mas, na verdade, os primeiros dados sobre esse assunto parecem sugerir que muitas pessoas estão trabalhando mais. A medição do uso de e-mail indicou mais horas por dia, significativamente mais em alguns setores, especialmente entre trabalhadores de colarinho branco.

A crise da COVID parece ter exacerbado algumas das tendências que descrevi no livro e também produziu algumas dinâmicas inesperadas e interessantes. Por exemplo, devido aos cuidados com as crianças e outras responsabilidades domésticas, a multidão que trabalha em casa está vivenciando mais o dia pontuado sobre o qual falamos com pessoas que têm escalas flexíveis.

Enquanto isso, trabalhadores essenciais são basicamente apenas para serem sacrificados. E há também um número enorme de pessoas desempregadas cujas vidas são, no entanto, dominadas pela busca por trabalho e pela preocupação de que não o encontrarão. Então, há novamente muita desigualdade em como a vida profissional das pessoas é organizada em todo o espectro de classes.

MD

O problema do excesso de trabalho afeta pessoas em todo o espectro, e não deixa ninguém em melhor situação além dos capitalistas que lucram com o trabalho. Que tipos de coisas podemos fazer para diminuir o número de horas que trabalhamos?

Jamie McCallum

As pessoas precisam, antes de tudo, de mais controle sobre as horas que trabalham, o que requer ter mais controle sobre as condições do trabalho em geral. E a melhor maneira de garantir isso é por meio de um sindicato ou algo parecido. Então essa é a mudança mais óbvia.

A luta pelo controle também exige que lutemos pelo acesso a serviços básicos. Por exemplo, a maioria das pessoas obtém assistência médica por meio de seu empregador. Muitos sindicalistas relatam que a assistência médica é um empecilho para as negociações sindicais. Eles não podem falar sobre salários, tempo ou segurança porque estão muito ocupados negociando assistência médica. Se tirarmos isso da equação implementando assistência médica pública nacional ou o Medicare for All, a dependência das pessoas em relação ao trabalho diminuirá e a capacidade delas negociarem os termos de seus empregos aumentará.

Além disso, acho que também há políticas pelas quais podemos lutar que são totalmente vencíveis. Poderíamos simplesmente recortar, copiar e colar políticas de outros países onde as pessoas trabalham menos e vivem vidas mais felizes, políticas que nos permitiriam tirar mais tempo de folga para a saúde, para o trabalho de cuidado, para férias e assim por diante.

Finalmente, isso é um pouco menos concreto, mas pensamos no tempo como algo muito objetivo, mas isso não é verdade no capitalismo. Empregadores e trabalhadores não pensam no tempo da mesma forma. Em uma economia onde os trabalhadores têm controle democrático sobre seus empregos, o que é, digamos, uma sociedade socialista, o tempo de trabalho seria valorizado de forma muito diferente. Os próprios empregos seriam valorizados de forma diferente, e podemos imaginar que as pessoas descobririam uma maneira mais saudável de encaixar o trabalho em suas vidas.

Colaboradores

Meagan Day faz parte da equipe de articulistas da Jacobin.

Jamie McCallum é professor associado de sociologia no Middlebury College e autor, mais recentemente, de Worked Over: How Round-the-Clock Work Is Killing the American Dream.

Andrés Arauz se recusa a permitir que os neoliberais enterrem a revolução cidadã do Equador

Após uma campanha prolongada de perseguição judicial, o governo cada vez mais impopular de Lenín Moreno impediu o ex-presidente Rafael Correa de concorrer nas eleições de fevereiro. Mas o economista radical e candidato à presidência, Andrés Arauz, está avançando com sua tentativa de continuar a Revolução Cidadã de Correa - desafiando as iniciativas para impedir a esquerda de se candidatar.

Denis Rogatyuk


O renomado economista e candidato à presidência Andrés Arauz. (UNCTAD/Flickr)


Em 8 de setembro, o tribunal nacional do Equador decidiu manter uma decisão no “Caso de Subornos” contra o ex-presidente Rafael Correa - efetivamente impedindo-o de se candidatar à vice-presidência na eleição de fevereiro. Andrés Arauz, economista e ex-ministro de seu governo, continuará a liderar a chapa presidencial da coalizão “União pela Esperança” (Unión Por La Esperanza, UNES), enquanto o renomado jornalista Carlos Rabascall foi escolhido para substituir Correa como seu candidato a vice-presidente.

Este não foi o único ataque à "Revolução Cidadã" encabeçada por Correa. Em 16 de setembro, o partido Fuerza Compromiso Social (FCS), usado como a principal plataforma eleitoral por Correa e seus aliados desde o início de 2019, foi definitivamente cancelado pelo Conselho Nacional Eleitoral (CNE) do país, juntamente com dois partidos menores.

Isso deixa o Centro Democrático (CD) como o único partido registrado a patrocinar os candidatos da Revolução Cidadã. E assim que Arauz e Rabascall lançaram a nova chapa, uma nova ameaça para bloquear suas candidaturas emergiu da CNE. Isso gerou uma mobilização em massa de organizações de esquerda e progressistas em frente à sede dos órgãos eleitorais em Quito em 29 de setembro.

A decisão contra Correa é mais uma escalada da campanha político-judicial do governo autoritário do Equador, que tem como alvo o ex-presidente e seus aliados desde que o país voltou ao neoliberalismo sob a presidência de Lenín Moreno.

Em 8 de abril, a Corte Nacional de Justiça do Equador condenou Correa e seu ex-vice-presidente Jorge Glas a oito anos de prisão, ao mesmo tempo em que tentava impedi-los de ocupar cargos públicos pelos próximos 25 anos. A equipe jurídica de Correa, chefiada por Fausto Jarrín, apelou dessa decisão alegando que o caso carecia de provas substanciais ou do devido processo legal - sem mencionar suas óbvias motivações políticas. Mas o recurso foi rejeitado, em uma decisão que veio em velocidade recorde.

Perseguido

A acusação, chefiada pela Procuradora-Geral Diana Salazar, alegou repetidamente que o ex-presidente operou uma “rede de corrupção” durante o seu último mandato de 2013-17. De acordo com Salazar, o então partido Alianza PAIS de Correa serviu como organização de fachada para receber subornos de até US $ 7,8 milhões de empresas privadas como a notória gigante da construção brasileira Odebrecht.

A única prova material suposta era de US $ 6.000 que Correa pegou emprestado do fundo presidencial e depois pagou de volta. Antes dessa sentença, no entanto, Correa já enfrentou vinte e cinco outras acusações motivadas politicamente, que vão desde suborno a corrupção e até sequestro.

Assim como o caso de Lula da Silva no Brasil, Correa foi vítima de uma campanha de “lawfare” - ação judicial armada para fins políticos. Seu objetivo é prejudicar a integridade do ex-presidente e de outros líderes históricos da Revolução Cidadã por meio de perseguição judicial motivada politicamente, ao mesmo tempo em que mancha seu legado de prosperidade econômica, redução da pobreza e solidariedade entre as nações do Sul Global.

Correa não foi o único líder histórico da Revolução Cidadã a enfrentar perseguições políticas. Seu ex-vice-presidente Jorge Glas está na prisão desde outubro de 2017, após um caso semelhante de supostamente receber propina da Odebrecht.

Paola Pabón, a prefeita de Pichincha; o ex-deputado Virgilio Hernández; e Christian González, um ativista de base da organização Bulla Zurda, foram todos presos após apoiarem o levante de outubro de 2019 contra o regime de Moreno. Enquanto isso, Gabriela Rivadeneira, ex-presidente da Assembleia Nacional; Ricardo Patiño, o ex-ministro das Relações Exteriores; e Sofia Espin, ex-integrante da Assembleia Constituinte, foram obrigadas a buscar asilo no México.

Um perfeito estranho

À primeira vista, Andrés Arauz parece ser uma escolha estranha para liderar a Revolução Cidadã no novo governo. O economista de 35 anos estava conduzindo pesquisas para sua tese de doutorado na Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM), enquanto trabalhava no Centro de Política Econômica e Pesquisa (CEPR), com sede em Washington, onde se tornou particularmente vocal sobre a necessidade de utilizar Direitos Especiais de Saque (SDRs) como meio de financiar uma recuperação econômica livre de dívidas em todo o Sul Global. Ele também atuou anteriormente como ministro do conhecimento e talento humano do país durante os últimos anos do governo de Correa.

No entanto, Arauz sem dúvida representa “a nova guarda” da Revolução Cidadã — alguém cuja formação e experiência política foram moldados pelos sucessos e lutas do governo de Correa, e que permaneceu leal à revolução apesar da perseguição política em massa e repressão conduzida contra eles.

Ele foi rapidamente nomeado o “perfeito estranho” (el perfecto desconocido) pela mídia e seus aliados, devido à sua relativa obscuridade no cenário político do país contrastada com seu conhecimento e experiência na esfera econômica. De certa forma, isso se assemelha à experiência do próprio Correa durante sua primeira eleição em 2006.

Quatorze anos atrás, o Equador também enfrentou uma crise socioeconômica após a implementação das reformas neoliberais do presidente Lucio Gutiérrez, outro líder equatoriano eleito com uma plataforma de esquerda, apenas para trair completamente suas promessas de campanha. Da mesma forma, Correa era um jovem economista relativamente desconhecido que ganhou destaque como ministro das Finanças no governo de Alfredo Palacio, sucessor de Gutiérrez, e fez campanha com a plataforma de desfazer a austeridade e as políticas neoliberais de seus antecessores.

Por outro lado, Carlos Rabascall traz um elemento diferente para a chapa eleitoral da UNES. Jornalista e um dos rostos mais proeminentes do canal de televisão pública Equador TV ao longo de 2007-2017, também foi diretor do Desenvolvimento Institucional da Secretaria Nacional de Desenvolvimento Administrativo (SENDA) e membro do Conselho Nacional de Modernização (CONAM ). Ele representa o elemento institucional da Revolução Cidadã — o novo Estado construído durante esses dez anos de governo após a devastação causada pelo neoliberalismo.

No entanto, Arauz e Rabascall enfrentam uma batalha difícil não apenas contra o atual governo de Moreno, mas também contra uma série de outros doze candidatos em todo o espectro político. Entre eles está Guillermo Lasso, um dos banqueiros corporativos mais notórios do país e candidato perene da direita, mais uma vez concorrendo às eleições, desta vez recebendo o apoio do direitista Partido Social Cristão que tradicionalmente domina a metrópole costeira de Guayaquil.

Yaku Pérez, prefeito da província de Azuay, foi escolhido como candidato do partido Pachakutik — o braço político da coalizão da Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE), que tradicionalmente se opõe à Revolução Cidadã e também apoiou a candidatura de Lasso durante as eleições de 2017. A maioria dos outros candidatos são provenientes de pequenos partidos de direita, centro e outros partidos de esquerda que provavelmente atuarão como spoilers para Arauz e Rabascall.

Moreno vs Correa

Ao longo de seus dez anos como presidente, Correa se tornou um dos líderes mais populares da história do país. Isso porque ele conseguiu trazer estabilidade política, crescimento econômico e redução da desigualdade, bem como a introdução de uma nova constituição que reconheceu o caráter plurinacional e indígena do país. Além disso, ele construiu um estado que poderia garantir uma vida digna com acesso a saúde, educação, empregos com salários dignos e muito mais.

A bem-sucedida renegociação de Correa de mais de US$ 2 bilhões em dívidas com o Fundo Monetário Internacional (FMI) em 2008-9, a expulsão da presença militar dos EUA da região costeira de Manta, a integração do país na União das Nações Sul-Americanas (UNASUL) e a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) e a defesa de Julian Assange trouxeram reconhecimento, respeito e prestígio à nação andina em todo o mundo.

Ao longo desse tempo, Correa se acostumou a ataques ininterruptos da notoriamente decadente imprensa privada do Equador e da oposição de direita alinhada com os EUA, que nunca deixou de rotular seu governo como uma “ditadura”. Seu governo foi alvo de várias manifestações de massa e protestos organizados pela oposição de direita contra sua proposta de políticas de aumento de impostos para os ultrarricos em 2015.

O ex-presidente até sobreviveu a uma tentativa de golpe em 30 de setembro de 2010, após um motim da polícia que recebeu amplo apoio e cobertura favorável de algumas das maiores empresas privadas de mídia e canais de TV do país.

A série de terremotos no país durante fevereiro e março de 2016 foi o teste mais sério para seu governo. Com mais de seiscentas vítimas, danos maciços sofridos nas províncias costeiras e suas infraestruturas, bem como um custo econômico de mais de US$ 3 bilhões, a tarefa de reconstruir o país recaiu sobre os ombros da Revolução Cidadã durante um período de preços baixíssimos do petróleo bruto (o principal produto de exportação do país e uma importante fonte de receita do governo).

Como alternativa à austeridade ou ao empréstimo do FMI, o governo de Correa usou um crédito de US$ 2 bilhões do Banco Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento para investir na reconstrução da infraestrutura e do setor social do país, bem como na introdução de novas fontes de riqueza e renda impostos sobre os setores ricos da sociedade.

Em contraste, o regime de Moreno enfrentou uma série de crises sociais e econômicas autoinfligidas desde sua virada contra a política da Revolução Cidadã. Anteriormente atuando como vice-presidente de Correa durante seus dois primeiros mandatos no governo, a eleição de Lenín Moreno pretendia marcar a continuidade do projeto iniciado por Correa.

Em vez disso, poucos meses depois de sua presidência, ele começou a fazer alianças políticas com as tradicionais forças políticas de direita do país, bem como a manipular várias instituições legais do estado equatoriano, desmantelando gradualmente o setor público e os projetos sociais iniciados pelo governo de Correa.

O nível total de gastos sociais também foi gradualmente reduzido desde 2017, com os setores de educação e saúde sendo os mais afetados. O maior dano ao setor público do país foi infligido após a assinatura de um novo pacote de dívida de US$ 4,2 bilhões com o FMI em março de 2019.

Mais de dez mil trabalhadores foram demitidos em preparação para o pacote de reformas da instituição financeira, entre eles entre 2.500 e 3.500 funcionários do setor de saúde. Mais importante, mais de trezentos funcionários que trabalhavam no controle e tratamento de pandemias também foram despedidos - quase exatamente um ano antes do início da pandemia de COVID-19.

Enquanto isso, as estruturas do estado foram esvaziadas com a eliminação de treze das quarenta instituições até abril de 2019, bem como $ 2 bilhões em cortes e austeridade por meio da eliminação, privatização e fusão de várias empresas estatais e entidades públicas. Como resultado dessas políticas, o nível de pobreza estrutural aumentou de 23,1% em junho de 2017 para 25,5% em junho de 2019.

Alguns economistas projetaram que a pobreza estrutural chegará a 30% até o final do ano se as novas medidas econômicas forem aprovadas. A pobreza extrema também aumentou de 8,4% para 9,5% durante o mesmo período.

E enquanto os equatorianos estão ficando mais pobres, o escândalo “INA Papers” revelou que Moreno havia escondido contas bancárias no Panamá e em Belize. O governo de Correa implementou anteriormente uma lei que proibia funcionários públicos de manter quaisquer ativos financeiros em paraísos fiscais estrangeiros como esses dois países.

A proposta de eliminação dos subsídios aos combustíveis e a redução planejada dos salários do setor público em 1º de outubro de 2019 foram a faísca que acendeu a revolta liderada pelos indígenas durante aquele mês, também conhecida como Revolución de los zánganos (a reference to Moreno dismissing large swaths of the population as “zánganos”, a word meaning both drones, as in bees, and layabouts).

A ferocidade da repressão contra os protestos em massa mostrou ao mundo pela primeira vez a extensão do autoritarismo do regime de Moreno. Após doze dias de protestos, com mais de mil feridos e pelo menos oito trabalhadores mortos pela polícia em todo o país, o regime de Moreno desistiu de implementar os subsídios aos combustíveis propostos.

Apesar dessa vitória dos movimentos populares, as políticas econômicas neoliberais continuaram bem em 2020 e não foram interrompidas com a chegada da pandemia do COVID-19. Mais de $ 324 milhões foram transferidos para as mãos de detentores de dívida externa, apesar da evidente necessidade de investimento urgente em medidas de contenção do COVID-19, enquanto outros $ 1,4 bilhão foram planejados para serem eliminados como parte da “otimização e redução” do estado.

Sem surpresa, a gestão da pandemia pelo governo de Moreno foi considerada uma das piores do mundo. As investigações em abril de 2020 alegaram que o número de infectados e mortos superou em muito os números oficiais, enquanto o número total de infectados atingiu 122.000 em meados de setembro.

A diferença entre os governos de Rafael Correa e Lenín Moreno não poderia demonstrar com mais clareza aonde os rumos do socialismo e do neoliberalismo acabam levando. Também mostra que a campanha do lawfare contra Rafael Correa nada mais é do que uma última tentativa da elite econômica e política do país de impedir o retorno da Revolução Cidadã.

Apesar de não poder participar da eleição de fevereiro, não há dúvida de que Correa e os outros líderes históricos da revolução continuarão a desempenhar um papel enorme na campanha. Mas a Revolução Cidadã também será liderada por uma nova geração - representada por jovens líderes como Andrés Arauz.

Colaborador

Denis Rogatyuk é jornalista do El Ciudadano, escritor, colaborador e pesquisador com várias publicações, incluindo Jacobin, Tribune, Le Vent Se Leve, Senso Comune, GrayZone e outros.

29 de setembro de 2020

O Congresso de Baku de 1920 soou como uma convocação para o fim do Império

Um século atrás, neste mês, o novo governo soviético convocou revolucionários anticoloniais de toda a Ásia para uma reunião em Baku. O Congresso de Baku provou ser um divisor de águas na luta contra a dominação colonial europeia e a ascensão do Sul Global.

John Riddell

Jacobin

O Congresso de Baku, Azerbaijão, 1920. (Hulton Archive / Getty Images)


Tradução / Em Baku, no Azerbaijão, há cem anos neste mês, uma assembléia sem precedentes de ativistas anticoloniais proclamou o advento de uma luta global pela liberdade colonial. Cerca de 2.050 participantes, provenientes de trinta e sete povos na sua maioria asiáticos e muçulmanos, aprovaram o apelo a uma “guerra santa” para a libertação dos povos do Oriente em setembro de 1920.

Mesmo hoje, décadas depois que a maioria das colônias alcançou pelo menos a soberania formal, o chamado de Baku ressoa em um mundo abalado pelas crescentes lutas contra o racismo e a supremacia branca.

Convocação do Oriente

O Congresso de Baku foi convocado pela Internacional Comunista, ou Comintern, um ano após sua formação, exatamente quando o equilíbrio político na Europa estava começando a mudar contra os apoiadores do Comintern. Nas palavras do historiador E. H. Carr, o evento de Baku significou “chamar o Oriente para restabelecer o equilíbrio do Ocidente”. E, de fato, o impacto histórico mais duradouro do comunismo durante o século passado foi o impulso que deu aos movimentos de libertação anticoloniais.

A Segunda Internacional ou Internacional Socialista, formada em 1889, pouco havia feito nessa área. É verdade que em princípio se opôs ao colonialismo, mas essa condenação estava longe de ser unânime. Em seu congresso de 1907, esta posição foi sustentada apenas por uma margem mínima, por 127 a 108 votos. Além disso, muitos líderes do movimento socialista, então baseados principalmente na Europa, viam o objetivo de libertar as colônias como uma obrigação a ser cumprida apenas mais tarde, por um futuro governo socialista.

Enquanto isso, durante a Primeira Guerra Mundial, vários partidos socialistas europeus apoiaram os esforços de guerra de seus respectivos governos capitalistas, envolvendo ainda mais esses partidos na defesa dos impérios coloniais. Durante esse período, os movimentos populares nascentes nas colônias geralmente exigiam apenas uma medida de autonomia, em vez de independência total. A revolução russa de 1917, no entanto, tomou um curso diferente, que rapidamente ganhou amplo respeito no exterior.

De Paris a Baku

Na época da revolução, os grupos étnicos minoritários constituíam a maioria da população da Rússia. Os povos muçulmanos asiáticos representaram um sexto do total, habitando vastos territórios afetados pelo colonialismo colonial russo. Quando um governo liderado pelos bolcheviques baseado em sovietes (conselhos) de trabalhadores, soldados e camponeses assumiu o poder em novembro de 1917, um de seus primeiros decretos foi garantir a esses povos minoritários “a livre autodeterminação até e incluindo o direito de secessão.”

Outro apelo soviético inicial prometia aos trabalhadores e agricultores muçulmanos que "doravante suas crenças e costumes, suas instituições nacionais e culturais serão declaradas livres e invioláveis". Essas medidas conquistaram amplo apoio internacional, principalmente entre ativistas nas colônias. Quando a Conferência de Paz de Paris em 1919 rejeitou categoricamente a ideia de autodeterminação dos povos colonizados, isso estimulou os defensores dos direitos coloniais a abraçar o objetivo da independência total.

Depois que os partidários da velha ordem lançaram uma guerra contra o governo soviético, auxiliados por contingentes armados dos Estados Unidos e outras potências aliadas, o regime soviético reuniu apoio maciço entre as vítimas do colonialismo czarista. No final de 1919, cerca de 250.000 trabalhadores de origem muçulmana estavam servindo na frente decisiva da Ásia Central no Sexto Exército Soviético, constituindo quase metade de seu efetivo.

No final de 1919, as forças soviéticas foram vitoriosas nas principais frentes da guerra civil. Os exércitos britânicos que haviam penetrado no Irã, Azerbaijão, Afeganistão e o atual Turcomenistão estavam recuando para bases na Palestina, Iraque e Índia. Nos primeiros meses de 1920, os exércitos soviéticos se aproximaram das fronteiras do Irã, Afeganistão e China. Os povos asiáticos da ex-Rússia czarista formaram muitas repúblicas soviéticas autônomas.

“Construtores de uma nova vida”

O tempo parecia propício para uma aliança de forças pró-soviéticas com movimentos de libertação colonial além das fronteiras soviéticas. A iniciativa partiu da Internacional Comunista, partido mundial da revolução socialista lançado em Moscou em março de 1919.

O Comintern via os povos colonizados não apenas como vítimas do império, mas como agentes de libertação social. O líder bolchevique Vladimir Ilyich Ulyanov (Lenin) apresentou essa visão em novembro de 1919 em um congresso de comunistas do Oriente.

Tendo sido anteriormente apenas "objetos da política imperialista internacional, existindo apenas como material para fertilizar a cultura e a civilização capitalistas", os povos do Oriente iriam agora, previu Lenin, "ascender como participantes independentes, como construtores de uma nova vida". A luta mundial pelo socialismo seria impulsionada por “uma luta de todas as colônias e países oprimidos pelo imperialismo”.

O Segundo Congresso Mundial do Comintern, realizado em Moscou durante três semanas de julho a agosto de 1920, apresentou uma discussão completa sobre a libertação colonial e nacional. Adotou dois conjuntos de teses, um elaborado por Lenin e outro pelo revolucionário indiano Manabendra Nath Roy, e propôs uma aliança de movimentos revolucionários dos trabalhadores com movimentos "nacional-revolucionários" em países coloniais e semicoloniais.

Uma peregrinação revolucionária

Pouco antes do Segundo Congresso do Comintern, em 29 de junho de 1920, o Comintern apelou às “massas populares escravizadas do Irã, Armênia e Turquia” para se reunirem em Baku em agosto, junto com delegados da Ásia Soviética, Índia e além. De acordo com o presidente do Comintern, Grigory Zinoviev, o encontro de Baku serviria como “o complemento, a segunda parte” do congresso mundial recém-concluído.

A convocação para o Congresso de Baku, assinada por duas dezenas de líderes operários revolucionários da Europa e dos Estados Unidos, declarava:

Anteriormente, você viajava por desertos para visitar lugares sagrados. Agora caminhe por montanhas e rios, por florestas e desertos, para se encontrar e discutir como se libertar das cadeias da servidão, para se unir em uma aliança cordial, para viver em igualdade, liberdade e fraternidade. .. que seu congresso traga força e fé para milhões e milhões de escravos em todo o mundo. Que isso lhes inspire confiança em seu poder. Que ele possa trazer mais perto o dia do triunfo final e da libertação.

As celebrações do congresso foram organizadas nas comunidades asiáticas da Rússia e os delegados foram escolhidos. Eles viajaram para Baku ao longo de ligações ferroviárias através de territórios que ainda não estavam totalmente livres de bandos armados anti-soviéticos. Os passageiros às vezes desembarcavam de seu trem para coletar lenha para alimentar a fornalha da locomotiva.

Em uma ocasião, um ataque da Guarda Branca cortou a linha ferroviária, deixando um trem que transportava a maioria dos delegados europeus para o Congresso de Baku temporariamente encalhado. Quatro delegados foram mortos no caminho, dois deles metralhados por um avião de guerra britânico durante uma viagem de barco.

Completando a Jornada

Estima-se que 2.050 participantes chegaram a Baku para o congresso. Cerca de 90% vieram de povos racializados - um contraste marcante com todas as reuniões socialistas anteriores, que tinham uma composição predominantemente europeia.

Entre os delegados asiáticos, cerca de 40% vieram de fora do território soviético, principalmente do Irã, Turquia e Cáucaso. Oito chineses e três coreanos registrados - provavelmente trabalhadores imigrantes na Rússia. Os quatorze delegados da Índia britânica haviam literalmente completado a jornada pelas montanhas e desertos conjurados na convocação do congresso: a pé até Cabul, através das montanhas Hindu Kush e depois por terra até Tashkent e além.

Durante a convocação do congresso, em 31 de agosto, os comunistas de Baku os saudaram com as seguintes palavras: “Um novo mundo está despertando para a vida e para a luta: o mundo das nacionalidades oprimidas ... do Oriente”.

O congresso, que durou oito dias, foi sem precedentes em tamanho e abrangência. Dois mil participantes, a maioria deles iniciantes na atividade política, falando mais de duas dezenas de línguas, debateram e tomaram decisões em plenárias sem, é claro, amplificação eletrônica ou equipamento de tradução.

O desafio logístico era assustador. O domínio soviético havia sido estabelecido no Azerbaijão apenas quatro meses antes. A cidade estava empobrecida e desorganizada por muitos anos de guerra e a comida era escassa. Ainda assim, foram fornecidas as refeições e o espaço para dormir. Encontrou-se tempo para apresentações culturais variadas, que ainda podem ser vistas em um documentário elaborado pela equipe de filmagem do congresso.

Quebrando barreiras

Em meio à confusão inevitável das sessões plenárias, as muitas reclamações que se gritaram - devidamente registradas nas atas oficiais - tratavam principalmente de inadequações de tradução. A necessidade de tradução era ainda mais sentida porque as línguas asiáticas haviam sido sufocadas sob o domínio czarista. Em contraste, no Congresso de Baku, embora o russo fosse a principal língua de trabalho, as sessões ressoaram com traduções para muitas das três dezenas de línguas faladas pelos delegados.

Cada discurso foi seguido por uma pausa para traduções. Dadas as muitas línguas em uso, este procedimento causou confusão e atrasos, e eventualmente a tradução do pódio foi limitada a três línguas. Mesmo assim, os tradutores não treinados usaram métodos amplamente variados - às vezes dando apenas breves resumos, às vezes demorando muito mais do que o orador original.

Os riscos resultantes foram transmitidos em uma anedota passada pelo famoso socialista norte-americano e delegado do congresso John Reed, provocando um delegado britânico (provavelmente Thomas Quelch):

De acordo com Reed, as observações tímidas e hesitantes do delegado britânico foram traduzidas por Peter Petrov com tanto entusiasmo e tal espírito de invenção que o salão logo explodiu com aplausos e gritos de "Abaixo o imperialismo britânico!" enquanto espadas e rifles eram brandidos no ar. O consternado delegado britânico protestou: “Tenho certeza de que nunca disse nada parecido. Exijo uma tradução adequada.”

A principal proposta do congresso - construir uma aliança militante para expulsar o imperialismo britânico - foi prenunciada na teleconferência e evocou um acordo geral. A agenda do congresso foi estruturada por relatórios apresentando o caráter social da revolução necessária para atingir esse objetivo, com forte ênfase na reforma agrária, direitos nacionais e a formação de conselhos de trabalhadores e camponeses.

Pontos de contenção

De acordo com o relatório de credenciais, dois terços dos presentes pertenciam ou simpatizavam com o movimento comunista. Claramente, a resposta dos delegados “não partidários” restantes, com perspectivas políticas diversas, seria decisiva para o resultado da conferência.

O presidium do congresso, portanto, organizou esses delegados em uma fração especial “não partidária”, cujas repetidas sessões separadas foram marcadas por não pouca controvérsia. De acordo com o relato subsequente de Zinoviev, a fração não partidária acabou sendo muito maior do que as reuniões paralelas "comunistas" do caucus, e incluía uma minoria rebelde cujos membros "na verdade pertenciam a partidos burgueses".

Um desses políticos burgueses, Enver Pasha, era bastante proeminente. Líder da revolução "Young Turk" de 1908, Enver mais tarde liderou a Turquia otomana na Primeira Guerra Mundial e foi cúmplice do massacre de armênios durante a guerra na Turquia.

Enver acabara de aparecer em Moscou, onde declarou seu apoio ao regime soviético. Ele então foi a Baku e solicitou o direito de falar no congresso. Isso foi rejeitado, mas a declaração escrita de Enver foi lida. Enver então se manteve ocupado à margem do congresso promovendo atividades anti-soviéticas na Ásia Central.

O congresso também ouviu İbrahim Tali Öngören, representando o movimento nacionalista revolucionário na Turquia liderado por Mustapha Kemal (Atatürk). Apesar de sua hostilidade ao comunismo soviético, o movimento kemalista estava recebendo ajuda soviética em sua luta para expulsar as forças de ocupação britânicas, gregas e francesas do país.

O congresso adotou uma resolução apoiando a luta “nacional-revolucionária” na Turquia, mas insistiu que esse movimento deveria combater não apenas a dominação estrangeira, mas também a opressão de classe dentro da sociedade turca. A declaração exortou os camponeses e trabalhadores turcos a "se unirem em organizações independentes para levar a causa da emancipação até o fim".

Desentendimentos entre os quarenta e um delegados judeus a respeito da colonização sionista na Palestina encontraram expressão em três documentos de posição, dois a favor e um contra.

Libertação Feminina

Uma discordância persistente surgiu sobre o papel das 53 mulheres delegadas presentes no congresso. A luta das mulheres pela libertação foi abordada em várias sessões do congresso. Ainda assim, o papel ativo das delegadas do sexo feminino despertou objeções de alguns delegados cujas sociedades ainda praticavam, em graus variados, o isolamento das mulheres. A proposta de eleger três mulheres para o Comitê Presidente despertou fortes objeções de muitos participantes não partidários.

O debate na fração não partidária continuou por vários dias. No sexto dia de sessões, o presidente pediu ao congresso que incluísse três mulheres em seu comitê dirigente: Bulach Tatu, do Daguestão; Najiye Hanum, da Turquia; e Khaver Shabanova-Karayeva, do Azerbaijão, das quais as duas últimas discursaram no congresso.

Os procedimentos neste ponto diziam:

"Sim Sim." Aplausos, elevando-se à ovação. ... Cadeira: “Viva a emancipação das mulheres do Oriente!” Vivos aplausos. Gritos de “Viva!” Todos estão de pé. Ovação. Uma declaração sobre a luta de libertação das mulheres do Oriente foi lida no congresso.

A resolução das diferenças sobre o papel das mulheres refletiu uma convergência de revolucionários influenciados por crenças religiosas tradicionais e aqueles com uma visão marxista. Um participante do congresso, Babayev, expressou esse processo em um comentário feito informalmente mais de meio século após a reunião de Baku:

Quando veio o chamado para a oração, [Babayev] achou natural deixar de lado sua arma durante as devoções, depois do que ele "voltaria para defender com nosso sangue a conferência e a revolução". Inspirado pela "declaração de guerra santa contra o inimigo da revolução", explicou ele, "milhares de pessoas, convencidas de que não havia contradição entre ser bolchevique e muçulmano, juntaram-se às fileiras bolcheviques".

Abusos de Poder

Um desafio ainda mais explosivo veio de Tashpolad Narbutabekov, presidente do caucus de delegados não comunistas, que atacou duramente as práticas chauvinistas de alguns funcionários soviéticos na Ásia Central. Turar Ryskulov apresentou um longo protesto argumentando o caso contra esses abusos, assinado por vinte e um delegados da Ásia Central, Cáucaso, Irã e Índia.

Os indignados revolucionários do Turquestão receberam uma boa medida de satisfação. Poucos dias depois, Zinoviev falou em seu apoio. Após o encerramento do congresso, vinte e sete delegados viajaram a Moscou e apresentaram suas queixas ao Bureau Político do Partido Comunista.

Lenin ajudou a formar uma decisão abordando suas queixas e tomando medidas corretivas. Este é o único caso conhecido em que uma iniciativa minoritária em uma reunião do Comintern garantiu uma alteração nas políticas internas soviéticas.

Furacão de propaganda

Em seu resumo do congresso, Zinoviev propôs uma reformulação significativa das palavras finais do Manifesto Comunista: “Trabalhadores de todas as terras e povos oprimidos de todo o mundo, uni-vos!” A declaração final do Congresso de Baku exortou os povos do Oriente a:

Avante como um em uma guerra santa contra os conquistadores britânicos! ... esta é uma guerra santa para libertar os povos do Oriente; para acabar com a divisão da humanidade em povos opressores e povos oprimidos; e alcançar a igualdade completa de todos os povos e raças, qualquer que seja a língua que falem, qualquer que seja a cor da pele e qualquer que seja a religião que professem.

Quando o congresso foi encerrado, ele criou um Conselho de Propaganda e Ação contínuo, que organizou o que o governo britânico chamou de "verdadeiro furacão de propaganda, intriga e conspiração contra os interesses britânicos": livros, panfletos, educadores e organizadores apresentando a mensagem de Baku em muitas terras e línguas.

As forças britânicas logo concluíram sua retirada da Ásia Central, enquanto governos pró-soviéticos se enraizavam em terras que se estendiam do Cáucaso, passando pelos Urais, até o Oceano Pacífico. Fora dos territórios soviéticos, no entanto, a década de 1920 viu uma reconsolidação temporária dos antigos impérios coloniais.

O legado de Baku

A ascensão do stalinismo na Rússia soviética afastou o Comintern do curso estabelecido em Baku. Entre 1935 e sua dissolução em 1943, o Comintern não era mais um partidário consistente da libertação colonial imediata. Dentro da própria União Soviética, sob o governo de Josef Stalin, a repressão assassina derrubou a maioria dos líderes originais do Comintern.

Entre os vitimados em expurgos tramados estavam os palestrantes da Ásia no Congresso de Baku que estavam ao alcance de Stalin e cujo destino é conhecido: Tashpolad Narbutabekov, Turar Ryskolov, Jalalutdin Korkmasov, Dadash Buniatzadeh (todos mortos) e Khaver Shabanova-Karayeva (preso). Ainda assim, a influência do Congresso de Baku sobreviveu no movimento anticolonialista e antiimperialista global mais amplo, que viveu de sucesso em sucesso após a Segunda Guerra Mundial.

Durante as últimas décadas, com a soberania formal amplamente alcançada, as potências imperiais implantaram novos meios de dominação: guerras, ataques de drones, sanções, subversão e tratados comerciais opressores. Enquanto isso, as lutas anti-colonialistas e anti-racistas estão em ascensão nos velhos centros imperialistas. Neste novo contexto, o espírito do Congresso de Baku continua a encontrar uma expressão vigorosa.

Sobre o autor

John Riddell has edited and translated eight annotated volumes of documents from the early Communist International. They include an edition of the Baku Congress proceedings, To See the Dawn (Pathfinder Press, 1983). He lives in Toronto.

Teoria Crítica do pós-guerra: uma glaciação teórica

À medida que a crise do capitalismo se desdobra, a necessidade de alternativas é cada vez mais sentida. A luta entre os movimentos radicais e as forças da reação é impiedosa. Nos últimos vinte e cinco anos, intelectuais radicais em todo o mundo produziram ideias importantes e inovadoras. O esforço para transformar o mundo sem cair nas armadilhas catastróficas do passado tem sido um elemento comum que une essas novas abordagens.

Razmig Keucheyan



Tradução / Qual é a relação da teoria com a história e a sociedade? Em The Left Hemisphere: Mapping Critical Theory Today, Razmig Keucheyan não apenas resume áreas inteiras da teoria crítica do pós-guerra, ele também tenta fornecer uma base sociológica para os desenvolvimentos e divergências, o que motiva determinados teóricos a enfatizar uma questão ou outra. Keucheyan pergunta: Como a intelectualidade de esquerda se desenvolveu em um momento de despolitização e alienação da classe trabalhadora?

Por uma geografia da Teoria Crítica

Em Considerações sobre o marxismo ocidental Perry Anderson mostrou que a derrota da Revolução Alemã nos anos 1918-23 provocou uma mutação significativa no marxismo. Os marxistas da geração clássica tinham duas características principais. Primeiramente, eram historiadores, economistas, sociólogos – isto é, preocupados com as ciências empíricas. Suas publicações eram, principalmente, conjunturais e focadas na atualidade política do momento. Em segundo lugar, eles eram líderes de partidos – isto é, estrategistas enfrentando problemas políticos reais. Carl Schmitt afirmou certa vez que um dos eventos mais importantes da era moderna foi a leitura por Lênin de Clausewitz. A ideia subjacente era a de que ser um intelectual marxista no início do século XX era encontrar-se na vanguarda da organização da classe trabalhadora de seu país. Na verdade, a própria noção de ‘intelectual marxista’ fazia pouco sentido, sendo o substantivo ‘marxista’ autossuficiente.

Essas duas características eram fortemente associadas. É porque eles eram estrategistas políticos que esses pensadores precisavam do conhecimento empírico para tomar decisões. Essa é a famosa “análise concreta de situações concretas” a que se referia Lenin. Por outro lado, seu papel de estrategista nutria suas reflexões com conhecimento empírico de primeira mão. Como escreveu Lenin em 30 de novembro de 1917 em seu posfácio para Estado e Revolução, “é mais agradável e útil atravessar a ‘experiência da revolução’ do que escrever sobre ela”. Nessa fase da história Marxista, a ‘experiência’ e a ‘escrita’ sobre a revolução estavam indissociavelmente ligadas.

O marxismo ‘ocidental’ do período subsequente nasceu do apagamento das relações entre intelectuais/líderes e organizações da classe trabalhadora que existiam no Marxismo clássico. Em meados dos anos 1920, organizações de trabalhadores eram derrotadas por todos os lados. O fracasso da Revolução Alemã de 1923, cujo resultado era tido como crucial para o futuro do movimento dos trabalhadores, deu sinal de parada para as esperanças de qualquer derrubada imediata do capitalismo. O declínio que se instaurou levou o estabelecimento de um novo tipo de relação entre intelectuais/líderes e organizações da classe trabalhadora. Gramsci, Korsch e Lukács foram os primeiros representantes dessa nova configuração. Com Adorno, Sartre, Althusser, Della Volpe, Marcuse e outros, os Marxistas que dominaram os anos 1924-68 possuíam características distintas àquelas daqueles do período precedente. De início, eles não tinham mais relações orgânicas com os movimentos trabalhistas e, em particular, com os partidos Comunistas. Eles não possuíam mais posições de liderança. Nos casos em que eram membros de partidos Comunistas (Althusser, Lukács, Della Volpe), suas relações eram complexas. Formas de ‘companheirismo de viagem’ podem ser observadas, como exemplifica o caso de Sartre na França. Mas uma distância irredutível entre intelectuais e partido persistia. E isso não se atribui necessariamente aos próprios intelectuais: lideranças de partidos Comunistas frequentemente desconfiavam deles.

A ruptura entre intelectuais e organizações da classe trabalhadora, característica ao Marxismo Ocidental, tinha uma causa significativa e uma significativa consequência. A causa era a construção, a partir dos anos 1920, de um Marxismo ortodoxo que representava a doutrina oficial da URSS e seus partidos fraternos. O período clássico do Marxismo foi de intensos debates sobre, em particular, o caráter do imperialismo, a questão nacional, a relação entre o social e o político, e o capital financeiro. A partir da segunda metade dos anos 1920, o Marxismo se fossilizou. Isso colocou os intelectuais em uma posição estruturalmente difícil, pois qualquer inovação no domínio intelectual lhes era, assim, negada. Isso foi uma razão importante para a distância que agora os separava dos partidos da classe trabalhadora. Ela os confrontou com a alternativa entre manter sua aliança ou manter sua distância. Com o tempo, a separação apenas aumentou, sobretudo porque outros fatores a agravaram, como a crescente profissionalização ou academização da atividade intelectual, que tendia a distanciar os intelectuais da política.

Uma consequência notável desta nova configuração foi que os marxistas ocidentais, diferentemente daqueles do período anterior, desenvolveram formas abstratas de conhecimento. Eles eram, na maior parte, filósofos e, frequentemente, estetas ou epistemólogos. Assim como a prática da ciência empírica se atrelou ao fato de que os Marxistas do período clássico tinham papéis de liderança em organizações trabalhistas, o distanciamento de tais papeis promoveu um ‘voo em direção à abstração’. Os Marxistas agora produziam conhecimento hermético, inacessível aos trabalhadores comuns, sobre campos sem qualquer relação direta com a estratégia política. Nesse sentido, o Marxismo Ocidental era não-Clausewitziano.

O caso do Marxismo Ocidental ilustra a forma com a qual desenvolvimentos históricos podem influenciar o conteúdo do pensamento que aspira a fazer história. Mais precisamente, ele demonstra a forma com a qual o tipo de acontecimento que é a derrota política influencia o curso da teoria que o sofreu. O fracasso da revolução Alemã, argumenta Anderson, levou a uma ruptura persistente ruptura entre os partidos Comunistas e os intelectuais revolucionários. Amputando os últimos da tomada de decisões políticas, essa ruptura levou-lhes a produzir análises que eram progressivamente abstratas e menos úteis estrategicamente. O traço interessante do argumento de Anderson é que ele explica de forma convincente a propriedade do conteúdo da doutrina (abstração) por uma propriedade de suas condições sociais de produção.

Partindo disso, a questão agora é determinar a relação entre a derrota sofrida pelos movimentos políticos da segunda metade dos anos 1970 e as teorias críticas atuais. Em outras palavras, ela consiste em examinar a forma com a qual as doutrinas críticas dos anos 1960 e 1970 se ‘mutaram’ em contato com a derrota, ao ponte de dar origem às teorias críticas que emergiram durante os anos 1990. Pode a derrota da segunda metade dos anos 1970 ser comparada com aquela sofrida pelos movimentos dos trabalhadores do começo dos anos 1920? Seus efeitos em doutrinas críticas têm sido similares àqueles experimentados pelo Marxismo depois dos anos 1920 e, em particular, ao “voo em direção à abstração” que lhe é característica?

De uma glaciação à outra

As teorias críticas de hoje são herdeiras do Marxismo Ocidental. Naturalmente, elas não foram influenciadas apenas por ele, pois são o produto de múltiplas conexões, algumas delas alheias ao Marxismo. Tal, por exemplo, é o caso do Nietzscheanismo Francês, particularmente as obras de Foucault e Deleuze. Mas uma das origens principais das novas teorias críticas pode ser encontrada no Marxismo Ocidental, cuja história está intimamente ligada àquela da New Left.

A análise de Anderson demonstra que a distância significativa separando intelectuais críticos das organizações da classe trabalhadora tem um impacto decisivo no tipo de teoria que eles desenvolvem. Quando esses intelectuais são membros das organizações em questão e, a fortiori, quando eles são seus líderes, as limitações da atividade política são claramente visíveis em suas publicações. Elas são significativamente menores quando esse laço se enfraquece, como é o caso do Marxismo Ocidental. Por exemplo, ser um membro do Partido Operário Social-Democrata Russo no começo do século XX envolvia tipos diferentes de obstáculos do que ser parte do comitê científico da ATTAC. No segundo caso, o intelectual em questão tem bastante tempo para seguir uma carreira acadêmica fora de seu engajamento político – algo incompatível com a associação a uma organização da classe trabalhadora na Russia do começo do século XX ou em outro lugar. Obviamente, a academia também mudou – mais precisamente, se massificou – consideravelmente desde a era do Marxismo clássico; e isso tem um impacto na trajetória potencial de intelectuais críticos. Acadêmicos pertenciam a uma categoria social restrita na Europa do final do século XIX. Hoje, eles estão muito mais difundidos, o que influencia de forma manifesta a trajetória intelectual e social dos produtores de teoria. Para entender as novas teorias críticas, é crucial compreender o caráter das associações entre os intelectuais que as elaboram e as organizações do momento. No capítulo 3 proporemos uma tipologia de intelectuais críticos contemporâneos para tratar dessa questão.

Existe uma geografia do pensamento – nessa instância, do pensamento crítico. O Marxismo Clássico era essencialmente produzido por pensadores da Europa Central e do Leste. A stalinização daquela parte do continente vetou desenvolvimentos subsequentes e empurrou o centro de gravidade do Marxismo em direção à Europa Ocidental. Esse é o espaço social no qual a produção intelectual crítica se instalou por meio século. Durante os anos 1980, como resultado da recessão da crítica teórica e política no continente, mas também por causa da atividade dinâmica de polos intelectuais como as revistas New Left Review, Semiotext(e), Telos, New German Critique, Theory and Society e Critical Inquiry, a fonte de crítica gradualmente se deslocou para o mundo Anglo-americano. Teorias críticas vieram se ser mais vigorosas onde anteriormente não eram. Enquanto as antigas regiões de produção continuavam a gerar e exportar autores importantes – basta pensar em Alain Badiou, Jacques Rancière, Toni Negri ou Giorgio Agamben – uma mudança fundamental se deu nos últimos trinta anos, o que está tendendo a relocar a produção de teorias críticas a novas regiões.

É preciso dizer que o clima intelectual deteriorou marcadamente para a Esquerda radical na Europa Ocidental, especialmente na França e na Itália – as terras escolhidas do Marxismo Ocidental – a partir da segunda metade dos anos 1970. Como foi indicado, o Marxismo Ocidental sucedeu o Marxismo clássico quando a glaciação Stalinista atingiu a Europa Central e do Leste. Ainda que diferente em muitos aspectos, uma analogia pode ser estabelecida entre os efeitos dessa glaciação e o que o historiador Michael Scott Christofferson chamou de ‘momento antitotalitário’ na França. A partir da segunda metade dos anos 1970, a França – mas isso também vale para os países vizinhos, especialmente aqueles onde o movimento trabalhador era poderoso – assistiu a uma ofensiva ideológica de larga escala, a qual, em um terreno diferente, acompanhou o avanço do neoliberalismo com a eleição de Thatcher e Reagan, seguidos por aquela de François Mitterand quem, apesar de seu pedigree ‘socialista’, aplicou receitas neoliberais sem remorso. Os movimentos nascidos na segunda metade dos anos 1950 estavam estagnando. O choque inicial do petróleo, em 1972, anunciou tempos economicamente e socialmente difíceis, com o primeiro aumento significativo da taxa de desemprego. O Programa Comum da Esquerda, assinado em 1972 e unindo os partidos Comunista e Socialista, fez a chegada da Esquerda ao poder algo concebível, mas no processo dirigindo sua atividade em direção às instituições, com isso arrancando ela de parte de sua anterior vitalidade.

No front intelectual, The Gulag Archipelago apareceu em tradução francesa em 1974. O hype da mídia em torno de Solzhenitsyn e de outros dissidentes do leste europeu era considerável. Eles não eram defendidos apenas por intelectuais conservadores. Na França, em 1977, uma recepção organizada em homenagem a dissidentes soviéticos reuniu Sartre, Foucault e Deleuze. Outros intelectuais críticos famosos, como Cornelius Castoriadis e Claude Lefort, atingidos pelo hino ‘anti-totalitário’, o último dedicando um livro entitulado Un homme em trop para Solzhenitsyn. É verdade que do Socialisme ou barbarie de 1950 foi uma das primeiras revistas a desenvolver uma crítica sistemática do Stalinismo. O ‘consenso anti-totalitário’ que reinava na França a partir da segunda metade dos anos 1970 se estendeu de Castoriadis, via Tel Quel e Maurice Clavel, para Raymond Aron (obviamente com nuances significativas). Do outro lado do palco, jovens ‘iniciantes’ no campo intelectual da época – os ‘novos filósofos’ – fizeram do ‘anti-totalitarismo’ seu negócio. Mil novecentos e setenta e sete – que escolhemos como o ponto de início do período histórico tratado neste capítulo – testemunhou sua consagração pela mídia. Naquele ano, André Glucksmann e Bernard Henri Lévy publicaram Les maitres penseurs e La Barbarie à visage humain, respectuvamente.

A tese dos ‘novos filósofos’ era de que qualquer projeto de transformação da sociedade levaria ao ‘totalitarismo’’ – isto é, a regimes baseados no genocídio em massa em que o Estado subjuga todo o corpo social. A acusação de ‘totalitarismo’ foi dirigida não apenas à URSS e aos países do ‘socialismo real’, mas a todo o movimento dos trabalhadores. O empreendimento revisionista de François Furet na historiografia da Revolução Francesa, e sua subsequente análise da ‘paixão comunista’ no século XX, apoiava-se em uma ideia análoga. Durante os anos 1970, alguns ‘novos filósofos’ – muitos dos quais saíram da mesma organização Maoista, a Gauche prolétarienne – retinham algum radicalismo político. Em The Master Thinkers, Glucksmann contrapunha os plebeus ao Estado (totalitário), em acentos libertários que não seriam repudiados pelos autais defensores da ‘multitude’, o que explica de certa forma o apoio que recebeu de Foucault naquela época. Com o passar dos anos, porém, esses pensadores gradualmente se deslocaram para a defesa dos ‘direitos humanos’, das intervenções humanitárias, do liberalismo e da economia de mercado.

No coração da ‘nova filosofia’ havia um argumento sobre teoria. Ele era derivado do pensamento conservador Europeu tradicional, especialmente de Edmund Burke. Glucksmann o encapsulava da seguinte maneira: “Teorizar é terrorizar”. Burke atribuía as consequências catastróficas da Revolução Francesa (o Terror) ao ‘espírito especulativo’ dos filósofos insuficientemente atentivos à complexidade da realidade e a imperfeição da natureza humana. De acordo com Burke, as revoluções são o produto de intelectuais prestes a dar mais importância para as ideias do que para os fatos que passaram pelo ‘teste do tempo’. Em uma via similar, Glucksmann e seus colegas criticavam a tendência na história do pensamento ocidental que alegava compreender a realidade em sua ‘totalidade’ e, nessa base, procurava alterá-la – uma tendência que se remete a Platão e que, via Leibniz e Hegel, gerou Marx e o Marxismo. Karl Popper, é interessante notar, desenvolveu uma tese similar nos anos 1940, em particular em The Open Society and Its Enemies. Como é sabido, Popper é um dos santos patronos do neoliberalismo e seu argumento figura proeminentemente em seu corpus doutrinal até hoje. A assimilação de ‘teorização’ ao ‘terror’ é baseada no seguinte silogismo: entender a realidade em sua totalidade leva ao desejo de subjugá-la; essa ambição inevitavelmente leva ao Gulag. Nessas condições podemos ver por que teorias críticas desertaram seu continente de origem em busca de climas mais favoráveis.

O sucesso dos ‘novos filósofos’ pode ser visto como sintomático. Ele diz muito sobre as mudanças que ocorreram no campo político e intelectual de nosso tempo. Esses foram os anos da renúncia do radicalismo de 1968, do ‘fim das ideologias’, e da substituição dos intelectuais por ‘experts’. A criação, por Alain Minc, Furet, Pierre Rosanvallon e outros em 1982 da Fundação Saint-Simon, a qual (nas palavras de Pierre Nova) reuniu ‘pessoas que têm ideias com pessoas que têm recursos’, simboliza a emergência de um conhecimento do social supostamente livre de ideologia. The End of Ideology, do sociólogo americano Daniel Bell, data de 1960, mas foi apenas durante os anos 80 que esse leitmotif chegou à França e encontrou expressão em todas as áreas da existência social. Na esfera cultural, Jack Lang e Jean-François Bizot – o fundador da Actuel e da Radio Nova – elencam Maio de 68 como uma revolução fracassada mas um festival bem sucedido. No domínio econômico, Bernard Tapie, futuro ministro sob Mitterand, propagandeou a empresa como o campo de todo tipo de criatividade. Na esfera intelectual, o jornal Le Débat, editado por Nora e Marcel Gauchet, publicou sua primeira edição em 1980; em um artigo entitulado “Que peuvent les intelectuels?” Nora aconselhava os últimos a se confinarem em suas áreas de competência e parar de intervir na política.

A atmosfera dos anos 1980 deve ser relacionada às mudanças de ‘infraestrutura’ que afetaram as sociedades industriais depois do fim da Segunda Guerra Mundial. Uma das mudanças principais foi a importância assumida pela mídia na vida intelectual. Os ‘novos filósofos’ foram a primeira corrente filosófica televisionada. Certamente, Sartre e Foucault também apareciam em entrevistas gravadas naquela época, mas eles teriam existido, assim como suas obras, na ausência da televisão. O mesmo não é verdade para Lévy e Glucksmann. Em vários sentidos, os ‘novos filósofos’ eram produtos da mídia, suas obras – assim como símbolos reconhecíveis como camisas brancas, penteados rebeldes, postura ‘dissidente’ – eram concebidas com as limitações da televisão em mente. A intrusão da mídia no campo intelectual abruptamente alterou as condições de produção de teorias críticas. Ela é um elemento adicional para explicar o clima hostil que se criou na França a partir dos fins dos anos 1970. Assim, um dos países onde teorias críticas mais tinham prosperado no período anterior – com contribuições de Althusser, Lefebvre, Foucault, Deleuze, Bordieu, Barthes e Lyotard em particular – viu sua tradição intelectual minguar. Alguns desses autores continuaram produzindo trabalhos importantes durante os anos 1980. Mille Plateaux de Deleuze e Guatarri apareceu em 1980, Le Différend de Lyotard em 1983, e L’Usage des plaisirs de Foucault em 1984. Mas o pensamento crítico francês perdeu a capacidade de inovação que outrora possuíra. Uma glaciação teórica se instaurou, da qual, em alguns sentidos, ainda temos de emergir.

O fenômeno dos ‘novos filósofos’ é decerto tipicamente francês, especialmente porque o perfil sociológico de seus protagonistas está intimamente atrelado ao sistema francês de reprodução das elites. Mas a tendência geral de abandono das ideias de 1968, notável a partir da segunda metade dos anos 1970, é internacionalmente visível, mesmo que ele assuma formas diferentes em cada país. Um caso fascinante, que ainda espera por um estudo aprofundado, é o do italiano Lucio Colletti. Colletti foi um dos filósofos Marxistas mais inovadores dos anos 1960 e 70. Membro do Partido Comunista Italiano desde 1950, ele decidiu deixá-lo na ocasião da insurreição de Budapeste em 1956, que (como vimos) foi a ocasião para diversos intelectuais romperem com o movimento Comunista (ainda que ele não tivesse oficializado sua partida até 1964). Ele se tornou progressivamente crítico do Stalinismo. Assim como Althusser na França (com quem ele correspondia e por quem tinha grande consideração), e sob a influência de seu mestre Galvano Della Volpe, Colletti defendeu a ideia de que o rompimento realizado por Marx com Hegel era mais profundo do que comumente se pensava. Essa tese é desenvolvida, em particular, em Marxism and Hegel, um de seus trabalhos mais conhecidos. Outro de seus trabalhos influentes foi From Rousseau to Lenin, que atesta a importância do materialismo de Lenin para seu pensamento.

A partir de meados da década de 1970, Colletti mostrou-se cada vez mais crítico do Marxismo e, especialmente, do Marxismo Ocidental, do qual ele era um dos representantes e teóricos chefe. Em uma entrevista publicada naquela época, falando com um tom pessimista que prenunciava sua subsequente evolução, ele declarou:“O Marxismo só poderá ser revivido se livros como Marxismo e Hegel não forem mais publicados, e, em vez disso, livros como Capital Financeiro de Hilferding e A acumulação do capital de Rosa Luxemburgo – ou até mesmo Imperialismo de Lenin, que foi um panfleto popular – forem escritos outra vez. Em suma, ou o Marxismo tem a capacidade – eu certamente não tenho – de produzir naquele nível, ou ele sobreviverá apenas como uma deficiência de alguns poucos professores universitários. Mas, nesse caso, ele estará bem e verdadeiramente morto, e os professores podem muito bem inventar um novo nome para seu clero.”

De acordo com Colletti, ou o Marxismo é bem-sucedido em reconciliar teoria e prática, e assim reparar a ruptura provocada pelo fracasso da revolução Alemã à qual nos referimos, ou ele não existe mais como Marxismo. Para ele, o ‘Marxismo Ocidental’ era, portanto, uma impossibilidade lógica. Nos anos 1980, Colletti se deslocou para o Partido Socialista Italiano, dirigido, naquela época, por Bettino Craxi, cujo grau de corrupção cresceu vertiginosamente com o passar dos anos. Nos anos 1990, em uma virada trágica à direita, ele aderiu ao Forza Italia, partido recentemente criado por Silvio Berlusconi, e tornou-se senador pelo partido em 1996. Na ocasião da morte de Colletti, em 2001, Berlusconi saudou a coragem que ele demonstrou ao rejeitar a ideologia Comunista e relembrou de suas atividades e seu papel no Forza Italia.

Do outro lado do mundo, uma evolução similar caracterizou os ‘Gramscianos argentinos’. As ideias de Gramsci entraram rapidamente em circulação na Argentina, em virtude da proximidade cultural entre ela e a Itália, mas também porque seus conceitos eram particularmente úteis para explicar o altamente original e tipicamente argentino fenômeno político do Peronismo (por exemplo, a noção de ‘revolução passiva’). Um grupo de jovens intelectuais provenientes do Partido Comunista Argentino, liderados por José Aricó e Juan Carlos Portantiero, fundaram a revista Pasado y Presente em 1963, aludindo a uma série de fragmentos dos Cadernos do Cárcere que portam esse título. Interessantemente, dez anos antes (1952), uma revista de mesmo nome Past and Present, foi criada no Reino Unido no entorno de historiadores marxistas como Eric Hobsbawn, Christopher Hill e Rodney Hilton. Assim como viria a acontecer com os revolucionários latino-americanos daqueles anos, os Gramscianos argentinos foram influenciados pela Revolução Cubana (1959), a hibridização da obra de Gramsci e aquele evento provocaram desenvolvimentos teóricos de grande fertilidade. Naquela época, a revista também serviu como interface entre a Argentina e o mundo, traduzindo e publicando autores como Fanon, Bettelheim, Mao, Guevara, Sartre e representantes da Escola de Frankfurt.

No começo dos anos 1970, quando a luta de classes passou por uma virada violenta na Argentina, Aricò e seu grupo se deslocaram em direção à esquerda Peronista revolucionária, particularmente para as guerrilhas Montoneras, que eram uma espécie de síntese de Perón e Guevara. A revista procurou refletir questões estratégicas enfrentadas pelo movimento revolucionário, no que dizia respeito às condições da luta armada, do imperialismo e o caráter das classes dominantes argentinas. Com o golpe de Estado de 1976, Aricò foi forçado a se exilar no México, assim como muitos Marxistas latino-americanos de sua geração. A partir disso, sua trajetória, assim como a de seus colegas, consistiu em um deslocamento gradual em direção ao centro. Para começar, eles proclamaram seu apoio à ofensiva argentina nas guerras Malvinas em 1982. Alguns deles, incluindo o filósofo Emilio de Ipola, teriam uma visão retrospectiva bastante crítica sobre isso. Defensores ardentes de Felipe Gonzales e do PSOE espanhol nos anos 80, eles terminaram defendendo o primeiro presidente democraticamente eleito após a queda da ditadura argentina, o radical (de centro-direita) Raúl Alfonsín. Eles foram parte do grupo especial de conselheiros do último; o grupo era conhecido como ‘Grupo Esmeralda’ e teorizava a ideia de ‘pacto democrático’. Seu apoio a Alfonsin se estendeu à adoção do que era, de certa forma, uma atitude ambígua em relação às odiosas Leyes de Obediencia y Punto Final anistiando os crimes da ditadura, que o Presidente Nestor Kirchner iria abrogar na primeira década dos anos 2000.

Podemos multiplicar o número de exemplos de deslocamentos de intelectuais para a direita. A virada neoliberal da China promovida por Deng Xiaoping nos fins dos anos 1980 teve um impacto marcante no pensamento crítico chinês, levando à apropriação (ou reapropriação) da tradição liberal ocidental por setores significativos da intelligentsia, e a adaptação dos debates sobre a teoria da justiça de John Rawls. Outro caso similar é aquele dos neo-conservadores norte-americanos – dentre eles Irving Kristol, frequentemente apresentado como o ‘padrinho do neo-conservadorismo’ – que surgiu da esquerda não-stalinista. Um documento instrutivo em relação a isso é ‘Memoirs of a Trotskyst’ publicado por Kristol no New York Times.

Novamente, não é questão de afirmar que esses autores ou essas correntes são idênticos. Os novos filósofos, Colletti e os Gramscianos Argentinos são intelectuais de calibre muito diferente; Marxistas inovadores como Colletti e Aricò não podem, obviamente, ser colocados no mesmo nível de impostores como Lévy. Suas trajetórias intelectuais são profundamente explicadas pelos contextos nacionais em que ocorreram. Ao mesmo tempo, eles também são a expressão de um movimento para a direita de antigos intelectuais revolucionários que pode ser identificado em uma escala internacional.

A conclusão a ser tirada disso é a de que a segunda metade dos anos 1970 e os anos 1980 foram um período de mudanças abruptas na geografia do pensamento crítico. Foi nesse momento que as coordenadas políticas e intelectuais de um novo período foram gradualmente fixadas.

28 de setembro de 2020

A primeira internacional ainda é relevante hoje

A Associação Internacional dos Trabalhadores foi lançada em Londres neste dia de 1864. Como a "Primeira Internacional", consolidou a solidariedade de classe entre os países como um ideal partilhado e inspirou um grande número de pessoas a organizarem-se contra a exploração capitalista.

Marcello Musto


A Primeira Internacional foi fundada neste dia em 1864.

Tradução / Após sua primeira reunião, em 28 de setembro de 1864, a Associação Internacional dos Trabalhadores (mais conhecida como a "Primeira Internacional") rapidamente despertou paixões por toda a Europa. Ela tornou a solidariedade de classe um ideal compartilhado e inspirou um grande número de mulheres e homens a lutar contra a exploração. Graças à sua atividade, os trabalhadores puderam obter uma compreensão mais clara dos mecanismos do modo de produção capitalista, tornar-se mais conscientes de sua própria força e desenvolver novas formas mais avançadas de luta por seus direitos.

No início, a Internacional era uma organização contendo várias tradições políticas, sendo a maioria reformista em vez de revolucionária. Inicialmente, a força motriz central era o sindicalismo britânico, cujos líderes estavam principalmente interessados em questões econômicas. Eles lutavam para melhorar as condições dos trabalhadores, mas sem questionar o capitalismo. Portanto, concebiam a Internacional principalmente como um instrumento para evitar a importação de trabalhadores estrangeiros em caso de greves.

O segundo grupo mais importante eram os mutualistas, há muito dominantes na França. De acordo com as teorias de Pierre-Joseph Proudhon, eles se opunham à participação da classe trabalhadora na política e à greve como arma de luta.

Em seguida, havia os comunistas que se opunham ao próprio sistema de produção capitalista e argumentavam pela necessidade de derrubá-lo. Em sua fundação, os quadros da Internacional também incluíam um número de trabalhadores inspirados por teorias utópicas e exilados com ideias vagamente democráticas e concepção transcendentais, que consideravam a Internacional como um instrumento para a emissão de apelos gerais para a libertação dos povos oprimidos.

Foi Karl Marx quem deu um propósito claro à Internacional e que alcançou um programa político baseado na classe trabalhadora, não-excludente e que ganhou amplo apoio. Rejeitando o sectarismo, ele trabalhou para unir as várias correntes da Internacional. Marx era a alma política do seu Conselho Geral (o órgão que elaborou uma síntese unificadora das várias tendências e emitiu diretrizes para a organização como um todo). Ele redigiu todas as suas principais resoluções e preparou quase todos os relatórios de seus congressos.

Mas a Internacional era, claro, muito mais do que Marx, brilhante líder que era. Não foi, como muitas vezes foi escrito, a "criação de Marx". Em vez disso, foi um vasto movimento social e político pela emancipação das classes trabalhadoras. A Internacional foi possibilitada, antes de tudo, pelas lutas do movimento trabalhista na década de 1860. Uma de suas regras básicas — e a distinção fundamental das organizações trabalhistas anteriores — era que "a emancipação das classes trabalhadoras deve ser conquistada pelas próprias classes trabalhadoras".

Marx era essencial para a Internacional, mas a Internacional teve um impacto muito positivo em Marx também. Seu envolvimento direto nas lutas dos trabalhadores fez com que ele fosse instigado a desenvolver e, por vezes, revisar suas próprias ideias, submetendo antigas certezas a discussão e se fazendo novas perguntas, ao mesmo tempo em que afiava sua crítica ao capitalismo delineando os contornos amplos de uma sociedade comunista.

Teoria e luta

O final dos anos 1860 e início dos anos 1870 foram um período repleto de conflitos sociais na Europa. Muitos trabalhadores que participaram de ações de protesto decidiram entrar em contato com a Internacional, cuja reputação se espalhou rapidamente. A partir de 1866, as greves se intensificaram em muitos países e formaram o núcleo de uma nova e importante onda de mobilizações. A Internacional foi essencial nas lutas vencidas pelos trabalhadores na França, Bélgica e Suíça. O cenário era o mesmo em muitos desses conflitos: trabalhadores de outros países levantavam fundos em apoio aos grevistas e concordavam em não aceitar trabalhos que os transformariam em mercenários industriais.

Como resultado, os patrões foram forçados a ceder em muitas das demandas dos grevistas. Esses avanços foram apoiados pela difusão de jornais que simpatizavam com as ideias da Internacional ou eram verdadeiros órgãos do Conselho Geral. Ambos contribuíram para o desenvolvimento da consciência de classe e para a rápida circulação de notícias sobre a atividade da Internacional.

Em toda a Europa, a associação desenvolveu uma estrutura organizacional eficiente e aumentou o número de seus membros (150.000 no auge). Apesar das dificuldades relacionadas à diversidade de nacionalidades, idiomas e culturas políticas, a Internacional conseguiu alcançar a unidade e coordenação em uma ampla gama de organizações e lutas espontâneas. Seu maior mérito foi demonstrar a importância crucial da solidariedade de classe e da cooperação internacional.

A Internacional foi o local de alguns dos debates mais famosos do movimento trabalhista, como aquele entre o comunismo e a anarquia. Os congressos da Internacional foram também onde, pela primeira vez, uma grande organização transnacional tomou decisões sobre questões cruciais, que haviam sido discutidas antes de sua fundação, e que posteriormente se tornaram pontos estratégicos nos programas políticos dos movimentos socialistas em todo o mundo. Entre essas estavam a função indispensável dos sindicatos, a socialização da terra e dos meios de produção, a importância de participar das eleições e fazê-lo por meio de partidos independentes da classe trabalhadora, a emancipação das mulheres e a concepção da guerra como um produto inevitável do sistema capitalista.

A Internacional também se espalhou fora da Europa. Do outro lado do Atlântico, imigrantes que haviam chegado nos últimos anos começaram a estabelecer as primeiras seções da Internacional nos Estados Unidos, mas a organização sofreu dois handicaps desde o início que nunca seriam superados. Apesar de repetidos apelos do Conselho Geral em Londres, ela não foi capaz de superar o caráter nacionalista de seus diversos grupos afiliados ou de atrair trabalhadores nascidos no "Novo Mundo".

Quando as seções alemãs, francesas e tchecas fundaram o Comitê Central da Internacional para a América do Norte, em dezembro de 1870, foi único na história da Internacional por ter apenas membros "nascidos no estrangeiro". O aspecto mais marcante dessa anomalia foi que a Internacional nos Estados Unidos nunca produziu um órgão de imprensa em língua inglesa. No início dos anos 1870, a Internacional alcançou um total de cinquenta seções com uma filiação combinada de quatro mil, mas isso ainda era apenas uma pequena proporção da força de trabalho industrial americana, que ultrapassava os dois milhões.

Auge e crise

O momento mais significativo da Internacional coincidiu com a Comuna de Paris. Em março de 1871, após o fim da Guerra Franco-Prussiana, os trabalhadores de Paris se levantaram contra o novo governo de Adolphe Thiers e tomaram o poder na cidade. A partir de então, a Internacional estava no centro da tempestade e ganhou uma enorme notoriedade.

Para os capitalistas e a classe média, ela representava uma grande ameaça à ordem estabelecida, enquanto para os trabalhadores alimentava esperanças de um mundo sem exploração e injustiça. O movimento trabalhista tinha uma enorme vitalidade, e isso era evidente por toda parte. Jornais ligados à Internacional aumentaram tanto em número quanto em vendas totais. A insurreição de Paris fortaleceu o movimento dos trabalhadores, impelindo-o a adotar posições mais radicais e intensificar sua militância, e não pela primeira vez, a França mostrou que a revolução era possível, desta vez com o objetivo de construir novas formas de associação política para os trabalhadores.

O próximo passo, como afirmou Marx, foi entender que “o movimento econômico da classe trabalhadora e sua ação política estão indissoluvelmente unidos”. Isso levou a Internacional, na Conferência de Londres de 1871, a pressionar pela fundação de um instrumento-chave do movimento moderno dos trabalhadores: o partido político — embora deva ser enfatizado que a compreensão disso era muito mais ampla do que a adotada pelas organizações comunistas após a Revolução de Outubro.

Quando a Internacional se dissolveu após o Congresso de Haia de 1872, era uma organização muito diferente do que havia sido em sua fundação: os reformistas já não constituíam a maior parte, e o anticapitalismo se tornara a posição política de toda a associação (incluindo novas tendências como os anarquistas liderados por Mikhail Bakunin). A imagem mais ampla também era radicalmente diferente. A unificação da Alemanha em 1871 confirmou o início de uma nova era, com o Estado-nação como a forma central de identidade política, legal e territorial.

A configuração inicial da Internacional, assim, tornou-se obsoleta, assim como sua missão original chegou ao fim. A tarefa não era mais preparar e organizar o apoio em toda a Europa para greves, nem convocar congressos proclamando a utilidade dos sindicatos ou a necessidade de socializar a terra e os meios de produção. Tais temas agora faziam parte do patrimônio coletivo da Internacional. Após a Comuna de Paris, o desafio real para o movimento dos trabalhadores era como se organizar para acabar com o modo de produção capitalista e derrubar as instituições do mundo burguês.

Nosso internacionalismo

O156º aniversário da Primeira Internacional ocorre em um contexto muito diferente. Um abismo separa as esperanças daquela época da desconfiança tão característica da nossa, o espírito antissistêmico e a solidariedade da era da Internacional do subordinacionismo ideológico e do individualismo de um mundo remodelado pela competição neoliberal e pela privatização.

O mundo do trabalho sofreu uma derrota épica, e a esquerda ainda está no meio de uma profunda crise. Após décadas de políticas neoliberais, retornamos a um sistema exploratório, semelhante ao do século XIX. As “reformas” do mercado de trabalho — um termo agora desprovido de seu significado progressista original — introduziram cada vez mais “flexibilidade” a cada ano que passa, criando desigualdades mais profundas. Outras mudanças políticas e econômicas importantes se sucederam, após o colapso do bloco soviético. Entre elas, houve as mudanças sociais geradas pela globalização, os desastres ecológicos produzidos pelo atual modo de produção, a crescente lacuna entre os poucos exploradores ricos e a imensa maioria empobrecida, uma das maiores crises econômicas do capitalismo (a que eclodiu em 2008) na história, os ventos impetuosos da guerra, do racismo e do chauvinismo, e, mais recentemente, a pandemia de COVID-19.

Em um contexto como este, a solidariedade de classe é mais indispensável do que nunca. Foi o próprio Marx quem enfatizou que o confronto entre os trabalhadores — incluindo entre os trabalhadores locais e imigrantes (que são discriminados, aliás) — é um elemento essencial da dominação das classes dominantes. Certamente, novas formas de organizar o conflito social, partidos políticos e sindicatos devem ser inventadas, pois não podemos reproduzir os esquemas usados há 150 anos. Mas a antiga lição da Internacional de que os trabalhadores são derrotados se não organizam uma frente comum dos explorados ainda é válida. Sem isso, nosso único horizonte é uma guerra entre os pobres e uma competição desenfreada entre indivíduos.

O barbarismo da ordem mundial de hoje impõe ao movimento contemporâneo dos trabalhadores a necessidade urgente de se reorganizar com base em duas características-chave da Internacional: a multiplicidade de sua estrutura e o radicalismo em seus objetivos. Os objetivos da organização fundada em Londres em 1864 são hoje mais oportunos do que nunca. Para enfrentar os desafios do presente, no entanto, a nova Internacional não pode evitar os dois requisitos de pluralismo e anticapitalismo.

Colaborador

Marcello Musto é o autor de Os Últimos Anos de Karl Marx: Uma Biografia Intelectual (2020). Entre seus livros editados estão Workers Unite!: The International 150 Years Later (2014) e The Marx Revival (2020). Seus escritos estão disponíveis em www.marcellomusto.org

27 de setembro de 2020

O que os socialistas democráticos deveriam pensar sobre o anticomunismo

Um profundo compromisso com a democracia está no cerne do projeto socialista. Os anticomunistas historicamente alegaram que se opõem a estados como a União Soviética por uma preocupação com a democracia. Mas o verdadeiro projeto desses anticomunistas não tem nada a ver com democracia - e tudo a ver com esmagar a esquerda.

Uma entrevista com 
Kristen R. Ghodsee e Scott Sehon

Jacobin

Joseph McCarthy discursa na Convenção Nacional Republicana de 1952 em Chicago, Illinois. (Michael Ochs/Getty Images)

Uma entrevista de
Meagan Day e Micah Uetricht

Tradução / Ao longo dos últimos anos, temos observado um aumento significativo de conservadores que usam e abusam do termo "marxismo". Eles são incapazes de defini-lo, embora geralmente fique bem claro, pelo contexto em que o termo é usado, que a intenção é causar pânico, particularmente vincular todos os socialistas, progressistas e mesmo liberais àquilo que eles consideram ser um legado de totalitarismo e terror.

A direita tem um entendimento tão equivocado a respeito do marxismo que um debate racional sobre seu real significado parece impossível. De qualquer forma, não é nisso que estão interessados – a ideia é tão somente usar o marxismo como um porrete, a fim de esmagar qualquer tipo de projeto político progressista. No entanto, como Kristen Ghodsee e Scott Sehon explicaram à Micah Uetricht e Meagan Day, da Jacobin, não devemos ignorar ou minimizar essa dinâmica, por mais absurda que seja. Pelo contrário, precisamos tentar entender que ideologia está sendo realmente mobilizada, e com que finalidade. Essa ideologia é o anticomunismo, um conjunto de pressupostos e falsas equivalências que vem sendo reforçado por décadas. Como Ghodsee e Sehon afirmaram em um ensaio na Aeon, em 2018, o propósito [do anticomunismo] é “assegurar que as reivindicações por justiça social e redistribuição de renda sejam eternamente equiparadas a campos de trabalho forçado e à fome”.

A tradição socialista democrática sempre se opôs aos abusos do stalinismo. Qualquer socialismo digno deste nome deve ter a democracia em seu centro. O anticomunismo, no entanto, jamais teve a ver com a defesa da liberdade e da democracia – diz respeito apenas à destruição da esquerda e à defesa das atrocidades cometidas em nome do capitalismo. Como Ralph Miliband e Marcel Liebman escreveram em 1984 o anticomunismo:

condena os abusos político e humano das ditaduras comunistas, mas frequentemente tolera, ou simplesmente ignora, os abusos e crimes dos regimes de direita. Tais regimes, não importando quão tirânico e criminoso sejam, podem contar com o firme e permanente apoio dos Estados Unidos e de outros Estados capitalistas. Tudo, é claro, em nome da democracia e da liberdade.

Meagan Day e Micah Uetricht, da Jacobin Magazine, falaram com Ghodsee e Sehon no podcast Vast Majority, abordando tópicos que vão da origem das campanhas de difamação e perseguição contra comunistas nos Estados Unidos, aos problemas de lógica implícitos no argumento anticomunista, e de como era a vida no Bloco Oriental à como a narrativa dos “totalitarismos gêmeos”, equiparando comunismo e nazismo, abriu caminho para a ascensão do fascismo.

A conversa foi editada em extensão e clareza.

Micah Uetricht

O que é o anticomunismo e qual o seu papel na história recente dos Estados Unidos?

Kristen R. Ghodsee

A história do anticomunismo nos Estados Unidos remonta ao anos de 1919 e à primeira ameaça vermelha. Desde então, é algo tão estadunidense quanto torta de maçã e baseball.

O sucesso da Revolução Russa de 1917 despertou em muitos trabalhadores estadunidenses a esperança de que lhes seria possível reimaginar o local de trabalho, torná-lo mais justo e, talvez, possuir alguns dos meios de produção. Desde o início, havia um profundo medo de que tal ideologia nefasta enfraquecesse a plutocracia dos Estados Unidos, a ser ameaçada por trabalhadores exigindo seus direitos.

Depois da Segunda Guerra Mundial, houve um forte movimento comunista e socialista no país, mas houve também disposições profundamente anticomunista. Quando Truman se candidatou à reeleição em 1948, Henry Wallace concorreu como candidato do Partido Progressista e o nível da campanha de difamação e perseguição contra comunistas foi muito severo. Os apoiadores de Wallace perderam seus empregos. Isso acontecia contra o pano de fundo do Comitê da Câmara para Atividades Antiamericanas. Os jovens de hoje aprendem muito sobre macartismo, mas McCarthy veio depois do comitê e da terrível perseguição aos vermelhos durante a campanha presidencial de 1948.

Claro, a única razão para termos sido supostamente contrários ao comunismo foi que ele era antidemocrático, o que é irônico. Mas a razão pela qual o anticomunismo ainda persiste é que ele funciona. Você pode dizer o que quiser sobre os ideais do socialismo, sobre trabalhadores terem mais direitos, sobre taxação e redistribuição, ou até – que Deus nos proteja – regulamentações do setor financeiro e bancário, no entanto, tudo que a oposição precisa fazer é dizer “gulags, expurgos, fome: tudo isso levará a um inferno totalitário”, e o debate acaba aí.

Nesta eleição [de 2020], podemos ver que Trump está ficando sem inimigos imaginários. Imigrantes já não assustam o bastante, terroristas já não assustam o bastante, assim, não me surpreende que tudo esteja ocorrendo outra vez. É muito importante que as pessoas compreendam que isso tem um passado, mas que ela não está necessariamente enraizado na realidade histórica. Houve crimes, mas eles não são toda a história do comunismo ou do socialismo.

Meagan Day

Certo, podemos aludir a crimes nos regimes comunistas do século XX - crimes cujo exame se faz extremamente importante. Porém, como você observa em seu ensaio na Aeon, a alusão àqueles crimes tem sido seguida pela conclusão política de que devemos rejeitar e descartar tudo que esteja remotamente relacionado à ideologia adotada pelos regimes que os cometeram. Assim, esquecemos uma etapa intermediária, a etapa com a qual se estabelece que a ideologia de um regime foi, de fato, responsável por seus crimes.

Scott Sehon

Os anticomunistas vão dizer “cem milhões de pessoas morreram sob o comunismo”, ou vão mostrar a imagem de um homem chinês uniformizado, prestes a executar uma mulher, e dizer “isto é o socialismo”, de modo que a conclusão implícita seja o dever de rejeitar o comunismo e o socialismo. Tal conclusão, no entanto, não procede. Não há vínculo lógico. Você precisa fornecer algum tipo de premissa intermediária para validá-la, e eles não são específicos nesse sentido.

Em nosso artigo buscamos validar esse argumento, ou seja, tentamos fazer com que a conclusão decorresse das premissas conforme a lógica. Para torná-lo válido, poderíamos dizer que, se um país está fundamentado sobre uma ideologia em particular e, então, realiza muitas coisas horríveis, tal ideologia deveria ser rejeitada. Assim, a conclusão de que o comunismo deva ser rejeitado decorreria da afirmação de que muitas coisas horríveis aconteceram sob o comunismo. Mas se este é o argumento, então poderíamos argumentar de forma perfeitamente paralela em relação ao capitalismo, é claro. Bastaria indicar que os Estados Unidos, o Reino Unido e outros países fundamentados na ideologia capitalista têm feito muitas coisas horríveis, e concluiríamos daí que o capitalismo deve ser rejeitado.

No caso de um argumento mais perspicaz, eles poderiam dizer que, se qualquer país fundamentado sobre uma ideologia em particular realiza muitas coisas horríveis, e essas coisas horríveis são conclusões naturais desta ideologia, então a mesma deve ser rejeitada. Isso é razoavelmente plausível. Mas para validar esse argumento você precisa assegurar que a fome, os expurgos e as restrições de direitos sob [os regimes de] Stalin e Mao foram resultados naturais da ideologia comunista.

Assim, coloca-se então a possibilidade de que países fundamentados na ideologia capitalista tenham feito muitas coisas horríveis, que estas coisas sejam conclusões naturais da ideologia capitalista e que, portanto, o capitalismo deva ser rejeitado. Claro, defensores do capitalismo vão dizer que tais coisas horríveis não são resultados naturais da ideologia capitalista. Eles vão perguntar “onde Adam Smith disse que deveríamos escravizar pessoas?” Nós deixamos isso meio que de lado em nosso artigo, no entanto, é realmente um pouco mais difícil para os capitalistas defender sua posição.

Milton Friedman se notabilizou por aquilo que ele chamara de doutrina Friedman, onde basicamente sustentava que os capitalistas devem fazer de tudo para gerar a maior quantidade de dinheiro, e que eles estariam violando suas obrigações com os acionistas caso se preocupassem com os bens sociais, como evitar a poluição ou acabar com a discriminação, uma vez que seu trabalho é fazer tanto dinheiro quanto as regras da sociedade os permitam fazer. Pois bem, no pré-Guerra Civil dos EUA as regras da sociedade permitiam a escravização de seres humanos. Logo, segundo o argumento do próprio Friedman, aqueles que administravam engenhos tinham a absoluta obrigação moral de escravizar pessoas, pois esta era a forma pela qual fariam tanto dinheiro quanto possível, até que as regras do jogo mudassem.

Assim, é mais difícil para os capitalistas sustentar que algumas das muitas coisas horríveis não decorrem da ideologia do capitalismo em determinadas condições sociais.

Meagan Day

Não apenas inexiste nos escritos de Marx e Engels algo que indique a necessidade de quaisquer um dos processos que culminaram nos casos de fome e expurgos, como também é o caso de ter havido fome em massa na Índia e na China no fim do século XIX, sob a supervisão colonial do Reino Unido, conforme Mike Davis escreve em seu livro Late Victorian Holocaust.

Em A Riqueza das Nações, você pode encontrar citações diretas de Adam Smith dizendo, por exemplo, que "A fome jamais surgiu por qualquer outro motivo que não a violência de um governo que tenta, por meios impróprios, remediar a inconveniência da escassez", ou seja, que a razão da fome é a excessiva interferência governamental, de onde se conclui que o governo precisaria recuar e permitir que as coisas seguissem seu curso natural, que os preços se reajustassem e um equilíbrio se reestabelecesse sozinhos. Os britânicos simplesmente seguiram esta orientação, levando à morte 10 milhões de pessoas na Índia e na China.

Dado este exemplo, acho que podemos argumentar, com muito mais firmeza, que o número de mortos do capitalismo está atrelado à sua ideologia, enquanto o número de mortos do comunismo - que reconhecemos existir, é claro, embora não chegue perto do fictício número de "cem milhões" - não pode ser rastreado na ideologia abraçada por Marx e Engels.


Micah Uetricht

Esse número foi arquitetado em O Livro Negro do Comunismo e é contestado desde o lançamento do livro nos anos de 1990. Mas a ideia por trás dele é igualar comunismo a nazismo, o que tem tido sucesso. O que há de errado com essa reivindicação?

Scott Sehon

Mesmo deixando de lado o fato de que O Livro Negro do Comunismo atribui 100 milhões de mortos ao comunismo e apenas 25 milhões aos nazistas, porque eles não contam os mortos de guerra por algum motivo, a ideia dos totalitarismos gêmeos não se sustenta. A ideologia nazista era racista até à raiz. Os nazistas colocavam os alemães arianos acima de todos os outros, e eles reivindicavam expansão territorial e autarquia. A guerra, assim como o sistemático maus-tratos e assassinatos de judeus, estavam na essência daquilo que Hitler vinha falando. O número de mortos do nazismo está diretamente relacionado à sua ideologia de uma maneira que número de mortos do comunismo no século XX não está.

Kristen R. Ghodsee

Stéphane Courtois, editor de O Livro Negro do Comunismo, estava desesperado para chegar ao número de 100 milhões – tão desesperado, na verdade, que dois de seus mais destacados colaboradores, Nicolas Werth e Jean-Louis Margolin, repudiaram o livro assim que foi lançado, pois eles perceberam que Courtois estava falsificando os números.

Não é coincidência que o livro tenha sido publicado nos anos de 1990. Durante toda aquela década existiu um projeto para equiparar o nazismo ao comunismo. Grande parte disso teve origem na Alemanha, que naquele tempo tentava se reunificar e, é claro, muitos alemães orientais não estavam felizes com o caminho que a reunificação estava tomando. Assim, a resposta foi uma forte narrativa ocidental sobre o quão terrível e totalitária era a vida na Alemanha Oriental – o Stasi, o muro de Berlim, a escassez de produtos e as restrições de viagens. Ainda que isso não refletisse necessariamente as lembranças que as pessoas tinham daquele período, tornou-se uma narrativa poderosa e dominante que, aos poucos, começou a se esgueirar da Alemanha para todo o Leste Europeu.

A razão desta narrativa ter sido tão importante se deve ao fato de que, nos anos de 1990, quase todos os países do Leste Europeu viveram depressões mais longas e profundas do que a Grande Depressão nos Estados Unidos. Muitas pessoas não percebem o quão devastador foi o colapso daquelas economias após 1989, ou 1991 se considerarmos as ex-repúblicas da União Soviética. O esforço para estabelecer o capitalismo por cima de economias estatais causou um enorme sofrimento aos países do Leste Europeu.

Enquanto isso, aqueles países estavam sendo transformados não apenas em economias de mercado, mas em democracias, o que significava que as pessoas teriam o direito de votar. E é óbvio que elas queriam rejeitar todas aquelas reformas neoliberais que estavam lhes enfiando goela abaixo. Muitas pessoas se tornaram extremamente nostálgicas do passado comunista e pensavam cada vez mais em como as coisas poderiam ter sido se tivessem seguido uma terceira via.

É nesse momento que você encontrará, no Leste Europeu, uma incrível e hegemônica discussão a respeito dos crimes do comunismo, equiparando-o ao nazismo. Museus são abertos. A União Europeia cria uma data para homenagear as vítimas do nazismo e do stalinismo. Em 2018, na Europa, um grupo de políticos liberais de direita assinam a Plataforma da Memória e Consciência Europeia, promovendo a narrativa dos totalitarismos gêmeos.

Alguns de meus colegas na Romênia chamam a isto de “comunismo zumbi”, ou “socialismo zumbi”, que nada mais é do que uma forma de convencer as pessoas a não votarem em partidos de esquerda, nem defenderem quaisquer tipos de programas sociais coletivos. É importante saber que, no Leste Europeu, pessoas cujos pais e avós foram expropriados sob o comunismo no Leste Europeu tiveram as propriedades restituídas a elas, ou seja, estavam literalmente recebendo propriedades durante as privatizações dos anos de 1990. Assim, insinuar que aqueles regimes comunistas realmente expropriaram a propriedade seria, antes de mais nada, uma verdadeira ameaça à propriedade recebida. Não se tratava apenas de ideologia – era também do interesse econômico imediato das pessoas.

Até mesmo o Holocausto seria negado a serviço dessa narrativa. Eu poderia dar exemplos da Letônia, Romênia, Bulgária – tomemos o caso búlgaro. Uma das “vítimas do comunismo” foi o ministro do Interior que assinou os mandados autorizando a deportação de judeus trácios e macedônios para [o campo de concentração nazista de] Treblinka.

O discurso dos totalitarismos gêmeos equipara o nazismo ao comunismo, ou a quaisquer tipo de política de esquerda. Como resultado, mesmo o socialismo democrático, e os trabalhadores e cidadãos comuns que se indignam com a plutocracia e recorrem ao sistema político para lutarem por seus direitos, acabam sendo automaticamente associados aos piores crimes de Stalin, aos gulags, expurgos e à fome.

Quando isso começou a acontecer, as elites olharam em volta e disseram: “temos radicais de esquerda e radicais de direita, mas já que eles são moralmente equivalentes, os radicais de direita [ao menos] são aqueles que irão proteger melhor nossa propriedade, então estamos com eles”. Dessa forma, a narrativa dos totalitarismos gêmeos abriu o caminho para o ressurgimento do fascismo.

Micah Uetricht

O anticomunismo liberal tem um longo histórico nos Estados Unidos, e ele reivindica a defensa das liberdades de expressão e associação, e dos valores liberais essenciais. Contudo, ao seguir o anticomunismo até sua conclusão lógica, como os Estados Unidos têm demonstrado repetidamente, você acabará apoiando as atrocidades dos regimes antidemocráticos de direita.

Kristen R. Ghodsee

Exatamente, os Estados Unidos implantaram Pinochet sobre Allende no Chile. Podemos pensar em muitos outros exemplos. Na Indonésia, um milhão de pessoas foram assassinadas por conta de uma história a respeito de um grupo de supostos comunistas que teria matado alguns generais. A história que incitou a violência dizia que os generais foram supostamente assassinados por mulheres comunistas que teriam arrancado seus genitais e, ato contínuo, realizado uma grande orgia comunista.

Essa história, contada e promovida pelos estadunidenses, criou um absoluto caos na Indonésia. Posteriormente os corpos dos generais foram exumados, evidenciando que essa mentira tinha sido inventada, uma completa fantasmagoria. Ainda assim, se você ler sobre os assassinatos em massa na Indonésia em 1965, verá que as pessoas continuam culpando as mulheres comunistas.

Meagan Day

O elemento da absurdidade e a histeria, frequentemente encontrados no anticomunismo, me lembram dois tuítes que li recentemente.

O primeiro é de Scott Adams, criador dos quadrinhos Dilbert, que tuitou “Me pergunto se o movimento Black Lives Matter sabe que o Antifa era aliado de Hitler e o ajudara a chegar ao poder. Parece que isso seria uma fonte de tensão, dado o foco do BLM à história. O Antifa deveria reparações a todos que perderam familiares ou propriedades para a Alemanha Nazista?”. Esse é um bom exemplo da típica equiparação entre extrema esquerda e extrema direita, mas absolutamente incoerente, como muitas das expressões do anticomunismo.

O segundo é de Katie Daviscourt, representante da Turning Point USA, que tuitou, “Sabe o que é irônico? Democratas LGBTQ+ se rebelando, saqueando e queimando nossas cidades para trazerem o marxismo aos Estados Unidos, embora Karl Marx literalmente assassinasse todos que fossem gays!”. Aqui a equiparação não é apenas de toda a esquerda com os piores abusos do comunismo no século XX, mas literalmente de Karl Marx com Joseph Stalin, o que imagino seja o erro que explique o disparate desse tuite. Mais uma vez filtrado de forma caleidoscópica do meio da insanidade da cultura contemporânea.


Scott Sehon

Estes aí são impressionantes! Eu gostava do Dilbert, sabe como é, parecia um cartoon muito bom. Enfim, uma coisa que pode ser observada aqui é a estratégia anticomunista que, simplesmente, joga tudo no mesmo saco de horrores. Ano passado, Rand Paul fez explicitamente isso em seu livro The Case Against Socialism. Ele escreveu um capítulo inteiro tentando demonstrar que os nazistas eram socialistas. Seus argumentos são terríveis, e o principal deles é o fato de que o termo “socialista” estava bem ali na denominação Nacional-Socialistas. No entanto, se a República Democrática Alemã [parte do bloco socialista] não era propriamente democrática, então o argumento cai por terra imediatamente.

Mas eles não estão de fato tentando apelar à razão. Não é essa a estratégia. A estratégia é tão somente fazer essas associações emocionais e criar um efeito cognitivo enviesado. Seja o viés negativo ou positivo, todas as nuances são perdidas. Tudo se torna preto e branco e nada pode ser pior do que ser igualado aos nazistas, e se você tiver sucesso em associar alguém aos nazistas, esse alguém será jogado no mesmo saco de horrores. Da mesma forma, não poderíamos aprender coisa alguma com os sucessos obtidos pelos países do bloco soviético, porque eles também tiveram muitos fracassos. Eles sofrem o enviesamento negativo [efeito pitchfork].

É evidente que os conservadores gostam de reivindicar para si o monopólio da lógica e da razão, e que os comunistas e socialistas não seriam capazes de pensar de forma clara e rigorosa. Mas basta olhar bem de perto seus argumentos, e eles caem por terra.

Kristen R. Ghodsee

A incoerência é parte da coisa. Eles estão tentando incitar emocionalmente as pessoas. Eles estão nos incitando sendo estúpidos e absurdos, mas também estão incitando aqueles que estão menos conscientes das nuances da história, e o fazem associando palavras a palavras-chave que invoquem algo ruim . Não importa qual seja a relação entre elas. É uma salada de termos que afetam emocionalmente as pessoas. Elas pensam, "eu vou apoiar Trump porque preciso enfrentar esses nazis-antifas-judeus-gays-assassinos-saqueadores-negros"...

Micah Uetricht

... que irão cortar seus genitais!

Kristen R. Ghodsee

Exato. E acho importante aqui ressaltar que isso é eficaz. Mesmo que seja estúpido, funciona! É muito fácil, para eles, fazer o que Scott está dizendo, criar esse viés cognitivo negativo [efeito pitchfork] no qual toda a história do comunismo, do socialismo democrático, do marxismo, do anarquismo e afins, é reduzida aos piores crimes do stalinismo na década de 1930. Assim, todas as nuances e complexidades da região desaparecem.

Não é levado em conta o fato de que a Iugoslávia não estava alinhada; de que na Hungria existiu o assim chamado “Comunismo Goulash” e seu sistema secundário de livre mercado; de que havia impulsos democráticos em lugares como a Checoslováquia, onde tentavam realizar o “socialismo com uma face humana”; de que o Solidariedade, na Polônia, foi um movimento de reforma entre os trabalhadores; de que, mesmo na União Soviética, a Glasnost e a Perestroika foram políticas concebidas para reformar aquilo que eles reconheciam ser um sistema em queda.

Todas as nuances de como era a vida sob o comunismo na Europa Orienta são apagadas. Passei a maior parte de 25 anos realizando pesquisas na Europa Oriental e tenho muitos amigos e familiares nessa parte do mundo. Quem viveu sob o comunismo irá nos contar algumas coisas definitivamente negativas. No entanto, todos eles também têm muitos álbuns de fotos e filmes caseiros daquilo que lhes parece uma vida totalmente normal sob o socialismo.

Meu livro, Por que as mulheres têm melhor sexo sob o socialismo, foi traduzido para o polonês, checo e alemão, e acaba de ser lançado na Rússia. Tenho recebido muitos e-mails dizendo “Obrigado por dizer às pessoas que nossas vidas não eram assim tão ruins. Elas não eram incríveis, mas não eram ruins”. Pessoas da região que viveram sob o comunismo, especialmente aquelas que ainda estão por lá, têm uma percepção muito mais matizada de como era a vida. Uma forma de mitigar os efeitos do anticomunismo é remover esse véu, essa terrível lente pela qual sempre olhamos a Europa Oriental.

E tudo isso sequer diz respeito ao que vemos quando olhamos para além do Bloco Oriental, para o Iêmen e Cuba, para os sandinistas na Nicarágua, ou para o Vietnã e a China, sem falar dos partidos sociais democratas na Europa Ocidental ou dos partidos comunistas que estão participando do processo democrático em lugares como a Índia. Você não pode reduzir tudo isso aos crimes de Stalin.

Mas a razão para que eles criem este viés cognitivo negativo [efeito pitchfork] é poder usá-lo como um porrete a fim de esmagar os sonhos políticos da esquerda. É um método realmente desonesto que coloca uma camisa de força na imaginação dos mais jovens.

Scott Sehon

A. E. Housman tem uma ótima frase: “um momento de reflexão lhes teria mostrado. Mas um momento é muito tempo, e pensar é um processo doloroso.” Acho que isso subjaz à grande parte do debate. As pessoas não querem ter que pensar sobre nada disso. Elas querem narrativas simplistas porque assim é muito mais fácil.

Colaboradores

Kristen R. Ghodsee é professora de Estudos Russos e do Leste Europeu e membro do Grupo de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade da Pensilvânia. Etnógrafa premiada e autora especializada na experiência vivida do socialismo e do pós-socialismo na Europa Oriental, ela escreveu nove livros, e seus inúmeros artigos e ensaios foram traduzidos para mais de uma dúzia de idiomas e apareceram em publicações como Aeon, Dissent, Foreign A airs, Jacobin, e World Policy Journal, e New Republic, Ms. Magazine, e Washington Post, Lancet e New York Times.

Micah Uetricht é o editor-chefe de Jacobin e apresentador de The Vast Majority, da Jacobin Radio. Ele é o autor de Strike for "America: Chicago Teachers Against Austerity" e co-autor de "Bernie: How We Go from the Sanders Campaign to Democratic Socialism".

Meagan Day faz parte da equipe de articulistas da Jacobin.

Scott Sehon é professor de filosofia na Bowdoin College e autor de "Free Will and Action Explanation". Atualmente ele está trabalhando em um livro chamado "Socialism for Smart People".

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