26 de fevereiro de 2021

Nômades em busca de um vilão

O novo filme Nomadland é um olhar sincero sobre a vida de americanos itinerantes deixados de lado pela Grande Recessão. Mas ignora como empregadores como a Amazon estão obtendo lucro com essa nova classe de trabalhadores.

Paris Marx


Ilustração de Cat Sims

Após a crise imobiliária de 2008, milhões de americanos não conseguiram pagar suas hipotecas. Alguns deles sempre tiveram dificuldades financeiras, enquanto outros estavam seguros até a Grande Recessão esvaziar suas contas de poupança e destruir suas vidas. Para alguns, parecia não haver alternativa a não ser empacotar tudo e cair na estrada - para sempre.

O filme Nomadland, baseado no livro de não-ficção homônimo da jornalista Jessica Bruder de 2017, traz o público para o mundo de pessoas que vivem em suas vans e veículos recreativos enquanto cruzam o continente dos Estados Unidos em busca de empregos sazonais. Embora o filme de Chloé Zhao seja em si uma obra de ficção, ela usa os detalhes do livro para enviar uma personagem fictícia central chamada Fern (Frances McDormand) em uma jornada com nômades da vida real direto do texto, localizados em muitos dos mesmos locais descritos por Bruder. Como disse a diretora, a personagem Fern serve como um “guia” para o público, trazendo-o para este desconhecido mundo americano.

O filme oferece um retrato empático desses nômades. Entre captar as relações entre esses americanos itinerantes e as belas paisagens que habitam em suas viagens, o filme não deixa apontar a crise financiera pela difícil situação que enfrentan. No entanto, surpreendentemente minimiza como os empregadores em todo o país tiram vantagem deles.

As vidas dos nômades pós-recessão

Fern morou em Empire, Nevada, uma antiga cidade corporativa construída em torno de uma mina de gesso e uma fábrica de drywall. Mas em dezembro de 2010, depois de noventa anos de operação, sua empresa anunciou que a demanda havia entrado em colapso e que todos os que moravam em casas de propriedade da empresa teriam que se mudar até o final do ano letivo. Embora Fern possa não ser uma pessoa real, a história do Império é muito real.

Depois de ter sua vida destruída aos sessenta anos, Fern começa a residir em uma van cuja seção traseira é reaproveitada como um pequeno espaço residencial. Ela não tem muito dinheiro e, na idade dela, as chances de encontrar um trabalho confiável são mínimas, então ela se junta a um grupo crescente de pessoas que se mudam ao longo do ano para obter posições sazonais na colheita de alimentos, no turismo e em resposta à correria do feriado natalino nos depósitos da Amazon.

Além de Frances McDormand e David Strathairn - que interpreta outro nômade chamado David - o resto do elenco são atores não profissionais que, na verdade, vivem na estrada. Linda May, que é destaque no livro de Bruder, joga cartas com Fern enquanto eles lavam a roupa e discute a ideia de construir uma nave terrestre, enquanto Charlene Swankie envia um vídeo a Fern assim que atinge seu objetivo de andar de caiaque no Alasca. A produção passou muito tempo com os nômades para capturar de forma autêntica como eles vivem, mesmo que alguns aspectos de suas vidas sejam ficcionalizados.

É fácil olhar para os nômades e pensar que eles estão simplesmente vivendo em vans ou veículos recreativos porque isso é tudo que eles podem pagar - e certamente, em muitos casos, isso é verdade - mas há mais do que isso. Muitos deles estão aparentemente vivendo uma vida nômade por opção, críticos das expectativas que são impostas aos americanos modernos: a necessidade de se endividar com os estudos ou com uma casa, e então trabalhar pelo resto de suas vidas para pagar tudo, apenas para encontrar os prometidos anos dourados da aposentadoria que nunca chegam. Eles incorporam uma crítica importante ao estilo de vida que foi promovido no período do pós-guerra, que funcionou para muitos por várias décadas, mas está se beneficiando cada vez menos pessoas com o passar dos anos.

No entanto, dada a erosão do poder coletivo da classe trabalhadora americana, a resposta desses nômades não é de alguma forma construir organizações para desafiar ou reformar essas estruturas, mas sim encontrar um caminho individual para optar por não participar o máximo possível.

Mas onde algumas pessoas veem pena, outras veem oportunidade. A fim de ganhar o pouco que precisam para sobreviver, os nômades se tornaram uma força de trabalho itinerante que preenche vagas sazonais em todo o país. Seu escasso poder de barganha os deixou à mercê dos empregadores - algo que o filme lamentavelmente omite.

Como a Amazon ficou incrivelmente rica com trabalhadores nômades

Em Nomadland, Fern trabalha em uma série de empregos temporários. Ela cuida de um acampamento com Linda May, serve hambúrgueres no Wall Drug com David e sofre sozinha com a colheita da beterraba. Mas o primeiro emprego que a vemos trabalhando é em um amplo centro de atendimento da Amazon.

A Amazon dificilmente é conhecida por tratar bem seus funcionários de depósito. Durante a pandemia, os trabalhadores reclamaram que a empresa não estava fazendo o suficiente para mantê-los protegidos contra a contamição pela COVID-19 de colegas de trabalho e, mesmo antes disso, estava claro que os trabalhadores da Amazônia experimentavam taxas mais altas de lesões, estavam sobrecarregados com metas rígidas e tinham medo até de usar o banheiro durante seus turnos.

Como repórter, Bruder não se esquiva desses detalhes. Ela descreve turnos de dez horas ou mais, durante os quais os trabalhadores podem caminhar mais de quinze milhas. Para sobreviver ao dia, os trabalhadores disseram a ela que tomavam analgésicos durante seus turnos e tentavam não ficar de pé nos dias de folga porque suas pernas doíam muito. Enquanto isso, a Amazon se beneficia imensamente de seu desespero.

O programa da Amazon para atrair "workampers" é chamado de CamperForce e começou como um experimento que correspondeu à crise imobiliária para garantir que a empresa tivesse pessoal suficiente para o fluxo de pedidos em torno do feriado. No entanto, Bruder observa que a Amazon rapidamente percebeu o valor desses trabalhadores errantes e se tornou seu “recrutador mais agressivo”. A Amazon obtém créditos de impostos federais para a contratação de muitos deles porque se enquadram em categorias desfavorecidas, e a empresa também se beneficia do fato de esses trabalhadores exigirem pouco em termos de remuneração e benefícios e não apresentarem risco de sindicalização - aliás, “a maioria demonstrou apreço por qualquer aparência de estabilidade que seus empregos de curto prazo ofereciam.”

Caminhar pelos parques de caravanas parecia ser como "vagar por campos de refugiados pós-recessão, lugares de último recurso para onde os americanos eram enviados se a chamada 'recuperação sem empregos' os tivesse exilado da força de trabalho tradicional", escreve Bruder. Esses trabalhadores são “o epítome da conveniência para os empregadores em busca de pessoal sazonal”, e a Amazon não é o único empregador que tira proveito deles.

As histórias de excesso de trabalho, pagamento insuficiente e condições inseguras são uma constante ao longo do livro de Bruder. Mas o filme em grande parte ignora essas questões. Claro, Nomadland descreve a vida em um centro de abastecimento da Amazon como cansativa, enquanto a colheita de beterraba parece totalmente perigosa, mas Zhao não dá à exploração por parte dos empregadores o mesmo grau de foco que Bruder dá. Fica a dúvida se as pessoas que fizeram o filme simplesmente negligenciaram esse componente-chave do livro de Bruder ou se foi um acordo que teve de ser aceito para filmar nesses locais reais.

A estabilidade requer uma resposta coletiva

Se a exploração dos trabalhadores nômades é minimizada pelos cineastas, a vida do nômade e a jornada pessoal de Fern são colocadas firmemente no centro da história. Zhao explica que, para ela, existem dois tipos de nômades: os que foram forçados a esse tipo de vida pela crise financeira e os que sempre foram, no fundo, nômades de coração. Ela acredita que Fern se enquadra na última categoria.

Isso é totalmente plausível. É provável que alguns que foram empurrados para o estilo de vida convencional promovido pelo capitalismo do pós-guerra agora se sintam em casa na estrada. Mas isso não significa que devam ser sujeitos a maus-tratos quando precisam ganhar alguma renda, ou que esse aspecto de seu trabalho não é necessário para ter uma visão completa de suas vidas.

Nomadland brilha em seu retrato empático de pessoas que foram amplamente esquecidas depois que suas vidas foram destruídas dez anos atrás e que agora se encontram constantemente em movimento em busca de um novo emprego sazonal de baixa remuneração. Seu lançamento durante uma pandemia deixa uma dúvida sobre o quanto suas fileiras irão inchar como resultado da atual crise econômica.

Mas ninguém deve ser empurrado para a vida (e trabalho) na estrada. Enquanto a humanidade dos trabalhadores itinerantes está em exibição tanto no livro Nomadland quanto no filme, este último fica criticamente aquém de contextualizar as experiências desses trabalhadores nas condições históricas e econômicas específicas que perpetuam seu desenraizamento.

Em uma tentativa equivocada de retratar a atuação individual dos protagonistas da história, os criadores do filme perderam uma oportunidade de mostrar a verdade maior no coração da Nomadland: esses "nômades" não estão apenas lutando isolados ou alienados do sonho americano, objetos de piedade ou romance para o espectador. Eles não estão apenas cansados ​​ou inquietos. Eles são impotentes para se organizar contra o abuso de seus empregadores sancionado pelo Estado.

Sobre o autor

Paris Marx é um escritor socialista e apresentador do podcast Tech Won't Save Us.

A administração Biden bombardeou a Síria antes de aumentar o salário mínimo

Yesterday, we were treated to a telling contrast: Joe Biden bombed Syria without congressional authorization, and then refused to lift a finger when the Senate parliamentarian slapped down a minimum wage increase. It’s a pathetic reflection of Biden’s twisted priorities.

Hadas Thier


President Joe Biden speaks in the Eisenhower Executive Office Building in Washington, DC on February 25. (Saul Loeb LOEB / AFP via Getty Images)

Tradução / 26 de fevereiro de 2021 foi um dia de dissonância cognitiva. O presidente Joe Biden, após um mês de seu mandato, deu luz verde à primeira ação militar de seu governo. Os ataques aéreos na Síria, afirma o governo, não demandaram votação do Congresso pois se deram em razão de “autodefesa”, embora a ação tenha sido uma resposta ao ataque às forças de ocupação dos Estados Unidos no Iraque e na Síria.

Os ataques aéreos em si não devem ser uma surpresa para ninguém que seguiu a longa carreira de Biden como um falcão de política externa, embora um falcão agindo sob o disfarce do “intervencionismo liberal“. A Síria é um exemplo perfeito: usar o ultraje legítimo contra as políticas genocidas de Bashar al-Assad para, assim, justificar uma intervenção que só leva a mais sofrimento humano e mais presença geopolítica dos militares norte-americanos no mundo.

Mas a velocidade com que Biden ordenou os ataques aéreos na Síria contrasta, fortemente, com as outras grandes notícias do dia: que Biden se submeteria à orientação técnica da secretaria geral da Mesa do Senado, que interpretou ontem que um aumento do salário mínimo não deveria ser incluído no projeto de combate ao coronavírus. O governo Biden anunciou que não usaria o poder do vice-presidente Kamala Harris como presidente do Senado para desconsiderar a indicação.

Em outras palavras, quando uma política incrivelmente popular que ajudaria milhões de trabalhadores de baixa renda está em questão, ela é deixada para definhar no purgatório do processo legislativo. Quando uma ação militar agressiva está sobre a mesa, ela avança a todo vapor — e que se dane a autoridade do Congresso.

Acontece que a razão pela qual os democratas estão apostando no processo de reconciliação do orçamento em primeiro lugar — que faz com que determinada legislação seja aprovada pelo Senado por maioria simples — é que eles se recusaram a lutar pela abolição da obstrução — que permite que à minoria parlamentar simplesmente trave a discussão orçamentária. Mesmo tendo o controle da maioria na Câmara e no Senado, os democratas estão permitindo que um funcionário não eleito — a secretária geral da Mesa Diretora — decida quais partes de um projeto de lei podem ou não ser postas em votação.

Não é que a opinião pública esteja impedindo os democratas. O aumento do salário mínimo é extremamente popular, apoiado por uma maioria de republicanos e democratas. Na eleição de 2020 na Flórida, junto à eleição de presidencial, foi aprovada em plebiscito com 61% dos votos uma proposta para aumentar o salário mínimo para 15 dólares por hora até 2026, mesmo com Biden perdendo para Trump no estado.

Por tabela, acabamos caindo em uma realidade distópica: o governo Biden atropela barreiras processuais para bombardear um país, enquanto se rende ao primeiro sinal de resistência parlamentar para aumentar o salário mínimo federal, lamentavelmente baixo, que não é reajustado desde 2009.

Os trabalhadores de baixa renda continuarão a sofrer o duplo abuso de arriscar sua saúde em empregos, em geral, de contato direto com o público para receber remunerações miseráveis. Ao redor do mundo, o povo da Síria e de outros lugares continuará a temer o poder dos militares norte-americanos, enquanto o governo dos Estados Unidos poderia estar exercendo seu imenso e conhecido poder para, digamos, forçar as empresas farmacêuticas a distribuir vacinas equitativamente em todo o mundo.

Mas, ei, pelo menos estamos recebendo nossas Leis de volta.

Sobre o autor

Hadas Thier é uma ativista e socialista em Nova York e autora de "A People's Guide to Capitalism: An Introduction to Marxist Economics". Ela tweeta em @HadasThier.

A Operação Lava Jato não foi uma bala de prata

O maior esforço anti-suborno do mundo não conseguiu impedir a corrupção endêmica no Brasil.

Gaspard Estrada


Uma manifestação de apoio à operação Lava Jato e contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em São Paulo, Brasil, em 2019. Créditos: Nelson Almeida / Agence France-Presse - Getty Images

Tradução / O Brasil vive várias crises ao mesmo tempo – a situação catastrófica da saúde, a economia frágil e a polarização política extrema. Agora podemos adicionar a corrupção do sistema judicial à lista. Não precisava ser assim. Os brasileiros tinham grandes esperanças há sete anos, quando um jovem magistrado chamado Sergio Moro lançou uma operação anticorrupção chamada Lava Jato, ou Operação Lava Jato.

Quase da noite para o dia, com o apoio do sistema judicial e da mídia, Moro e os promotores encarregados da operação iriam salvar o Brasil. E em pouco tempo seus esforços produziram resultados impressionantes: milhões de dólares foram recuperados e vários políticos e empresários de alto escalão foram presos, culminando com a prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em abril de 2018.

A Operação Lava Jato provou que a justiça poderia acabar com a corrupção endêmica no Brasil ou foi apenas um conto de fadas que velou outros interesses políticos? Nas últimas semanas, o lado negro do Lava Jato foi desnudado, e um sentimento de profundo desencanto com a chamada justiça curitibana, que leva o nome da capital do estado do Paraná, onde a força-tarefa estava sediada, se espalhou por todo o país. A Operação Lava Jato foi considerada a maior investigação anticorrupção do mundo, mas se tornou o maior escândalo judicial da história do Brasil. Quando a força-tarefa foi dissolvida em 1º de fevereiro, quase ninguém saiu às ruas ou às redes sociais para lamentar seu fim.

Em vez de erradicar a corrupção, obter maior transparência na política e fortalecer a democracia, a agora notória Operação Lava Jato abriu o caminho para Jair Bolsonaro chegar ao poder após eliminar seu principal rival, Lula, da corrida presidencial. Isso contribuiu para o caos que o Brasil vive hoje.

Os promotores da Lava-Jato atribuíram seus sucessos ao uso de métodos inovadores (em particular, o papel das barganhas) que permitiram aos tribunais agir rapidamente. Eles citam 1.450 mandados de prisão, 179 processos criminais e 174 sentenças de prisão deles decorrentes. No entanto, mensagens de aplicativos de telefone hackeados revelaram que, em vez de seguir o devido processo legal e levá-los aos tribunais, Moro usou um aplicativo de telefone como canal de apoio para se comunicar com a equipe de promotoria e traçar estratégias de quais acusações deveriam ser feitas contra o ex-presidente. Em 9 de fevereiro, o Supremo Tribunal Federal concedeu à equipe de defesa de Lula acesso aos vazamentos.

Embora se saiba há muito tempo que Moro condenou Lula por atos indeterminados e sob acusações frágeis, agora sabemos que o próprio Moro ajudou a montar a acusação contra Lula, violando assim o princípio jurídico do sistema de justiça brasileiro de não ser juiz e procurador ao mesmo tempo.

Quando os advogados de Lula reclamaram que foram espionados ilegalmente pela operação Lava Jato, foram garantidos que era um erro. Hoje sabemos que os promotores eram periodicamente informados por agentes da Polícia Federal encarregados da vigilância telefônica, ajudando-os a traçar estratégias que levassem à sua condenação.

Moro vangloriou-se do dinheiro que voltou para os cofres públicos, sem mencionar que as multas impostas pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos à Petrobras e à Odebrecht foram [negociadas] para uma fundação de direito privado administrada por promotores do Lava Jato, além de líderes de ONGs. Ao fazer isso, o Ministério Público contornou a Constituição brasileira, pois esses recursos deveriam ser destinados ao orçamento público. Como consequência, o Supremo Tribunal Federal suspendeu a fundação em 2019.

Vai demorar um pouco até que todos os detalhes da operação venham à tona, mas o que sabemos é que, para combater a corrupção, nosso herói, Moro, usou métodos em flagrante violação do Estado de Direito. Como recompensa, ele recebeu o cargo de ministro da Justiça e Segurança Pública.

Isso não significa necessariamente que não haja uma forma eficaz de combater a corrupção. Na verdade, podemos aprender muito com a experiência brasileira.

Durante a administração de Lula, o sistema de justiça brasileiro passou por um processo de reforma profunda que aumentou fundos e recursos, criou jurisdições específicas para combater a lavagem de dinheiro e aumentou a cooperação entre agências para acompanhar o dinheiro e caçar criminosos de colarinho branco.

Moro e os membros da investigação tiveram poderes para agir de forma decisiva e obter resultados; isso incomodou Bolsonaro, que fez todo o possível para reverter essas políticas. O problema é que Moro e os promotores perverteram esses avanços institucionais – incluindo sua independência do poder público – ao transformar uma simples força-tarefa temporária em uma entidade acima da lei a serviço de um objetivo político, inicialmente contando com o apoio do tribunais superiores.

Moro, que renunciou ao cargo de ministro em abril de 2020, deixou claro durante sua passagem pela magistratura e pelo Executivo que, como seu ex-chefe, acredita que a democracia e o Estado de Direito podem ser deixados de lado em nome da luta contra a corrupção. E mesmo essa afirmação pode ser contestada agora que Moro, em claro conflito de interesses, trabalha para um escritório de advocacia contratado pela Odebrecht.

Para acabar com a relação promíscua entre dinheiro e política – o problema subjacente revelado pela operação, e sua principal realização – não basta processar e prender. Empresas foram à falência e o país ficou em turbulência, mas mesmo depois de centenas de prisões, a corrupção não diminuiu.

A democracia brasileira está em perigo. Para mudar isso, é necessário ir além da acusação e instituir uma verdadeira reforma política que possa ajudar a resolver a raiz do problema, atacando o financiamento ilícito de campanhas políticas. É preciso também introduzir ferramentas mais eficazes de responsabilização no judiciário, a fim de evitar casos como a Operação Lava Jato, que teve proteção institucional mesmo após ter ficado claro que delitos haviam sido cometidos desde os primeiros estágios da investigação.

A Operação Lava Jato acabou, mas sua história ainda não foi totalmente contada. Para que o Brasil enfrente suas múltiplas crises, para realmente atacar a corrupção e superar essa distopia, deve haver uma reavaliação crítica da investigação.

Sobre o autor

Gaspard Estrada é o diretor executivo do Observatório Político da América Latina e do Caribe na Sciences Po em Paris e analisa como a comunicação política afeta as decisões judiciais.

25 de fevereiro de 2021

Não faz sentido atrelar auxílio emergencial à discussão de medidas fiscais compensatórias

É melhor deixar para depois revisão de pisos sociais, que devem garantir aumento de gasto real por habitante (na saúde) e por aluno (na educação)

Nelson Barbosa



A concessão de novo auxílio emergencial, tida como desnecessária por nossa equipe de ideologia econômica há apenas dois meses, se tornou a nova prioridade de política econômica.

Mais uma vez o Congresso corre para forçar o governo a transferir renda aos mais pobres. Mais uma vez alguns políticos e economistas exigem o fim dos pisos de gasto com saúde e educação como contrapartida. Acabar com o piso de gasto social é um erro por dois motivos.

Primeiro, o auxílio emergencial é, adivinhe: emergencial! Não faz sentido condicionar a ajuda imprescindível à população em risco de cair na miséria à aprovação de medidas compensatórias.

Sou favorável a medidas compensatórias, principalmente de aumento da tributação sobre os mais ricos, mas agora a prioridade é (mais uma vez) atender rapidamente a quem precisa renda para não morrer de fome.

Dado que a discussão de medidas compensatórias atrasará o processo legislativo, é melhor deixar isso para depois. A falha neste caso foi do governo e do comando anterior do Congresso, que simplesmente se negaram a debater o tema com calma no final do ano passado.

Segundo, quando chegar o momento de discutir compensação pelo aumento do gasto, não devemos eliminar nem integrar os pisos da saúde e da educação.

O SUS já precisava de recursos adicionais antes da pandemia. Agora precisará de mais ainda. Na educação, o gasto real por estudante já vem caindo desde 2015 e, portanto, não devemos cortar mais o orçamento do ensino público.

Os gastos com educação e saúde públicas precisam ter pisos de gasto, diferenciados, do contrário os programas tendem a se canibalizar e serem corroídos por demandas políticas de curto prazo.

Porém, ter piso de gasto não implica ter receita vinculada, isto é, despesa atrelada a um percentual fixo da arrecadação de impostos ou do PIB.

Quando chegar o momento adequado, o ideal é modificar os pisos da saúde e educação, garantindo aumento gasto real por habitante (na saúde) e por aluno (na educação).

Até qual valor? Até o patamar de gasto compatível com os serviços que população deseja do Estado e os tributos que a população está disposta a pagar por estes serviços.

No caso de hoje, mantenho a sugestão que fiz em 2014: devemos manter o piso de gasto social, mas corrigindo o valor pela soma da inflação com o crescimento da população e uma meta de crescimento real da despesa per capita ou por aluno.

A garantia de correção pela inflação mais crescimento da população ou número de estudantes deve ser permanente. Já a meta de crescimento real do gasto per capita deve ter prazo, para garantir avaliação periódica e transparente do custo e benefício dos programas.

Agora a pausa de sempre: se é para ser assim, por que o PT não fez quando foi governo? Por que nem todos no PT concordavam com esta proposta e, quando quem defendia esta proposta iria finalmente iniciar a discussão, em 2016, houve... deixa para lá.

Voltando, o importante agora é esclarecer, à sociedade e aos nossos parlamentares, que há alternativas mais racionais e adequadas ao Brasil do que o teto Temer ou o “quebra-piso” Guedes.

É possível desvincular gasto da receita sem eliminar piso de gasto. Também é possível ter piso de gasto que evite redução da cobertura da educação e da saúde pública, atrelando o crescimento real do gasto a metas de melhoria do atendimento à população.

Mas tudo isso é para depois da aprovação do auxílio emergencial. Achei que nunca mais precisaríamos dizer isso: mas quem tem fome tem pressa. O resto vem depois.

Sobre o autor

Professor da FGV e da UnB, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento (2015-2016). É doutor em economia pela New School for Social Research.

20 de fevereiro de 2021

Provável próximo presidente do Equador, Andrés Arauz, fala com a Jacobin

Uma entrevista com Andrés Arauz sobre sua surpreendente jornada à beira do poder estatal, o que seu aliado Rafael Correa realizou no Equador e como ele planeja ganhar as eleições de abril, reconstruir seu partido e aprofundar a Revolução Cidadã.

Uma entrevista com
Andrés Arauz

Entrevistado por
Bhaskar Sunkara


Nesta terça-feira, o candidato presidencial equatoriano Andrés Arauz conversou com Bhaskar Sunkara da Jacobin sobre sua visão de mundo, como ele planeja ganhar o segundo turno e unir seu país, e o que podemos esperar de sua presidência.

Tradução / Andrés Arauz não age como alguém que está muito próximo do poder – no bom sentido. Depois de passar um tempo com o candidato da esquerda no segundo turno das eleições do Equador em Nova York, fiquei impressionado com a humildade de Arauz nas interações com a equipe dele, ativistas e mesmo com estranhos.

A imprensa internacional quer que acreditemos que Arauz é uma figura perigosa, um peão do feroz populista Rafael Correa, comprometido com uma retórica polarizante e com políticas desestabilizadoras. Em vez disso, o que encontrei em minhas discussões foi uma figura humilde, um progressista ideologicamente comprometido, mas também um pensador com nuances, orgulhoso de sua perspicácia tecnocrática e experiência como economista.

Pelo comportamento calmo de Arauz, ninguém suspeitaria da tempestade que se forma ao seu redor. As teorias da conspiração sobre sua conexão implausível com o Exército de Libertação Nacional da Colômbia (ELN) estão crescendo, a contrapropaganda está sendo espalhada sobre seus planos para o Equador e a quem ele responderá. Arauz, que acabou de fazer 36 anos e era desconhecido até alguns meses atrás, chegou ao segundo turno, que será disputado dia 11 de abril.

No começo de fevereiro, ele ganhou cerca de um terço dos votos válidos com uma vantagem significativa sobre seus rivais, mas isso não foi suficiente para evitar um segundo turno. Depois de uma recontagem tensa, ele passou ao segundo turno contra o banqueiro Guillermo Lasso.

Nenhum dos presidenciáveis deseja, no entanto, se associar ao atual líder do país, Lenín Moreno. Depois de ser eleito com o apoio de Correa em 2017, ele deu início a uma guinada para a direita, adotando medidas de austeridade e perseguiu os principais líderes da Revolução Cidadã no país.

Como resultado, figuras proeminentes como Rafael Correa e Jorge Glas não puderam participar da disputa deste ano. De fato, o Movimento da Revolução Cidadã enfrentou medidas extraordinárias ao tentar se registrar como um partido e montar uma chapa. Com sua liderança existente perseguida, um estranho, Arauz, foi a melhor escolha para montar uma campanha que visasse desfazer as ações de Moreno e pudesse aprofundar as conquistas do governo Correa (2007-2017).

Apesar das controvérsias e críticas sobre os projetos de mineração e os confrontos com o movimento indígena organizado, sob o governo popular de Rafael Correa o salário mínimo dobrou no país, os gastos com educação e saúde dispararam e o crescimento do PIB ultrapassou as médias regionais. É um período ao qual muitos gostariam de voltar.

Hoje, a Covid-19 ceifou milhares de vidas, o desemprego disparou, a infraestrutura de saúde foi danificada e um programa de austeridade do FMI ameaça mergulhar o país em uma recessão ainda mais profunda.

Andrés Arauz estava na casa dos 20 anos quando serviu no Banco Central de Correa e mais tarde como ministro. A seguir, ele explica um pouco de sua visão de mundo, como planeja vencer o segundo turno e unir seu país e também, o que podemos esperar de sua presidência.

BKS

Vamos começar com sua trajetória. O que o atraiu para a economia e qual é a tradição econômica que mais o influenciou?

Andrés Arauz 

Tudo começou quando eu era muito jovem. Minha avó me ensinou matemática jogando cartas e também ensinou um importante sistema de valores éticos – ela me transmitiu uma visão de mundo igualitário e moral.

Aí, quando continuei meus estudos, a economia se encaixou naturalmente. Eu tinha as habilidades quantitativas para me destacar na disciplina, mas, ao contrário de muitos de meus colegas da área, também me dedicava à causa da justiça social.

No início, fui mais atraído pela economia desenvolvimentista, tentando entender principalmente o papel das instituições na formação de uma economia. Eu estava estudando economia política, no sentido de que estava preocupado com a distribuição de poder dentro da economia, não apenas de renda.

No Equador, conheci melhor o que chamamos de economia social e solidária – fiquei muito intrigado com os modelos alternativos de organização econômica, tanto no nível micro quanto no macro. E então, trabalhando no banco central do país, eu estava realmente obcecado pela economia monetária na tradição pós-keynesiana.

Podemos dizer que me baseio nas tradições pós-keynesianas e desenvolvimentistas, fundindo-as com percepções de experimentos da economia solidária.

BKS

O governo Rafael Correa era obviamente progressista e redistribuicionista, mas parecia enfatizar uma estabilidade macroeconômica. Com essa ênfase, qual será sua resposta aos mesmos problemas que os governos de centro-esquerda anteriores enfrentaram?

Andrés Arauz 

Nossa referência principal foi o próprio Equador – a experiência de desenvolvimento em três períodos de nossa história. Tem Eloy Alfaro [líder da Revolução Liberal de 1895], que usou a infraestrutura para realmente criar um projeto nacional… Seguimos esse molde, enfatizando não apenas a contagem de nossa produção econômica, mas também descobrindo que tipo de ativos da vida real estávamos criando e quais eram seus impactos.

Alfaro construiu o trem que ligava Guayaquil a Quito e mudou para sempre a paisagem equatoriana. Com um espírito semelhante, queríamos criar projetos de infraestrutura que não apenas facilitassem o desenvolvimento, mas ajudassem a construir uma nação.

Em segundo lugar, fomos inspirados pela experiência de desenvolvimento do Equador durante o boom do petróleo dos anos 1970 – aquele crescimento econômico, a expansão do setor estatal, mas também a queda.

E, finalmente, a crise bancária do final da década de 1990 também foi um poderoso exemplo negativo. Estudamos essa história com muito rigor e nos comprometemos a não repeti-la. Grosso modo, sabíamos que esse tipo de crise era produto da priorização do setor financeiro em relação ao resto da sociedade.

Isso significa criar modelos alternativos de crescimento, aumentando tanto as oportunidades para as pessoas comuns e seus saberes quanto a macroeconomia.

BKS

A seu ver, qual foi a conquista mais significativa do governo Correa que você participou?

Andrés Arauz 

A capacitação de equatorianos comuns – poder dizer que as pessoas tinham interesse em sua própria sociedade e um certo orgulho pelas transformações que estavam ocorrendo. Mas, obviamente, esse empoderamento foi um subproduto do todo – nossa política social, gastos com educação, nova infraestrutura e assim por diante.

BKS

O projeto Correa falhou em se institucionalizar da maneira que, digamos, foi o projeto de Evo Morales na Bolívia, por meio do desenvolvimento do Movimento pelo Socialismo (MAS). Em vez disso, pela Aliança PAIS, vocês fizeram com que Lenín Moreno e aqueles ao seu redor sequestrassem a Revolução Cidadã e tentaram empurrá-la para a direita.

Quais são as lições sobre a construção de instituições e partidos que você tira dessa experiência?


Andrés Arauz 

Bem, concordo totalmente com você – essa foi a principal fraqueza de nosso projeto político, e é a questão mais persistente, obviamente, com a qual estamos lidando. Precisamos de uma estrutura partidária com raízes sociais sólidas.

Em vez disso, dependemos muito de um líder carismático com o qual as pessoas se conectam por meio da mídia de massa. Nosso movimento precisa ser mais profundo do que isso, e esse é um problema do qual estou ciente e totalmente empenhado em abordar.

BKS

Vocês tinham um líder popular e um programa popular, mas não tinham base institucional para se conectar com as pessoas em seus locais de trabalho e comunidades de forma contínua.

Andrés Arauz 

Precisamos de um partido forte enraizado em uma sociedade civil forte, e não tínhamos isso. E não se trata apenas de ganhar eleições; um partido democrático é a base para uma participação política real do cidadão comum.

BKS

Quais medidas você está tomando para garantir que o novo movimento não siga o mesmo caminho que o Aliança PAIS?

Andrés Arauz 

Bem, depois de transitar por sete partidos diferentes para concorrer às eleições, estamos consolidando nosso próprio partido, que sobreviveu a todos esses processos judiciais, e estamos nos reconstruindo principalmente com quadros jovens. Há um esforço explícito para fazer com que as pessoas que não estejam envolvidas em obrigações do governo desempenhem, também, um papel de liderança nessa construção partidária.

Da mesma forma, estamos tentando garantir que o partido tenha muito mais interação com a sociedade civil do que antes. É muito importante para mim criarmos uma formação de base, conectando o ativismo dos movimentos sociais e nossos esforços políticos. Temos que estar conscientes de que, se chegarmos ao governo, haverá pressão para que os quadros assumam cargos estaduais, mas isso acabaria esvaziando o partido e esses esforços de baixo para cima.

BKS

Qual é a base social de seu partido e candidatura hoje? Por que tem sido um tanto difícil incorporar o movimento indígena organizado do Equador em seu projeto?

Andrés Arauz 

Temos uma base nos setores populares da sociedade em todos o país. Somos os mais fortes, é claro, entre as classes trabalhadoras da costa do país.

Sobre sua outra pergunta, poder ser útil contrastar com a experiência boliviana. No Equador, o movimento indígena aliou-se a forças supostamente progressistas no passado, apoiando Lucio Gutiérrez em 2002, e depois foi traído. A lição dessas experiências uma suspeita com essas alianças eleitorais e com o poder do Estado. Na Bolívia, no entanto, houve a fusão próspera dos objetivos de uma esquerda progressista e movimentos indígenas – isso é o que permitiu a consolidação do MAS.

Meu objetivo é tentar criar um Estado plurinacional com o movimento indígena.

BKS

Vamos dar um passo atrás. Obviamente, há uma narrativa entre os liberais, também, que pode exagerar a homogeneidade e a coerência da base social indígena. Como, por exemplo, nas eleições de 2013, quando os indígenas votaram bastante em Correa.

Andrés Arauz 

Sim, claro. E muitos setores do movimento indígena também nos apoiaram.

BKS

No entanto, a mudança política desde 2013 parece significativa, quando Pachakutik obteve apenas 3% no primeiro turno...

Andrés Arauz 

O levante de 2019 foi significativo e foi liderado pela CONAIE [Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador], a maior organização indígena do Equador. Isso criou uma base popular para Pachakutik.

BKS

Como você caracterizaria o programa do Pachakutik – como amplamente de esquerda, com partes que você pode incorporar ao seu próprio?

Andrés Arauz 

A maior parte de seu programa é efetivamente progressista e da esquerda; no entanto, há muitos componentes que são claramente influenciados negativamente por uma rede de ONGs. Há uma ênfase pós-moderna que temo que possa começar a tender para o neoliberalismo.

BKS

Para colocar de forma concreta, por “ênfase pós-moderna”, você está falando sobre uma rejeição ao desenvolvimentismo?

Andrés Arauz 

Você pode resumir o pensamento que estou criticando como uma plataforma “anti-extrativista” levada ao extremo.

BKS

Como você colocaria sua posição sobre este tema? O Equador precisa aproveitar responsavelmente as vantagens de sua riqueza de recursos naturais como parte de um projeto para construir uma economia mais avançada e menos dependente da extração?

Andrés Arauz 

Não, eu colocaria de uma forma um pouco mais sofisticada.

Mas aqui está um exemplo: se temos minas de cobre, não nos interessamos apenas em exportar cobre bruto; queremos a incorporação da tecnologia de processamento de cobre no Equador e que essa indústria seja um motor de desenvolvimento para as comunidades nas quais elas serão construídas. É mais do que apenas “venda o máximo que puder e então você terá dólares e então poderá comprar muito mais”, mas sim um projeto próprio que aponte diretamente para o desenvolvimento.

BKS

Quando estiver no poder, você vai ter que exercer um mandato popular que rejeite a austeridade imposta pelo FMI e busque a redistribuição ou, pelo menos, crie políticas expansionistas para combater a recessão, mas também vai precisar manter a confiança do mercado e manter seus empréstimos internacionais existentes. Como você navegará pelos dois opostos?

Andrés Arauz 

Definitivamente vai haver um conflito com o FMI, isso é inevitável. Não é nenhum segredo que o FMI representa o capital financeiro acima de tudo e isso será um confronto direto por motivos práticos e ideológicos. No entanto, temos a Constituição do nosso lado e pretendemos travar essa batalha de uma forma inteligente.

Eu diria, também, que a pandemia ampliou o escopo da política que os governos podem usar e que o novo discurso da diretora do FMI, Kristalina Georgieva, nessas frentes é promissor, mesmo que você não possa chamar sua perspectiva econômica heterodoxa. O mesmo sobre sua nova ministra da economia dos Estados Unidos, Janet Yellen.

BKS

Que pressões você acha que o governo de Lenín Moreno sofreu e podem ser responsáveis por pelo menos parte de seu movimento desastroso à direita?

Andrés Arauz 

Moreno enfrentou uma pressão significativa. Sem a liderança forte de Rafael Correa, que também foi uma figura unificadora, a aliança de nosso movimento, que é muito heterogênea, se desfez.

Diante de um movimento restauracionista conservador, Moreno não foi forte o suficiente para resistir. Além de suas fraquezas de caráter, ele foi chantageado pelas elites econômicas para tomar essas medidas neoliberais.

BKS

Se você ganhar a presidência, ainda vai enfrentar uma Assembleia Nacional hostil. Como você espera superar esse desafio?

Andrés Arauz 

Seremos uma maioria tímida, isso significa apenas que temos que expandir nossa base, e temos que, por meio de nossa defesa de um Estado plurinacional, conquistar potenciais aliados.

BKS

Você costuma invocar o Estado plurinacional. Você poderia descrevê-lo um pouco mais concretamente? Que tipo de estruturas você acha que são necessárias para um Estado plurinacional? A Bolívia é o modelo?

Andrés Arauz 

Como o Estado plurinacional já está em nossa Constituição, nosso modelo teórico não é a Bolívia – e sim o próprio Equador. Existem elementos específicos que foram apresentados pelo movimento indígena para tornar isso uma realidade mais profunda.

Parte dela é sobre espaço cultural e reconhecimento para o povo afro-equatoriano, além dos povos indígenas equatorianos. Há também elementos específicos relativos ao sistema educacional, de justiça, territórios locais, especialmente na Amazônia, que envolvem decisões populares sobre projetos extrativistas, entre outros.

BKS

Antes de encerrar, quero trazer à tona as acusações de influência estrangeira na sua eleição e campanha. Havia um vídeo falso do ELN “endossando” sua candidatura… Como você consegue dissipar essas mentiras sem desviar a atenção de sua mensagem central e popular sobre como colocar a economia de volta nos trilhos e melhorar a vida das pessoas comuns?

Andrés Arauz 

Bem, a distração é exatamente o que está acontecendo. Esses rumores [foram] criados precisamente para se desviar das questões importantes que o povo equatoriano enfrenta, porque podemos vencer nessas questões substantivamente. Isso não vem apenas das elites domésticas; vimos notícias falsas vindo da Argentina, da Colômbia…

Nossa pergunta é simples: queremos decidir nossas eleições por nós mesmos. Queremos ter um concurso democrático limpo e justo, sem manipulação da mídia.

Sobre o entrevistado

Andrés Arauz é o candidato presidencial equatoriano pelo Movimento Revolução Cidadã.

Sobre o entrevistador

Bhaskar Sunkara é o editor e editor fundador da Jacobin e autor de The Socialist Manifesto: The Case for Radical Politics in a Era of Extreme Inequality.

Aumentar imposto nem sempre é nocivo à economia e pode gerar crescimento

Pandemia tornou necessário ampliar arrecadação dos governos para manter proteção social e estabilizar mercados

Folha de S.Paulo

Ilustração de Carolina Daffara

O papel do governo em uma sociedade é um dos debates mais passionais que existem. Nas posições mais construtivas, temos um espectro que varia entre posições liberais que aceitam intervenções pontuais em mercados que funcionam mal e posições mais intervencionistas que enxergam no Estado um promotor de desenvolvimento em graus variados. A política funciona como um espaço de negociação entre visões que podem ser conciliadas, mas muitas vezes se tornam combativamente antagônicas.

É inegável a importância da atuação governamental durante a pandemia. No mundo inteiro, o governo adotou ações para amenizar a queda de renda das famílias com transferências de recursos, ampliar a capacidade dos sistemas hospitalares, repor recursos para estados e municípios administrarem as cidades e evitar a quebradeira das empresas.

Sobre fundo amarelo, duas mãos seguram bolinhas: uma vermelha e uma roxa. Acima, dois galhos, um vermelho, repleto de frutinhas e um roxo, com poucas. Abaixo, uma infinidade de frutinhas Sobre fundo amarelo, duas mãos seguram bolinhas: uma vermelha e uma roxa. Acima, dois galhos, um vermelho, repleto de frutinhas e um roxo, com poucas. Abaixo, uma infinidade de frutinhas

A expansão fiscal ainda não se encerrou, pois a crise persiste com a segunda onda. Mesmo com a vacina, há necessidade de recuperar as economias para evitar o erro de retirada prematura dos estímulos, como ocorreu na crise financeira de 2008.

Dessa forma, alguns países têm adotado iniciativas que vão na direção de ampliar o potencial de arrecadação dos governos, tanto para manter a proteção social e o suporte fiscal quanto para controlar o crescimento das dívidas públicas.

É comum observar reações negativas em discussões tributárias que ensejam algum aumento de impostos no Brasil, com alegações de que a carga tributária já é elevada e inibe o crescimento econômico. A discussão, contudo, não é acompanhada de números e evidências. A carga tributária brasileira medida pela Receita Federal atingiu 32,7% do PIB em 2018, último ano de divulgação da estatística.

Em relação aos países da OCDE (grupo das nações mais desenvolvidas), com carga tributária média de 34,2% do PIB, o Brasil está em um patamar moderado. Em relação aos países emergentes, a carga tributária brasileira pode ser considerada, de fato, elevada. Alguns exemplos de nações com índices inferiores ao nosso: México (23,7%), Chile (26,3%), Colômbia (16,1%), China (20,1%) e Índia (20,5%). A Coreia do Sul é exceção (33,6%).

Todos esses números, contudo, demandam interpretação e contexto. Uma breve comparação com o México é oportuna, porque permite colocar algumas questões na perspectiva correta.

O México tem uma arrecadação expressiva de royalties do petróleo, que não é tratado como carga tributária, o que lhe permite moderar na arrecadação de tributos. Além disso, a idade média de aposentadoria dos mexicanos é próxima de 70 anos, e a taxa de reposição média do rendimento é de apenas de 25%.

O México não possui um programa de seguro-desemprego abrangente, tampouco um sistema de saúde universal. Pouco serviço público e muita arrecadação com a exploração do petróleo explicam a baixa tributação por lá. No entanto, mesmo com a reduzida carga de impostos, o México segue preso na armadilha do baixo crescimento.

A falta de proteção social e de ações governamentais fez com que a economia mexicana sofresse bastante durante a pandemia. Estima-se que o PIB tenha sofrido queda superior a 10% em 2020, caso similar ao de vários outros países latino-americanos.

No Brasil, a rede de proteção existente amparou a sociedade e sua rápida ampliação impediu que a crise resultasse ainda mais drástica. As projeções atuais apontam que o Brasil deve sofrer uma contração da ordem de 4,5%, quase metade da esperada para toda a América Latina. A rede de proteção social funciona como um estabilizador automático da atividade econômica.

Estudos acadêmicos estimam que o Brasil possui a maior desigualdade de renda do trabalho entre os países da América Latina. Após a atuação governamental por meio dos impostos e das transferências, tornou-se o país com maior redução de desigualdade de renda, situando-se abaixo do Chile, por exemplo. Apesar disso, o Brasil ainda possui uma diferença de renda elevada para os padrões do continente.

A ideia de que uma elevada carga tributária é nociva ao crescimento econômico tem um largo lastro de adeptos. Argumenta-se que a redução dos impostos sobre os mais ricos induz respostas positivas na oferta de trabalho dos indivíduos mais escolarizados e com maior dotação de capital, estimulando a produtividade e o crescimento.

Alguns estudos, contudo, refutam essa relação. Pesquisadores da London School of Economics analisaram o efeito da redução dos impostos para os estratos mais ricos da sociedade nas últimas cinco décadas em 18 países da OCDE. Concluíram que não houve nenhum impacto relevante sobre o crescimento econômico e emprego, apenas aumento na desigualdade.

Há um longo debate sobre a relação entre desigualdade e crescimento econômico. Defensores da ideia de que a desigualdade é positiva para o crescimento entendem que ela cria estímulos para os indivíduos se aperfeiçoarem e superarem seus limites. Assim, a desigualdade seria um motor do crescimento econômico e utilizar medidas tributárias progressivas poderia ter o efeito contrário ao desejado.

Muitos estudiosos, no entanto, entendem que a desigualdade reflete as barreiras que os indivíduos menos abastados enfrentam para se desenvolver. Nessa interpretação, ela estaria associada a outros fatores que impediriam a mobilidade social. Dessa forma, as possibilidades econômicas são diminutas para um indivíduo que nasceu pobre ascender socialmente.

Em um exaustivo estudo, pesquisadores da OCDE concluíram que a desigualdade de renda é negativamente relacionada com taxas de crescimento econômico. Esse resultado vai ao encontro da evidência empírica que mostra que a mobilidade social é menor em países com maior concentração de riqueza, um fenômeno conhecido entre economistas como “Great Gatsby curve”, uma referência ao clássico livro que retrata a distinção de classes da sociedade norte-americana na década de 1920.

No intuito de distribuir os custos econômicos da pandemia de forma mais adequada, é importante buscar formas viáveis e socialmente justas de financiamento das políticas públicas. O maior diferencial da tributação brasileira em relação aos países mais desenvolvidos ocorre na base de renda, lucros e ganhos de capital.

As alíquotas do Imposto de Renda para pessoa física apresentam baixa progressividade, e muitas isenções atenuam seu potencial redistributivo, reduzindo sua capacidade de arrecadação e limitando o financiamento de políticas públicas.

A isenção na tributação sobre lucros e dividendos, instituída para estimular investimentos, encorajou o planejamento tributário para os profissionais liberais de renda mais elevada. A evidência empírica indica que a isenção não gerou crescimento econômico, tampouco elevou os investimentos.

Na França, a tributação sobre lucros e dividendos foi majorada em 2013, no bojo de uma reforma que desestimulou a remuneração dos acionistas e elevou a poupança das empresas que usaram os recursos em caixa para ampliar seus investimentos e oferecer financiamentos aos seus clientes.

É um exemplo em que o imposto resulta em crescimento econômico, reduz a desigualdade de renda e fornece recursos para os governos ampliarem o acesso aos serviços públicos. Nos EUA, a redução da tributação sobre lucros e dividendos em 2003 também não resultou em nenhum efeito visível sobre o desempenho econômico.

No Brasil, a tributação sobre a renda tradicionalmente se concentrou nas empresas, o que vai na direção oposta à tendência mundial. A volta da tributação sobre lucros e dividendos poderia reverter essa tendência e criar condições para a maior concentração de impostos sobre a renda das pessoas físicas, alinhando o modelo brasileiro aos padrões internacionais, com redução da tributação direta sobre as empresas, o que propiciaria um ambiente mais receptivo à absorção de investimentos.

A tributação dos fundos de investimento fechados, em que as famílias mais ricas do país fazem seus investimentos, incide somente no momento do saque ou do término do prazo de duração do fundo. Essa diferenciação de tratamento em relação aos investidores convencionais permite acúmulo de ganhos e resulta em expressivos benefícios fiscais aos seus cotistas.

A nova economia digital também impõe desafios importantes aos sistemas tributários. No passado, para consumir o produto “música”, havia uma transação econômica em torno de um objeto físico. A existência física permitia a tributação em várias etapas de produção do que se consumia. Esse exemplo é generalizável para vários produtos, serviços e atividades econômicas, como propaganda e marketing.

É possível tributar essas transações no momento do pagamento, mas é inegável que esse processo ficou mais complexo, principalmente porque o lucro de muitas operações, atualmente, é apropriado fora do país. Assim, a economia digital tornou a tributação direta mais difícil, devido à concentração de vários mercados nos gigantes da internet que se situam em outras jurisdições.

A internacionalização do lucro gerado por essas empresas nas atividades praticadas localmente erodiu a base tributária dos governos e concentrou renda na mão de grandes corporações. Em resposta às necessidades fiscais da pandemia, a Espanha aprovou um imposto de 3% sobre as receitas locais dos gigantes da internet, que ficou conhecido como “Google tax”. O imposto será formalizado se os membros da OCDE chegarem a um acordo para lançar uma taxa digital conjunta.

A introdução de um imposto de carbono também tem potencial relevante de aumento de arrecadação e oferece incentivos para o desenvolvimento sustentável, intensificando o uso de tecnologias limpas. Um estudo recente publicado pelo NBER, centro de excelência em pesquisa econômica nos Estados Unidos, concluiu que a introdução desse imposto teve impacto nulo sobre o nível de emprego e de crescimento nos países europeus, mostrando que nem todo imposto é necessariamente nocivo para um país.

O pesquisador Bráulio Borges, do FGV Ibre (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas), em um artigo para o Observatório de Política Fiscal, mostrou que essa é uma alternativa de baixo custo econômico para tornar a dívida pública brasileira sustentável.

A tributação sobre o patrimônio também tem sido revista. Uma comissão foi criada no Reino Unido para estudar a introdução de um imposto sobre fortunas (IF). Os pesquisadores reconheceram o efeito inconveniente do IF ao estimular a fuga de ativos móveis, razão pela qual, para evitar esse risco, recomendaram sua introdução de forma temporária.

O Observatório de Política Fiscal publicou um estudo sobre o IF, mostrando que vários países europeus instituíram esse imposto na saída da crise de 2008, mas o extinguiram à medida que restauraram suas condições fiscais. Na América Latina, Argentina e Bolívia criaram suas versões de IF, de forma temporária, no esforço de financiar políticas públicas durante a crise da Covid-19.

Dessa forma, é possível que o IF conviva com outros impostos sobre o patrimônio e a renda em períodos excepcionais, como tem sido prática na experiência internacional. A característica temporária, a reduzida base de arrecadação ao incidir sobre poucas famílias, a complexidade de administração e o elevado contencioso colocam o IF como um instrumento auxiliar de arrecadação.

A progressividade deve ser, portanto, aperfeiçoada de outras formas. No Brasil, as alíquotas do imposto sobre herança são limitadas a 8%. Segundo o Observatório de Política Fiscal, em outros países os números variam de 30% a 80%, dependendo do grau de parentesco, do valor e da forma de herança.

Do ponto de vista conceitual, a herança é uma riqueza que não envolve nenhuma justificativa relacionada à meritocracia, pois não está associada a esforços ou a compensação de riscos incorridos na atividade produtiva. Portanto, a tributação sobre a herança não distorce incentivos econômicos.

Há uma percepção correta de que injustiça tributária existente no país é elevada. No Brasil, não há incidência de IPVA sobre os bens móveis de luxo como lanchas, jatos, helicópteros e iates. Problema similar ocorre no IPTU, pois as alíquotas não são progressivas e existem muitas isenções malfocalizadas. Em todos esses casos, há um relevante potencial de arrecadação.

Existem vários caminhos para tornar a tributação brasileira mais progressiva. Isso envolve temas complexos, que decorrem de mudanças na estrutura produtiva e na agenda econômica e política que estão ocorrendo em todo o mundo, mas parte relevante reflete questões domésticas, tão antigas quanto injustas.

A reforma da tributação indireta em discussão no Congresso, muito importante para elevar a eficiência do sistema, nunca conquistou o eleitor mediano por não incluir a progressividade tributária na sua pauta.

Os nossos problemas possuem solução, mesmo no atual momento de dificuldades fiscais, evidentes para todos. A adoção de medidas tributárias mais progressivas pode contribuir para remover barreiras ao desenvolvimento, criando condições adequadas de financiamento para programas públicos com elevado retorno social, como qualificação profissional, educação, saúde, saneamento e infraestrutura. Não se trata de ignorar o potencial de melhora no gasto público já em debate no país, mas de ser justo com todos.

Sobre o autor

Coordenador do Observatório de Política Fiscal do FGV Ibre (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas) e pesquisador da UnB (Universidade de Brasília)

19 de fevereiro de 2021

Judas e o Messias Negro realmente faz justiça a Fred Hampton

Os esquerdistas foram queimados muitas vezes pelas representações de radicais em Hollywood. Portanto, é uma surpresa bem-vinda quando, muito raramente, os principais cineastas realmente fazem justiça à história dos radicais americanos, como no novo filme sobre Fred Hampton e os Panteras Negras, Judas e o Messias Negro.

Chip Gibbons

Jacobin

Daniel Kaluuya as Fred Hampton in Judas and the Black Messiah. (Photo courtesy Warner Brothers)

Em 4 de dezembro de 1969, a polícia de Chicago invadiu o apartamento de um dos líderes mais ativos e promissores do Partido dos Panteras Negras, Fred Hampton. Equipada com metralhadoras, rifles, espingardas e pistolas, a polícia não só atirou primeiro como também disparou mais de noventa tiros. Os Panteras, de acordo com as conclusões de um grande júri, proferiram no máximo um único disparo. 

O ataque violento tirou a vida de Hampton e Mark Clark. Hampton foi assassinado enquanto dormia, provavelmente drogado pelo informante do FBI, o agente secreto William O’Neal. Depois que a polícia removeu Akua Njeri do local do ataque, noiva grávida de Hampton, a ativista ouviu um policial perguntando se ele ainda estava vivo. Ela respondeu dizendo que dois tiros haviam sido disparados, e então um outro policial falou: “Ele está bem e morto agora.”

Os assassinatos de Hampton e Clark foram obra direta do departamento de polícia de Chicago e do procurador estadual do Condado de Cook, Edward Hanrahan. Mas uma investigação histórica do Senado sobre a má conduta das agências de inteligência dos EUA e um processo prolongado de homicídio culposo revelou que a operação policial era parte de uma operação secreta de inteligência doméstica do FBI para neutralizar os movimentos políticos que desafiavam “a ordem política e social existente”.

Hampton tinha 21 anos quando foi assassinado. Ele era um orador talentoso com uma oposição visceral à opressão racial e uma visão socialista inabalável. Tenho falado com pessoas que conheceram Hampton ainda em vida, e todos o descrevem como alguém simplesmente incapaz de deixar a injustiça passar sem oposição.

Como resultado, Hampton continua sendo uma figura heróica para muitos da esquerda. Pessoas nascidas décadas após seu assassinato continuam a encontrar inspiração em sua vida. E o assassinato de Hampton pelas mãos do FBI e do departamento de polícia de Chicago continua sendo uma história importante sobre o “limite” que o governo dos Estados Unidos é capaz ir para silenciar os esquerdistas.

Mas embora a história de Hampton possa ser conhecida por alguns setores da esquerda, a maioria dos norte-americanos provavelmente nunca ouviu falar de Hampton ou do programa secreto de contraespionagem do FBI que causou sua morte.

É por isso que é tão importante que o novo filme Judas e o Messias Negro procure contar a história da morte de Hampton pelas mãos do FBI. Com o apoio de um grande estúdio de Hollywood, o filme tem o potencial de levar essa história a um público de massa. Felizmente, o longa consegue fazer jus à história que retrata.

Como combater o fogo

Os Panteras Negras são um dos grupos mais incompreendidos da história dos Estados Unidos. Até hoje, eles são frequentemente demonizados, tendo sua visão de mundo distorcida e silenciada. No filme, o agente do FBI, Roy Mitchell, frequentemente compara o Partido dos Panteras Negras à Ku Klux Klan. Embora tal comparação seja tão abominável quanto absurda, ela reflete como os Panteras ainda são constantemente considerados erroneamente como violentos chauvinistas raciais. E quando os Panteras não são caluniados, muitas vezes são cooptados, sua política radical omitida em favor da apropriação de sua estética.

Qualquer militante de esquerda que vá assistir um filme de Hollywood sobre Fred Hampton o faz com apreensão.

A primeira vez que vemos Fred Hampton (interpretado por Daniel Kaluuya) na tela, ele está fazendo uma de suas citações mais famosas:

⁠Não acreditamos que a melhor forma de combater o fogo seja com fogo; a melhor forma de combater o fogo é com água. Vamos combater o racismo não com racismo, mas com solidariedade. Dizemos que não vamos combater o capitalismo com o capitalismo negro, mas com o socialismo.

Pouco depois, vemos Hampton falando para um grupo de estudantes negros em uma faculdade local. O palestrante apresentando Hampton anuncia que, de acordo com as demandas dos estudantes, a faculdade mudará seu nome para Malcolm X College. Quando Hampton sobe ao palco, ele se empolga com aqueles na platéia que pensam que uma mudança de nome é semelhante a uma verdadeira libertação. O que está acontecendo, afirma Hampton, é um reformismo liberal. A reforma liberal é sobre transformar escravos em “melhores escravos”. O que os Panteras querem é uma revolução. E Hampton deixa os estudantes saberem quem é seu verdadeiro inimigo pelo nome: “o capitalista”.

Em outra cena, vemos Fred Hampton liderando sessões de formação política para novos recrutas. Hampton não fala apenas do socialismo, ele também fala de Mao Tse-tung e do impacto de suas teorias sobre a perspectiva do partido. O informante do FBI, William O’Neal (interpretado por LaKeith Stanfield), ignora a lição porque está mais preocupada em xavecar uma mulher sentada perto dele. Hampton chama ele e lembra dos ensinamentos do partido sobre o respeito às mulheres camaradas. Os homens não devem tomar liberdades com as mulheres e devem reconhecê-las como “irmãs de armas”.

Longe dos chauvinistas raciais, Hampton busca construir uma “Coalizão Arco-Íris” dos Panteras com os Jovens Senhores, uma organização predominantemente porto-riquenha semelhante aos Panteras na ideologia; e os Jovens Patriotas, uma organização de esquerda anticapitalista de autodenominados “caipiras” composta em grande parte por migrantes dos Apalaches para Chicago.

Em uma dramatização tensa do primeiro encontro entre os Panteras e os Patriotas, alguns dos Panteras parecem hesitantes sobre o que poderia esperá-los quando se encontrarem com os Patriotas. Ao se juntarem a uma reunião em andamento, uma gigantesca bandeira confederada imediatamente chama sua atenção. Um orador do palco afirma que a bandeira é apenas para lembrar sua herança sulista. Um membro dos Panteras afirma que a bandeira o lembra do linchamento sofrido por sua família. O orador dos Patriotas afirma: “Meu povo oprimiu seu povo por centenas de anos”, antes que um membro branco da platéia explodisse, alegando que seu povo não oprimia ninguém, já que sua família era meeira.

Antes que a situação explodisse, Hampton intervém. Ele lembra aos participantes brancos que eles estão vivendo em um gueto em condições deploráveis. Hampton pergunta se eles não acham ridículo terem que pagar os salários da polícia que os brutaliza rotineiramente. Em suma, ele reconhece as diferenças e tensões entre eles, mas insiste que suas semelhanças na opressão devem uni-los para lutar contra um inimigo comum.

O foco principal dos Panteras era combater a opressão racial, alcançando a autodeterminação das comunidades negras nos Estados Unidos. Os Panteras foram formados em Oakland como o Partido Pantera Negra para Autodefesa. Com armas na mão, os Panteras seguiam a polícia para garantir que obedecessem à lei. Apesar de ser um movimento contra a opressão do povo negro nos Estados Unidos, os Panteras atuavam através de uma estrutura explicitamente internacionalista e socialista, olhando para os escritos de Frantz Fanon, e consideravam-se operando no mesmo movimento global que a revolução em Cuba e as lutas de libertação nacional na Argélia e Vietnã.

E eles foram claros sobre a fonte da opressão negra: o capitalismo. Os capitalistas negros não resolveriam o problema, apenas o socialismo o faria. Nesta luta, os Panteras estavam dispostos a trabalhar com pessoas pobres e oprimidas de todas as raças e origens para alcançar o objetivo.

Além de algumas observações perdidas, incluindo comentários sobre as conquistas do sistema de saúde cubano, as políticas internacionalistas dos Panteras não são realmente exploradas no filme. Mas o socialismo revolucionário dos Panteras Negras está na frente e no centro – um feito nada pequeno para um grande filme de Hollywood.

Embora o filme se concentre em Hampton, é também, em última análise, sobre os ataques do FBI contra ele. Aqui, também, o filme faz jus à história.

Crucificando um Messias potencial

Otítulo “Judas e o Messias Negro” refere-se a uma carta enviada pela sede do FBI a 41 escritórios de campo do FBI. Em 1956, o FBI iniciou formalmente um programa de contraespionagem (denominado COINTELPRO) contra o Partido Comunista. A contrainteligência tradicionalmente envolve a neutralização de agentes estrangeiros hostis, mas o FBI decidiu que era hora de usar essas técnicas contra movimentos políticos domésticos.

O FBI acreditava que seus poderes anticomunistas lhe permitiam atingir cidadãos e organizações não-comunistas que, em sua avaliação, corriam o risco de serem infiltradas ou influenciadas por comunistas. Foi sob esse raciocínio que o FBI visou, originalmente, o movimento dos direitos civis e muitos de seus líderes mais proeminentes, incluindo Martin Luther King. 

Mas em 1967, o FBI criou um novo programa COINTELPRO para atingir “Grupos de ódio de nacionalistas negros”. Na mesma época, o FBI também criou uma seção de “investigações de inteligência racial” dentro de sua divisão de inteligência doméstica. Em 4 de março de 1968, o FBI publicou um memorando delineando os objetivos deste novo COINTELPRO, que incluía “Prevenir a ASCENSÃO DE UM MESSIAS que poderia unificar e energizar o movimento nacionalista negro militante.”

Na época em que o memorando foi emitido, os Panteras ainda não estavam na mira do FBI. Os potenciais “messias” em questão eram Martin Luther King, Stokely Carmichael e Elijah Muhammad (o memorando observou que Malcolm X poderia ter sido o temido “messias”, mas em vez disso ele se tornou um “mártir”). Exatamente um mês depois da publicação deste memorando, Martin Luther King foi morto por um assassino.

O próprio Edgar Hoover declararia os Panteras como a “maior ameaça à segurança interna do país”; eles se tornariam rapidamente o principal alvo do programa. Das 295 operações COINTELPRO autorizadas contra os grupos “Nacionalistas Negros”, 233 seriam levadas a cabo contra os Panteras.

A revelação de que Hampton foi morto como resultado de uma série de ações secretas destinadas, em parte, a prevenir a ascensão de um “messias negro” teve um impacto óbvio. Fred Hampton foi um orador carismático e um organizador brilhante. Ele foi capaz não apenas de criticar a opressão racial, mas também de unir uma coalizão multirracial da classe trabalhadora. Muitos se perguntaram se o FBI temia que Hampton fosse aquele “messias”, então eles escolheram assassiná-lo. Judas e o Messias Negro abraça essa visão da história.

Embora o filme evite o didático, ele faz um bom trabalho de representação de algumas táticas comuns do COINTELPRO adotadas pelo FBI. Isso inclui o método “snitchjacketing”, quando os informantes do FBI rotulam falsamente outras pessoas como sabotadoras ou traidoras para semear desconfiança. Sem spoilers, mas, como mostra o filme, isso pode ter consequências letais.

Também é descrito como o FBI redigiu panfletos com ataques a diferentes grupo falsamente afirmando ser dos Panteras, sempre na esperança de desencadear conflitos violentos entre eles. Em outra cena, o filme mostra como os informantes podem agir como agentes provocadores, no intuito de criar um pretexto para uma prisão, uma tática ainda popular no FBI.

No título do filme, “Judas” vem antes do “Messias Negro”. Isso reflete o direcionamento do longa, que não está ancorado em Hampton, mas no informante do FBI, William O’Neal. Esse foco tem suscitado críticas. Embora o filme, felizmente, evite retratos unidimensionais e cartoonísticos, O’Neal é exibido sob uma luz mais simpática do que ele merece.

Em um punhado de cenas, O’Neal é mostrado lutando com o que o FBI o incumbiu de fazer. Como O’Neal falou muito pouco sobre suas experiências, essas cenas são puramente ficcionais. Não temos ideia se O’Neal já se sentiu em conflito com suas atribuições. E alguns dos piores atos de O’Neal como provocador são omitidos do filme: O’Neal realmente construiu uma cadeira elétrica que ele queria que os Panteras usassem em informantes e tentou incitar a violência entre os Panteras e as gangues de Chicago. Ambos os incidentes estão completamente ausentes do filme.

Ainda assim, no balanço geral, o filme captura com sucesso uma história raramente contada enquanto é bem-sucedido nos termos cinematográficos do cinema mainstream.

A visão de Fred Hampton perdura

Mesmo antes da atual onda de programas policiais propagandísticos, o FBI sempre foi impulsionado pela cultura popular. No auge da “segunda ameaça vermelha”, Hollywood produziu filmes como Fui Comunista para o FBI, que celebrizaram a polícia política do país. Embora o FBI tenha sido o beneficiário da cobertura bajuladora da imprensa ao longo de sua história, o oposto exato foi executado contra os Panteras Negras.

Judas e o Messias Negro vem em um momento em que há um ativismo renovado em torno da violência policial, do racismo e das falhas do capitalismo. Os ativistas de hoje se debatem com questões sobre como enfrentar a opressão racial e a exploração de classes. Muitos sofismas têm sido oferecidos sobre este tema, desde afirmações de que fechar os olhos e ignorar as realidades do racismo é o caminho para a unidade de classe até advertências de que a quebra de bancos não acabará com o racismo.

Mas a visão revolucionária de Fred Hampton oferece uma perspectiva de como enfrentar a opressão racial e a exploração capitalista não como problemas separados, mas como parte de uma luta entrelaçada.

Embora seja necessário contar a verdadeira história dos Panteras e do FBI por si só, Judas e o Messias Negro chega em um momento em que as memórias desse passado são de extrema relevância. E, por isso, a esquerda pode encontrar muito o que comemorar no filme.

Sobre o autor

Chip Gibbons é um jornalista cujo trabalho foi difundido em In These Times e Nation. Ele também é o diretor de políticas da Defending Rights e Dissent, onde ele escreveu a reportagem "Still Spying on Dissent: The Enduring Problem of FBI First Amendment Abuse." As opiniões expressadas aqui são particulares.

18 de fevereiro de 2021

A política radical de Oscar Wilde

Oscar Wilde é conhecido hoje por seu humor satírico, mas manteve um interesse vitalício pelos assuntos políticos - que o levaria ao nacionalismo irlandês, ao sufrágio feminino e à luta contra o capitalismo.

Donal Fallon

Tribune

O poeta e dramaturgo Oscar Wilde em 1882. Wikimedia Commons

Tradução / Que Oscar Wilde achou muito o que ridicularizar nos valores convencionais da sociedade vitoriana tardia é evidente para qualquer pessoa que tenha lido ao menos uma página de sua obra. O que é menos conhecido, é que o dramaturgo e poeta imaginou uma sociedade muito diferente não somente como algo desejável, mas possível, e escreveu um ensaio político – A alma do homem sob o socialismo – onde explanou suas crenças políticas. Uma das linhas mais citadas de Wilde – muitas vezes reproduzida sem referência à sua fonte – está nessa obra: “Viver é a coisa mais rara do mundo. A maioria das pessoas existe, isto é tudo.”

Wilde viveu uma vida plena, embora curta. Nascido em outubro de 1854 na Westland Row de Dublin, mas criado principalmente na vizinha Merrion Square, Oscar Fingal O’Flahertie Wills Wilde era filho de dois grandes excêntricos – e intelectuais – de Dublin no século XIX. Seu pai, William Wilde foi um cirurgião pioneiro e autoridade da medicina, que aceitou o título de cavaleiro no Castelo de Dublin, o lar do domínio britânico na ilha da Irlanda. Em comparação, sua mãe Jane Wilde passou grande parte de sua vida tentando romper essa conexão com a Grã-Bretanha. Folclorista, poetisa e ensaísta, ela escrevia sob o pseudônimo de Speranza, a palavra italiana para esperança.

A nação e a Juventude Irlandesa

Acasa em que Wilde foi criado era de intensa discussão política, encorajada por Speranza, que via a casa como uma espécie de salão político. A sufragista Millicent Fawcett foi convidada por Speranza para “explicar o que significava a liberdade feminina”, em uma cidade onde a questão do sufrágio feminino não conseguiu ganhar o mesmo impulso que na ilha vizinha por algumas décadas.

Como poeta, a produção de Speranza apareceu nas páginas do The Nation, um jornal separatista alinhado com o movimento Young Ireland. O título – Jovem Irlanda e, portanto, os Jovens Irlandeses – foi uma referência concedida aos movimentos republicanos nacionais emergentes que varreram o continente na década de 1840, em particular a Jovem Itália (Young Italy) de Giuseppe Mazzini.

Uma ruptura com o nacionalismo constitucional conservador de Daniel O’Connell, os jovens irlandeses anunciaram a Segunda Revolução Francesa com a observação de que “dinastias e tronos não têm metade da importância de oficinas, fazendas e fábricas. Em vez disso, podemos dizer qualquer coisa exatamente na proporção em que garantem jogo limpo, justiça e liberdade para os trabalhadores.” O movimento liderou uma insurreição abortiva em 1848 contra o pano de fundo da fome e da inanição, a poesia de Speranza encorajava “Formas desmaiadas, famintas” à revolta.

Speranza, mais tarde citada por James Connolly nas páginas de Labor in Irish History, hospedava frequentemente veteranos do Young Ireland na casa da família, Wilde mais tarde lembraria que “no que diz respeito àqueles homens de 48 anos, vejo seu trabalho com uma reverência peculiar e amor, pois de fato fui treinado por minha mãe para amá-los e reverenciá-los, como uma criança católica reverencia os santos da catedral”.

Um tipo diferente de separatismo: Wilde na América

Os comentários de Wilde sobre o Young Ireland foram feitos durante uma turnê de palestras nos Estados Unidos em 1881, o jovem poeta embarcou em uma jornada pelo país falando sobre esteticismo, mas descobriu que o público era atraído pela chance de ouvir o filho de Speranza.

Algumas das falas de Wilde perante o público americano parecem confusas hoje, incluindo seu pródigo elogio à Confederação e a insistência de que “nós, na Irlanda, estamos lutando pelo princípio da autonomia contra o império, pela independência contra a centralização, pelos princípios pelos quais o Sul lutou.” Wilde percorreu o bairro francês de Nova Orleans com o ex-general confederado Pierre Gustave Beauregard, “o homem que ordenou o primeiro tiro na Guerra Civil”, e declarou que Jefferson Davis era o americano que ele mais desejava conhecer.

Os flertes de Wilde com a causa do Sul revelam várias coisas – principalmente, o desejo do jovem poeta de dizer ao público local o que eles queriam ouvir. Não houve tais murmúrios em Nova York, por exemplo. O tipo de separatismo adotado pelos estados do sul estava em desacordo com muito do que era pregado nas páginas do The Nation, é claro, mas ainda havia algo que Speranza admirava na Confederação, e nisso ela não era inteiramente única.

Shaw e o fabianismo

Na Londres da década de 1880, Wilde ganhou destaque como jornalista e dramaturgo. Como editor de The Woman’s World de 1886 a 1890, publicou artigos sobre a questão do sufrágio e apelou à igualdade na sociedade entre os sexos, uma vez que o “cultivo de tipos separados de virtudes e ideais separados de dever entre homens e mulheres levou todo o tecido social a ser mais fraco e menos saudável do que o necessário”.

A revista e a autoridade de Wilde, observa Eleanor Fitzsimons, defendeu “a feminista radical sul-africana Olive Schreiner, que demandava por maior acesso à vida política e pelo fim do duplo padrão sexual” e era decididamente progressista.

Muito se fala sobre Wilde ter assinado uma carta pedindo clemência para os anarquistas condenados por envolvimento no Caso Haymarket nos Estados Unidos em 1886, a pedido de George Bernard Shaw. Seu colega dublinense relatou mais tarde, no entanto, que “foi um ato completamente desinteressado de sua parte; e garantiu minha distinta consideração por ele pelo resto de sua vida”.

O socialismo de George Bernard Shaw teve suas origens em seu envolvimento com a Fabian Society em Dublin, mas se desenvolveu – e foi desafiado – em seu tempo na Inglaterra. Muito do fabianismo permaneceu com Shaw, que escreveu em 1890 sobre sua crença de que “o socialismo pode ser realizado de uma maneira perfeitamente constitucional por instituições democráticas”.

O fabianismo em Dublin conquistou poucos discípulos – em uma cidade onde o Home Rule dominava todas as questões políticas e empurrou as questões sociais de lado – mas as coisas eram diferentes em Londres. Uma reunião com a presença de Shaw e Wilde em julho de 1888 teve um efeito transformador em Wilde – o ex-amante e executor literário de Wilde, Robbie Ross, insistia que serviu de inspiração para o ensaio de Wilde de 1891, A alma do homem sob o socialismo. Foi um trabalho sobre o qual Shaw comentou mordazmente, insistindo que “era muito espirituoso e divertido, mas não tinha nada a ver com o socialismo”.

A alma do homem sob o socialismo

Embora Shaw possa não ter reconhecido o socialismo no ensaio de Wilde, talvez ele estivesse apenas procurando por um socialismo que ele mesmo reconhecesse, de seu próprio envolvimento anterior com as ideias marxistas.

Wilde se tornou cada vez mais influenciado pelos escritos anarquistas de Peter Kropotkin, algo explorado em detalhes pelo historiador anarquista George Woodcock, biógrafo dos dois homens. A admiração era mútua, Kropotkin escreveu mais tarde a Robbie Ross sobre o “mais profundo interesse e simpatia” por Wilde dentro da comunidade anarquista e elogiou A alma do homem sob o socialismo como uma obra com palavras “que valiam a pena ser decoradas.”

Para Woodcock, o ensaio de Wilde representa “a contribuição mais ambiciosa para o anarquismo literário durante a década de 1890.” Nele, Wilde descreve sua crença na necessidade de abolir a propriedade privada:

Com a abolição da propriedade privada, teremos um individualismo verdadeiro, belo e saudável. Ninguém vai perder sua vida acumulando coisas e os símbolos das coisas. As pessoas vão viver. Viver é a coisa mais rara do mundo. A maioria das pessoas existem, isto é tudo.

O ensaio de Wilde não era tanto um apelo por uma nova ordem e o avanço da causa do trabalho, mas pela abolição do trabalho assalariado, sustentando que “o socialismo nos libertaria daquela necessidade sórdida de viver para os outros que, na presente condição das coisas, atinge quase todos.” A obra contém também uma crítica de caridade, como algo que serve apenas para tratar os sintomas daquilo que está adoecendo a sociedade – uma economia capitalista que nos nega tempo de vida.

A alma do homem sob o socialismo não é uma polêmica qualquer – contém alguns dos melhores gracejos de Wilde, que “a caridade cria uma infinidade de pecados” e que “é melhor pregar do mendigar”. Infelizmente, a obra saiu bem no pior momento da vida de Wilde.

Prisão e vida após a morte

Como nota Neil Bartlett, apenas cinco dias se passaram após a condenação de Wilde em maio de 1895 por indecência grosseira antes da publicação de A alma do homem (seu título original). Foi uma tiragem pequena de apenas algumas dezenas de cópias, mas sua publicação “apenas cinco dias após a condenação de Wilde foi um ponto extraordinário. Bem no momento em que ele estava sendo silenciado, alguém decidiu que era a voz de Wilde em sua forma mais abertamente radical que deveria continuar a ser ouvida na imprensa.”

O casamento de Wilde com a autora irlandesa Constance Lloyd gerou dois filhos, mas eles se distanciaram sexualmente desde o nascimento de seu segundo filho. Wilde escreveu mais tarde, em particular, que “ela não conseguia me entender e eu estava entediado até a morte com a vida de casado”, embora também reconhecesse que ela era “maravilhosamente leal” a ele. Naquela época, Wilde havia embarcado em um relacionamento homossexual com Robbie Ross.

Um relacionamento posterior com Lord Alfred Douglas acabou levando Wilde ao banco dos réus, onde ele foi ferozmente interrogado por Edward Carson, mais tarde para vir a se destacar como a principal voz dissidente contra o Home Rule da Irlanda. Ambos eram formados na Trinity College e dublinenses, embora Wilde notasse ironicamente dos relatórios de Carson de que “sem dúvida executaria sua tarefa com toda a amargura de um velho amigo.” A história lembra Carson como o homem que dividiu a Irlanda, mas ele foi também a queda de Wilde. O império da lei significava menos para Carson poucos anos depois, quando ele ameaçou derramamento de sangue contra a aprovação da Home Rule.

O encarceramento, entre maio de 1895 até 1897, produziu a obra mais pungente e reflexiva de Wilde, a carta De Profundis. É um trabalho que capta a profunda angústia mental da prisão e do colapso da individualidade, mas também contém um senso de desafio: “Quando fui preso pela primeira vez, algumas pessoas me aconselharam a tentar esquecer quem eu era. Foi um conselho desastroso. Só percebendo o que eu sou é que encontrei qualquer tipo de conforto.”

Ao ser libertado da prisão, Wilde – sob o nome de Sebastian Melmoth – viveu seus últimos anos no exílio na França. Seu amigo fiel e ex-amante, Ross, garantiria sua publicação contínua, incluindo uma reedição de A alma do homem sob o socialismo em 1912. Ross também comissionou o escultor Jacob Epstein para o túmulo de Wilde no cemitério Père Lachaise. Muito tem sido escrito sobre este trabalho de Epstein, acusado como indecente e que a polícia francesa insistiu que fosse coberto – os órgãos genitais ofendiam a sensibilidade de alguns na política municipal parisiense. Mas e quanto à inscrição no monumento?

Lágrimas alheias tentavam,
Em vão, acalmar o seu penar.
Pois são homens proscritos que lamentavam por ele.
E estes sempre vão lamentar.

Com o passar do tempo, Wilde não é mais uma figura em desgraça, nem em luto. Na Irlanda do final do século XX, ele se tornou uma figura de inspiração para uma geração de ativistas dos direitos LGBTQI+ irlandeses, desafiando a ideia – como o escritor Declan Kiberd observou que algumas “almas essencialistas” viam – de que “você pode ser gay ou você pode ser irlandês, mas não poder ser os dois ao mesmo tempo. “Para a memória popular, Wilde existe como um grande satírico de sua época, mas foi um escritor para todas as idades e ainda há muito o que ser refletido em seu trabalho sobre a sociedade como ela é e como poderia ser.

Sobre o autor

Donal Fallon é um historiador e apresentador do podcast Three Castles Burning. Ele é co-autor de Revolutionary Dublin: A Walking Guide (Collins Press).

Cuba: Nem imobilismo, nem excepcionalidade

Democracia, republicanismo e socialismo em Cuba dez anos após o início da reforma.

Ailynn Torres Santana e Julio César Guanche


A pandemia (bem administrada do ponto de vista da saúde e da pesquisa científica) agravou as consequências da reforma econômica. (Foto: Reuters)

Desde aproximadamente 2010, Cuba está imersa em processos de profundas mudanças. A palavra "reforma" não é usada, mas é isto, e ocorre em múltiplas dimensões. Todas essas transformações têm legitimidade e problemas diante das necessidades e condições de possibilidade da sociedade e do Estado socialista.

A consulta popular e posterior aprovação em referendo de uma nova Constituição da República (2019) foi um ponto de chegada às mudanças que já estavam em curso e que a nova norma formalizou. Ao mesmo tempo, abriu um momento de profunda transformação legislativa que está implicando na criação ou modificação de mais de uma centena de leis e decretos. Os cidadãos têm procurado intervir na nova ordem jurídica de diferentes formas e com diferentes graus de sucesso.

No plano econômico, a reforma - mais audível no plano internacional - há muito é planejada e divulgada por meio de documentos oficiais. Uma década depois, continua em andamento, com novos conteúdos. Nesse sentido, ocorreram grandes atrasos e más decisões econômicas, algumas das quais, ao invés de corrigir distorções, os reproduziram. Mudanças nessa ordem exibiram problemas persistentes e crescentes no enfrentamento de questões cruciais, como empobrecimento e desigualdade, no país desde a década de 1990.

A reforma econômica teve que ocorrer em um contexto de mudanças nas relações com os Estados Unidos. Embora o “degelo” de 2017 tenha trazido uma melhora no cenário, sob o mandato de Donald Trump o clima de hostilidade voltou e o progressivo ressurgimento de sanções que afirmam o bloqueio econômico, comercial e financeiro contra Cuba. O evento tem contribuído para o agravamento da crise econômica nacional.

Por outro lado, agendas, atores e dinâmicas da sociedade civil registram modificações; As esferas públicas são ampliadas e aumenta a capacidade do cidadão para desafiar, impugnar e negociar com as políticas institucionais. Esses processos estão claramente conectados às agendas globais e regionais: feministas, anti-racistas, animalistas, sindicais, religiosas, tipicamente políticas, etc. Os registros ideológicos que encarnam são diversos e não necessariamente pertencem ao espectro da esquerda, que, por sua vez, é heterogêneo dentro dele.

O conjunto afirma dois fatos. Por um lado, nega qualquer tese de "imobilidade" dentro do país. Por outro, questiona a excepcionalidade atribuída à realidade cubana nas análises latino-americanas. Ao contrário, fluxos e correlações com outros contextos são evidentes. A sua identificação permite uma melhor auscultação do já longo processo de transformações que, no início de 2021, aprofunda e questiona o futuro da nação e da sua cidadania.

Aqui olhamos para a reforma cubana através de quatro lentes: 1) a reorganização do sistema socioeconômico; 2) mudanças relacionadas à representação política, à qualidade do serviço público dos representantes e às (im)possibilidades de controle cidadão; 3) as transformações no ordenamento da relação entre lei e direito, seu processamento democrático e a busca de garantias institucionais para eles; 4) conflitos quanto ao exercício da participação cidadã e da sociedade civil.

Reforma do sistema socioeconômico: acesso à propriedade e (des) controle sobre as condições de existência

A estrutura da propriedade, o aparelho produtivo e os mercados de trabalho mudaram e ganharam complexidade em Cuba. Suas bases são quatro documentos principais: os Lineamientos para la Actualización de la Política Económica y Social (2011), a Conceptualización del modelo económico y social cubano de desarrollo socialista (2017), a Constitución de la República (2019) e aqueles que especificam a Tarea de Ordenamiento (2021).

Um papel fundamental tem sido desempenhado pela expansão do setor não estatal da economia e, especialmente, o chamado Trabalho Autônomo (TCP). Entre 2010 e 2018, o TCP cresceu 375%. A maneira como isso aconteceu é frágil e ainda incompleta. Tem havido decisões arbitrárias ou anacrônicas, ineficiência estrutural e corrupção, e disputas ideológicas entre atores internos do poder que interrompem e / ou retardam as medidas necessárias neste campo.

La ampliación del TCP no ha implicado el reconocimiento de pequeñas y medianas empresas (Pymes) con personalidad jurídica. Eso ha tenido consecuencias negativas para las relaciones productivas. Pueden destacarse dos, que guardan relación: la limitación de las relaciones comerciales de las Pymes entre sí y con otros actores económicos nacionales y extranjeros, con perjuicio de su dinamismo y resultados productivos, y la imposibilidad de que el Estado desarrolle mecanismos efectivos de garantía de derechos laborales en el TCP. Por lo último, el control sobre las condiciones de trabajo disminuye, aunque se estima que allí los ingresos son superiores a los percibidos por el trabajo en otros sectores de la economía.

Además, se esperaba que el TCP absorbiera el desempleo que debía producirse en el sector estatal. En 2011 Raúl Castro anunció que había subempleo en el país y que eso era una barrera importante para la economía. Esa situación era resultado de la pervivencia de la política de pleno empleo que mantuvo el Estado durante los 1990 y que fue un amortiguador de las crisis para la ciudadanía. Pero como parte de la reforma, debía eliminarse el subempleo y esa fuerza laboral migraría hacia otros sectores económicos.

Entre 2011 y 2019, 1 millón 100 mil personas salieron del sector estatal, pero el TCP no tuvo condiciones de acogerlas. Una parte de ellas quedaron fuera de todos los mercados laborales formales. Teniendo en cuenta el aumento de la escasez y del costo de la vida, es probable que el sector del trabajo informal se haya ensanchado, aunque no hay cifras oficiales.

La pandemia —bien manejada desde el punto de vista de salud y de investigación científica—ha agravado las consecuencias de la reforma económica. El TCP se ha deprimido: 45% de quienes tenían licencias para ese tipo de trabajo la suspendieron temporalmente durante el 2020. En ese contexto, el 1 de enero de 2021 comenzó la nueva etapa de «Ordenamiento», con una nueva apertura para el sector. Un número aún incierto de empresas estatales se declararán irrentables como consecuencia de este nuevo escenario.

En el sector estatal, la reforma ha aumentado los salarios medios en términos nominales. Entre 2008 y 2017, el incremento alcanzó 1,84 veces. Con la Tarea de Ordenamiento (2021), el aumento salarial ha sido de 4,9 veces.

Hasta la década de 1980, el salario proveniente del empleo estatal constituía el 80% de los ingresos familiares en Cuba. Estimaciones indican que, en 2016, el salario real del sector estatal representaba cerca del 39% de lo que era un año antes de comenzar la crisis (1989). Diferentes análisis para el año 2019 también afirman su insuficiencia. La combinación de los dramáticos efectos de la pandemia y las consecuencias derivadas del «Ordenamiento» ha producido una subida estrepitosa de los precios que perjudica nuevamente lo que los salarios representan para la reproducción de la vida.

Mirado hacia adentro, el sector estatal necesita producir mejores incentivos y democratizarse. Un análisis reciente informa la persistencia de la asimetría en las relaciones de poder respecto a la gestión de la propiedad social (a favor de empleadores y directivos), el mantenimiento de la condición de subordinación de quienes trabajan por salario (lo cual se explicitó en el nuevo Código de Trabajo, 2014) y la hiperformalización de la participación de sindicatos en las elaboraciones de los planes empresariales.

El sector cooperativo —específicamente el no-agropecuario— también ha participado de la reforma y se ha ampliado, aunque en escala mucho más discreta que la que podría esperarse desde una perspectiva socialista. Se han identificado claras barreras para su ejercicio; entre ellas: inexistencia de preparación para gestión de tipo horizontal y el surgimiento de las cooperativas como orientaciones «desde arriba».

Otros contenidos de la reforma han sido el estímulo declarado a la inversión extranjera, la productividad y la disminución de erogaciones en divisas.

La economía no monetaria ha hecho contribuciones de gran escala. El trabajo no remunerado, principalmente a cargo de mujeres, ha sido y continúa siendo fundamental para el sostenimiento de la vida. Cuba afronta una crisis de cuidados producto del envejecimiento demográfico y de la escasez de servicios de cuidados públicos. En 2002 se estimó que el aporte de los servicios domésticos y de cuidado no remunerados era el equivalente a 20% del PIB nacional. No hay nuevas estimaciones, pero es probable que ese número haya crecido. El conjunto condiciona la amplia brecha en la participación laboral de mujeres y hombres, que es de 22,7%. Casi una de cada dos mujeres en edad laboral está fuera de la Población Económicamente Activa. Hay más mujeres universitarias que hombres pero, en general, tienen menos autonomía económica, acceso a la propiedad y participan menos en los sectores económicos que proveen mejores ingresos. La crisis de cuidados ha sido considerada por las instituciones, pero no se enuncia como un problema para la reforma.

En los 1990 no hubo retirada del Estado de sus funciones sociales, aunque la crisis dejó «claros perdedores y ganadores»: mujeres en general, madres solteras, personas de la tercera edad, población negra y mestiza, trabajadores estatales en ocupaciones de baja calificación y territorios empobrecidos con migrantes hacia zonas de mayor desarrollo. Ese perfil se ha mantenido en la reforma de la última década.

Para afrontarlo, el gobierno insiste en que «nadie quedará desamparado». Se han mantenido algunos subsidios (por ejemplo, en el precio de las guarderías públicas y algunos productos de la canasta básica para grupos poblacionales concretos) mientras que la eliminación o modificación de otros, como los del Sistema de Atención a la Familia, han sido objeto de polémica. Como parte del «Ordenamiento», 700 millones de pesos del presupuesto estatal se ha dedicado a la atención a personas consideradas vulnerables.

Los cambios en el sistema socioeconómico tienen consecuencias para las garantías de autotutela y para el despliegue de capital político de los sectores empobrecidos.

Representação política, serviço público e controle do cidadão

La reforma que supone la Constitución (2019) contiene avances respecto a la representación como relación de servicio público con control ciudadano. En ello, consagra el Estado socialista de Derecho, la supremacía constitucional, el imperio de la ley, refuerza la organización institucional y amplía derechos y garantías.

La Constitución agrega diseños que desconcentran poder y lo hacen contestable. Separa funciones, descentraliza niveles territoriales y crea nuevos recursos institucionales a favor de la ciudadanía. Otorga a la Asamblea Nacional de Poder Popular (ANPP) nuevas facultades de interpretar la Constitución, establecer o extinguir tributos y aprobar regímenes territoriales de subordinación administrativa. Define el municipio como unidad estatal fundamental y le reconoce autonomía y potencialidades de participación directa a través de consulta y petición.

Otros contenidos avanzan en ese perfil de la representación como servicio público controlado: límite de mandato, creación de la iniciativa constitucional para no menos de 50000 electores, mantenimiento de la iniciativa legislativa a partir de 10 mil electores y ampliación de la capacidad de revocación a funcionarios públicos.

En otro orden, se han desarrollado prácticas de gobierno electrónico en distintos niveles de la administración pública, que facilitan procesos de participación y control estatal. También se constatan «procesos de escucha» oficial de demandas formuladas en redes sociales, en temas como urbanística, acceso a lugares públicos, control de precios o peticiones laborales.

Estos avances conviven con antiguos y nuevos problemas sobre el control y la contestación de la representación.

El Partido Comunista de Cuba (PCC) —único— es la «fuerza política dirigente superior de la sociedad y del Estado». Con ello, transfiere la soberanía popular hacia sí mismo; no cuenta con obligaciones expresas respecto a su subordinación a la Constitución, ni sobre sus formas de dirección sobre el aparato estatal.

La autonomía municipal tendrá que lidiar con el deber de esa instancia de respetar «principios del cumplimiento de las disposiciones de los órganos estatales superiores» y de las indicaciones partidistas.

La ANPP mantiene formas de funcionamiento —diputados no profesionales, sesiones ordinarias de solo cuatro días al año, presencia de instituciones mediadoras de la nominación de diputados (las «comisiones de candidaturas»)—, entre otras, que le han impedido —desde 1976— cumplir con su perfil de ser el máximo centro de poder estatal.

El nuevo sistema de desconcentración de poderes (presidente de la república, primer ministro, presidente de la ANPP) no significa un aumento del carácter parlamentario del sistema, que siempre había celebrado la colegialidad de todos sus ámbitos. El nuevo diseño refuerza la verticalidad de la toma de decisiones que va desde el Jefe de Estado hasta los Intendentes Municipales, pasando por el Primer Ministro y los Gobernadores Provinciales.

El puesto de presidente de la República es electo de modo indirecto, pero a la vez sus poderes son los mayores otorgados nunca a un presidente en la historia constitucional cubana si se toman en cuenta sus actuales facultades respecto al veto total, el veto parcial, el poder de dictar decretos, la iniciativa exclusiva de normas, sus poderes sobre el presupuesto, su capacidad de convocar referéndum, la adopción del plan de presupuesto y la convocatoria a plebiscito (debemos esta observación a Randdy Fundora, que trabaja este tema en profundidad en un texto aún inédito).

El ejercicio de derechos constitucionales del tipo de la iniciativa legislativa popular —como la solicitud de una Ley Integral contra la Violencia de Género— o peticiones legales de revocación de funcionarios —como la referida al ministro de Cultura, también diputado— han enfrentado diversos niveles de obstaculización, o quienes las han promovido han denunciado represión por hacerlo.
 
O direito, a lei e os direitos

En el campo legal, la discusión del anteproyecto constitucional (2018-2019) trazó un camino con contenidos positivos respecto a la posibilidad de la ley de acoger derechos, procesarlos democráticamente y afirmarlos institucionalmente. Esa ruta pasó por la aprobación de la Constitución, y debe seguir con la aprobación de sus normas de desarrollo. En ello, se ha valorizado el papel del orden jurídico y se ha trabajado por su completamiento y sistematización.

Desde la sociedad civil, existen también señales de revalorización del Derecho y de la importancia de la ley cuando se reclaman formas jurídicas para demandas políticas, como ocurre con los exigencias de colectivos sociales para obtener leyes de cine, de prensa, de Código de familia «inclusivo», de protección animal, etc.

Tras ser aprobada la Constitución, se hizo público un calendario legislativo contentivo de las leyes de desarrollo por elaborar. Se ha cumplido parte de un amplio programa de creación legislativa, pero han existido posposiciones de legislaciones muy sensibles, como el Código de Familia —que someterá a plebiscito el matrimonio igualitario, contraviniendo el derecho constitucional de igualdad— y como la ley de reclamación de derechos constitucionales ante los tribunales.

Por otra parte, esa producción legal se orienta mayormente a «reflejar» los cambios que se despliegan en lo político y lo económico. Esa noción responde a un sentido más «administrativo» del Derecho, antes que directamente político, entendiendo por esto hacerlo partícipe del procesamiento democrático de derechos y de su traducción institucional.

Con vistas a la Constitución vigente, creció la demanda de considerarla con valor normativo —con aplicación directa—, pero prevalece la noción de que su desarrollo depende de leyes accesorias. Incluso los Tratados internacionales de los que Cuba es signataria necesitan ser incorporados por alguna legislación nacional para que surtan efectos en el país.

Asimismo, existen otros problemas sobre la relación entre Ley y Decreto. La Constitución —un texto de «mínimos»— tiene un amplio número de remisiones legislativas: cuenta con 229 artículos y unas 111 remisiones a legislación secundaria. Entre ellas, «existen 60 mandatos claros en cuanto a la regulación a seguir y el resto, 51, presentan riesgo de modificar los contenidos constitucionales».

El primer problema es el hecho mismo de que la ley a la que la Constitución obliga nunca sea dictada. Ese proceder genera «inconstitucionalidades por omisión», pero no existen mecanismos para denunciarlas ni obtener la creación de la ley. Otro problema es que las remisiones terminen siendo decretos (o decretos leyes), pero no leyes, cuando deban serlo por la materia tratada.

Una perspectiva crítica del Derecho reconoce que existe el derecho a resistir el derecho. Es otra manera de subrayar el carácter democrático de la Ley, de afirmar las condiciones que le son imprescindibles para proveer libertad. Según ese enfoque, donde hay una injusticia, el cumplimiento de la ley es una humillación. Esto es: si una norma invade derechos, no cuenta con moralidad para reclamar su cumplimiento. Luego, recursos como la desobediencia civil son un camino para transformar la sociedad al permitir discutir la injusticia dentro del Derecho.

El ordenamiento cubano es omiso en recursos de derecho para resistir el Derecho. Con ello, pierde posibilidades de introducir nuevas preguntas sobre la justicia dentro del orden legal, y de convertir la discusión sobre el Derecho en otro espacio de actuación ciudadana sobre la traducción institucional de los derechos y la justicia.

Exercício da cidadania, sociedade civil e debates sobre liberdade

La reforma también ha acumulado debates sobre las prácticas de ciudadanía dentro del socialismo cubano. La década ha contado con dos procesos grandes de consulta popular: sobre los Lineamientos (2011) y la Constitución (2018-2019).

En ambos, la amplia participación de la ciudadanía muestra conciencia colectiva sobre la importancia del Derecho para el aseguramiento de libertades y como productor de garantías ciudadanas. Luego, la puja por participación ciudadana ha desbordado (más que en períodos anteriores) a los espacios institucionales, y se producen conflictos de alta intensidad, como la reciente «crisis de San Isidro».

Por décadas, los conflictos sociopolíticos cubanos se enunciaron como una confrontación entre el proyecto político de la Revolución, amparado por un pueblo robusto y mayoritario, y una disidencia opositora minoritaria con alianzas financieras e ideológicas con el gobierno estadounidense. Sin embargo, luego de tantas transformaciones sociales ocurridas en Cuba, sobre todo a partir de los años 1990, ese enfoque ya no resulta pertinente.

Actores y debates propios del campo artístico e intelectual han sido los más audibles pero no son los únicos presentes. Otros ejemplos muestran movilizaciones y disputas: organización popular solidaria para afrontar la catástrofe causada por un tornado en La Habana y para gestionar la pandemia, demandas organizadas desde el TCP frente al Ministerio de Trabajo y Seguridad Social, marcha LGTBIQ+ autoconvocada a contrapelo de las instrucciones institucionales, iniciativa legislativa feminista solicitando una Ley Integral contra la Violencia de Género, medios de comunicación independientes con trabajo serio consolidado, pronunciamientos de distintos sectores disintiendo de políticas o discursos institucionales, colectivos animalistas solicitando una Ley de Protección Animal, convocatorias simultáneas de jóvenes en espacios públicos para hacer audibles sus agendas —las más recientes: el 27N y la Tángana del parque Trillo— y más.

Actores y organizaciones introducen, así, nuevas demandas de acceso a (y voz en) los espacios políticos. Las capacidades y posibilidades del poder público institucionalizado para procesarlas y distinguirlas han sido limitadas. Al presente, esa relación verifica una política cada vez más polar, que firma listas de agravios e ilegitimidades mutuas en una dinámica de «victimismos cruzados».

El lado institucional (re)clasifica actores de la sociedad civil como «mercenarios», agentes del gobierno estadounidense y/o líderes de la restauración capitalista en el país y se presenta como objeto de agresión de un vasto conjunto de actores que, mirando sus programas y agendas, son extremadamente diferentes.

En efecto, existe una política sistemática del gobierno de Estados Unidos para propiciar lo que llama «cambio de régimen» y es demostrable que cuenta con brazos y voces en Cuba para ello. Pero ese hecho exime a la política oficial de demostrar la condición de «mercenarios» o «agentes» al conjunto de quienes clasifica como tales y que trata en consecuencia. Un enorme espectro de diferencias son cubiertas como el «enemigo».

En ese escenario, el debate sobre la libertad ha sido central y ha mostrado posibilidades y límites. De una parte, ha colocado en la conversación demandas relacionadas con la libertad de expresión y de creación o con la posibilidad de disenso político y su organización. A la par, la agenda redistributiva sobre la igualdad, la desigualdad, los derechos laborales, es escasa o ausente. Existe una fractura operativa entre ambos debates y se pierde, desde distintos lugares del mapa político, posibilidades de avanzar en programas integrales de justicia, socialistas y democráticas.

Mientras, se producen avances de sentidos comunes y prácticas neoconservadoras. El empobrecimiento, la ampliación de las desigualdades y los flujos transnacionales contribuyen a ello, como sucede en otros lugares del mundo. Especialmente evidente es la expansión de neoconservadurismos religiosos en el país y la comprobación de su pulso firme en contextos de cambios normativos.

En este momento de la reforma, distintos sectores de la sociedad civil llaman al «diálogo». Un camino deseable sería el de la constitución de redes interdependientes e interconectadas de actores colectivos complementarios, al interior de las cuales se reconozca y compense la desigualdad real entre los mismos, se distinga, para provecho político, «el diferente» y «el antagónico» y se respete, de forma irrestricta, el marco constitucional y de las garantías de derechos correspondientes.

O debate sobre o socialismo cubano

Los cuatro ítems cuyo análisis hemos seguido en este texto son los que se han considerado centrales en la tradición democrática republicana: 1) la inalienabilidad de la libertad (con demandas de independencia nacional y personal), 2) el carácter democrático que debe cumplir la propiedad (con derechos a la propiedad y ante la propiedad, y con necesidad de su distribución y de control sobre bienes y recursos), 3) el papel del Derecho como constitutivo de la libertad (la libertad existe en la ley y en la oposición a ella si es injusta, pero no existe «fuera de la ley» donde solo habita la arbitrariedad) y 4) el perfil «fiduciario» de la representación política, con control desde el soberano y potestades de revocación.

Esta discusión sobre el socialismo y la tradición republicana, de la cual han hecho parte desde Marx hasta José Martí, ha ganado espacio en Cuba. Las preguntas sobre las condiciones de posibilidad de una República socialista democrática tiene, entonces, mucho sentido.

Una República subordinada por el capitalismo, con sus dinámicas de concentración de poder, exclusión social y explotación del trabajo, no deja de ser una República, pero resulta fundamentalmente oligárquica.

La apuesta por la República democrática encuentra en el programa socialista de igualdad política e igualdad social una combinación imprescindible. Entendemos la igualdad política como libertad política con capacidad de autoorganización, de contestación, de creación y de participación respecto a las decisiones estatales, y con poder de decisión de la ciudadanía, de los trabajadores y trabajadoras sobre los procesos que afectan sus vidas. Comprendemos que la igualdad social es el despliegue de la justicia social; la lucha por la eliminación de la desigualdad y la pobreza y no alguna clase de igualitarismo represivo.

El perfil socialista del sistema cubano ha reclamado mayor análisis de sus problemas propios en comparación con los trabajados por los enfoques republicanos que reflexionan sobre entornos capitalistas y comprueban cómo la estructuración de dimensiones de clase, género y raza soportan allí la exclusión del acceso y el ejercicio de la República.

Sin embargo, recuperar un análisis integral que comprenda estos prismas parece necesario también para Cuba: identificar las prácticas de exclusión social y destitución de poder —generadas por dimensiones de clase, raza y género, etc.— dentro del orden socialista, tanto como encontrarlas en los espacios que se abren dentro del país a las relaciones de tipo capitalista.

Desde esa comprensión, el análisis de la República, la democracia y el socialismo pueden situarse en un contexto propio de necesidades y oportunidades sin repetir consignas al uso del establishment liberal sobre las funciones la libertad, la ley, la propiedad y la representación política.

En su lugar, se pueden especificar programas prácticos de libertad política y justicia social para Cuba, a la vez que proponer una renovada reflexión sobre el socialismo que necesita el siglo XXI. Se trata de identificar las oportunidades que presenta el proceso cubano junto a sus impedimentos, para proponer un modelo de República socialista que tenga como horizonte el concepto revolucionario de fraternidad: reciprocidad en la libertad a partir de la interdependencia entre libertad e igualdad, y pensarlo sobre un escenario social real, por medio del análisis político en todo lo que este implica.

Sobre os autores

Ailynn Torres Santana es académica y militante feminista. Es investigadora del International Research Group on Authoritarianism and Counter-Strategies (IRGAC) de la Fundación Rosa Luxemburgo e investigadora asociada de FLACSO Ecuador. Forma parte del Consejo Editorial de la revista Cuban Studies (Universidad de Harvard) y del Consejo de Redacción de la Revista Sin Permiso (Barcelona).

Julio César Guanche es jurista e Historiador. Ha impartido clases, cursos, seminarios y conferencias en universidades de más de una decena de países. Dirigió varias publicaciones y editoriales nacionales en Cuba y trabajó por varios años en la Casa del Festival Internacional del Nuevo Cine Latinoamericano, del que fue asesor y director. Son de su autoría, entre otros libros, La verdad no se ensaya. Cuba: el socialismo y la democracia (Editorial Caminos, La Habana, 2012) y Estado, participación y representación políticas en Cuba (CLACSO, Buenos Aires, 2011).

Guia essencial para a Jacobin

A Jacobin tem divulgado conteúdo socialista em ritmo acelerado desde 2010. Eis aqui um guia prático para algumas das obras mais importantes ...