30 de junho de 2021

Proposta para Imposto de Renda do governo pode ser melhorada

Nossa jabuticaba é não tributar distribuição de lucro

Nelson Barbosa



O governo enviou sua proposta de mudança de Imposto de Renda (IR) ao Congresso. Parabenizo a equipe econômica, sobretudo a Receita Federal, pela iniciativa, apesar de temer o efeito final da medida em véspera de ano eleitoral.

Poucas coisas revelam mais a alma de um país do que discutir tributação de renda e patrimônio. Quer um exemplo? Em resposta à proposta do governo, a inacreditável Ordem dos Advogados do Brasil já sugeriu isentar profissionais liberais da tributação sobre lucros distribuídos... Mas estou divagando.

A proposta do governo tem de tudo. Há correção da tabela do imposto de renda (ok), com ampliação excessiva da faixa de isenção (não ok). Há antecipação de receita sobre o ganho patrimonial sobre imóveis e simplificação com desoneração de rendimentos financeiros.

Há, também, redução de IR sobre lucros retidos nas empresas, a ser compensada pelo aumento de IR sobre lucros distribuídos a pessoas físicas. Dada a complexidade do tema, me concentrarei na última medida, pois ela é uma verdadeira reforma de longo prazo.

Os ministros Luiz Eduardo Ramos (Casa Civil) e Flávia Arruda (Secretaria de Governo), o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), e o ministro Paulo Guedes (Economia) durante entrega da Reforma Tributária Os ministros Luiz Eduardo Ramos (Casa Civil) e Flávia Arruda (Secretaria de Governo), o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), e o ministro Paulo Guedes (Economia) durante entrega da Reforma Tributária

Os ministros Luiz Eduardo Ramos (Casa Civil) e Flávia Arruda (Secretaria de Governo), o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), e o ministro Paulo Guedes (Economia) durante entrega das mudanças tributárias - Pedro Ladeira - 25.jun.21/Folhapress

Ironicamente, coube a um governo de extrema direita propor o retorno da tributação sobre lucros e dividendos. A medida já causou revolta em nossos austríacos de circo, mas o resto do mundo faz exatamente o que o governo propõe agora.

Nossa jabuticaba é não tributar distribuição de lucro, coisa inventada pelos tucanos, em 1995, para atrair capital estrangeiro e sustentar a âncora cambial do Plano Real. Vinte e seis anos depois, já passou da hora de reavaliar a medida.

A iniciativa do governo segue a tendência mundial de reduzir a tributação sobre lucros retidos e aumentar a tributação sobre lucros distribuídos. Por exemplo, a França fez o mesmo recentemente e, por enquanto, o efeito foi aumentar a liquidez e o investimento das empresas.

A virada mundial na tributação de lucros vem da constatação que a grande desoneração do capital, iniciada por Reagan e Thatcher nos anos 1980, deu errado. Não houve aceleração do crescimento como prometido, mas houve aumento de desigualdade social e volatilidade econômica.

No Brasil, o governo quer reduzir a alíquota total sobre lucros retidos de 34% para 29%, compensando isso com alíquota de 20% sobre os lucros distribuídos. Como apontou a Receita, isso implica alíquota de 43,2% sobre o lucro distribuído às famílias (29% mais 20% de 71%).

O setor rentista já reclamou da medida, alegando que ela desestimula investimento externo no Brasil, mas o pessoal esqueceu de dizer que o resto do mundo faz a mesma coisa que o governo propõe agora, e existem acordos tributários para evitar dupla tributação. A chiadeira está na alíquota.

Os 43,2% de tributação sobre a renda pessoal do capital é alto ou baixo? Se compararmos com a alíquota máxima de 27,5% sobre a renda do trabalho, a proposta do governo parece alta. Porém, se considerarmos que a renda do trabalho já é bem onerada pelos encargos sobre a folha de pagamento, a proposta do governo é baixa.

Dado que 43,2% está na média dos países avançados, mas o Brasil ainda não é avançado, uma solução de meio termo seria reduzir ainda mais a tributação sobre lucros retidos, por exemplo, para 25%, compensando isso com aumento da tributação sobre rendimentos financeiros e lucros distribuídos.

Como? Unificando a tributação sobre aplicações financeiras em 20% em vez dos 15% propostos pelo governo e, lá vem: eliminando a isenção de R$ 20 mil para tributação de lucros distribuídos. A proposta do governo está na direção certa, mas pode e deve ser aperfeiçoada.

29 de junho de 2021

Um novo tempo político no Peru

Este novo tempo está em disputa e aberto à contingência. O que esperamos é possível, embora também possa não se tornar realidade. Mas, como diria Alberto Flores Galindo, "há espaço para esperança".

Anahí Durand


Mobilização de apoiadores de Pedro Castillo em Lima. (Foto: César Bueno / @ photo.gec)

No domingo, 6 de junho, nós, peruanos, fomos às urnas para eleger um presidente entre Keiko Fujimori e Pedro Castillo. O dia da eleição chegou em um ambiente polarizado. Por um lado, Fujimori e a direita peruana - com o apoio dos grupos de poder - se apresentaram como uma alternativa para salvar o país da "ameaça comunista". Por outro lado, Castillo concentrava o apoio dos setores populares que, fartos da classe política, exigiam mudanças fundamentais.

Sabia-se que o resultado seria apertado; Já havia sido em 2016, quando Kucynzky venceu Fujimori por 42 mil votos. Mas, ao contrário daquela época, em que dois projetos de direita se chocaram, agora a própria sobrevivência do regime estava em jogo. O reconhecimento de um triunfo de Pedro Castillo não seria algo que as elites estivessem dispostas a assumir facilmente.

No dia 15 de junho, com 100% das atas apuradas, a Oficina Nacional de Procesos Electorales (ONPE) divulgou que Pedro Castillo venceu a eleição com 50,12% dos votos contra 49,87% de Keiko Fujimori: mais de 44 mil votos de diferença. Castillo já poderia ter sido proclamado presidente, mas a impugnação de milhares de votos pelo fujimorismo e as manobras do Jurado Nacional de Elecciones atrasaram. O fujimorismo e seus aliados buscam evitar o inevitável: o fechamento do ciclo político neoliberal ao mesmo tempo em que impede a abertura de outro favorável à maioria.

O Peru neoliberal e o ciclo que termina (ou deveria terminar)

No início da década de 1990, o Peru estava em uma situação de crise generalizada; entrou em colapso pela hiperinflação, violência subversiva e crise política. O ciclo democratizante inaugurado na década de 1960, marcado pelo modelo de substituição de importações e ampliação dos direitos sociais e políticos referendados ​​na Constituição de 1979, desmoronava vertiginosamente. Em 5 de abril de 1992, o auto-golpe de Fujimori, com o aval das Forças Armadas e dos grupos de poder econômicos, definiu o fim desse ciclo por meios autoritários. Como no Chile em 1973, o neoliberalismo prevaleceu independentemente de qualquer forma democrática, com grandes doses de discricionariedade para anular direitos e consagrar a primazia do mercado. Para garantir a permanência das mudanças, o modelo foi constitucionalizado e em 1993 foi aprovada uma nova Constituição Política.

O ciclo neoliberal se impôs aproveitando também o descensso de sindicatos, organizações populares e partidos de esquerda atingidos pelo conflito armado e pela crise econômica. Consolidou-se um regime que garantiu politicamente a governabilidade tecnocrática, avançou economicamente ao liberalizar setores estratégicos e impôs socialmente novos significados e formas de sociabilidade comuns que exaltavam o individualismo. Como peculiaridade peruana, sob a liderança de Fujimori e Montesinos uma máfia corrupta se enredou para controlar os poderes do Estado, garantindo continuidade e impunidade.

Em 2000, devido à magnitude dos escândalos de corrupção, Alberto Fujimori foi afastado do governo. Mas, longe de ser enfraquecido pela crise política, o neoliberalismo tomou um novo fôlego, estimulado pelos altos preços das commodities no mercado mundial. Os governos eleitos em democracia não mudaram o regime nem desmantelaram as redes corruptas de Fujimori; pelo contrário, reforçaram o modelo exportador primário, administrando o Estado com a mesma lógica empresarial que lhes trazia lucros.

Ao mesmo tempo, os desafios ao neoliberalismo se expressaram tanto nos conflitos socioambientais de comunidades camponesas e territórios indígenas confrontados com o avanço do grande capital, quanto no campo eleitoral, onde opções críticas ganharam espaço (como Humala em 2011, embora logo tenha traíso sua plataforma de mudanças, ou Verónika Mendoza em 2016).

A hegemonia do regime neoliberal se deteriorou mais fortemente a partir de 2018 com as denúncias de corrupção vinculadas ao caso Odebrecht. O envolvimento de toda a classe política em propinas, licitações e outros crimes arrastou ex-presidentes e autoridades locais e judiciais, gerando indignação por parte do público. A renúncia de Kucinzky, a reorganização do Conselho Nacional de Justiça e o posterior fechamento do Congresso criaram uma crise de grande magnitude na qual quase todos os poderes do Estado entraram em colapso.

Mas o neoliberalismo sobreviveu, sustentado por dois pilares fundamentais: a instituição presidencial e a aceitação social. Foi a pandemia que deu o golpe final na deteriorada vigência mantida em ambos os níveis. Em primeiro lugar, a vacância do ex-presidente Vizcarra em novembro de 2020 por um Congresso repleto de interesses privados gerou uma resposta popular massiva nas ruas que impediu a consolidação de um golpe, mas colocou Sagasti como um precário presidente temporário.

Em segundo lugar, a tragédia sanitária da pandemia (com sua contrapartida na esfera econômica) revelou uma sociedade devastada. O abandono do Estado, o lucro das clínicas, o monopólio do oxigênio, a falência de pequenos negócios e os milhões de trabalhadores informais incapazes de resistir às quarentenas aumentaram a fome e a pobreza, liquefazendo a hegemonia social que o modelo mantinha. O regime neoliberal imposto em 1992 estava colapsando em todas as linhas, e os resultados das eleições presidenciais de 2021 confirmariam esse esgotamento.

O que pode começar: um governo para as maiorias

Pedro Castillo venceu principalmente com os votos dos peruanos que esperam mudanças. Foi também um voto identitário, menos ideológico e mais vingativo, de identificação com o professor que ganha dois salários mínimos, que fica terruqueado quando protesta e é visto como inepto ou perigoso. Venceu com tudo contra: grupos de poder econômico, a mídia e também a intelectualidade decadente comandada por Mario Vargas Llosa, ex-inimigo de Fujimori.

Embora Castillo tenha ampliado seu quadro de alianças assinando um compromisso com Verónika Mendoza, convocando profissionais reconhecidos e articulando um setor liberal "antifujimorista", nada tranquilizou as elites, que persistiram em uma cruzada anticomunista com notícias falsas, insultos racistas e invenções sobre a catástrofe que significaria seu governo. Pior ainda, com a contagem dos votos do ONPE concluída, o Fujimorismo e seus aliados têm implantado uma estratégia golpista, que desconhece os resultados e busca impedir a proclamação presidencial de Castillo.

Enquanto o desespero da direita fica claro diante do iminente término do ciclo, a questão agora é como será esse novo momento político. Pode-se dizer que já está surgindo uma época diferente, marcada pela trajetória de Castillo e pelo ambiente que o cerca. Ao contrário de Humala, Castillo tem extração popular, experiência sindical e sensibilidade de esquerda, mas ao mesmo tempo é um pequeno agricultor e empresário, que influencia o pragmatismo, a capacidade de negociar e o sentido de oportunidade com que desenvolveu e ganhou a campanha.

Este perfil mais comum e pragmático também é evidente nos arredores que o acompanham e pode prenunciar um novo gabinete. De um lado está o círculo da esquerda: o Peru Libre, um partido regional de esquerda que o levou à presidência e que junto com o Novo Peru e outras forças deve atuar de forma coordenada para favorecer a implementação das mudanças prometidas, especialmente na economia e no o processo constituinte. Mas também há grupos - e principalmente personagens - de cunho político diverso, que com narizes oportunistas se aproximam do professor valendo-se de parentesco ou de redes territoriais. Eles, junto com setores da direita político-empresarial, aspiram neutralizar a realização de mudanças substantivas e se beneficiarem de uma gestão presidencial semelhante às anteriores.

A questão gira em torno de quais ações Castillo poderia realizar para abrir um novo ciclo, pressionado como está hoje por uma direita golpista, pela falta de maioria parlamentar e pela tentação centrista. Em primeiro lugar, ele deve garantir sua permanência no governo, convencendo aqueles que não votaram nele com aqueles que votaram. Isso implica fortalecer um primeiro círculo político-social de esquerda e progressista aberto ao centro que ajude também a variar a correlação de forças adversas no Congresso.

Da mesma forma, pode ser fortalecido a partir da implementação de mudanças concretas para melhorar as condições de vida das pessoas, priorizando a saúde e a reativação econômica com a geração de empregos. Para isso, é fundamental aumentar os recursos fiscais com medidas como a nacionalização do gás ou o imposto sobre os excedentes mineiros, que ao mesmo tempo seriam relevantes em termos de recuperação da soberania e do projeto nacional.

Será também essencial iniciar o processo constituinte, envolvendo os cidadãos numa iniciativa de recolha de assinaturas para consulta em referendo, se concordam ou não com uma nova Constituição produzida por uma Assembleia Constituinte. O processo constituinte promoveria um grande debate nacional e a discussão e aprovação dessa nova Constituição, oxalpa uma expressão de uma representação plurinacional e igualitária. Além disso, permitiria afirmar um novo ciclo, com um Estado que garanta direitos, redistribuição e justiça social.

Epílogo: um intervalo de monstros

Gramsci disse que “a crise consiste precisamente no fato de que o velho não acaba de morrer e o novo não acaba de nascer”, e que neste interregno surgem monstros. Precisamente hoje no Peru desfileam perigosas "monstruosidades". Destaca-se, por exemplo, a ascensão da extrema-direita reacionária, racista e violenta, semelhante à do Bolsonaro no Brasil ou da Vox na Espanha.

Embora para o segundo turno (neo) liberais e ultradireitistas tenham concordado em apoiar o fujimorismo, agora eles estão se distanciando novamente. Keiko está exausta, complicada pelos laços com Vladimiro Montesinos, que reapareceu articulando por telefone da prisão para alterar o resultado eleitoral.

Diante da perplexidade dos (neo) liberais que hipotecaram seu destino ao fujimorismo, o setor mais fortalecido é a extrema direita, liderada por Rafael López Aliaga, que acumula nas classes altas e nos setores populares urbanos de Lima, alimentando-se do conservadorismo e da beligerância anti-esquerda exacerbada durante a campanha.

Por outro lado, existe uma sociedade estressada e um ambiente rarefeito, alimentado por Fujimori e seus aliados. Junto com as massivas mobilizações de partidários de Castillo e também do fujimorismo ocorridas durante três semanas consecutivas, ocorreram violentas ações de perseguição às autoridades eleitorais, cartas pedindo golpe de ex-militares, ataques a ronderos e professores e, finalmente, agressões físicas .ao chefe do ONPE.

Em tudo isso, a mídia desempenhou um papel nefasto: é o caso do Grupo El Comercio, que subordinou totalmente sua linha editorial ao fujimorismo, ou a emissora Willax, com seu maquinário de notícias falsas, terruqueo e difamações. As redes sociais também funcionaram como bastião da desinformação, sendo funcionais às matrizes de opinião impostas pelos grupos de poder para deslegitimar o triunfo de Castillo.

Pavimentar o caminho para um processo transformador é uma tarefa difícil. O sucesso dependerá em grande medida da vontade e da articulação dos atores políticos do governo, gerindo alianças e contrapesos com outros setores democráticos, mas principalmente visando consolidar uma base política e social que apoie e defenda essas mudanças.

Em uma sociedade como a do Peru, com partidos políticos frágeis, tecido social fragmentado e máfias arraigadas no aparelho público, a atuação do Estado será essencial para desmantelar as estruturas neoliberais (por exemplo, na gestão dos recursos naturais, o reforma tributária ou regime de pensões das AFPs). Mas a ação do Estado será insuficiente se estiver de costas para a população que votou pelas mudanças. Por isso, será fundamental envolver os cidadãos e suas diversas organizações - sejam comunidades camponesas, indígenas, organizações de bairro, associações empresariais ou outras - para que se comprometam na defesa de seus direitos.

Este novo tempo está em disputa e aberto à contingência. O que esperamos é possível, embora também possa não se tornar realidade. Mas, como diria Alberto Flores Galindo, "há espaço para esperança".

Sobre a autora

Socióloga e professora da Faculdade de Ciências Sociais da Universidad Nacional Mayor de San Marcos (Lima). Faz parte do coletivo editorial da Jacobin América Latina.

Visionários, vingativos ou medíocres, líderes moldaram os 100 anos do Partido Comunista Chinês

Dirigentes como Mao, Deng e Xi souberam conciliar autoridade e flexibilidade para garantir sobrevivência da legenda

Fábio Zanini

Folha de S.Paulo

Dos 50 fundadores de 1921 aos 92 milhões de membros de hoje, o PC Chinês (Partido Comunista Chinês) viveu em cem anos uma história de idealismo e grandiosidade mas também de traições e expurgos.

No comando desta saga, estiveram líderes que variaram do medíocre ao visionário e que não pouparam o mais populoso país do mundo de momentos de puro drama.

Com Mao Tse-tung no centro, estátuas homenageiam líderes comunistas chineses no recém-aberto museu dedicado ao partido, em Pequim - Thomas Peter/Reuters

O Partido Comunista Chinês amargou longos 28 anos de oposição até finalmente ver concretizada a revolução, em 1949. Ao contrário de seu equivalente soviético, soube ser flexível, características que garantiram sua sobrevivência até o século 21.

O partido teve momentos de liderança personalista, mas em geral comportou-se como uma estrutura em que as decisões foram tomadas de forma mais coletiva do que na antiga União Soviética.

“Ao longo de sua história, o Partido Comunista Chinês demonstrou capacidade de se adaptar. Isso ocorreu antes da chegada ao poder, em 1949, quando, apesar de nunca ter renunciado à sua ideologia proletária, mudou o foco para a revolução no campo e trabalhou sobretudo com uma base camponesa”, diz Anthony Saich, professor da Kennedy School na Universidade Harvard e autor do recém-lançado “De Rebelde a Governante: 100 anos do Partido Comunista Chinês”.

A década inicial do partido foi nada menos do que traumática para seus fundadores. Chen Duxiu, o primeiro secretário-geral, era nascido em uma família abastada e se radicalizou na juventude, tendo exercido papel importante na revolução nacionalista que levou à queda da China Imperial, em 1911.

Ensaísta e professor, influente na difusão de ideias marxistas e bem relacionado com os bolcheviques soviéticos, foi a escolha natural para liderar os comunistas chineses em 1921, função que exerceu até 1927. “Chen é o pai fundador do partido. Ele representa o importante grupo de jovens intelectuais idealistas que no começo compunham a maioria dos membros e formaram a cultura partidária”, diz o professor alemão Klaus Mühlhahn, autor de “O Partido Comunista Chinês - Um Século em 10 Vidas”.

Mas a defesa por Chen de que a revolução fosse feita a partir da conscientização do proletariado urbano, nos moldes do que pregavam os soviéticos, colocou-o em choque com a estratégia de mobilização rural preferida por Mao Tse-tung e aliados. Chen acabou expulso do partido em 1929 e terminou seus dias no ostracismo em 1942, aos 62 anos, como professor de uma escola perto de Chongqing, no centro do país.

A saída de cena de uma figura que chegou a ser chamada de “Lênin chinês” jogou o partido em crise existencial no final dos anos 1920. Seu sucessor foi praticamente imposto pelos soviéticos, que tratavam o PC Chinês como uma espécie de filial. A escolha recaiu sobre Xiang Zhongfa, um ex-sindicalista do setor naval, nascido em uma família pobre em Hubei e que nunca concluiu os estudos.

Suas principais credenciais eram a fidelidade total às orientações do então líder soviético, Josef Stálin.

Essas características só aumentaram o choque quando ele foi preso pelo Kuomintang, legenda que governava a China. Para se salvar, revelou segredos do partido, e por isso é considerado até hoje persona non grata pela historiografia oficial comunista. Mesmo assim, foi executado pelos captores, em 1931.

A turbulência dos primeiros anos deixou espaço livre para a ascensão de Mao, embora ele só tenha formalmente sido elevado à função de líder do partido em 1943.

Formandos da Universidade de Wuhan em frente a uma imagem celebrando os 100 anos do Partido Comunista da China - AFP

Sua estatura cresceu durante a guerra civil contra os nacionalistas na década de 1930, em especial ao liderar a mitológica Longa Marcha, que forjou os comunistas como uma força militar e de massas.

Comandante inquestionável do país durante 27 anos, até a sua morte, em 1976, Mao transformou a China à sua imagem, para o bem e para o mal. Combinando autoridade pessoal e vasto aparato de coerção física e ideológica, o grande defensor da revolução a partir do campo rendeu-se à necessidade de recuperar terreno na área industrial. Em 1958, lançou o Grande Salto Para a Frente, uma tentativa de substituir a economia agrária pela industrial em apenas cinco anos, o que gerou fome e aumento da pobreza.

Em 1966, apresentou uma segunda iniciativa de impacto, a Revolução Cultural, ostensivamente para eliminar desvios burgueses, mas que foi usada para expurgar inimigos internos. Estima-se que as duas ações tenham resultado na morte de até 40 milhões de pessoas. “Na era de Mao, o partido era definitivamente moldado por sua personalidade e não teria seguido adiante com as políticas radicais do Grande Salto Para a Frente ou da Revolução Cultural se não tivesse sido por sua insistência”, diz Olivia Cheung, especialista em China na Escola de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres.

Após sua morte, o PC Chinês ensaiou um processo de crítica a seus excessos, mas de forma cautelosa, numa avaliação que se mantém até hoje. “A decisão do partido no começo dos anos 1980 foi separar o envolvimento de Mao na Revolução Cultural de todo o resto. Ou seja, a visão é que ele errou nesse ponto, mas agiu bem e de forma importante em todo o resto”, afirma Cheung.

O período final da vida de Mao, em que ele estava bastante debilitado, foi especialmente rico em intrigas. O poder real era exercido pela "Gangue dos Quatro", uma facção que incluía sua mulher, Jiang Qing, apontada como responsável pelos maiores abusos da Revolução Cultural.

A saída de cena do “Grande Timoneiro”, em 1976, levou a contra-ataques das alas mais reformistas, com a prisão e o julgamento de Jiang e de aliados. Também houve a reabilitação de uma das mais célebres vítimas dos expurgos de Mao e única liderança na história do partido que pode rivalizar com ele em estatura. Para muitos analistas, Deng Xiaoping é até mais relevante para o que a China é hoje.

“As reformas e a visão de Deng salvaram o partido e o regime de entrarem em colapso e implantaram as fundações para a força da China de hoje”, diz Xu Guoqi, professor da Universidade de Hong Kong.

Nascido em 1904 na província de Sichuan, Deng viveu na França na década de 1920, participando de um programa de intercâmbio estudantil. Na Europa, teve o primeiro contato com o marxismo mas também com o funcionamento de uma economia de mercado, algo que exerceria profundo impacto em sua vida.

Ao retornar à China, em 1927, começou a subir nas fileiras do Partido Comunista, só que a pecha de burguês desviado o acompanhou durante toda a vida. Durante a Revolução Cultural, já sexagenário, foi enviado para realizar trabalhos manuais numa fazenda —e reabilitado apenas após a morte de Mao.

Curiosamente, ele nunca exerceu o cargo mais alto na burocracia partidária, embora tenha sido, durante duas décadas, a força dominante. O máximo a que chegou foi chefe da comissão militar do partido. “Deng nunca precisou de cargo, porque era respeitado pelos militares e pelo partido de forma geral”, afirma Xu.

Homens passam em frente a imagem do atual dirigente da China, Xi Jinping, no museu dedicado ao Partido Comunista, em Pequim - Noel Celis/AFP

Tamanha era a ascendência do dirigente que muitas vezes ele não se dignava a sair de casa para participar dos enfadonhos eventos partidários. “Ele ficava a maior parte do tempo em casa e chamava funcionários do partido e do governo para dar ordens. Em cem anos do PC Chinês, apenas Deng e Mao tiveram esse tipo de poder”, afirma Mühlhahn.

Considerado o arquiteto da China moderna, Deng iniciou o processo de abertura econômica e ficou famoso por repetir um antigo provérbio segundo o qual “não importa se o gato é preto ou branco, se pegar o rato, é um bom gato”. O segredo, diz o professor Saich, de Harvard, era abraçar teses capitalistas sem relaxar o controle do partido, um processo que não ocorreu sem obstáculos. “O prestígio e a senioridade de Deng deram a ele o papel de principal tomador de decisões no sistema político chinês. Não significa que a política econômica era livre de questionamentos. Um traço que ele dividia com Mao era que mais rápido era melhor, uma abordagem que recebia críticas de reformistas econômicos mais cautelosos.”

Hábil, Deng se manteve atuante nos bastidores, preservando sua autoridade, enquanto secretários-gerais como Hua Guofeng (1976-81) e Hu Yaobang (1981-87) eram fritados após embates com facções mais conservadoras. Expoente da ala reformista, Hu foi defenestrado em 1987. Sua morte dois anos mais tarde foi o estopim para o maior questionamento sofrido pelo partido em sua história, os protestos estudantis que levariam ao Massacre da Praça da Paz Celestial, em Pequim.

A revolta foi contida, mas a ameaça, considerada inaceitável, custou a cabeça de Zhao Ziyang, líder do partido que ficou menos tempo no poder, apenas dois anos. O trauma chacoalhou a organização interna da legenda, que iniciou um gradual processo de concentração de poder nas mãos do secretário-geral.

A mesma pessoa passou a concentrar o comando do partido, o posto de chefe da comissão militar e o cargo cerimonial de presidente da China. O espaço para figuras que governam dos bastidores, como foi Deng, praticamente extinguiu-se, e passou a haver uma divisão mais clara de tarefas com o primeiro-ministro, encarregado de questões administrativas.

Como resultado, o líder chinês passou a ser uma figura mais visível interna e externamente, e o país perdeu algumas das características de ditadura de partido, embora nunca tenha sido uma autocracia personalista nos moldes norte-coreanos, por exemplo.

Jiang Zemin, engenheiro elétrico de perfil tecnocrático escolhido para estabilizar o partido após a tormenta de 1989, foi o primeiro a personificar esse novo modelo. Seguidor das reformas de Deng, deixou como legado a entrada da China na Organização Mundial do Comércio, em 2001, e a possibilidade de empresários se filiarem ao PC Chinês. Em 2002, cedeu o posto a Hu Jintao, 78, primeiro líder a ter nascido após os eventos formadores do partido nas décadas de 1920 e 30, o que enviou uma mensagem de renovação.

De estilo mais discreto, Hu seguiu no processo de concentração de poder, apertando a repressão a minorias e dissidentes, ao mesmo tempo em que consolidava o milagre econômico chinês, com taxas anuais de crescimento superiores a 10%. O ápice da nova estatura internacional do país veio com a organização da Olimpíada de 2008.

Nada que se compare, no entanto, ao que ocorre sob Xi Jinping, líder desde 2012, descrito como o mais poderoso dirigente chinês depois de Mao e Deng. “A adoração pública de Xi como a personificação do progresso da China é algo que não vimos desde Mao. A centralização do processo decisório e do poder nele foi extraordinária e inesperada”, diz Saich. O atual líder aboliu os limites de tempo para mandatos, além de ter dado início a um culto à personalidade comparável ao da era maoísta.

“Tudo com que Xi se preocupa é a manutenção do partido no poder. Mesmo que haja divisões internas, ninguém ousa desafiá-lo”, afirma Xu. Aos 68 anos, ele se sente confiante em desafiar abertamente o poderio militar e econômico dos EUA, além de acelerar a projeção internacional do regime.

Isso ficou claro no anúncio da Nova Rota da Seda, conjunto de iniciativas de financiamento à infraestrutura pelo mundo, e na diplomacia da vacina, com a distribuição de doses contra a Covid-19.

Para Olivia Cheung, da Universidade de Londres, hoje o partido o coloca num tripé ao lado de Mao e Deng. “A linha atual é que Mao fez a China ficar de pé, Deng a fez rica e Xi a fará orgulhosa”, diz.

No momento em que inicia seu segundo século de existência, o Partido Comunista Chinês não tem mais dúvidas existenciais como as que afligiam a organização algo quixotesca criada em 1921 por um punhado de revolucionários em Xangai. “Pouca gente se dá conta de que, dado o ambiente turbulento de antes da revolução de 1949, por muito pouco o partido não sobreviveu”, afirma Cheung.

Hoje, os novos desafios para esta organização política, uma das mais bem-sucedidas já criadas pelo homem, são outros: como manter-se ao mesmo tempo uma força dominante sobre a vida de 1,4 bilhão de habitantes e maleável a um mundo em transformação. A resposta, como ocorre há cem anos, dependerá de como os dirigentes do futuro vão manejar suas vaidades e ideais.

100 ANOS DE LÍDERES COMUNISTAS CHINESES

Chen Duxiu (1921-27) - Considerado o “pai fundador” do partido, tinha perfil intelectual e defendia uma revolução nos moldes soviéticos. Acabou expulso após desentendimento com Mao e por ser considerado trotskista

Xiang Zhongfa (1928-31) - Foi preso pelos nacionalistas do Kuomintang e, mesmo revelando segredos do Partido Comunista, acabou executado

Bo Gu (1931-35) - Comandou o partido no início da Longa Marcha, durante a guerra civil contra os nacionalistas

Zhang Wentian (1935-43) - Chefiou os comunistas na resistência à invasão japonesa, durante a Segunda Guerra

Mao Tse-tung (1943-76) - Maior líder do partido, responsável por levar os comunistas ao poder. Também sob sua supervisão foram implementados o Grande Salto Para a Frente e a Revolução Cultural. Estima-se que 40 milhões de pessoas tenham morrido em razão do colapso da economia e expurgos

Zhou En-lai (1949-76) - Primeiro-ministro e braço direito de Mao, foi o principal responsável pela aproximação com os EUA, que resultou na histórica visita do presidente Richard Nixon, em 1972

Hua Guofeng (1976-81) - Assumiu a liderança do partido após a morte de Mao e promoveu a crítica sobre os excessos da Revolução Cultural. Sua gestão foi ofuscada pela atuação de Deng Xiaoping, que introduziu as primeiras reformas de mercado

Deng Xiaoping (1978-89) - Exerceu diversos cargos, embora nunca o de líder máximo do partido. Mesmo assim, controlou a legenda na prática e foi o responsável pelas reformas de mercado que revolucionaram a China

Hu Yaobang (1981-87) - Da ala reformista e ligado a Deng, que no entanto não o protegeu do desgaste junto às alas mais conservadoras do partido, levando à sua queda. Sua morte, em 1989, deflagrou os protestos na praça da Paz Celestial, em Pequim

Zhao Ziyang (1987-89) - Líder do partido que ficou menos tempo no poder, foi substituído após o massacre de estudantes em 1989

Jiang Zemin (1989-2002) - Assumiu com a missão de reprimir as manifestações e reafirmar a autoridade do partido. Em seu período, a China ingressou na Organização Mundial do Comércio

Hu Jintao (2002-12) - Sob seu comando, a China registrou índices de crescimento econômico anuais superiores a 10% e concluiu grandes obras, como a Hidrelétrica das Três Gargantas. O país também sediou a Olimpíada de 2008

Xi Jinping (desde 2012) - Centralizou o poder como nenhum líder desde Mao e fez do combate à corrupção uma prioridade; aumentou os embates comerciais e políticos com os EUA, além de ter lidado com a crise do coronavírus

28 de junho de 2021

Enquanto as pessoas em média sofreram, 5 milhões de pessoas se tornaram milionários sob o COVID-19

A pandemia foi e continua sendo brutal para as pessoas comuns. Mas não para os ricos: as políticas do banco central criaram 5 milhões de novos milionários durante a pandemia. É o mais recente sinal de que nossa economia está voltada para os ricos.

Grace Blakeley

Jacobin

(Nikolay Likomanov / Unsplash)

Tradução / Um novo relatório do Credit Suisse revelou que mais de cinco milhões de pessoas se tornaram milionárias durante a pandemia, enquanto o número de pessoas com um patrimônio superior a US$ 50 milhões aumentou em mais de um quarto. O principal impulsionador desse aumento chocante na riqueza tem sido o aumento dos preços das ações e dos imóveis residenciais, que aumentaram o patrimônio líquido agregado das famílias para cerca de US$ 418,3 trilhões. Enquanto isso, mais da metade da população mundial tinha menos de US$ 10.000 em ativos líquidos.

A maior parte do aumento da riqueza concentrou-se em países já ricos, com os Estados Unidos respondendo por um terço dos novos milionários. O número de milionários na China está aumentando e agora chega a cerca de um em duzentos; mas nos Estados Unidos, 8% da população agora são milionários.

Como é que os países mais afetados pela pandemia também foram aqueles que registraram alguns dos maiores aumentos de riqueza no decorrer do ano passado? Uma razão se destaca acima de todas as outras: as compras de ativos do Banco Central.

Ao longo da pandemia, os bancos centrais injetaram cerca de US$ 9 trilhões, com dinheiro novo, no sistema financeiro global. Isso se soma aos US$ 10 trilhões adicionados entre a crise financeira e a pandemia. O mundo está inundado com o dinheiro do Banco Central, e tudo está fluindo para cima, em vez de escorrer para as bases da sociedade.

Os banqueiros centrais inicialmente argumentaram que a flexibilização quantitativa – como é conhecida a política de criação de novo dinheiro para comprar ativos como títulos do governo – aumentaria os empréstimos ao fornecer mais dinheiro aos bancos comerciais. É claro que o problema que os bancos enfrentavam na esteira da crise financeira não era a falta de acesso a dinheiro, mas a falta de oportunidades viáveis de investimento no contexto de demanda cronicamente deficiente, estrangulada pela austeridade.

No final das contas, ficou claro que o QE [quantitative easing, conhecido também como flexibilização quantitativa, em inglês] funcionava, mas não da maneira que nos haviam dito inicialmente. Em vez de impulsionar os empréstimos, o QE passou a operar por meio de um efeito de reequilíbrio da carteira de investimento – em essência, quando os governos compraram dívidas governamentais de longo prazo, eles forneceram aos investidores privados dinheiro que precisava ir para outro lugar.

Os investidores responderam reequilibrando suas carteiras, afastando-os dos títulos do governo, que forneciam rendimentos insignificantes, graças ao aumento da demanda do Banco Central, e direcionando-os a outros ativos como ações, títulos corporativos e imóveis.

Nos Estados Unidos, o resultado desse aumento na demanda por ações foi a mais longa corrida da alta (uma onda de otimismo e aumento dos preços das ações) que o mundo já viu. A inundação de caixa em títulos corporativos de alto rendimento também inflou uma bolha de dívida corporativa – era tão fácil até mesmo para as empresas mais mal administradas acessarem o caixa que os economistas estavam apontando para o problema da corporação “zumbi”, que só podia pagar o juros sobre sua dívida pendente.

O principal impacto do QE no Reino Unido foi sentido no mercado imobiliário, onde os preços dispararam muito acima de onde estavam antes da crise financeira de 2008 – particularmente em Londres, Sudeste e Manchester.

A pandemia foi uma recessão como nenhuma outra – em vez de cair, como ocorreu durante todas as recessões anteriores, os preços das casas subiram. Graças ao fechamento de escritórios e à emigração resultante das cidades, os preços das casas no campo estão subindo agora a uma taxa de cerca de 14% ao ano e aproximadamente a 7% nas áreas urbanas.

Além do mais, com as taxas de juros no fundo do poço e os aposentados capazes de sacar todas as suas pensões de uma só vez, muitas pessoa velhas decidiram comprar uma segunda casa para alugar para os mais jovens. Os conservadores criaram 700 mil novos proprietários ao longo da última década, reforçando sua base de eleitores e aprofundado a crise imobiliária.

Na ausência de controles de aluguel ou de um sistema de habitação social em funcionamento, os jovens são forçados a pagar quantias exorbitantes – geralmente mais da metade a dois terços de seus salários – pelo aluguel apenas para ter o “privilégio” de viver perto de seus empregos.

Enquanto isso, grandes gestores de ativos internacionais como a Blackstone estão aproveitando o dinheiro abundante agora disponível no sistema financeiro internacional para comprar grandes complexos imobiliários para alugar. A ascensão do senhorio corporativo foi primeiro evidente nos Estados Unidos, depois na Irlanda, e agora está se tornando cada vez mais visível no Reino Unido.

Em outras palavras, os Estados mais poderosos do sistema capitalista mundial estão agora financiando milionários. Bancos Centrais não democráticos e irresponsáveis ​​estão usando o poder dos signatários para inflar as fortunas dos ricos; enquanto isso, os governos tentam impedir que as pessoas tenham acesso à subsídio para tratar de doenças.

O aumento dramático na fortuna dos super-ricos durante uma pandemia em que milhões morreram e outros milhões foram empurrados para a pobreza fornecem ainda mais evidências de que vivemos em uma economia distorcida e uma sociedade doente. Mas observar a irracionalidade do sistema atual não é suficiente; a menos que os trabalhadores se organizem para responsabilizar os poderosos, os Estados capitalistas continuarão apoiando os interesses dos milionários em detrimento as milhões de pessoas que trabalham para eles.

Sobre a autora

Grace Blakeley escreve na Tribune Magazine e é apresentadora do podcast semanal A World to Win.

Precisamos começar a tributar o Bitcoin

O bitcoin é um ativo tão inútil que, mesmo que um imposto sobre transações financeiras o destruísse completamente, o mundo estaria em melhor situação.

Dean Baker

Jacobin
O mercado de Bitcoin pode ser usado como um laboratório para fazer experiências com impostos sobre transações financeiras. (Getty Images)

Tradução / Como a maior parte dos economistas, sempre fui cético em relação ao Bitcoin. A questão que não quer calar é: a qual propósito ele serve.

A ideia de que poderia ser uma moeda alternativa útil me parece piada. Como poderíamos ter uma moeda que flutua descontroladamente de um ano para o outro, e até de uma hora pra outra? Imagine se você tivesse um contrato de salário ou aluguel baseado em Bitcoins. Tanto o seu salário quanto o seu aluguel teriam mais do que triplicado no último ano, deixando-o provavelmente desempregado e impossibilitado de pagar um aluguel proibitivo. Os economistas muitas vezes exageram o problema da inflação, mas ter uma moeda com aumentos e reduções de valor drásticas e imprevisíveis é um problema real.

Portanto, o Bitcoin pode não ser muito útil como moeda, mas talvez possamos tratá-lo apenas como um meio para especulações inofensivas, como figurinhas de álbuns ou moedas não descartáveis. Pois bem, acontece que o Bitcoin não é totalmente inútil. É a moeda escolhida por aqueles envolvidos em atividades ilegais, como as redes criminosas e, é claro, para extorquir empresas por meio de ransomware — ou “sequestro de dados”. Seu valor para essa finalidade sofreu um grande impacto quando o FBI conseguiu recuperar grande parte do dinheiro pago pela Colonial Pipeline aos hackers que se infiltraram em seu sistema. Aparentemente, as transações em Bitcoin não são tão irrastreáveis como dizem.

Mas o Bitcoin não pode ser visto apenas como algo relacionado à diversão e às transações ilegais. É um grande agravante do aquecimento global. A mineração de Bitcoins, processo pelo qual novos Bitcoins passam a existir, consome uma enorme quantidade de eletricidade. Segundo uma análise feita por pesquisadores de Cambridge, a atividade consome mais energia em um ano do que um país como a Argentina.

Isso significa que muitos gases de efeito estufa estão sendo emitidos sem nenhuma finalidade justificável. A maior parte destas emissões deriva de atos como nosso transporte, a produção de energia, o cultivo e transporte de nossos alimentos. Tudo isso são necessidades reais. Podemos encontrar maneiras de emitir menos gases-estufa: por exemplo, viajando menos ou dispensando o automóvel. Mas isso envolve alguns sacrifícios ou despesas. Reduzir o uso de Bitcoins é muito mais fácil. Essa é a lógica de tributar as transações com a criptomoeda: tributamos também para obter efeito dissuasório — ou seja, para tornar menos atraentes os itens que queremos reduzir.

Os benefícios do imposto

Em primeiro lugar, um imposto sobre as transações com Bitcoins aumentaria a receita. Gostaria de propor um imposto substancial, de 1% sobre as transações. A alíquota se compara ao imposto de 0,1% sobre as negociações de ações, proposto nos EUA pelo deputado Peter DeFazio e pelo senador Brian Schatz

A razão para sugerir um imposto mais alto sobre o Bitcoin é que haveria poucas consequências sérias para a economia se o mercado da moeda sofresse uma interrupção. Pessoas envolvidas em ataques de roubo e tráfico de dados poderiam enfrentar um pouco mais de volatilidade no valor de seus pagamentos ou achar um pouco mais difícil convertê-los de volta, em moedas tradicionais; mas, com exceção desses casos, o impacto econômico seria baixo.

Em contraposição, mesmo com toda a especulação que temos nos mercados financeiros, eles ainda servem a propósitos produtivos. É preciso ter cautela para não impor um tributo que possa ser desestabilizador. Um tributo de 1% não é exagerado. O Reino Unido cobra 0,5% sobre as negociações com ações. A alíquota foi de 1% até 1986. Mesmo assim, o país tinha uma das maiores bolsas de valores do mundo.

Certamente um imposto de 1% sobre transações em Bitcoin não fechará o mercado da moeda. Mas pode reduzir substancialmente o volume de transações. Também é provável que a torne menos atraente para quem não precisa dela para fins ilícitos — o que reduzirá seu valor. Isso significa que as pessoas tenderão a dedicar menos recursos à mineração de Bitcoins, o que seria uma vitória real para o planeta.

Há também a questão de quanta receita um imposto sobre o Bitcoin geraria. Atualmente, o volume de negócios gira em torno de 1 bilhão de dólares por dia, ou US$ 350 bilhões por ano. Um imposto de 1% renderia, só nos EUA, US$3,5 bilhões por ano, se não houvesse queda no volume de negócios. Mas, evidentemente, o objetivo do imposto é reduzir o volume de transações e o interesse no Bitcoin. Se o volume cair à metade, devido a menos negociações e a um preço mais baixo da moeda, reuniremos US$ 1,75 bilhão por ano — ou US$ 17,5 bilhões numa década.

Não é muito, comparado ao orçamento. A calculadora de orçamento do Centro de Pesquisa para Economia e Política (Center for Economic and Policy Research) estima que seria igual a 0,03% dos gastos públicos. Não é um grande negócio, mas não é totalmente trivial. A receita anual equivale, aproximadamente, a 8 milhões de salários mínimos brasileiros.

Mas há outro benefício num tributo sobre as transações em Bitcoin. Ele permitirá testar, com pouco risco, mecanismos de cobrança de outros impostos financeiros.

Com frequência, afirma-se que impostos sobre transações financeiras não são aplicáveis. A evidência sugere o contrário. O Reino Unido arrecada, por ano, o equivalente a 0,2% do PIB com seus impostos sobre transações com ações. E inúmeros países no mundo obtêm receitas substanciais com impostos sobre transações financeiras.

Os impostos sobre transações financeiras são, é claro, arrecadáveis, mas certamente há brechas para driblá-los. É provável que a evasão seja um problema maior no caso do Bitcoin, em que muitas das transações envolvem atividades ilegais.

É por isso que temos em mãos uma grande oportunidade de inovar. Além dos outros mecanismos de fiscalização disponíveis, também podemos oferecer uma recompensa às pessoas que denunciarem sonegadores. Podemos, por exemplo, oferecer-lhes 20% do imposto arrecadado a partir de suas informações.

Por exemplo, suponha que alguém negocie 200 milhões de dólares em Bitcoin. Com uma alíquota de 1%, esta pessoa passa a dever US$ 2 milhões. Se optar por não pagar seus impostos e um empregado denunciá-la à Receita, o denunciante poderia receber US$ 400 mil, uma bela recompensa. Esse sistema daria aos trabalhadores um forte incentivo para relatar a sonegação fiscal de seus patrões.

Um imposto sobre as transações em Bitcoin seria uma ótima saída para testar esse tipo de incentivo. Como há poucos motivos para nos preocuparmos caso o mercado da moeda sofra uma ruptura, não há, de fato, nenhuma desvantagem. Se o sistema de recompensas se mostrar eficaz na repressão à evasão, teremos uma nova ferramenta para tributar as transações financeiras. Também será possível acompanhar qualquer problema que surja neste sistema e fazer os ajustes necessários para implementar um imposto sobre transações financeiras para mercados maiores.

Em resumo, o mercado de Bitcoin oferece um grande laboratório para experimentar impostos sobre transações financeiras. Embora haja experiência suficiente em lidar com eles, o mercado de Bitcoins pode ser como um local de prática até que haja vontade política de implementar um imposto de base mais ampla.

Republicado do The Center for Economic and Policy Research.

Sobre o autor

Dean Baker é codiretor do Center for Economic and Policy Research.

27 de junho de 2021

Por que os socialistas devem apoiar a representação proporcional

O apoio a um sistema multipartidário é amplamente difundido nos Estados Unidos. Esse sistema é crucial para livrar este país da armadilha bipartidária e construir um verdadeiro sistema democrático. É por isso que os socialistas devem apoiar a representação proporcional em nosso sistema eleitoral.

Neal Meyer e Simon Grassmann


O apoio a um sistema multipartidário é amplamente difundido nos Estados Unidos. (LPETTET / Getty Images)

Tradução / Com alternativas para o sistema de votação do “vencedor leva tudo”, o sistema bipartidário nos Estados Unidos levou uma surra em junho quando a experiência da cidade de Nova York com a votação por esta escolha pareceu ir ao fundo do poço. Os eleitores acharam o novo sistema confuso, e a contagem dos resultados foi adiada por semanas enquanto a Diretoria de Eleições de Nova Iorque lutava para se adaptar.

Seria uma catástrofe para a esquerda, porém, se este soluço em NYC (que, vale notar, dificilmente é um verdadeiro sistema de relações públicas, pois está confinado às eleições primárias e ainda leva à eleição de apenas um representante por distrito) levasse os socialistas a abandonar a luta pela representação proporcional (RP). Como os homólogos de Nova York em todo o mundo, a capacidade dos socialistas de se engajar em conflitos políticos produtivos seria muito mais forte sob o tipo de sistema multipartidário que a representação proporcional permite.

O apoio a um sistema multipartidário é generalizado nos Estados Unidos. Desde o início do novo século, cerca da metade do país disse que apoiaria o surgimento de pelo menos mais um partido. Desde 2011, as pesquisas da Gallup sugerem que a porcentagem de seu apoio aumentou e paira consistentemente em torno da alta dos anos 50 para a baixa dos anos 60. Embora o apoio seja especialmente forte entre os independentes, a última pesquisa sugere que 46% dos democratas também apoiam a criação de um terceiro partido.

Felizmente, existe um caminho viável para realizar esse desejo nos Estados Unidos. O Fair Representation Act introduzido no último Congresso é um método para a adoção de um sistema de representação proporcional que seja compatível com a Constituição. Mas entender o que é e por que os socialistas devem apoiar a Lei de Representação Justa primeiro requer um entendimento mais profundo de como o sistema “vencedor leva tudo” prejudica o sucesso da Esquerda.

Um (não tão-conhecido) viés de direita

A realidade é que o sistema bipartidário vencedor desempenha um papel importante na distorção da representação no Congresso, nas legislaturas estaduais e nos conselhos municipais – pelo menos tanto quanto o gerrymandering*. Na verdade, não é um exagero dizer que nosso sistema atual favorece sistematicamente a Direita e desfavorece a Esquerda, nosso sistema atual favorece sistematicamente a Direita e desfavorece a Esquerda.

Essa é uma das conclusões tiradas por Jonathan Rodden em seu fascinante livro Why Cities Lose: The Deep Roots of the Urban-Rural Political Divide (Por que as Cidades Perdem: As Raízes Profundas da Divisão Político-Rural Urbana). Os centros urbanos, observa Rodden, são a base dos eleitores de centro-esquerda e de esquerda. Mas a concentração de eleitores que pensam da mesma forma em bairros urbanos densamente lotados leva a sua distribuição reduzida em muitos distritos, independentemente de como essas linhas distritais são traçadas. Isso cria um viés para os partidos de direita que obtêm seu apoio dos distritos rurais e exurbanos – distritos onde seus eleitores estão distribuídos de forma mais uniforme.

Pense desta forma. As cidades estão tão lotadas de eleitores de esquerda que muitos distritos urbanos votam no centro-esquerda ou no candidato de esquerda por margens muito grandes. Os eleitores de direita, no entanto, estão distribuídos de forma mais uniforme pelos distritos suburbanos e rurais, onde os candidatos de centro-direita e direita ganham mais comumente por margens menores. Esta distribuição desequilibrada dos eleitores de esquerda e direita é um dos mecanismos primários que dá ao nosso sistema político uma forte inclinação minoritária, enviesando eleições em favor dos populistas de direita que se saem especialmente bem nas áreas rurais e subúrbios afluentes.

Devido aos efeitos distorcidos da combinação de eleições de vencedores e concentração de eleitores de esquerda nas cidades, Rodden chega a achar que leis que impediriam o gerrymandering ao colocar o desenho do distrito nas mãos de autoridades não partidárias não seriam suficientes para melhorar muito a posição competitiva da esquerda. Em milhares de simulações de diferentes configurações distritais, ele encontra a mesma tendência para os republicanos devido a sua força nas áreas rurais e suburbanas.

Mas não são apenas os aspectos técnicos de como os distritos são desenhados que enviesam as eleições em favor da Direita. Na consciência popular, os eleitores em um sistema bipartidário também são ensinados a acreditar que eles só têm duas escolhas. Isto cria uma falsa sensação de que o “meio-termo” na política é entre os partidos Democrata e Republicano.

No que poderíamos chamar de “ilusão do meio-termo”, os eleitores passam a acreditar que a única maneira de afirmar sua independência dos dois partidos e punir um partido é votar nos democratas em algumas eleições e nos republicanos em outras. Embora essa escolha seja realmente uma escolha entre um partido de centro-direita e um partido de extrema-direita, os eleitores acham que estão sendo “justos e equilibrados” neste jogo.

Problemas táticos para os socialistas

Como se seu caráter antidemocrático não fosse um problema suficiente para os socialistas, quatro aspectos adicionais do sistema vencedor e do sistema bipartidário que ele dá origem são especialmente preocupantes para a capacidade dos socialistas de competir efetivamente.

Primeiro, ao prender a esquerda dentro do Partido Democrata, o sistema bipartidário coloca os socialistas em uma dupla ligação. Por um lado, temos uma necessidade óbvia de nos distinguir dos principais democratas. Ganhar eleições nas primárias democratas depende de fazer distinções claras, e até mesmo de atacar os principais democratas.

Mas à medida que saímos de distritos solidamente azuis para partes mais competitivas do país, que podem se recuperar para prejudicar tanto nós quanto os democratas estabelecidos. Um partido que parece ser dominado por uma guerra civil quase certamente repelirá os eleitores.

A pressão para amordaçar nossas críticas, portanto, em nome da unidade partidária certamente crescerá com o passar do tempo, prejudicando nossa capacidade de estabelecer nossa própria posição independente. Tivemos uma primeira prova disto em 2016 e 2020, quando Bernie Sanders estava sob intensa pressão para não continuar o ataque contra Hillary Clinton e Joe Biden. De fato, muitos culparam a perda de Clinton pelas críticas modestas que Sanders fez a ela na campanha primária.

Em segundo lugar, os democratas do establishment e os socialistas já estão começando a aprender que configurações mais amplas tornam os alvos mais fáceis. Nas eleições para o Congresso em 2020, os democratas tiveram um desempenho inferior às expectativas. Os líderes democratas provavelmente não estavam errados ao sugerir que parte da razão se devia ao sucesso que os republicanos tiveram ao empurrar para os democratas nos distritos de batalha ao socialismo e a outras exigências controversas da esquerda.

Ao mesmo tempo, os socialistas provavelmente descobrirão em partes mais competitivas do país que a identidade democrata é tóxica entre muitos eleitores da classe trabalhadora que, de outra forma, poderiam estar abertos à nossa mensagem. Uma razão pela qual Bernie Sanders superou consistentemente os democratas nas eleições de Vermont tem a ver com sua capacidade de apelar para os independentes da classe trabalhadora e republicanos que aprovam sua independência do Partido Democrata.

Em terceiro lugar, os socialistas se beneficiariam enormemente da capacidade de fazer eleições sobre estratégias partidárias em vez de personalidades. Em nosso sistema atual, os candidatos socialistas se enfrentam com os democratas nas primárias. Nessas corridas, e na ausência de rótulos partidários, os eleitores frequentemente fazem escolhas baseadas na personalidade, identidade e quem eles acham mais provável que ganhe nas eleições gerais.

Para os socialistas que querem fazer eleições sobre estratégia e plataformas, isto pode ser especialmente frustrante. É difícil explicar aos eleitores, em uma primária, por que o democrata que diz ser a favor de reformas progressivas faz realmente parte de um projeto político maior, sem rótulo, que bloqueia essas reformas. As eleições gerais, por outro lado, apresentam exatamente essa oportunidade de fazer a escolha de estratégias partidárias em vez de personalidades.

Além disso, em um sistema multipartidário, os socialistas podem se distinguir efetivamente daqueles que estão no centro-esquerda aos olhos dos eleitores também no período entre as eleições. Identidades partidárias separadas que competem umas contra as outras ajudam a organizar conflitos políticos para a maioria das pessoas. Os partidos em um sistema multipartidário podem, por exemplo, entrar e sair das coalizões de governo, e é fácil para todos ver o que está acontecendo.

Isto não acontece em um sistema bipartidário, onde as pessoas raramente conhecem o equilíbrio de poder entre as várias facções dentro de um partido. A maioria das pessoas politicamente engajadas provavelmente saberia que os democratas têm uma maioria magra na Câmara, mas quantas pessoas poderiam lhe dizer o tamanho relativo dos blocos progressistas e neoliberais dentro do Partido Democrata? Entre seus muitos pecados, um sistema bipartidário mascara conflitos.

Veja o projeto de lei de estímulo altamente popular. Em um sistema multipartidário, o partido de esquerda teria pressionado para incluir uma maior redistribuição no estímulo, e Joe Biden teria sido forçado a ceder à pressão a fim de assegurar seu apoio. Os eleitores teriam visto claramente de onde vinham as melhores partes do estímulo. Em nosso sistema bipartidário, onde este tipo de conflito é muito mais difícil de ser seguido pelas pessoas, as melhores partes do estímulo são percebidas (na medida em que as pessoas até sabem que aconteceu) como um presente de Joe Biden, uma vez que o impulso para o estímulo veio dos “Democratas”.

Finalmente, e no horizonte temporal mais longo, a representação proporcional é melhor para os socialistas porque garante que, se chegarmos ao poder, o faremos com o apoio de uma maioria da sociedade. Em debates no Partido Trabalhista Britânico sobre a conveniência da RP, Ralph Miliband defendeu a importância da representação proporcional desta forma:

Os partidários trabalhistas do sistema “first-past-the-post” argumentam que ele também dá ao Partido Trabalhista uma chance de ganhar uma eleição e formar um governo próprio. Isto pode ser verdade, mas ignora alguns fatos importantes, independentemente do ponto de princípio de que o sistema eleitoral não deve distorcer muito a representação. Um fato que o argumento ignora é que um governo empenhado em uma reforma fundamental precisa de um apoio muito maior no país do que um governo conservador. Só assim um governo radical poderia esperar alcançar seus objetivos; e esse apoio deveria se refletir nos números da votação. Cinquenta e um por cento não é um número mágico; mas alcançar esse número, sozinho ou, se necessário, em coalizão, não deixa de ser uma grande ajuda.

A superação do sistema bipartidário e a transição para um sistema de representação proporcional é de suma importância estratégica para a causa socialista. Nossa capacidade de vencer – e de basear um futuro governo socialista no apoio da maioria da sociedade – seria grandemente auxiliada por esta transformação.

Uma Solução Americana

Existe um modelo viável para a adoção de um sistema de representação proporcional nos Estados Unidos?

A Alemanha fornece um dos melhores exemplos de tal alternativa. É às vezes chamado de “representação proporcional mista de membros” (MMP). O MMP combina as vantagens da representação direta a nível distrital com as vantagens de representar as partes proporcionalmente.

Cada eleitor no dia da eleição lança dois votos. Eles votam em um candidato para ser seu representante no Bundestag alemão; e votam no partido que está mais próximo de sua política.

Os representantes de nível distrital são eleitos em primeiro lugar. Em seguida, os partidos recebem representantes adicionais para garantir que sua delegação no Parlamento Federal seja proporcional à sua participação no voto nacional. A representação de um partido na legislatura não é exatamente igual à sua participação no voto nacional, uma vez que alguns partidos não fazem o limite para serem representados e não são contados. Mas isso cria um sistema no qual a cota de assentos de um partido é bastante próxima de sua cota no voto de referência do partido nacional.

Não está claro se um tal sistema seria possível nos Estados Unidos, dada a atual ordem constitucional. Mas, felizmente, existem alternativas que são definitivamente compatíveis com a Constituição dos EUA.

A FairVote, uma organização sem fins lucrativos especializada em fazer propostas para consertar a quebrada democracia dos Estados Unidos, tem feito o maior trabalho nessa frente. Sua Fair Representation Act é a proposta mais ousada até agora para a transição dos Estados Unidos para um sistema multipartidário. Sob a Lei de Representação Justa, as eleições parlamentares seriam realizadas utilizando votação por ordem de escolha, o que reduziria imediatamente a mordida do “efeito spoiler”.

Mas o mais importante, cada estado com mais de um representante seria obrigado a introduzir distritos multipartidários. Na Louisiana, por exemplo, os seis distritos do estado seriam reduzidos para dois, um na metade oriental e o outro na metade ocidental. Os eleitores classificariam então suas preferências nas eleições. As cédulas seriam contadas, levando à eleição ou eliminação dos candidatos que se reunissem ou não atingissem um determinado limite. Os votos atribuídos inicialmente aos candidatos eleitos ou eliminados seriam então redistribuídos aos demais candidatos. O processo se repetiria até que um número de candidatos igual ao número de assentos em um distrito fosse eleito. Ao expandir a escolha partidária, a transição para um sistema multipartidário provavelmente levaria a uma explosão de comparecimento entre os eleitores da classe trabalhadora, fortalecendo muito as forças que se opõem à extrema-direita.

O número exato de representantes designados a um distrito com vários membros variaria com base no número de representantes concedidos a um estado (e nos estados com apenas um representante, seriam realizadas eleições para esse único assento). Mas a natureza múltipla da maioria das eleições distritais levaria a uma maior diversidade na representação partidária no Congresso. E, de importância crítica para reduzir a vantagem injusta da Direita, tal sistema combinaria cidades com seus subúrbios vizinhos e áreas rurais em grandes distritos, com múltiplos membros. Isto reduziria grandemente a vantagem que a Direita ganha com a organização de todos os partidos vencedores.

A Luta pela Democracia

A democracia nos Estados Unidos está sob grande tensão. A aquisição pela extrema direita do Partido Republicano ameaça a democracia em um nível fundacional. E o Partido Democrata – trabalhando em estreita colaboração com grandes corporações – não oferece uma alternativa.

Os socialistas democráticos não podem mais se dar ao luxo de evitar esta crise. Precisamos de uma visão ousada para a construção de uma democracia mais forte nos Estados Unidos. Podemos até mesmo descobrir a longo prazo que os democratas de tendência, ansiosos para colocar distância entre si e a esquerda socialista, podem apoiar uma configuração multipartidária. Tal transformação não tem que ser um jogo de soma zero. Ao expandir a escolha partidária, a transição para um sistema multipartidário provavelmente levaria a uma explosão de participação entre os eleitores da classe trabalhadora, fortalecendo muito as forças que se opõem à extrema direita.

Os socialistas antes de nós assumiram a causa da democracia. A luta pelo sufrágio universal foi uma demanda chave para a esquerda em todo o mundo nos séculos dezenove e vinte. De fato, cada passo real em direção a democracias mais fortes internacionalmente tem sido defendido e lutado pelos socialistas e movimentos da classe trabalhadora.

A luta pela democracia hoje inclui a luta para defender o direito de voto, decretar um sistema de financiamento público, abolir o Colégio Eleitoral e reduzir o poder do Senado e da Suprema Corte. Mas também deve olhar para além de consertar os problemas com as instituições quebradas e para a própria refundação da democracia.

Um passo no caminho é livrar este país da armadilha de dois partidos e construir um verdadeiro sistema multipartidário. Fazer isso é possível. E a saúde de nossa democracia – e, em última instância, a vitória do socialismo democrático – depende disso.

Sobre o autor

Neal Meyer é membro do Democratic Socialists da Cidade de Nova York.

Simon Grassmann é membro do capítulo do Democratic Socialists da América em Nova York.

26 de junho de 2021

Depois do inverno vem a primavera

Carta do Peru no inverno de 2021.

Edison Tito Peralta

O presidente eleito do partido Peru Libre, Pedro Castillo, se dirige a seus apoiadores durante um comício em Lima, Peru. (Raúl Sifuentes / Getty Images)

Escrevo esta carta em um momento em que está sendo definida a presidência do Peru, cuja eleição foi realizada em 6 de junho de 2021. São momentos frenéticos no plano social e jurídico, como comentarei a seguir.

O Peru é um país socialmente fragmentado como resultado de eventos históricos onde os setores crioulos estenderam um poder centralizado na cidade de Lima ao longo do século XXI. Esta situação resultou na existência de dois países em um. De um lado, temos o Peru dos Andes e da Amazônia, economicamente atrasado e relegado do poder político; por outro lado, aquele ligado a Lima e seus satélites econômicos no litoral norte, com acesso a vantagens semelhantes às de qualquer país europeu.

Essa realidade, com as nuances correspondentes, é o contexto onde se localizarão os eventos objeto desta carta.

Divisões de classe nas eleições presidenciais

As eleições presidenciais em meu país - porque sou peruano - refletem a divisão indicada não só nas preferências eleitorais, mas também na forma de articulação das disputas. A seguir, narrarei alguns deles para a comunidade internacional.

Em primeiro lugar, devemos destacar que a disputa pelo segundo turno presidencial, em que Pedro Castillo e Keiko Fujimori disputam a presidência, foi enquadrada em um período de aproximadamente dois meses. Neste período de tempo sofremos uma polarização e fratura social sem precedentes (como se as divisões existentes já não fossem insuportáveis ​​no contexto da pandemia em que nosso país está chegando, no momento em que escrevo esta carta, a contabilizar cerca de 200 mil mortos).

Não apenas o surgimento de posições racistas institucionalizadas na mídia foi evidenciado, mas a associação do poder econômico com os círculos do poder político também se manifestou em todo o seu esplendor. Esta associação pertence a uma configuração maior do que significa a crise das instituições do Peru, cujo autor por excelência é o ditador Alberto Fujimori.

E justamente quem lidera o esforço e a representação de toda essa conflagração de poderes e interesses é sua filha, Keiko Fujimori. A senhora Keiko não só recorreu ao poder econômico para iniciar uma campanha de perseguição e divisão no país contra os peruanos que se consideram representados por Pedro Castillo, mas em seu último esforço ampliou uma máquina jurídica sem precedentes em toda a América Latina .

Estratégia legal com conotações racistas e fraudulentas

Esse é o segundo ponto do meu comentário. Como um jovem advogado, fui chamado para ajudar como ator de linha de frente ao lado de advogados experientes no combate ao que poderia ser a fraude legal mais notória em nosso país. Refiro-me ao concurso de mais de 150 advogados dos mais prestigiosos escritórios de advocacia de Lima que, sob o argumento de uma "contribuição voluntária" de serviços, canalizaram a nulidade de meio milhão de votos no sul do Peru; isto é, daquele Peru esquecido, discriminado e separado de todas as decisões políticas do país.

Modus operandi do fujimorismo nas eleições peruanas

Em eleições anteriores, Keiko Fujimori e sua organização, Fuerza Popular, teriam recebido (segundo o processo de investigação em matéria penal conduzido pelo promotor José Domingo Pérez) diretamente e às vezes em malas a contribuição monetária de empresários como Dionisio Romero, que dirige o Grupo Credicorp, a holding peruana mais rica. Contribuições semelhantes foram canalizadas por meio de outros grupos empresariais. Nesses casos, esse dinheiro não foi declarado às autoridades correspondentes, pois o país possui legislação que obriga os atores políticos a declarar tais contribuições.

Em 2021, haveria um esquema semelhante de não declaração de contribuições. Mas desta vez, provavelmente por ter aprendido a lição de 2016, as contribuições em dinheiro não teriam sido canalizadas por meio de malas de dinheiro a favor do Fuerza Popular, mas o apoio foi recebido em uma modalidade diferente. Nessa ocasião, o esquema teria consistido na "contribuição voluntária" dos serviços de advogados de firmas de prestígio, para citar um exemplo.
 
Painéis milionários em um país quebrado

Outro caso muito mais escandaloso está relacionado aos "Painéis Milionários". São mais de 100 painéis gigantes com luzes LED localizados nas principais avenidas das cidades do Peru com mensagens alusivas às eleições em que frases como "Não votem no comunismo" ou "O comunismo nos levará a ser a Venezuela", entre outros, em um claro ataque ao contendor Pedro Castillo.

A esse respeito, minha pessoa conduziu uma denúncia administrativa onde mais de 100 cidadãos peruanos denunciaram este evento como uma contribuição de campanha fraudulenta, já que Keiko Fujimori e Fuerza Popular nunca declararam esses "apoios". Podemos citar também o cerco midiático a todos os canais e rádios mais importantes do Peru que não deram cobertura ou simplesmente se dedicaram a atacar Pedro Castillo à sombra do famoso "comunismo" e do terruqueo, o que inclui a designação de terrorista a quem opta por votar em Pedro Castillo.
 
Marxismo peruano

A ironia de tudo isso é que depois de divulgados os resultados do segundo turno que virtualmente dão a vitória a Pedro Castillo, Keiko Fujimori e sua trupe de meios de comunicação e empresários iniciaram uma cruzada sob o slogan "Ou nos unimos, ou afundamos" e reuniram, no que é um esforço claramente anticomunista ou de classe, toda a classe alta do Peru.

No momento em que escrevo esta carta, os advogados de Keiko entraram com centenas de recursos administrativos para declarar a nulidade dos votos rurais, entraram com medidas judiciais e moveram-se para todo o status quo para atrasar a proclamação de Pedro Castillo. Possivelmente para obter alguma vantagem com a ajuda de seus sempre fiéis aliados empresariais.

Ontem, no jornal El País, Mario Vargas Llosa apresentou a tese cinza da fraude e chamou a atenção da OEA por ter se pronunciado prematuramente que as eleições peruanas foram justas.

Visão pessoal

Descrevo o Peru como um país paralisado por defensores do poder econômico. Se eu pudesse pintar um quadro, seria o que está diante de mim neste preciso momento: milhares de cidadãos unidos coletivamente e solidariamente por meio de cadeias de apoio econômico e logístico para enfrentar o poder econômico e político de Keiko Fujimori.

Organizamos a logística necessária para fornecer comida e abrigo a mais de 500 patrulheiros no interior do Peru, canalizamos advogados voluntários que se opõem às medidas judiciais de Fuerza Popular e marchamos dia a dia para proteger os preciosos votos do sul do Peru.

Quando eu terminar esta carta, mais de 300 cidadãos terão apresentado ação criminal por sedição contra o ex-militar Jorge Montoya - agora deputado eleito recentemente - por ter chamado a declarar a nulidade de todas as eleições, claramente ignorando a vontade popular, que, segundo os melhores especialistas do direito penal peruano, consiste na perpetração do referido crime.

Em alguns dias, o inverno chega ao Peru e pode nos fazer confrontar e intensificar ainda mais nossos conflitos não resolvidos.

Mas também é verdade que o inverno é seguido pela primavera. E esta será uma fonte de esperança, porque estou convencido de que a alegria já chegou ao Peru.

"Voltarei e serei milhões" (Tupak Katari)

Lima, 21 de junho de 2021

Sobre o autor

Indígena Wanka. Advogado pela PUCP, LLM University of California, Berkeley.

25 de junho de 2021

Cores verdadeiras

Futebol no Brasil do Bolsonaro.

Felipe Antunes de Oliveira



As esperanças da esquerda brasileira foram frustradas no início deste mês, quando a seleção nacional de futebol publicou um comunicado que criticava a decisão do presidente Bolsonaro de sediar a Copa América durante a pandemia, mas confirmou que, mesmo assim, participaria.

Para muitos no Brasil, este foi o último passo na separação progressiva de sua lendária seleção nacional. Poucas imagens são mais emblemáticas do país do que a camisa amarelo brilhante de Pelé e da geração 1970. Quando brasileiros no exterior são questionados sobre de onde vêm, a resposta costuma ser um convite a comentários sobre gols e jogos famosos. Ainda assim, a conexão entre o brasileiro e sua seleção é mais complexa do que isso pode sugerir. O futebol não é facilmente desvinculado da política, o que atualmente significa uma afiliação ao Bolsonaro.

A atual Copa América - a principal competição do futebol sul-americano - marca o nadir da tensa relação que se desenvolveu na última década entre a seleção nacional e o público em geral. Até agora, as partidas atraíram um minúsculo público de TV: menores do que aqueles que sintonizam para assistir a um programa de variedades de domingo apresentado por um apresentador substituto ou uma novela cristã de segunda categoria. Que a seleção inspire indiferença é ainda mais contundente pela qualidade, que melhorou bastante desde a notória derrota para a Bélgica em 2018. Não há como negar o talento de seu elenco atual - Neymar Jr, Vini Jr, Alisson, Firmino, Gabriel Jesus e assim por diante.

Para entender a fraca percepção pública da equipe, devemos voltar à rebelião de 2013. Tendo vencido as eleições anteriores com um amplo mandato, o Partido dos Trabalhadores (PT) apresentava sólidas taxas de crescimento ao mesmo tempo que reduzia a desigualdade e o desemprego. Também se preparava para sediar a primeira Copa do Mundo do Brasil desde 1950: uma oportunidade de reparar a histórica reviravolta de perder para o Uruguai naquele ano. Mas antes do início dos jogos, uma coalizão heterogênea saiu às ruas sob o lema Não vai ter Copa. O movimento destacou o baixo nível de investimento em serviços públicos em comparação com o custo extravagante dos novos estádios padrão da FIFA. Ele desafiou o gradualismo das reformas do PT, destacando os limites do modelo redistributivo concebido por Lula e continuado por Dilma.

Na tentativa de justificar os R $ 8 bilhões gastos apenas em estádios, o famoso ex-jogador Ronaldo disse, de maneira condescendente, aos manifestantes: “Não se pode sediar uma Copa do Mundo com hospitais, é preciso estádios.” Mas, no final, a maioria dos brasileiros não conseguiram nem isso. Quando os estádios foram construídos, os preços exorbitantes dos ingressos significaram que o público era esmagadoramente rico e branco. Os torcedores da classe trabalhadora foram excluídos das catedrais esportivas que seu dinheiro de impostos havia construído. Sua ausência deveria liberar espaço para assentos confortáveis ​​e novos serviços. O Maracanã, por exemplo, já foi o maior estádio de futebol do mundo, recebendo quase 200.000 pessoas - mas em 2014 sua capacidade havia sido reduzida para menos de 80.000. (Apesar disso, a gentrificação dos estádios brasileiros não saiu como planejado; muitos deles se mostraram caros demais para serem mantidos e agora ficam meio vazios durante a maior parte do ano.) Se isso semeou desilusão com o esporte, o Brasil é humilhante por 7-1 a derrota para a Alemanha na semifinal o redobrou. A partir daí, a Seleção não poderia mais ser considerada um símbolo de orgulho nacional.

A Copa do Mundo de 2014 também foi um momento importante na queda de braço entre torcedores de futebol e o capital. Tradicionalmente, os clubes brasileiros são associações sem fins lucrativos; mas, na prática, são administrados por grupos privilegiados de gerentes amadores conhecidos como cartolas. Na maioria dos clubes, a luta entre este quadro e a base de torcedores é opaca, e os últimos geralmente não têm permissão para votar em eleições internas. Mesmo assim, o futebol brasileiro tem resistido historicamente às estruturas de gestão de cima para baixo dos clubes europeus listados na bolsa de valores, que reduziram seus torcedores a meros consumidores. Os investidores viram a Copa do Mundo como uma oportunidade de ouro para impor esse modelo ao Brasil e "modernizar" o esporte nos clubes. A legislação favorável aos negócios que permite que os clubes se tornem sociedades de responsabilidade limitada com fins lucrativos está atualmente sendo considerada pelo Congresso.

Depois de 2014, a icônica camisa amarela da seleção nacional tornou-se indelevelmente associada às camadas da elite que invadiram os estádios. Um código cromático claro separou as manifestações amplamente progressistas - por melhores serviços públicos, contra o golpe parlamentar que derrubou Rousseff - das manifestações proto-fascistas contra a ameaça comunista imaginária. Os primeiros eram vermelhos, os segundos verdes e amarelos. Hoje, vestir a camisa oficial da Seleção nas ruas do Rio de Janeiro ou de São Paulo é uma afirmação abertamente pró-Bolsonaro.

Nesse contexto, a Copa América 2021 foi uma oportunidade para resgatar a seleção nacional. O torneio foi originalmente programado para ser co-organizado pela Colômbia e Argentina, mas foi realocado devido à agitação social no primeiro e casos crescentes de Covid-19 no último. O Brasil dificilmente estava imune a qualquer uma dessas questões. No entanto, a administração de Bolsonaro aceitou sem hesitação uma oferta de última hora para sediar o evento, ao mesmo tempo em que falhou em responder a 53 comunicações da Pfizer oferecendo suas tão necessárias vacinas. A mudança foi amplamente condenada, com apenas 24% da população apoiando-a. A oposição de comentaristas esportivos foi praticamente unânime.

Por um breve momento, parecia provável que a seleção se reabilitasse recusando-se a participar no projeto de vaidade de Bolsonaro. Após o anúncio do presidente, o capitão do time Carlos Casimiro disse aos jornalistas que os jogadores dariam uma resposta "na hora certa". A expectativa aumentou durante uma semana, com políticos da oposição tweetando que "Casimiro é nosso capitão!" Então, em 9 de junho, apenas cinco dias antes do início, sua declaração morna foi publicada. "Somos contra a organização da Copa América", dizia, "mas nunca diremos não à Seleção Brasileira".

Esta foi uma decepção esmagadora. No entanto, na política como no futebol, nenhuma derrota é definitiva. Obviamente, a Copa América de Bolsonaro é uma tentativa de desviar a atenção do marco de meio milhão de mortes por coronavírus e da crescente resistência ao seu governo. Com as eleições de 2022 a serem realizadas poucas semanas antes da Copa do Mundo no Catar, a Seleção sem dúvida retornará aos holofotes nacionais em breve. Eles podem até ser chamados a escolher um lado se, como alguns comentaristas estão prevendo, Bolsonaro usar o espectro da fraude eleitoral para orquestrar um golpe militar. Nesse ponto, as verdadeiras cores da equipe estarão claras.

Plano de Biden de aumentar impostos dos mais ricos teria poucas chances no Brasil

Pós-ditadura, Congresso ignorou quase todas as propostas para tornar a tributação mais progressiva

Marta Arretche, Rodrigo Mahlmeister e Eduardo Lazzari


Ilustração - André Stefanini

Se você está acompanhando (com simpatia) os primeiros passos do governo Joe Biden e acredita que ele pode servir de inspiração para o caso brasileiro, nos desculpamos desde já pela má notícia. O Congresso brasileiro não aprovou uma única mudança tributária substantiva de caráter progressivo nos últimos 30 anos.

Do total de propostas legislativas sobre o tema submetidas desde 1988, apenas 2% podem ser consideradas progressivas, e a imensa maioria nem sequer foi para a ordem do dia no Congresso. Isenções, deduções e benefícios fiscais, por sua vez, são aprovados com generosa regularidade.

A tributação progressiva é um tema controverso, tanto na teoria econômica como na opinião pública. Mais recentemente, deslocamentos importantes ocorreram em ambas as frentes, mas acreditamos que eles não serão suficientes. A aprovação de reformas progressivas é pouco provável no Brasil porque não cumpre seu requisito mais fundamental: a formação de maiorias parlamentares.

O princípio de que alíquotas mais elevadas para os estratos superiores de renda e de capital devem ser evitadas encontrou amparo na literatura econômica. Taxas mais altas para os maiores rendimentos poderiam reduzir os incentivos dos mais capazes para trabalhar, poupar e investir. Logo, gerariam ineficiência, já que reduziriam o crescimento econômico e, por consequência, o bem-estar. A redistribuição deveria estar concentrada nas políticas de gasto.

Essas premissas foram discutidas por Peter Diamond, Emmanuel Saez, Joseph Stiglitz e Gabriel Zucman. Suas contribuições nortearam a plataforma de Elizabeth Warren, senadora democrata que propôs um imposto permanente sobre a propriedade nos EUA, e o Plano Biden.

O reconhecimento de que os muito ricos pagam uma alíquota efetiva muito inferior aos demais, como divulgado recentemente pela agência de jornalismo investigativo ProPublica, subverteu a crença de que somos todos igualmente “patos” perante o fisco. Nos EUA, como aqui, os bilionários podem explorar brechas na legislação tributária e não pagar impostos.

Com base no reconhecimento de que a tributação pode contribuir para aumentar a desigualdade de renda, governos e instituições multilaterais voltaram a discutir, recomendar e submeter reformas tributárias capazes de aumentar a arrecadação sem onerar os mais pobres.

O Plano Biden propôs uma ambiciosa agenda redistributiva, financiada pelo aumento do imposto sobre empresas e elevação do imposto mínimo sobre ganhos no exterior, dificultando ainda a transferência de rendimentos de empresas americanas para outros países de menor tributação. A OCDE e o FMI, por sua vez, recomendaram aumento na tributação sobre bens e renda como forma de combater os devastadores efeitos da pandemia e fomentar o crescimento inclusivo.

O G7 está próximo de chegar a um acordo sobre a tributação das multinacionais, que permitiria cobrar tributos onde elas operam e não apenas onde têm sede fiscal. Com a medida, empresas gigantes do setor de tecnologia teriam que pagar impostos pelo mundo todo, aumentando significativamente a arrecadação. Há tempos essa era uma demanda de países europeus.

O que vem ocorrendo no Brasil? É sabido que nosso sistema tributário é altamente regressivo, não apenas porque os pobres pagam parcela maior de sua renda com os tributos indiretos. A isenção de dividendos que os acionistas retiram de suas empresas viola princípios de equidade horizontal, isto é, contribuintes de mesma renda pagam valores muito distintos.

Contribuintes mais ricos pagam menos impostos que contribuintes menos ricos. Os 0,05% mais ricos pagam menos imposto, proporcionalmente à sua renda, que as frações da classe média alta e dos trabalhadores em geral. Quem recebe mais de 160 salários mínimos mensais paga menos IRPF (Imposto de Renda de Pessoa Física), em termos relativos, que aqueles que auferem ao menos 10 salários mínimos.

A eliminação de brechas legais que permitem a elisão fiscal permitiria financiar um amplo programa de combate à pobreza no Brasil, sem aumentar o déficit público e sem desmontar os programas existentes.

Uma reforma tributária que taxasse as empresas em 20%, combinada a uma alíquota máxima de 36% no IRPF (semelhante à vigente no Chile e no México), com teto de deduções fiscais de R$ 6.000, permitiria arrecadar anualmente R$ 67 bilhões, desde que tributasse a totalidade dos rendimentos, isto é, desde que conceda tratamento isonômico a todos os contribuintes. Este montante permitiria financiar um programa focalizado nos mais pobres, com impacto sobre a pobreza superior ao do Bolsa Família.

Entretanto, grande parte da população não está a par desses debates técnicos, de considerável complexidade. Mesmo assim, uma inflexão importante parece ter ocorrido no Brasil em relação ao consentimento do eleitor aos tributos.

Na última edição da pesquisa da Oxfam Brasil, realizada pelo Datafolha, que foi a campo em dezembro de 2020, o índice de aprovação do aumento geral dos impostos para financiar o gasto social saltou de 31%, em 2019, para 56%. Essa tendência havia começado já em 2017, quando a taxa era de apenas 24% e cresceu expressivamente em todos os estratos sociais.

Um breve histórico é importante para entender a relevância desse dado. A parcela dos que concordam que “em um país como o Brasil, é obrigação dos governos diminuir a diferença entre as pessoas muito ricas e as pessoas muito pobres” é constantemente alta no país, em torno de 85%.

Essa aprovação maciça, no entanto, deve ser interpretada com cautela, porque a afirmação não menciona possíveis impostos e omite quem vai pagar a conta. Não é o melhor termômetro da disposição para arcar com os custos da intervenção estatal.

Quando pagar impostos é mencionado, o apoio cai, porque o risco de ser taxado entra na balança. Até recentemente, o eleitorado brasileiro convergia em torno da estratégia de “redistribuição sem tributação”, ou seja, apoiava a intervenção social do Estado desde que isso não implicasse a elevação de sua carga tributária.

É nesse contexto que deve ser entendida a mudança revelada na última pesquisa da Oxfam. É inédito que mais da metade dos brasileiros concorde com a afirmação de que “os governos devem aumentar os impostos para garantir melhor educação, mais saúde e mais moradia para os que precisam”. Essa aprovação é a mais elevada de toda a série de pesquisas de que dispomos no Brasil.

Nossa interpretação é que esse nível de concordância indica disposição para pagar impostos, desde que esses recursos sejam destinados para fins redistributivos. Esse deslocamento pode ter sido gerado pela convivência com a Covid-19.

Tal hipótese é consistente com o argumento dos economistas Alan Peacock e Jack Wiseman, que sustentam que crises sociais de larga escala são capazes de promover mudanças nos padrões regulares da opinião pública sobre a tributação. Por ocasião de guerras, a necessidade de responder à situação de emergência se sobrepõe à resistência ao aumento de impostos.

A combinação desses dois fatores —propostas técnicas e deslocamentos na percepção do eleitorado— abre uma janela de oportunidades para a aprovação de tributação para aumentar os recursos destinados ao financiamento das políticas sociais. Se existem propostas progressivas tecnicamente consistentes, apoio na opinião pública e exemplos ao redor do mundo, o Brasil poderia aproveitar essa chance, revertendo uma tendência histórica ao dobrar esforços contra a desigualdade e a pobreza.

Entretanto, tais propostas precisam ser aprovadas no Parlamento para se converterem em legislação —e dessa cartola não sai coelho.

Historicamente, o Legislativo brasileiro tem se posicionado contra a progressividade da política tributária. Dos 2.500 projetos de lei complementares ou ordinários que tratam do assunto apresentados por parlamentares brasileiros de 1988 a 2020, a imensa maioria (88,6%) propõe medidas cujo resultado seria reduzir a arrecadação do governo federal. Essa diminuição está relacionada à mobilização de parlamentares brasileiros para introduzir novas despesas dedutíveis no IRPF ou para criar novas isenções nesse imposto e até mesmo em outros impostos.

A principal estratégia é aliviar a tributação sobre pessoas físicas ou sobre grupos econômicos. Como as deduções beneficiam o topo da distribuição da renda, o resultado da preferência majoritária de deputados e senadores é agravar a regressividade de nosso sistema tributário, além de reduzir a arrecadação.

Na Constituinte, havia uma proposta apresentada pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) que permitiria a equiparação do tratamento conferido aos rendimentos de capital aos dos rendimentos de trabalho no IRPF, com base no diagnóstico —ainda atual— de que nosso sistema tributário é altamente regressivo. Existiam alternativas, tecnicamente fundamentadas, para obter a simplificação da tributação sobre bens e serviços e aumentar a progressividade do sistema.

Essa proposta foi ignorada pelo relator da Subcomissão de Tributos da Assembleia Nacional Constituinte, o então deputado federal Fernando Bezerra —hoje líder do governo Bolsonaro no Senado. Bezerra (MDB-PE) foi peça-chave nessa subcomissão, responsável pela redação do capítulo tributário da nova Constituição.

Ele acolheu a proposta de aumento da base do que viria a ser o ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), o que agravou a regressividade do sistema. Concentrou-se no aumento das transferências constitucionais, demanda dos estados mais pobres, e na expansão da base tributária do ICMS, demanda dos estados mais ricos.

Como resultado, não houve aprovação na Constituinte de nenhum projeto de tributação progressiva. As propostas nessa direção foram ignoradas pelo relator ou derrotadas na subcomissão.

A inclusão social sem tributação progressiva foi a essência da ordem social desenhada na Constituinte, que expandiu os gastos sociais sem, contudo, gerar fontes de receita compatíveis com as novas funções a serem desempenhadas pela União. No governo de José Sarney (1985-1990), as alíquotas marginais do Imposto de Renda foram reduzidas, reforçando os mecanismos que levariam ao crescente déficit fiscal da União.

Não virá da liderança do governo nenhuma proposta que reduza a regressividade de nosso sistema tributário. Tampouco obterão apoio majoritário no Congresso propostas que concedam tratamento igualitário aos contribuintes, eliminando as brechas que permitem que a alíquota efetiva dos mais ricos seja inferior à da classe média e dos assalariados em geral.

O crônico subfinanciamento dos programas de combate à pobreza no Brasil não decorre da ausência de propostas tecnicamente viáveis ou fiscalmente responsáveis, tampouco pode ser atribuído à rejeição do eleitor. Em vez disso, deve ser imputado à preferência majoritária de nossas elites políticas por desenhos tributários regressivos, que não apenas oneram os mais pobres como suprimem as receitas para programas compensatórios de renda.

O contexto atual não representa apenas uma janela de oportunidades para aprovação de legislação, mas também um espaço para qualificar o debate público em torno das estratégias de intensificar o combate à desigualdade e à pobreza nos estertores da pandemia.

Com vistas às eleições de 2022, o ministro Paulo Guedes anunciou que lançará uma versão ampliada do Bolsa Família. Os detalhes da proposta são pouco conhecidos até o momento, mas parece claro que a agenda desse debate será pautada pelo potencial que o atual governo vê de extrair ganhos eleitorais.

Sabemos que o desmonte dos programas existentes não é capaz de gerar recursos suficientes para financiar um efetivo programa de combate à pobreza no Brasil. Excluída a hipótese de aumentar o déficit público para ganhar a eleição, as únicas saídas seriam o aumento da tributação e alguma revisão da regra do teto de gastos, excluindo políticas reconhecidamente redistributivas da limitação imposta atualmente.

Essas alternativas, no entanto, parecem ter sido descartadas pelo presidente. Se não tivessem, teriam enorme dificuldade em obter apoio em sua base parlamentar.

Enquanto o governo persegue a quadratura do círculo, o Brasil pode, mais uma vez, perder uma oportunidade valiosa para saldar sua dívida social.

Marta Arretche

Professora titular do Departamento de Ciência Política da USP e pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole (CEM/Cebrap)

Rodrigo Mahlmeister

Mestrando em ciência política na USP e pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole (CEM/Cebrap)

Eduardo Lazzari

Doutorando em ciência política na USP e pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole (CEM/Cebrap)

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