29 de junho de 2021

Um novo tempo político no Peru

Este novo tempo está em disputa e aberto à contingência. O que esperamos é possível, embora também possa não se tornar realidade. Mas, como diria Alberto Flores Galindo, "há espaço para esperança".

Anahí Durand


Mobilização de apoiadores de Pedro Castillo em Lima. (Foto: César Bueno / @ photo.gec)

No domingo, 6 de junho, nós, peruanos, fomos às urnas para eleger um presidente entre Keiko Fujimori e Pedro Castillo. O dia da eleição chegou em um ambiente polarizado. Por um lado, Fujimori e a direita peruana - com o apoio dos grupos de poder - se apresentaram como uma alternativa para salvar o país da "ameaça comunista". Por outro lado, Castillo concentrava o apoio dos setores populares que, fartos da classe política, exigiam mudanças fundamentais.

Sabia-se que o resultado seria apertado; Já havia sido em 2016, quando Kucynzky venceu Fujimori por 42 mil votos. Mas, ao contrário daquela época, em que dois projetos de direita se chocaram, agora a própria sobrevivência do regime estava em jogo. O reconhecimento de um triunfo de Pedro Castillo não seria algo que as elites estivessem dispostas a assumir facilmente.

No dia 15 de junho, com 100% das atas apuradas, a Oficina Nacional de Procesos Electorales (ONPE) divulgou que Pedro Castillo venceu a eleição com 50,12% dos votos contra 49,87% de Keiko Fujimori: mais de 44 mil votos de diferença. Castillo já poderia ter sido proclamado presidente, mas a impugnação de milhares de votos pelo fujimorismo e as manobras do Jurado Nacional de Elecciones atrasaram. O fujimorismo e seus aliados buscam evitar o inevitável: o fechamento do ciclo político neoliberal ao mesmo tempo em que impede a abertura de outro favorável à maioria.

O Peru neoliberal e o ciclo que termina (ou deveria terminar)

No início da década de 1990, o Peru estava em uma situação de crise generalizada; entrou em colapso pela hiperinflação, violência subversiva e crise política. O ciclo democratizante inaugurado na década de 1960, marcado pelo modelo de substituição de importações e ampliação dos direitos sociais e políticos referendados ​​na Constituição de 1979, desmoronava vertiginosamente. Em 5 de abril de 1992, o auto-golpe de Fujimori, com o aval das Forças Armadas e dos grupos de poder econômicos, definiu o fim desse ciclo por meios autoritários. Como no Chile em 1973, o neoliberalismo prevaleceu independentemente de qualquer forma democrática, com grandes doses de discricionariedade para anular direitos e consagrar a primazia do mercado. Para garantir a permanência das mudanças, o modelo foi constitucionalizado e em 1993 foi aprovada uma nova Constituição Política.

O ciclo neoliberal se impôs aproveitando também o descensso de sindicatos, organizações populares e partidos de esquerda atingidos pelo conflito armado e pela crise econômica. Consolidou-se um regime que garantiu politicamente a governabilidade tecnocrática, avançou economicamente ao liberalizar setores estratégicos e impôs socialmente novos significados e formas de sociabilidade comuns que exaltavam o individualismo. Como peculiaridade peruana, sob a liderança de Fujimori e Montesinos uma máfia corrupta se enredou para controlar os poderes do Estado, garantindo continuidade e impunidade.

Em 2000, devido à magnitude dos escândalos de corrupção, Alberto Fujimori foi afastado do governo. Mas, longe de ser enfraquecido pela crise política, o neoliberalismo tomou um novo fôlego, estimulado pelos altos preços das commodities no mercado mundial. Os governos eleitos em democracia não mudaram o regime nem desmantelaram as redes corruptas de Fujimori; pelo contrário, reforçaram o modelo exportador primário, administrando o Estado com a mesma lógica empresarial que lhes trazia lucros.

Ao mesmo tempo, os desafios ao neoliberalismo se expressaram tanto nos conflitos socioambientais de comunidades camponesas e territórios indígenas confrontados com o avanço do grande capital, quanto no campo eleitoral, onde opções críticas ganharam espaço (como Humala em 2011, embora logo tenha traíso sua plataforma de mudanças, ou Verónika Mendoza em 2016).

A hegemonia do regime neoliberal se deteriorou mais fortemente a partir de 2018 com as denúncias de corrupção vinculadas ao caso Odebrecht. O envolvimento de toda a classe política em propinas, licitações e outros crimes arrastou ex-presidentes e autoridades locais e judiciais, gerando indignação por parte do público. A renúncia de Kucinzky, a reorganização do Conselho Nacional de Justiça e o posterior fechamento do Congresso criaram uma crise de grande magnitude na qual quase todos os poderes do Estado entraram em colapso.

Mas o neoliberalismo sobreviveu, sustentado por dois pilares fundamentais: a instituição presidencial e a aceitação social. Foi a pandemia que deu o golpe final na deteriorada vigência mantida em ambos os níveis. Em primeiro lugar, a vacância do ex-presidente Vizcarra em novembro de 2020 por um Congresso repleto de interesses privados gerou uma resposta popular massiva nas ruas que impediu a consolidação de um golpe, mas colocou Sagasti como um precário presidente temporário.

Em segundo lugar, a tragédia sanitária da pandemia (com sua contrapartida na esfera econômica) revelou uma sociedade devastada. O abandono do Estado, o lucro das clínicas, o monopólio do oxigênio, a falência de pequenos negócios e os milhões de trabalhadores informais incapazes de resistir às quarentenas aumentaram a fome e a pobreza, liquefazendo a hegemonia social que o modelo mantinha. O regime neoliberal imposto em 1992 estava colapsando em todas as linhas, e os resultados das eleições presidenciais de 2021 confirmariam esse esgotamento.

O que pode começar: um governo para as maiorias

Pedro Castillo venceu principalmente com os votos dos peruanos que esperam mudanças. Foi também um voto identitário, menos ideológico e mais vingativo, de identificação com o professor que ganha dois salários mínimos, que fica terruqueado quando protesta e é visto como inepto ou perigoso. Venceu com tudo contra: grupos de poder econômico, a mídia e também a intelectualidade decadente comandada por Mario Vargas Llosa, ex-inimigo de Fujimori.

Embora Castillo tenha ampliado seu quadro de alianças assinando um compromisso com Verónika Mendoza, convocando profissionais reconhecidos e articulando um setor liberal "antifujimorista", nada tranquilizou as elites, que persistiram em uma cruzada anticomunista com notícias falsas, insultos racistas e invenções sobre a catástrofe que significaria seu governo. Pior ainda, com a contagem dos votos do ONPE concluída, o Fujimorismo e seus aliados têm implantado uma estratégia golpista, que desconhece os resultados e busca impedir a proclamação presidencial de Castillo.

Enquanto o desespero da direita fica claro diante do iminente término do ciclo, a questão agora é como será esse novo momento político. Pode-se dizer que já está surgindo uma época diferente, marcada pela trajetória de Castillo e pelo ambiente que o cerca. Ao contrário de Humala, Castillo tem extração popular, experiência sindical e sensibilidade de esquerda, mas ao mesmo tempo é um pequeno agricultor e empresário, que influencia o pragmatismo, a capacidade de negociar e o sentido de oportunidade com que desenvolveu e ganhou a campanha.

Este perfil mais comum e pragmático também é evidente nos arredores que o acompanham e pode prenunciar um novo gabinete. De um lado está o círculo da esquerda: o Peru Libre, um partido regional de esquerda que o levou à presidência e que junto com o Novo Peru e outras forças deve atuar de forma coordenada para favorecer a implementação das mudanças prometidas, especialmente na economia e no o processo constituinte. Mas também há grupos - e principalmente personagens - de cunho político diverso, que com narizes oportunistas se aproximam do professor valendo-se de parentesco ou de redes territoriais. Eles, junto com setores da direita político-empresarial, aspiram neutralizar a realização de mudanças substantivas e se beneficiarem de uma gestão presidencial semelhante às anteriores.

A questão gira em torno de quais ações Castillo poderia realizar para abrir um novo ciclo, pressionado como está hoje por uma direita golpista, pela falta de maioria parlamentar e pela tentação centrista. Em primeiro lugar, ele deve garantir sua permanência no governo, convencendo aqueles que não votaram nele com aqueles que votaram. Isso implica fortalecer um primeiro círculo político-social de esquerda e progressista aberto ao centro que ajude também a variar a correlação de forças adversas no Congresso.

Da mesma forma, pode ser fortalecido a partir da implementação de mudanças concretas para melhorar as condições de vida das pessoas, priorizando a saúde e a reativação econômica com a geração de empregos. Para isso, é fundamental aumentar os recursos fiscais com medidas como a nacionalização do gás ou o imposto sobre os excedentes mineiros, que ao mesmo tempo seriam relevantes em termos de recuperação da soberania e do projeto nacional.

Será também essencial iniciar o processo constituinte, envolvendo os cidadãos numa iniciativa de recolha de assinaturas para consulta em referendo, se concordam ou não com uma nova Constituição produzida por uma Assembleia Constituinte. O processo constituinte promoveria um grande debate nacional e a discussão e aprovação dessa nova Constituição, oxalpa uma expressão de uma representação plurinacional e igualitária. Além disso, permitiria afirmar um novo ciclo, com um Estado que garanta direitos, redistribuição e justiça social.

Epílogo: um intervalo de monstros

Gramsci disse que “a crise consiste precisamente no fato de que o velho não acaba de morrer e o novo não acaba de nascer”, e que neste interregno surgem monstros. Precisamente hoje no Peru desfileam perigosas "monstruosidades". Destaca-se, por exemplo, a ascensão da extrema-direita reacionária, racista e violenta, semelhante à do Bolsonaro no Brasil ou da Vox na Espanha.

Embora para o segundo turno (neo) liberais e ultradireitistas tenham concordado em apoiar o fujimorismo, agora eles estão se distanciando novamente. Keiko está exausta, complicada pelos laços com Vladimiro Montesinos, que reapareceu articulando por telefone da prisão para alterar o resultado eleitoral.

Diante da perplexidade dos (neo) liberais que hipotecaram seu destino ao fujimorismo, o setor mais fortalecido é a extrema direita, liderada por Rafael López Aliaga, que acumula nas classes altas e nos setores populares urbanos de Lima, alimentando-se do conservadorismo e da beligerância anti-esquerda exacerbada durante a campanha.

Por outro lado, existe uma sociedade estressada e um ambiente rarefeito, alimentado por Fujimori e seus aliados. Junto com as massivas mobilizações de partidários de Castillo e também do fujimorismo ocorridas durante três semanas consecutivas, ocorreram violentas ações de perseguição às autoridades eleitorais, cartas pedindo golpe de ex-militares, ataques a ronderos e professores e, finalmente, agressões físicas .ao chefe do ONPE.

Em tudo isso, a mídia desempenhou um papel nefasto: é o caso do Grupo El Comercio, que subordinou totalmente sua linha editorial ao fujimorismo, ou a emissora Willax, com seu maquinário de notícias falsas, terruqueo e difamações. As redes sociais também funcionaram como bastião da desinformação, sendo funcionais às matrizes de opinião impostas pelos grupos de poder para deslegitimar o triunfo de Castillo.

Pavimentar o caminho para um processo transformador é uma tarefa difícil. O sucesso dependerá em grande medida da vontade e da articulação dos atores políticos do governo, gerindo alianças e contrapesos com outros setores democráticos, mas principalmente visando consolidar uma base política e social que apoie e defenda essas mudanças.

Em uma sociedade como a do Peru, com partidos políticos frágeis, tecido social fragmentado e máfias arraigadas no aparelho público, a atuação do Estado será essencial para desmantelar as estruturas neoliberais (por exemplo, na gestão dos recursos naturais, o reforma tributária ou regime de pensões das AFPs). Mas a ação do Estado será insuficiente se estiver de costas para a população que votou pelas mudanças. Por isso, será fundamental envolver os cidadãos e suas diversas organizações - sejam comunidades camponesas, indígenas, organizações de bairro, associações empresariais ou outras - para que se comprometam na defesa de seus direitos.

Este novo tempo está em disputa e aberto à contingência. O que esperamos é possível, embora também possa não se tornar realidade. Mas, como diria Alberto Flores Galindo, "há espaço para esperança".

Sobre a autora

Socióloga e professora da Faculdade de Ciências Sociais da Universidad Nacional Mayor de San Marcos (Lima). Faz parte do coletivo editorial da Jacobin América Latina.

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