31 de agosto de 2021

Em uma cúpula sobre combustíveis fósseis, a crise climática está totalmente sob controle

O país e o planeta estão envolvidos em desastres climáticos. Mas o consenso em uma das maiores cúpulas de combustíveis fósseis do país é que apenas os capitalistas de combustíveis fósseis que causaram esta crise podem ser confiáveis para nos salvar.

Chris Walker

Jacobin

A large fracking operation in Loveland, Colorado. (Helen H. Richardson / The Denver Post via Getty Images)

Este trabalho foi possível graças ao apoio da Fundação Puffin.

Tradução / "Hoje o ar não está poluído, isso é ótimo!”

“Sim, é tão bom”.

Assim começava o primeiro trecho de conversa que ouvi assim que entrei na Cúpula de Energia da Associação de Petróleo e Gás do Colorado, uma conferência anual em Denver que reúne os maiores operadores dos combustíveis fósseis do estado para um dia de painéis de discussão e networking com bebidas alcoólicas. A conversa veio de um homem e uma mulher em trajes de negócio casuais que tinham acabado de se servir de café em um bar de café da manhã. Não muito longe deles, estava um manifestante idoso com uma longa barba branca do lado de fora da entrada da conferência, segurando uma grande faixa proclamando: “CRISE CLIMÁTICA!”.

Este ano, a cúpula foi realizada no Museu da Natureza e da Ciência de Denver na terça-feira, 24 de agosto — realmente um dia em que o céu do Colorado estava relativamente claro. Mas mesmo em uma manhã em que meio que se podia ver as montanhas, era difícil não lembrar como a situação estava ruim nas semanas anteriores, quando os residentes de Denver se engasgavam com a pior qualidade do ar de qualquer grande cidade do mundo, graças a uma combinação de fumaça de incêndios florestais vinda da Califórnia e do Noroeste do Pacífico, bem como a poluição do ozônio [destruição da camada de ozônio] alimentada, em parte, pela indústria de petróleo e gás reunidos na conferência.

A ciência há muito tempo nos mostrou que as mudanças climáticas e as emissões causadas pelo homem são em grande parte responsáveis tanto pela carência de ozônio quanto pelo aumento dos incêndios florestais. O mais recente relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC) das Nações Unidas apresentou ainda mais evidências de que atividades humanas, como o consumo de combustíveis fósseis, são os principais motores da mudança climática. Portanto, o fato de que esta conversa particular sobre o céu azul estava ocorrendo no início de uma cúpula de petróleo e gás era quase irônico demais para acreditar.

Um manifestante fora da Cúpula de Energia da Colorado Oil and Gas Association. (Cortesia de Chris Walker)

Igualmente irônico? Que a cúpula estava sendo realizada em um santuário da natureza que está sendo destruído e da ciência que está sendo ignorada — apesar de George Sparks, o diretor de longa data do museu, não ter visto nenhum paradoxo nisso. Como ele disse aos participantes em sua palestra de abertura: “Sempre considerei vocês como se fossem meus colegas” e “Não há indústria que encarne mais a natureza e a ciência do que [a do petróleo e gás]”.

Mas ironia ou não, eu estava ali em uma missão: Eu queria saber como os líderes de uma das maiores indústrias de combustíveis fósseis e que mais cresce nos Estados Unidos pensam sobre as mudanças climáticas, e como eles falam sobre isso entre si.

O nome do painel de discussão deste ano? “Combatendo as Mudanças Climáticas Juntos”.

Um grande esforço de rebranding [alteração da marca] está em andamento atualmente, pois partes interessadas do ramo de combustíveis fósseis, como a Associação de Petróleo e Gás do Colorado (COGA) e seus membros, se posicionam não como negacionistas das mudanças climáticas, mas como aliados firmes, até mesmo pró-ativos, na redução de emissões e no alcance da neutralidade de carbono. Outros painéis da cúpula, incluindo “Mitigando os Gases de Efeito Estufa” e “Investindo no Espaço de Nova Energia”, sugeriram que a última edição desta conferência seria diferente de qualquer outra no passado.

Mas ao ir entrando em um lobby onde os cerca de cem participantes se moviam em torno de pratos empilhados com frutas frescas e croissants — uma aglomeração notavelmente menor do que nos anos anteriores devido às preocupações com a COVID-19 (mais participantes estavam acompanhando online) — eu me perguntava como uma indústria que fundamentalmente contribui para as mudanças climáticas e que passou décadas enterrando ou negando a ciência climática, pode agora estar reconhecendo e até mesmo “combatendo” o desastre. Como os executivos do petróleo e gás do Colorado fazem a quadratura desse círculo, e por que agora?

Não-comparecimentos políticos

O primeiro painel de discussão da manhã, de noventa minutos, ofereceu aproximadamente zero pistas para entender como a indústria de combustíveis fósseis está enfrentando as mudanças climáticas, apesar de cobrir amplamente as áreas de mudanças políticas, sociais e econômicas desde que a última cúpula de energia ocorreu em 2019, antes da pandemia.

“Obviamente, a mudança climática é um grande tema do dia”, disse o colunista da Colorado Politics Eric Sondermann em certo momento, mas depois ele e seus colegas painelistas não disseram mais nada sobre isso. Ao invés, eles se concentraram em como a pandemia é ruim para a economia, e como um Partido Republicano fraco no Colorado significa problemas para o petróleo e o gás.

Notoriamente ausente? Políticos de fato.

A indústria de petróleo e gás do Colorado cresceu até se tornar o sétimo maior mercado de energia dos Estados Unidos, com mais de cem mil funcionários e um impacto estimado de 19 bilhões de dólares por ano na economia do estado. Chegou a esse ponto mobilizando sua força política, tendo gasto 82 milhões de dólares em eleições estaduais desde 2016, e mais milhões em lobbying local.

O resultado é uma influência política significativa: o setor conseguiu que o governador democrata e os legisladores do estado diluíssem um grande projeto de lei climática, removendo uma abordagem de cap-and-trade [limitação e comércio] de emissões antes que a legislação fosse aprovada no início deste verão, mesmo que o Colorado já estivesse atrasado no cumprimento de suas metas de redução de emissões.

Mas alguns dias antes dessa conferência, ambientalistas de mais de uma dúzia de organizações pediram a Hickenlooper e Bennet que fizessem uma demonstração de “boicote público” à cúpula. Os ativistas não precisavam ter se preocupado. Mesmo sem esse pedido, é difícil imaginar que a maioria dos democratas estaria interessada em ser tão publicamente associada ao petróleo e gás neste momento. Na verdade, Polis e Hickenlooper depois se comprometeram a aparecer ao lado dos defensores do clima na quarta-feira seguinte, 1º de setembro, na Union Station para promover a infra-estrutura de veículos elétricos.

Os não-comparecimentos políticos não passaram despercebidos pelos participantes. “Não vejo nenhum tomador de decisão”, disse uma pessoa sentada perto de mim durante o primeiro painel.

“Sim”, respondeu outro, “é um admirável mundo novo”.

Salvando o mundo com combustíveis fósseis

As coisas ficaram interessantes durante o segundo painel, “Investindo no Espaço de Nova Energia”.

“Não há mais cláusula de não-participação”, declarou uma consultora de investimentos sustentáveis chamada Alanna Fishman sobre o tratamento das questões ambientais. “Há apenas seis anos, costumava ser: ‘Por que estamos entretendo estas conversas [sobre mudanças climáticas]’?”.

Agora, disse Fishman, os investidores estão cobrando as empresas em seus esforços nos aspectos Ambiental, Social e Governança (ASG) [do inglês Environmental, Social, and Governance — ESG] para assegurar que as empresas estejam levando em devida consideração as questões sociais e ambientais, incluindo as mudanças climáticas. Um bom exemplo, ela disse: olhe para todas as corporações que se esforçam para criar posições como diretores de sustentabilidade.

Mas a pressão dos investidores por relatórios detalhados sobre responsabilidade social e ambiental está claramente frustrando alguns operadores do setor de petróleo e gás.

“Fazemos ASG há vinte anos”, disse Chris Wright, palestrante sobre a nova energia, CEO da Liberty Oilfield Services, uma das maiores operações de fracking do Colorado. “Não conheço uma indústria com mais pessoas que se preocupam apaixonadamente com as comunidades em que trabalham, [que são] geralmente comunidades rurais pobres”.

O painel “Investindo no Espaço da Nova Energia”. (Cortesia de Chris Walker)

Wright continuou a apresentar um argumento repetido seguidamente durante a conferência: As empresas de petróleo e gás do Colorado têm cortado voluntariamente as emissões de gases de efeito estufa através da “maior redução bruta de qualquer indústria”, graças ao investimento em desenvolvimentos como instalações mais seguras, melhores sistemas de detecção de metano, oleodutos mais seguros e infra-estrutura menos propensa a queima de gás.

Mas estas mudanças não aconteceram simplesmente porque eram a coisa certa a fazer. As melhorias ajudaram os resultados das empresas. “Todos sabemos sobre o Acordo de Londres ahn de Paris ou o que quer que seja… que basicamente colocou muitas limitações no que estamos fazendo”, me disse Drew Talley, um operador de drones que detecta emissões de metano, durante uma pausa. “Mas o que as pessoas não percebem é que os produtores também não querem que esse gás vaze, porque quando esse gás vaza, isso é dinheiro. Dói no bolso deles”.

Wright, entretanto, não quis falar em economizar dinheiro ou em abraçar a sustentabilidade corporativa no painel sobre novas energias. Ele queria dar reafirmar a ideia que sua empresa de fracking tinha apresentado em seu primeiro relatório de ASG, lançado no início deste verão: Os combustíveis fósseis estão ajudando a humanidade.

“Nosso objetivo não é finalizar uma tarefa pré-determinada ou cumprir alguma meta que alguém diz ser muito importante”, disse Wright ao painel. “É o que acreditamos que irá impulsionar a melhoria de vidas humanas”.

“E deixe-me desviar do assunto por um minuto”, ele acrescentou.

“Não. Há. Crise. Climática.”

Wright fez uma pausa, e dava pra sentir a eletricidade na sala. Ele falou isso mesmo. Dois caras na minha frente olharam um para o outro e sorriram.

Wright tem um histórico de provocação. Ele gerou manchetes no início deste ano quando trolou a The North Face com um vídeo e um outdoor em Denver agradecendo à marca por fazer seus produtos usando petróleo, depois que a empresa se recusou a cumprir uma encomenda de jaquetas de fleece para uma empresa de petróleo e gás do Texas.

Mas mesmo vindo de Wright, a negação direta de uma crise climática parecia algo extremo. Afinal, a maioria dos participantes havia passado pelo ativista climático fora do evento segurando uma faixa com essas mesmas palavras.

Wright explicou melhor sua afirmação: “Não houve aumento de eventos climáticos extremos nos cerca de cem anos de dados que temos. E… as mortes anuais causadas globalmente por eventos climáticos extremos caíram 95% durante o último século, de uma média de meio milhão por ano para uma média de 25.000 [por ano] durante a última década”.

Wright passou longe da verdade. A maior parte de suas informações — conforme mencionado em seu próprio relatório ASG — parece ter vindo de uma única interpretação de um pesquisador dos antigos relatórios do IPCC. O último relatório do IPCC, de algumas semanas atrás, que, Wright calmamente apontou, “ninguém lê”, faz ligações inequívocas entre o clima extremo e as mudanças climáticas causadas pelo homem. Por exemplo, os cientistas climáticos do IPCC descobriram que os tipos de ondas de calor históricas como a recentemente experimentada no Noroeste do Pacífico são agora cento e cinquenta vezes mais prováveis do que eram no passado.

A Organização Mundial da Saúde, por sua vez, agora culpa as mudanças climáticas por cento e cinquenta mil mortes anuais, e esse número está aumentando.

Mas Wright tinha assuntos mais urgentes em mente, como pesadelos.

“O diálogo energético que se divorcia da realidade tem custos enormes, massivos”, disse ele aos presentes. “Um dos custos que nos atinge diretamente: 20 por cento das crianças relatam ter pesadelos com as mudanças climáticas quando vão dormir. Eu falo nas escolas o tempo todo; as crianças [sic] têm muito menos interesse em entrar nos campos científicos ou técnicos porque o que elas vêem é: A ciência é: ‘Adotarás a doutrina alarmista ou serás chamado de negacionista e serás banido.’”.

Uma das soluções propostas por Wright: colocar mais hidrocarbonetos nas mãos de sociedades mais pobres. “Um terço da humanidade cozinha suas refeições diárias usando madeira, esterco e resíduos agrícolas dentro de suas casas”, afirmou Wright, o que, segundo ele, estava causando poluição por particulados em ambientes fechados e milhões de mortes. O que poderia ser um impacto social melhor do que garantir que as pessoas tenham combustíveis fósseis para que não cozinhem com cocô?

Quando o painel terminou e os participantes se dirigiram para o almoço, havia ainda um burburinho entre as pessoas com os comentários de Wright.

“Chris é sempre divertido”, disse um deles.

“Sim, um amigo meu que estava vendo a transmissão ao vivo me mandou uma mensagem e disse que ele estava rindo”, respondeu outro.

Outros tinham tirado lições estratégicas da discussão sobre governança corporativa ambiental e social.

“Minha interpretação é usar a ASG como uma categoria ofensiva em vez de defensiva”, disse um conferencista, enquanto nós serpenteávamos através da exposição espacial do museu.

“Sim, é como um jogo de poder”, respondeu um colega.

"Petróleo e gás tocam tudo"

Agora era hora de um almoço rápido. O museu tinha colocado mais mesas do que o necessário no átrio central do edifício, com teto de vidro. Aproximei-me de uma mesa com algumas pessoas já sentadas. “Um aviso e um convite”, disse eu antes de sentar. “Sou um jornalista”.

“Ah oh”, disse uma mulher. Mas ela riu, me convidou para juntar-me à mesa e se apresentou como Tia Haggart.

Haggart é um representante de vendas de uma empresa chamada Uptake que licencia software para produtores de petróleo e gás. Não é algo sobre o qual ela sempre fala com seus amigos. “Eles têm consciência ambiental e gostam da natureza, como as atividades ao ar livre no Colorado”, disse ela. “Mas eles não pensam necessariamente em como o petróleo e o gás tocam tudo”.

Haggart mencionou os carros, depois apontou para seu telefone como outro exemplo. “Isto foi feito com petróleo”, disse ela. “E até Tesla, seus carros operados a bateria utilizam minerais que são extraídos com petróleo e gasolina.”

Almoço na Cúpula de Energia da Colorado Oil and Gas Association. (Cortesia de Chris Walker)

Haggart me contou que ultimamente as discussões com seus amigos sobre seu trabalho e seu impacto no planeta estão ficando mais quentes e menos racionais. “Eu geralmente escolho não falar sobre isso”, disse-me ela. “Você tem que escolher suas batalhas.” Mas às vezes eu me aprofundo e digo: ‘Bem, pare de usar seus telefones, computadores, e assim por diante’.”.

“Como Chris [Wright] disse”, ela continuou, “nós temos feito ASG desde sempre”. Agora eles só querem que o coloquemos em relatórios para que pareça bom para os investidores”.

“Então, o que você achou do comentário dele de que não há crise climática?” eu perguntei às pessoas da mesa. “Porque isso pareceria ir contra as recentes observações do secretário-geral da ONU de que as descobertas do IPCC [relatório de 9 de agosto] equivalem a um ‘código vermelho para a humanidade’”.

Um geólogo chamado Rick Palm falou. “Acho que o que [Wright] disse, para apoiar o que ele falou, foi só sobre as taxas de mortalidade”, disse ele. “Não se tratava de haver ou não um aumento nas mudanças climáticas”.

Portanto, as mudanças climáticas, pelo que eu pude entender, são reais. Mas uma crise climática? Para esse grupo, seria talvez ir longe demais.

Nesse momento, garçons usando máscaras apareceram com pratos com empanado de frango e arroz. Depois disso, a conversa voltou-se para os terríveis incêndios florestais na Califórnia que estavam jorrando tanta fumaça sobre o oeste americano.

“Eu só queria que pudéssemos fazer algo a respeito”, disse Haggart.

O dinheiro fala mais alto

Durante os painéis da tarde, a conferência deu uma virada brusca.

“Precisamos reduzir as emissões rapidamente e retirar o CO2 diretamente do ar”, disse Ryan Edwards durante uma sessão sobre a mitigação dos gases de efeito estufa. Edwards é assessor político da Occidental Petroleum, cujas aquisições incluem a Anadarko Petroleum, uma empresa que se encontrava em dificuldades por, entre outras coisas, possuir uma linha de gás com vazamento que causou uma explosão em uma casa e duas mortes em Firestone, Colorado, em 2017.

“O IPCC está tornando cada dia mais claro que [a redução de emissões] terá que acontecer”, continuou Edwards com um sotaque australiano fanhoso. “E eu acho que a ciência é esmagadoramente indiscutível que precisamos disso, e precisamos disso em grande escala, então está ficando cada vez mais difícil dizer que não precisamos”.

A observação pareceu uma forte divergência em relação ao tom de outros painelistas de cúpula, mas Edwards então revelou o pensamento estratégico por trás da promessa ocidental de neutralidade de carbono até 2050: A empresa está aproveitando ao máximo os créditos fiscais que o Congresso expandiu em 2018 para empresas que capturam e armazenam o dióxido de carbono atmosférico.

Os incentivos financeiros podem estar pressionando a indústria de petróleo e gás a abraçar a captura e sequestro de carbono. Mas ainda não se tem uma certeza quanto à eficácia da tecnologia de captura direta de ar, especialmente se tais abordagens estiverem sendo implantadas para justificar a extração de mais petróleo e gás. Afinal, se a redução das pegadas de carbono é o objetivo final, não seria uma transição que se afasta dos combustíveis fósseis mais eficaz?

Após o término da discussão, fiz esta pergunta a um dos participantes do painel. A pessoa não tinha permissão de seu chefe para falar oficialmente, mas nos bastidores, ela disse que não via a demanda por combustíveis fósseis desaparecer em um futuro próximo. Mesmo que sua empresa parasse de extrair petróleo, outros continuariam a fazê-lo, já que as pessoas continuam comprando-o.

Todas as sensações

A sessão final do dia, provocadoramente chamada “Combatendo as Mudanças Climáticas Juntos”, reiterou a ideia de que a indústria de petróleo e gás do Colorado não planeja fazer mudanças fundamentais em breve.

“Exatamente daqui a uma hora você poderá se recompensar com uma bebida”, começou a moderadora, uma defensora do mercado livre chamada Kristin Strohm, que dirige um think tank chamado Instituto do Senso Comum.

Mas antes da libação, Strohm iniciou a grande conversa do dia em torno das mudanças climáticas. “Parece não haver nenhuma indústria poupada enquanto os impulsos para mais regulamentações e mandatos continuam a girar em torno das discussões sobre as mudanças climáticas”, disse ela. “A pergunta que você tem que se fazer é: Essas propostas agressivas relacionadas às mudanças climáticas são mesmo realistas, ou significariam a destruição das empresas, da indústria e até mesmo de nossa economia?”.

Dan Haley, presidente e CEO da COGA, que tinha passado o dia inteiro como anfitrião do evento, entrou na conversa.

“Quando temos conversas sobre mudanças climáticas”, disse ele, “é importante começar com o trabalho que essa indústria já fez para reduzir nossas emissões, e devemos estar orgulhosos disso”.

A pior coisa que o Colorado poderia fazer? Tornar-se a Califórnia, disse Haley, “um estado que diz que os combustíveis fósseis são os vilões, enquanto importam combustíveis fósseis de países estrangeiros porque não conseguem manter sua rede elétrica funcionando durante o verão”.

“Isso aumenta as mudanças climáticas”, alegou ele, já que os combustíveis fósseis de outras nações podem não ser produzidos com o tipo de técnicas limpas utilizadas no Colorado.

O principal problema, disse ele à multidão, tem sido a transmissão de mensagens.

“Tive a sorte de conseguir este emprego há seis anos”, disse Haley, que já havia servido como editor da página editorial do Denver Post. “E eu disse a uma amiga minha que ia fazer isso, e ela disse: ‘Oh, isso é tão bom’. Mas então ela sussurrou: ‘Mas nós não contamos a ninguém’.”

“Isso não funciona”, disse ele. “Se não tivermos orgulho do que estamos fazendo, então nossos amigos, vizinhos e companheiros Coloradans não terão orgulho do que estamos fazendo.”

Sim, Haley continuou: “Temos a ciência do nosso lado… temos os dados e os fatos do nosso lado”, mas mais do que qualquer outra coisa, ele declarou a seus colegas: “Também precisamos vir com emoção”. E precisamos falar sobre como esta indústria é importante para nosso modo de vida no Colorado, todas as coisas maravilhosas que estamos fazendo para contribuir com a humanidade.”

Os colegas painelistas, incluindo representantes das indústrias automobilística, agrícola e imobiliária do Colorado, todos acenaram com a cabeça.

Sim. Emoção.

“As pessoas querem se sentir bem”. Haley estava imparável. “Elas querem sentir que as pessoas estão agindo em seu nome — e estas indústrias estão. Temos que descobrir como contar essa história”.

Finalmente, parecia que estávamos chegando a algum lugar: Talvez aqui mesmo, agora mesmo, as pessoas responsáveis pela metade das emissões de gases de efeito estufa do Colorado revelariam os segredos de como eles planejam convencer o mundo de que eles são realmente aqueles que vão nos salvar do desastre climático.

Mas então, às cinco horas, Strohm, a moderadora, entrou em cena: “Eu sei que estou entre vocês e os coquetéis”!

Reconhecer as mudanças climáticas teria que esperar. Estava na hora de beber.

This article is being copublished with Westword, Denver's independent voice since 1977; and David Sirota’s investigative journalism project, the Daily Poster.

Sobre o autor

Chris Walker é um escritor de Denver, Colorado, especializado em reportagens narrativas extensas.

Raymond Williams foi um visionário socialista

Raymond Williams não teria afirmado ter encontrado todas as respostas. Mas devemos lembrá-lo como um dos escritores socialistas mais atenciosos do século XX.

Peter Hill


Raymond Williams e Frank Kermode, Cambridge, 1981.

Tradução / Raymond Williams nasceu em 31 de agosto de 1921, cem anos atrás, e morreu em janeiro de 1988 aos sessenta e seis anos. Ele seria lembrado como um protagonista da esquerda intelectual na Grã-Bretanha, particularmente no seu país natal, o País de Gales, e como um dos pais fundadores dos estudos culturais.

Ele fez seu nome com uma série de análises detalhadas, criteriosas e teimosamente radicais da literatura, cultura e política, assim como romances e dramas — e é sobretudo este Williams “cultural” que é lembrado na esquerda moderna. Mas, nas últimas duas décadas de sua vida, ele embarcou em uma forma diferente de repensar a teoria e a prática socialista — menos conhecida, mas, no mínimo, mais relevante para os problemas que enfrentamos atualmente.

Raymond Williams foi uma das primeiras vozes a chamar socialistas e ambientalistas para trabalharem juntos, e ele apoiou essa urgência com sua própria pesquisa sobre como um projeto ecossocialista poderia repensar as relações entre o homem e a natureza.

O repensar do projeto socialista de Williams tinha como pano de fundo os anos 70 e 80, um período que viu a lenta fragmentação do pacto social-democrata do pós-guerra, em uma longa crise da economia global capitalista baseada em combustíveis fósseis. Muito demonizados por comentaristas conservadores posteriores como uma era de caos e ditadura sindical, os anos 70 na Grã-Bretanha parecem agora, em retrospectiva, revelar possibilidades de alternativas socialistas criativas. Este foi um período de grande militância da classe trabalhadora, políticas feministas e anti-racistas crescentes e contra-culturas pujantes — assim como as primeiras agitações do movimento ambientalista moderno.

No entanto, a década de 1970 também estava incubando uma dura reação de direita. Em 1979, os Tories de Margaret Thatcher chegaram ao poder, com sua aliança profana de economia neoliberal e nacionalismo britânico reacionário. Durante os anos 80, este projeto político remodelou a Grã-Bretanha de uma economia baseada no carvão e na manufatura para uma economia de petróleo, gás e serviços financeiros. Ao mesmo tempo, esse projeto arruinou as antigas indústrias e comunidades da classe trabalhadora, condenando o movimento trabalhista e o socialismo à obscuridade por uma geração. A derrota da greve dos mineiros de carvão de 1984–85 colocou o selo em uma nova ordem, cujas consequências ainda estamos vivendo.

Socialismo ecológico

Na época da greve dos mineiros, Williams havia feito vários apelos a socialistas e (como eram então conhecidos) “ecologistas” para que unissem forças. Uma convergência entre socialismo e ambientalismo pode parecer senso comum hoje em dia, com um Novo Acordo Verde [Green New Deal] central para tantas agendas de esquerda, mas estava longe de ser óbvio nos anos 70 e 80. Os principais movimentos trabalhistas e socialistas (do Leste e do Oeste) muitas vezes pareciam surdos às preocupações ecológicas.

O movimento ecologista — em uma época anterior ao perigo total das mudanças climáticas ser óbvio — muitas vezes parecia ingenuamente apolítico, apelando à estrutura de poder existente por uma “solução”. Outras vezes, era romanticamente conservador, o que Williams chamou de “uma espécie de elegante arrependimento por um mundo extinto, inocente, mais verde, mais pacífico”; ou mesmo abertamente reacionário, oferecendo soluções malthusianas para a “bomba demográfica” sob o disfarce de um retorno à agricultura de subsistência.

Estas armadilhas mal desapareceram hoje em dia. Williams foi um dos primeiros a defender sua superação em uma “convergência” transformadora entre os movimentos ecológico e socialista. O “socialismo ecológico” — embora “um pouco difícil de pronunciar”, admitiu Williams — seria a chave para enfrentar as crises presentes e futuras.

Olhando para o deserto em processo de desindustrialização em que havia se tornado a Grã-Bretanha da Sra. Thatcher, Williams argumentou que o movimento trabalhista havia caído em uma armadilha. O capitalismo sempre viu tanto a natureza quanto as pessoas como “matéria-prima” a ser “deslocada” e utilizada para a produção lucrativa. Os socialistas e sindicalistas haviam se acomodado com demasiada frequência em apenas argumentar a favor do crescimento econômico: a maneira de resolver a pobreza, ao que parecia, era simplesmente “mais produção”. Mas quando a produção não era mais lucrativa, o capitalismo podia cancelar o contrato e seguir em frente — como estava fazendo nos anos 80 na Grã-Bretanha. A aquiescência do movimento trabalhista ao impulso do capitalismo para produzir mais — independentemente do que estava sendo produzido, ou das consequências ecológicas — tinha deixado a classe trabalhadora industrial diante da perspectiva de “sua própria redundância geral”.

Ao mesmo tempo, para Williams, as críticas ecológicas lançadas em termos de uma ordem pré-industrial “natural” não ofereciam nenhuma alternativa genuína. Este ambientalismo nostálgico, pensava ele, evitou não só as duras questões sociais e econômicas, mas também as ecológicas, pois era o mundo capitalista moderno que teria que ser transformado para garantir uma existência humana e natural sustentável.

Entre campo e cidade

A abertura de Raymond Williams aos argumentos do movimento ecológico foi baseada, em grande parte, em seus laços de longa data com as áreas e comunidades rurais. Ele havia crescido em uma vila na fronteira galês-inglesa — uma área agrícola, mas próxima aos grandes campos de carvão do sul do País de Gales. Williams manteve laços estreitos com esses distritos; todos os seus seis romances estão pelo menos parcialmente ambientados no sul do País de Gales e seu “país de fronteira” com a Inglaterra, e frequentemente mostram uma preocupação próxima com os detalhes das interações homem-natureza, incomum entre as pessoas de esquerda na Grã-Bretanha.

Williams sempre reagiu fortemente contra as tentativas urbanas — e socialistas urbanas — de se livrar do campo, ou da agricultura, tratando-os como marginal e irrelevante. Por outro lado, ele fez uma dura crítica às romantizações de direita do “campo” como um paraíso natural, pré-industrial, esvaziado do povo trabalhador que, tantas vezes, ajudou a moldá-lo.

Em O Campo e a Cidade (1973), sem dúvida sua maior contribuição, Williams traça essas oposições ao longo da história da cultura literária inglesa, no contexto do crescimento do capitalismo na agricultura e na indústria. Ele conclui ligando essa história às crises contemporâneas: esgotamento de recursos e destruição ambiental, mas também as revoluções do Terceiro Mundo que haviam levado as populações rurais à vanguarda da luta social. “O campo” e seus problemas não podiam ser descartados como arcaicos ou marginais — não mais do que hoje, como quando os agricultores na Índia provocaram o que pode ter sido a maior greve da história.

Estes temas ressoavam fortemente com a identidade galesa de Williams, que ele estava redescobrindo nas últimas duas décadas de sua vida. Mais uma vez, contrariando a tendência das ortodoxias de esquerda de sua época, ele insistiu na importância do lugar e da comunidade nas visões do socialismo. Ele olhou além dos Estados-nação estabelecidos como a Grã-Bretanha, não apenas para abraçar o internacionalismo, mas também para reconsiderar a valência política de regiões e nações menores como o País de Gales.

Contra o nacionalismo britânico reacionário de Margaret Thatcher e a Guerra das Malvinas, ele argumentou que um estado-nação como a Grã-Bretanha era “ao mesmo tempo pequeno e grande demais para uma política útil”. Muito pequeno porque não poderia ser realmente “independente” em um mundo capitalista globalizado, e só poderia tentar encobrir sua subordinação a forças maiores com retórica nacionalista. Muito grande porque não poderia representar o “desnível” e a “diversidade” de seus componentes — País de Gales, Escócia, Londres ou Liverpool. O argumento soa contemporâneo após o Brexit.

No entanto, a solução de Williams não foi a de buscar unidades “soberanas” cada vez menores. Ele preferiu “explorar novas formas de sociedades variáveis” onde diferentes tipos de decisões e interações democráticas ocorreriam em diferentes escalas. Isto pode soar estranhamente utópico para a esquerda de hoje, ainda geralmente confinada dentro de estruturas nacionais estabelecidas — mas é um horizonte que fazemos bem em não perder de vista.

Repensando o materialismo

A convergência do socialismo e da ecologia forçou Williams a repensar um dos principais fundamentos filosóficos do marxismo: o materialismo. Marx e Engels haviam fundado o materialismo histórico, oferecendo uma compreensão da história humana que começou a partir “da produção material da própria vida”, e não de “formas de consciência”.

Eles estavam construindo, mas também criticando, formas anteriores de materialismo, como as dos pensadores do iluminismo francês ou a de Ludwig Feuerbach, que Marx e Engels viam como abstratas, “mecânicas”, e insuficientemente históricas. Em vez disso, eles explicaram a história humana em termos de um processo dialético, no qual o “ser social” (ou vida material) determina a “consciência social”.

A reelaboração desta herança por Williams foi em parte motivada pelo marxista italiano Sebastiano Timpanaro, cuja polêmica lúcida On Materialism [Sobre o materialismo] apareceu em inglês em 1975. Timpanaro acusou o “Marxismo Ocidental” mainstream — Hegelianos e a Escola de Frankfurt, por um lado; Althusser e marxistas estruturalistas, por outro — de ter abandonado o materialismo.

Ele argumentou que essas tendências, com sua ênfase esmagadora na cultura e filosofia, e distanciando-se das ciências naturais, estavam oferecendo um idealismo velado ao mesmo tempo em que afirmavam adotar o materialismo histórico. Contra isso, ele reafirmou a centralidade do materialismo para o marxismo, que deveria reconstruir suas ligações com as ciências naturais e reconhecer o poder restritivo da “natureza” sobre toda a história humana.

Williams recebeu o trabalho de Timpanaro com entusiasmo, mas também procurou levar a investigação mais longe. Ele concordou com a reafirmação de Timpanaro do valor do materialismo, como ele fez com grande parte de sua crítica ao marxismo ocidental. E ele apreciou a refutação de Timpanaro da noção triunfalista do “domínio da natureza”, que o marxismo havia tomado emprestado do pensamento burguês do século XIX. Mas ele discordava da alternativa de Timpanaro, um pessimismo materialista que insistia em restrições físicas inescapáveis: “a opressão do homem pela natureza”. A perspectiva trágica de Timpanaro, e suas lembranças da extinção definitiva da espécie humana, prenunciam muito do pensamento ambientalista distópico dos dias de hoje, pois enfrentamos uma crise ecológica em uma escala pouco suspeita nos anos 70.

A resposta de Williams olhou para além das “categorias abstratas” de “natureza” e “homem” para investigar de forma mais aberta e detalhada “os processos intrincados e constitutivos” das relações entre homem e natureza. “Quando dizemos natureza”, perguntou Raymond Williams, “estamos incluindo a nós mesmos?”. As forças físicas, ele nos lembra, não são simplesmente externas, mas, na verdade, constituem a vida humana, definindo nossas possibilidades, bem como nossos limites. E muito do que muitas vezes é visto como “natureza”, ou seja, separado dos humanos, foi profundamente moldado pelo esforço humano — embora quase sempre “dominado” ou controlado.

Diante dessas dificuldades em detalhes, o pensamento de Williams poderia sugerir não um pessimismo trágico, mas um cauteloso otimismo da vontade. Este repensar forneceu a base para seu apelo por uma política ecossocialista: uma política que reconhecesse toda a extensão dos limites ecológicos, mas que colocasse as pessoas — todas as pessoas — em primeiro lugar. E como tal, levou a sério a capacidade dos humanos de intervir e mudar suas relações com a “natureza” — tanto dentro como fora deles mesmos.

Graças a esta ênfase nas interações ser humano-natureza, Williams também estava atento contra o uso indevido do materialismo: tentativas de lançar a política humana em termos de supostos “fatos” biológicos ou técnicos fixos. Ele argumentou vigorosamente contra o darwinismo social, que oferece a competição capitalista como ordenada biologicamente, e contra o determinismo tecnológico, que afirma que as forças técnicas ditam as formas da cultura humana (ambas as doutrinas têm visto desde então um grande ressurgimento, com o clímax neoliberal e a ascensão do Vale do Silício).

Poderíamos até aplicar os argumentos de Williams a outros “maus materialismos”, como Sophie Lewis os chama: “feminismos radicais” que impõem categorias biológicas essencializadas como armas contra pessoas oprimidas. Tentativas de consagrar o materialismo como um “sistema generalizado fechado” estavam fora de questão, pensou Williams — pois o valor único do materialismo está em “sua rigorosa abertura às provas físicas”. Todas as suas categorias estão “sujeitas a uma revisão radical” — pela investigação física e pela contestação social de significados e conceitos. O “empreendimento materialista” está, portanto, se movendo continuamente “para além de um ‘materialismo’ após outro”.

Isto ressoa com um apelo que Williams já tinha feito: imaginar as futuras sociedades socialistas como mais complexas e diversas do que a ordem capitalista, e não como mais simples ou mais uniformes. Ele criticou, por estes motivos, as utopias socialistas anteriores, mas também o “socialismo realmente existente” de sua época, no Bloco Oriental.

Nesta visão, certamente seria necessária uma ruptura decisiva com o capitalismo, mas a “transição para o socialismo” tornou-se menos a criação de uma “ordem” socialista com uma abordagem uniformizada e mais a abertura de um horizonte de vida social cada vez mais “ativo, complexo e móvel”. Nem o materialismo nem o socialismo, para Williams, devem ser congelados em formas fixas em determinados pontos de seu desenvolvimento — ambos devem permanecer abertos à negociação democrática, à argumentação e à evidência.

De produção à subsistência

Williams estava disposto a levar seu questionamento ao coração do próprio materialismo histórico. Suas “formulações recebidas” tinham sido, ele pensava, “ao mesmo tempo historicamente limitadas e insuficientemente materialistas”. Williams nunca tinha tido medo de desafiar as ortodoxias marxistas, mantendo um firme compromisso com o socialismo na prática e na teoria.

Ele questionou por muito tempo a noção de cultura como uma “superestrutura” determinada por uma “base” econômica — uma forma popular, voltando às formulações de Marx e Engels, de interpretar a proposta fundadora do materialismo histórico, de que o ser social determina a consciência social.

Nos anos 70 e 80, como vários antropólogos socialistas, historiadores e feministas, Williams estava procurando maneiras mais complexas de entender esta afirmação. A teoria cultural de Williams afirmava não apenas que a cultura em si é material, mas também que “meios de comunicação” — a mídia, as telecomunicações, os precursores da internet — desempenhavam um papel importante como “meios de produção” em seu próprio direito.

Em seus últimos escritos, ele foi além disso novamente, para desafiar o conceito central marxista de “modo de produção”. O impulso para dominar a natureza e “produzir” a partir dela quantidades abstratas de bens era especificamente capitalista, argumentou ele em Towards 2000 [Rumo a 2000, sem tradução em portugués] (1983). O foco na “produção” também era mistificador: suas desvantagens eram embaralhadas como “subprodutos” ou “efeitos colaterais”, e áreas inteiras de sustento humano — como o trabalho de nutrição e cuidado — eram relegadas a um status secundário.

A orientação para a produção acabava vendo tanto as pessoas quanto a natureza como “matéria-prima” a ser explorada. Mesmo quando regimes de socialismo de estado ou movimentos trabalhistas tentaram desacoplar a produção do lucro, eles ainda tratavam a “natureza” como algo a ser dominado — e geralmente acabavam vendo as pessoas da mesma forma. Um verdadeiro ecossocialismo exigiria uma “mudança radical [...] na própria ideia de produção” — nas relações dos seres humanos com a natureza, bem como uns com os outros.

Ao invés de “produção”, a alternativa de Williams seria organizada em torno de “subsistência”. Este conceito apontava, ele escreveu, para “um modo de vida e não uma forma de produzir”, mas era ao mesmo tempo “totalmente prático”, centrado em torno de “sociedades autogeridas, auto-renováveis … em um mundo vivo”. A orientação para a “subsistência” era antiga, datada de antes da ênfase capitalista na transformação e exploração da natureza, mas Williams rejeitava qualquer nostalgia de economias pré-capitalistas “naturais” ou “morais”.

Ao invés de visões pré-lapsarianas, Williams sugeriu uma escolha clara das intervenções humanas que “sustentam e melhoram a vida”, em comparação com as prejudiciais. A “subsistência” torna-se então uma forma de viver dentro de limites materiais rígidos — como o “crescimento” capitalista não poderia — em um mundo de recursos finitos e dependência das condições ecológicas. Mas também se tornou uma forma de repensar a pergunta feita por socialistas como William Morris: Que modo de vida, que relações humanas, estamos criando?

Raymond Williams não teria afirmado ter encontrado todas as respostas. Mas como um dos escritores socialistas mais atenciosos do século XX, suas perguntas e propostas ainda hoje podem nos desafiar. O ecossocialismo está agora firmemente na agenda, mas a tarefa diante dele parece ainda mais desafiadora do que nos anos 80.

À medida que a crise climática se aprofunda, as tentações contra as quais Williams alertou estão muito presentes: por um lado, fechar os olhos para nossa situação ecológica enquanto depositamos nossas esperanças no “crescimento” capitalista ou no progresso tecnológico; por outro, um retrocesso no desespero apocalíptico, a suposição de que o desastre ecológico irá necessariamente encerrar todos os projetos humanos. O repensar do materialismo — um projeto sempre provisório, rigorosamente aberto a provas e argumentos — talvez nunca tenha sido tão necessário.

Sobre o autor

Peter Hill é historiador especialista no Oriente Médio moderno na Northumbria University, em Newcastle upon Tyne, no Reino Unido. Seu primeiro livro, Utopia e Civilização na Nahda Árabe, foi publicado pela Cambridge University Press em 2020.

29 de agosto de 2021

A semana de trabalho de 35 horas da Islândia funcionou. Pode funcionar aqui também.

Entre 2015 e 2019, a Islândia embarcou em dois testes massivos para testar a ideia de uma semana de trabalho mais curta. O resultado foi um sucesso surpreendente para seus trabalhadores - e um modelo que merece ser replicado em outro lugar.

Uma entrevista com
Guðmundur D. Haraldsson

As pessoas relaxam na Lagoa Azul da Islândia. (José Nicolas / Corbis via Getty Images)

Entrevistado por
Luke Savage

Graças, em grande parte, à sua tradicional organização sindical, a Islândia deu início a dois grandes períodos de teste de semanas de trabalhos mais curtas. A premissa destes testes, que começaram entre 2015 e 2017, era mensurar o que aconteceria se trabalhadores e trabalhadoras tivessem uma redução de sua carga horária de trabalho sem prejuízo de seu salário e rendimentos. O resultado, como se viu, foi um incrível sucesso em todos os sentidos, e um modelo que, desde então, se tornou realidade para aproximadamente 90% dos trabalhadores islandeses.

Um relatório publicado em junho, conjuntamente pelo think tank britânico Autonomy e a organização islandesa Alda, chamado Going Public: Iceland’s Journey to a Shorter Working Week [em tradução livre Vindo à Público: A Jornada da Irlanda para uma Semana de Trabalho Mais Curta], trouxe estudos sobre as suas mecânicas, descobertas e resultados. Nesta entrevista, conversamos com o co-autor deste relatório, Guðmundur D. Haraldsson, onde ele conta à Jacobin sobre os períodos de teste, o que eles revelaram e o potencial do modelo que pode ser replicado em qualquer parte do mundo.

Luke Savage

Vamos começar falando um pouco sobre o pano de fundo destas mudanças. Como foram, exatamente, estes testes e como surgiu a idéia, em si, de se testar de fato uma semana de trabalho mais curta?

Guðmundur D. Haraldsson

Os testes foram, na verdade, feito em duas partes: um em Reykjavík – o maior município da Islândia – e outro realizado pelo governo islandês. Muitos dos participantes passaram de uma semana de trabalho de 40 horas para 35 ou 36 horas semanais. O primeiro teste foi iniciado em 2015 e o outro em 2017. Reykjavík iniciou o seu antes do teste realizado pelo governo. E, embora a cidade tenha conduzido seu teste em conjunto com a BSRB, uma confederação de sindicatos, foi acordado também na Câmara Municipal de Reykjavík o início dos testes – com todos os votos a favor.

Houve discussão na Islândia sobre a redução da jornada de trabalho – da qual a Alda participou – nos anos que antecederam os testes. A BSRB, outras confederações e sindicatos também participaram e incentivaram o mesmo. Parecia que os membros do parlamento estavam satisfeitos com a ideia de fazer um teste para ver se isso tinha um efeito positivo sobre as equipes, locais de trabalho e serviços.

Luke Savage

A escala destes testes foi bem significante, não? Que tipos de locais de trabalho foram incluídos inicialmente?

Guðmundur D. Haraldsson

Foi um primeiro teste em escala realmente grande. Os testes acabaram envolvendo mais de 2.500 trabalhadores – mais de 1% de toda a população ativa da Islândia. O teste de Reykjavík começou pequeno, mas depois evoluiu para uma escala muito maior. Em última análise, os testes abrangeram não apenas escritórios, mas também creches, instalações de manutenção da cidade, lares para pessoas com várias deficiências e necessidades especiais e muito mais. O gabinete do prefeito da cidade de Reykjavík também foi incluído.

Luke Savage

O relatório do qual você foi coautor detalha os resultados destes testes, que foram realmente extraordinários. Quais foram as conclusões em termos de produtividade e qualidade de serviço? E o que os próprios trabalhadores e trabalhadoras acharam da experiência?

Guðmundur D. Haraldsson

Os serviços não foram afetados por causa dos testes: permaneceram os mesmos. No entanto, novas estratégias tiveram que ser desenvolvidas para alcançarmos isso, e isso foi feito com sucesso. Diversas análises mostram que a qualidade dos serviços não foi afetada.

O impacto sobre os próprios trabalhadores foi positivo: o bem-estar aumentou em uma série de indicadores, desde o estresse percebido e o esgotamento da saúde até um melhor equilíbrio entre trabalho e a vida pessoal. Os trabalhadores também indicaram mais felicidade, tanto no trabalho quanto em casa, menos estresse e tensão no lar e tiveram mais tempo com a família. Para muitos, ter mais tempo todos os dias significava muito.

Luke Savage

O contexto político e econômico na Islândia é, talvez, uma das razões pelas quais o país conseguiu realizar esses testes e, desde então, tornou-se capaz de tornar a semana de trabalho mais curta uma realidade para a maioria dos trabalhadores: em 2019, a densidade sindical era de 90% e a população é pequena e bastante concentrada. Apesar desses fatores, você diria que há um bom motivo para acreditar que o exemplo da Islândia de uma semana de trabalho mais curta pode ser reproduzido em qualquer outro lugar?

Guðmundur D. Haraldsson

Acredito que os testes neste sentido podem ser iniciados em qualquer lugar onde haja interesse significativo em fazê-lo, seja do governo local, governo nacional, empresas, corporações ou organizações sem fins lucrativos. Deve-se notar que também houve outros testes menores aqui na Islândia, executados por empresas privadas, que começaram puramente por seu interesse em testar horas mais curtas (esses testes também foram um sucesso). O que é necessário é o interesse e o compromisso em preparar um teste, conduzi-lo e envolver as partes interessadas – trabalhadores, gerentes, etc. – para desenvolver as boas práticas no local de trabalho.

O que é necessário também é um entendimento compartilhado de que um teste bem-sucedido de menos horas pode levar a benefícios para todos – trabalhadores, gerentes, o próprio local de trabalho e assim por diante.

Colaboradores

Guðmundur D. Haraldsson é co-autor do relatório "Going Public: Iceland’s Journey to a Shorter Working Week", publicado no início deste verão pela Alda and Autonomy.

Luke Savage é colunista da Jacobin.

27 de agosto de 2021

O que nos atrai para a escuridão reacionária de Duna?

A última adaptação cinematográfica de Duna, a série cult de romances de ficção científica de Frank Herbert, será lançada no próximo mês. Com a sua mistura frequentemente reacionária de cinismo político, catastrofismo ecológico e orientalismo sinistro, Duna continua estranhamente atraente para o público de esquerda.

Chris Dite

https://jacobin.com/2021/08/dune-herbert-science-fiction-conservatism


Timothée Chalamet como Paul Atreides na adaptação de Duna de Denis Villeneuve para 2021. (Chiabella James/Warner Bros. Pictures)

https://jacobin.com.br/2024/03/o-que-nos-atrai-para-a-escuridao-reacionaria-de-duna/

A nova adaptação do romance de ficção científica de 1965 de Frank Herbert, Duna, está cada vez mais perto. O aguardado filme do diretor canadense Denis Villeneuve deve chegar às telas no próximo mês. Ansioso por atrair o público do cinema, o distribuidor do filme tenta desesperadamente apresentá-lo como algo na linha Marvel, enquanto as legiões de fãs do romance travam uma luta espiritual online para defender as credenciais de “grande arte política” da franquia.

Duna é uma exploração psicodélica, épica e envolvente das lutas pelo poder e do controle social. Também é muitas vezes desajeitado e politicamente nebuloso. Não é muito difícil ver como o romance se tornou extremamente popular através de boca-a-boca em meados da década de 1960. Ele toma emprestado loucamente de quase todas as principais religiões, com uma ênfase obsessiva na experiência interior mística e transcendental.

O seu enredo gira em torno de lutas imperiais cruéis por quotas de mercado e em lutas violentas de libertação. Para os adeptos originais da contracultura de Duna – muitos dos quais simultaneamente ingeriam novas drogas muito loucas, romantizavam os movimentos de independência argelinos e vietnamitas e liam novas traduções acessíveis dos Upanixades e do Tao te Ching – deve ter parecido maravilhosamente presciente.

O fato de a franquia ter permanecido consistentemente popular desde então – ainda que não muito bem servida por adaptações cinematográficas anteriores – sugere que algo nela ainda ressoa. Se isso é cinismo político, mitologia do salvador branco, sincretismo consumista, catastrofismo ecológico, orientalismo sinistro ou alguma combinação de tudo isso e muito mais, depende de com quem você fala.

"Governos mentem"

Os avós e pais do autor Frank Herbert faziam parte do movimento socialista cooperativo da era Eugene Debs. O próprio Herbert, porém, rejeitou essa política coletivista em favor de um individualismo machista e conservador. Na casa dos trinta, ele trabalhou para uma série de políticos e candidatos republicanos e tornou-se cada vez mais antigovernamental.

Após sua publicação, Duna, no entanto, tornou-se popular entre um grupo de estudantes hippies de esquerda, mas o próprio Herbert nunca fez parte desse estrato nem se relacionou com ele. Por exemplo, uma de suas influências ao escrever o romance foi S. I. Hayakawa, um acadêmico de semântica. O governador da Califórnia, Ronald Reagan, nomeou especificamente Hayakawa presidente da Universidade Estadual de São Francisco para acabar com uma greve liderada pela Frente de Libertação do Terceiro Mundo, pela União dos Estudantes Negros e pela Federação Americana de Professores.

Hayakawa e Herbert se davam bem, e Herbert foi convidado para ajudar a enfraquecer a greve conduzindo seminários de escrita em 1968. Ele concordou prontamente.

Após o sucesso de Duna, ele trabalhou como correspondente da Guerra do Vietnã para o Seattle Post-Intelligencer. Apesar de sua oposição aberta à guerra, Herbert apoiou abertamente Richard Nixon. Isto não era tão contraintuitivo como pode parecer: a principal convicção política de Herbert era que “governos mentem”. Ele argumentou perversamente que os crimes do presidente foram úteis na medida em que convenceriam os americanos a confiar menos no governo.

Herbert pode ter sido contra a Guerra do Vietnã, mas não era amigo das lutas de libertação anticolonial. Ele estava preocupado com a cultura e o sofrimento dos nativos americanos, mas mesmo isso era filtrado pelo que sua família chamava de sua autoconcepção de “grande especialista branco”.

Após a publicação de Duna, isso se transformou em uma fixação semelhante à de Quentin Tarantino na ideia de um vingador indiano que seus amigos da etnia quileute tentaram persuadi-lo de que era um produto dos brancos e tinha pouca conexão com a cultura deles. Na mente de Herbert, este anjo indígena da vingança tinha menos a ver com a igualdade radical e mais com um julgamento divino sobre a decadência do governo e da sociedade brancos.

Herbert também era assustadoramente homofóbico, equiparando a homossexualidade à violência e ao colapso da sociedade. Ele deu um sermão a seu filho Brian sobre como a “energia homossexual reprimida” poderia ser aproveitada pelos exércitos para fins assassinos. Em um poema épico inédito, Herbert escreveu que

Homossexuais,
Burocratas
E valentões
Crescem antes
Que todos, um a um, caiam na escuridão.

Pistas de todas essas visões são evidentes ao longo dos romances de Duna. Quase todos os coletivos da série são delirantes, seus salvadores políticos são grandes vilões disfarçados, seus povos indígenas são um castigo divino para as elites homossexuais brancas de desenho animado. Mas o tom também é escorregadio. Embora alguns personagens sejam ridiculamente didáticos, suas lições muitas vezes resistem a uma categorização ideológica clara, além da desconfiança com relação aos governos.

Uma base de fãs dividida

A base de fãs contemporânea de Duna é infamemente obstinada. Uma verdadeira galeria de vilões é apaixonada pelo romance, embora se fixem em aspectos diferentes.

Elon Musk tuíta citações do livro ao lado de fotos de seus foguetes SpaceX, sem dúvida tiradas com a ideia de um futuro onde as pessoas comuns juram lealdade a grandes homens ricos e às suas empresas. Sua parceira cada vez mais conservadora, Grimes, lançou um álbum conceitual baseado no romance (é tudo composto por samples orientais, artimanhas femininas místicas e vagas alusões a um todo maior).

O fascista Richard Spencer procura publicamente as mensagens ocultas de Duna que incentivem à guerra racial. O edgelord libertário Tim Ferris é claramente atraído por sua representação de governos.

Muitos liberais suaves também adoram. Stephen Colbert está apaixonado, envolvido nos esforços promocionais do filme e admite ter tido fantasias a respeito de ser Paul Atreides quando adolescente. A cantora da posse de Biden, Lady Gaga, claramente gosta das Bene Gesserit, referenciando o infame teste do Gom Jabbar do romance em um de seus videoclipes.

Duna tem uma voz muitas vezes reacionária, mas o romance também lança um feitiço estranho: um público de mente aberta (se não decididamente revolucionário) sempre o achou atraente e, francamente, muito divertido. É um prazer culposo para a esquerda mais radical, e não há vergonha nisso. Ninguém anseia por um retorno a um realismo socialista banal e insípido. A ficção de gênero reacionário pode ser igualmente esclarecedora — embora certamente não da maneira que seus autores pretendem.

Frank Herbert poderia querer que olhássemos para suas obras e nos desesperássemos com a humanidade, mas ele já se foi há muito tempo. Para ter alguma clareza, às vezes um passeio assustador pela visão de mundo de alguém que você nunca gostaria de ver no comando é o que basta.

Por exemplo, não é apenas divertido vivenciar o apocalipse através do terror sobrenatural de Selma Lagerloff, Os Milagres do Anticristo, no qual o Falso Profeta é socialista. Também fornece informações sobre como a direita capitalista do século XIX compreendia o cenário do crescente conflito de classes.

O Agente Continental, de Dashiell Hammett (escrito logo após o período em que trabalhou como agente fura-greves para a agência de detetives Pinkerton) nos permite passear pela autoimagem fantasiosa de um pistoleiro de aluguel capitalista sem – se possível – sucumbir à mesma ilusão. O livro de Herbert faz algo semelhante em relação à visão de mundo cínica dos conservadores que iriam construir o neoliberalismo.

"Coragem e ética"

De sua parte, o diretor Denis Villeneuve se esforçou para considerar a relevância contemporânea do filme como amplamente ecológica. Ele argumenta, como muitos fãs fizeram, que Duna é

sobre como os humanos precisam conquistar o nosso destino para mudar o mundo, e é uma espécie de apelo à ação para mudarmos as coisas, especificamente para os jovens… precisamos de mudar nosso modo de vida. Vamos precisar mudar a nossa forma de lidar com a natureza e com o mundo, e isso exige muita coragem e ética. E acho que Duna é um chamado para isso.

A proposta ecológica de Villeneuve é um ponto de discussão útil, considerando que o protagonista de Duna, em última análise, responde a este apelo implementando um fascismo imperial que abrange toda a galáxia, que mata bilhões e escraviza muitos mais.

À medida que a extrema-direita se torna lentamente mais experiente na incorporação da catástrofe climática na sua visão do mundo e na sua política prática, a questão de saber até que ponto a esquerda responde de forma convincente a este apelo à mudança é exatamente o “o que fazer” do nosso tempo. Frank Herbert, apesar de todos os seus defeitos, foi inflexível ao afirmar que o messianismo, o fascismo e o imperialismo não eram a resposta certa ao desastre ambiental. Nisso, pelo menos, a maioria de nós pode concordar.

Colaborador

Chris Dite é professor e membro do sindicato.

26 de agosto de 2021

Várias propostas de Biden podem ser aplicadas no Brasil com adaptações

Presidente americano mudou o eixo da discussão econômica ocidental

Nelson Barbosa


O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden. Jim Watson/AFP

Estamos na última semana de tensão pré-orçamentária e o governo já soltou vários balões de ensaio sobre o Ploa (Projeto de Lei Orçamentária Anual) de 2022. Como muito pode acontecer durante o fim de semana, prefiro esperar o documento oficial para comentar como Bolsonaro e Guedes pretendem fechar o atual mandato mantendo o teto Temer na teoria, mas furando-o na prática.

Enquanto o Ploa não vem, aproveito a oportunidade para voltar a um tema que acabou esquecido diante de nossa confusão econômica e institucional: o intenso debate sobre política econômica que está ocorrendo nos EUA.

Há alguns meses apontei que o governo Biden mudou o eixo da discussão econômica ocidental, propondo um papel mais ativo do Estado na redução de desigualdades, promoção de investimento, incentivo à inovação e geração de emprego.

Várias das propostas de Biden podem ser aplicadas, também, no Brasil, desde que façamos as adaptações necessárias.

Para saber quais adaptações, eu e André Roncaglia, professor da Unifesp, convidamos vários economistas para analisar a política econômica de Biden. O resultado sairá nas próximas semanas, no livro: “Bidenomics nos Trópicos”, pela editora da FGV.

Em linhas gerais, a agenda Biden recuperou quatro princípios de política econômica que haviam sido desprezados durante o predomínio neoliberal nos EUA (de 1980 a 2020), quais sejam:

1) Ressurreição keynesiana: na saída de uma grande recessão, vale a pena gastar hoje e tributar depois (“spend and tax”), pois os juros reais são baixos e o próprio crescimento da economia paga parte da emissão de dívida, haja vista que o produto potencial se adequa à demanda efetiva a longo prazo (histerese).

2) Retorno da política industrial: há complementaridade entre Estado e mercado na geração de inovações e aumento de produtividade, uma vez que o apoio público à pesquisa básica está na base de várias “inovações privadas”, como demonstrou o rápido desenvolvimento de vacinas contra a Covid.

3) Estado de bem-estar social verde: o aquecimento global, a mudança demográfica e o aumento da desigualdade de renda e riqueza requerem uma atualização do papel do Estado na economia, com mais peso para investimentos e regulação pró-sustentabilidade ambiental e inclusão de serviços públicos universais de apoio às famílias no conceito de infraestrutura econômica.

4) Desigualdade excessiva é risco: a desoneração da renda do capital e a liberalização de mercados concentram os ganhos do crescimento no topo da distribuição de renda, o que compromete a sustentabilidade do crescimento devido ao aumento de desigualdade de oportunidades e ao acirramento de conflitos políticos, incluindo risco para manutenção da democracia. Cabe ao Estado corrigir os excessos do mercado, colocando não só um piso para a pobreza mas também um teto à concentração de renda e riqueza.

Todos os princípios acima também podem e devem guiar a política econômica brasileira. Sim, temos restrição fiscal e cambial muito mais estrita do que os EUA. Não é possível fazer tudo ao mesmo tempo, mas é possível fazer várias coisas com o espaço fiscal de que dispomos, vide o “kit reeleição” em construção por Bolsonaro para 2022.

Traduzindo do economês, se há dinheiro para aumentar emendas do centrão, elevar salário de militares e desonerar IR da classe média, teoricamente também haveria recurso para fazer outras coisas. Para saber o que seria uma agenda mais progressiva, convido o leitor a dar uma olhada no livro que eu e André organizamos.

Sobre o autor

Professor da FGV e da UnB, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento (2015-2016). É doutor em economia pela New School for Social Research.

25 de agosto de 2021

Para proteger a democracia, defender a educação pública

Os Estados Unidos nunca cumpriram totalmente a promessa de educação pública ou governo democrático. Não é por acaso: ao longo da história dos EUA, escolas públicas fortes têm sido inseparáveis de uma democracia forte.

Derek W. Black


(Jose Luis Pelaez Inc / Getty Images)

Traçando a história da educação pública na América ao lado da expansão e contração dos direitos políticos, Schoolhouse Burning: Public Education and the Assault on American Democracy, de Derek W. Black, é uma defesa nova e necessária da escola pública. Exaustivo, mas acessível, o livro desenvolve concretamente um argumento freqüentemente encontrado apenas no abstrato: que a democracia política e a educação pública vivem e morrem juntas, e a escolha é nossa.

Black é professor de direito constitucional na Escola de Direito da Universidade da Carolina do Sul. Ele falou com Meagan Day da Jacobin sobre a evolução histórica da educação pública americana e os formidáveis ​​novos obstáculos - na forma de cortes drásticos na educação e privatização das escolas - para o cumprimento da promessa de conhecimento e direitos para todos.

Meagan Day

Os chamados “reformadores da educação” usam o que identificam como falhas do sistema público de educação para justificar sua promoção de alternativas como escolas charter e vouchers. Quão “quebrado” está nosso sistema de educação pública, realmente?

Derek W. Black

Quando se trata de educação pública, existem boas e velhas ideias, mas não existem realmente bons velhos tempos. A educação pública é uma das ideias mais audaciosas que este país já teve, e em nenhum momento de nossa história nós já percebemos isso completamente. Em vez de dizer que está quebrado, acho que é mais correto dizer que fizemos progressos e demos passos significativos em frente, mas ainda temos um longo caminho a percorrer.

Podemos e devemos conversar sobre os motivos pelos quais algumas escolas não estão atendendo às nossas expectativas, incluindo ressegregação, estratificação socioeconômica e financiamento desigual. Mas embora tenhamos escolas com baixo desempenho, também é verdade que metade a três quartos de nossas escolas estão indo muito bem. Portanto, quando as pessoas dizem que nossas escolas estão falidas, essa caracterização se aplica a uma parte particular delas, não à educação pública como um todo.

Realmente nos voltamos para a linguagem do fracasso com a Lei No Child Left Behind. Algumas pessoas dirão que seu objetivo principal era pintar as escolas públicas como fracassos, a fim de justificar a adoção de alternativas. Na verdade, muitas pessoas apoiaram a coleta de dados para provar que os estados não estavam cumprindo com suas responsabilidades para com os alunos desfavorecidos e para forçá-los a agir. Mas seja qual for a intenção, o resultado foi essa linguagem do fracasso.

Almoço na Escola Primária Nettelhorst em Chicago, Illinois. (Tim Boyle / Getty Images)

Ao mesmo tempo, as escolas têm sido chamadas a consertar cada vez mais os problemas da sociedade - falta de moradia, saúde, fome - mas não foram investidas com os recursos necessários para resolvê-los. Quando eu era criança, as crianças pobres almoçavam, ao passo que hoje em dia as crianças pobres às vezes recebem três refeições por dia na escola, inclusive nos fins de semana. As escolas muitas vezes lutam para cumprir essas responsabilidades e podem cada vez mais parecer estar falhando porque novas expectativas estão sendo impostas a elas para compensar os problemas da sociedade em geral.

Meagan Day

Embora as escolas estejam sendo solicitadas a fornecer mais serviços sociais, elas também estão sofrendo com cortes drásticos no orçamento. O que aconteceu com o financiamento do estado para a educação pública durante a Grande Recessão?

Derek W. Black

Durante a Grande Recessão, os estados levaram uma machadinha ao orçamento da educação pública. Vimos a Flórida e a Carolina do Norte, por exemplo, cortando mil ou mais dólares por ano por aluno, de modo que as escolas nesses estados perderam cerca de três mil dólares ao longo de três anos, o que representou cerca de 25% de seu financiamento .

Muitos defensores da educação pública pensaram que isso simplesmente tinha que ser feito e disseram "Claro, vamos fazer algumas concessões, estamos todos juntos nisso." Mas, à medida que a recessão passou e os dólares para o setor público voltaram, o que vimos foi que todos os outros receberam seus recursos de volta, mas as escolas públicas não. Ou, em alguns casos, esses recursos nunca foram devolvidos, em vez disso doados na forma de impostos mais baixos.

Depois da recessão, havia um espaço ainda menor para a educação pública nos governos estaduais. Isso persistiu por cerca de uma década e ainda persiste. Cerca de metade dos estados deste país fornecem menos em termos de dólares reais por aluno do que antes da Grande Recessão. Isso, é claro, exacerbou as condições a que as pessoas se referem quando falam sobre o colapso das escolas públicas.

Como os Estados Unidos desenvolveram um sistema de educação pública para começar?

Derek W. Black

“Sistema” pode ser um exagero para o que era no início. Era mais como uma ideia de educação pública, que era simplesmente chamada de "escolas".

Em 1785, o Congresso dos Estados Unidos aprovou um decreto fundiário que lançou as bases para a expansão fora das colônias. Dizia que cada cidade no restante dos Estados Unidos, a oeste da Pensilvânia, seria dividida em 36 lotes de tamanhos iguais. Um lote seria reservado para uma escola e os lotes na periferia dessas cidades seriam usados ​​para gerar recursos financeiros para financiar essas escolas.

Essa lei se aplicava a cidades fora das colônias originais, o que deixou as colônias tentando se recuperar. Nas cidades do Norte, já existiam algumas escolas públicas, mas a tarefa era continuar a desenvolvê-las e estendê-las às comunidades rurais. O Sul realmente não tinha escolas públicas e naquela época não estava realmente interessado em desenvolver nenhuma. Portanto, no final do século XVIII e no início do século XIX, a história parece diferente dependendo de qual área do país estamos falando.

A Guerra Civil e, em particular, suas consequências realmente aceleraram o crescimento da educação pública. Em seu livro, você escreve: “Entre 1865 e 1868, a nação embarcou no projeto educacional mais agressivo antes ou depois, virando rapidamente o mundo da educação de cabeça para baixo”. Que desenvolvimentos críticos na educação ocorreram durante a Reconstrução, e quão duradouro foi seu legado?

Derek W. Black

Eu me concentrei naquela época como a mais importante e formativa na história da educação pública na América. Tínhamos algumas ideias em 1785, mas a nação estava apenas começando. Estava quebrado, saindo de uma guerra e construindo do nada. Muitas pessoas pensaram que o decreto fundiário seria o suficiente para estabelecer escolas no centro de cada cidade, mas não funcionou em todos os lugares. Houve muita má gestão da terra, etc.

Mas quando chegamos ao fim da Guerra Civil, de repente temos muita clareza. O Congresso entendeu que, se os Estados Unidos realmente funcionariam como a democracia idealizada na fundação do país, então deveria haver educação pública no centro da política.

Para os estados do Sul que reingressaram no sindicato, uma das condições era que oferecessem educação pública. Antes da Guerra Civil, o Sul não garantia a educação pública e, então, quase da noite para o dia - literalmente entre 1868 e 1870 - cada um desses estados reescreveu suas constituições estaduais de uma forma que estabeleceu a educação pública como um direito.

Enquanto isso, todos os outros estados a oeste também deveriam fazer o mesmo. Nenhum estado jamais seria admitido na união sem garantir o ensino público em sua constituição. E todos os estados que já tinham sido admitidos, sempre que tiveram a chance de reescrever suas constituições, eles adicionaram cláusulas de educação também.

Portanto, a Guerra Civil reforma o Sul, estabelece novas diretrizes para o Oeste e dá ao Norte a oportunidade de reescrever suas constituições também. Por fim, chegamos a um ponto em que, no final dos anos 1800, cada estado estava garantindo a educação pública.

Agora, a história estava longe de terminar no Sul, onde depois que a Reconstrução acabou e os chamados Redentores estavam no controle, havia uma tentativa de minar os direitos e a posição dos afro-americanos. Essa tentativa incluía não apenas tirar o voto, mas também segregar a educação pública e escolas com poucos recursos para crianças afro-americanas - em parte porque ensinar crianças negras a ler e escrever estava custando aos brancos o dinheiro que eles não queriam gastar, e em parte porque eles simplesmente não queriam que os negros tivessem plena cidadania social.

Essa reação foi enorme e teve consequências graves que são evidentes na história da primeira metade do século XX. Mas também houve um lado positivo: o Sul nunca foi capaz de se livrar totalmente da educação pública e voltar a ser como era antes. O estado do Mississippi realmente tentou. Eles disseram: "Bem, não tínhamos educação pública antes do fim da escravidão, devemos nos livrar dela por completo."

Mas logo ficou claro que os brancos também gostavam da educação pública, então ela veio para ficar, mesmo que fosse de uma forma altamente segregada e desigual. A ideia de educação pública era forte o suficiente naquele ponto, nem mesmo o racismo virulento da época era suficiente para eliminá-la. O direito à educação sobreviveu, embora tenha sido deixado para as gerações posteriores realizá-lo plenamente.

Que outros desenvolvimentos ocorreram durante a era dos Direitos Civis, frequentemente chamada de Segunda Reconstrução?

Derek W. Black

A maioria das pessoas conhece o caso Brown v. Conselho de Educação muito bem, mas não sabem muito o que aconteceu depois. Eles apenas falam sobre o fracasso do país em realmente cumprir seu mandato de cancelar a segregação das escolas públicas. Se você fizesse uma pesquisa com americanos agora e perguntasse se os Estados Unidos não conseguiram cancelar a segregação da educação pública, arriscaria adivinhar que três quartos ou mais diriam que sim.

Mas eu rejeito totalmente a ideia de que a dessegregação escolar falhou. Na verdade, ele teve um sucesso tremendo no início, e depois o país desistiu, porque seu sucesso foi maior do que algumas pessoas poderiam aceitar.

Quando Brown v. Conselho de Educação foi decidido, menos de 1 por cento dos alunos afro-americanos no Sul frequentavam uma escola integrada. Ficou lá por uma década, porque não houve execução da decisão. Mas então aprovamos a Lei dos Direitos Civis de 1964 e, em uma década, esse número vai de menos de 1% para 40%. E, claro, isso significa que muitos alunos brancos também as frequentavam.

Essa década também foi a época em que vimos o maior e mais sustentado movimento em direção à redução da lacuna de realizações na história deste país. A Primeira e a Segunda Reconstruções são as maiores histórias de sucesso na educação que já foram alcançadas neste país. Não falhou. Isso realçou algumas pessoas e criou uma reação adversa.

Em que consistiu a reação aos Direitos Civis e a reversão do processo de desagregação?

Derek W. Black

Richard Nixon faz campanha no Sul basicamente dizendo às pessoas que diminuirá a velocidade desse trem de dessegregação se o elegerem. Ele vence no Sul com uma vitória esmagadora e passa a nomear uma série de juízes para a Suprema Corte com histórias de resistência à dessegregação escolar. Assim que ele coloca essas pessoas no tribunal, o tribunal vira, e eles começam a inventar razões pelas quais estamos saindo do negócio de dessegregação.

As implicações do que acontece a seguir não se limitam ao sul. Quando começa a dessegregação, a base para ordenar a integração das escolas é basicamente apenas a existência de isolamento racial. Então, se você tem escolas para brancos aqui e escolas para negros aqui, você pode solicitar a dessegregação. Foi assim que aconteceu no sul. Mas em outras partes do país, é muito mais difícil apontar o isolamento racial total.

Também é mais difícil provar que, se as escolas não estão integradas no Norte e no Oeste, isso é o resultado de políticas intencionais para torná-las assim, e os tribunais estão aumentando o fardo evolutivo para provar isso como um pretexto para a dessegregação. Depois, há o problema adicional de que no sul você costuma ter grandes distritos, mas nas cidades do norte você tem todos esses pequenos subúrbios e cidades divididas administrando seus próprios distritos escolares, o que coloca o problema de saber se os tribunais podem ordenar a dessegregação inter-distrital.

No final das contas, os tribunais decidem que você não pode forçar a passagem de ônibus entre os distritos, a menos que você possa provar que há algum tipo de conluio intencional entre os distritos. Isso basicamente cristaliza a ideia de que, se você não quiser mandar seu filho para uma escola integrada, tudo o que você precisa fazer é subir na rua. Já havia outro ímpeto para o vôo branco, mas isso certamente o exacerbou.

Enquanto isso, nos anos 90, no Sul em desenvolvimento, há um novo consenso de que, se houver escolas segregadas, não é mais por causa de políticas intencionais, mas devido ao fato de que as pessoas estão se mudando muito. A Suprema Corte decide que as mudanças demográficas são agora a causa da segregação, em vez de quaisquer políticas escolares e, portanto, eles não são responsáveis ​​por isso. Em última análise, tudo isso freia a dessegregação.

A ressegregação não é tudo. O que mais está acontecendo na educação pública no final do século XX?

Derek W. Black

Em 1983, o relatório “A Nation at Risk” foi publicado dizendo que os Estados Unidos estavam sendo ultrapassados ​​pelos russos na educação e que precisamos agir juntos ou seriamos esmagados. Há um consenso muito amplo no momento de que nossos alunos não estavam à altura internacionalmente.

Como resultado disso, vemos a ascensão do movimento de reforma baseada em padrões, onde começamos a definir padrões acadêmicos e testar para ver se estamos cumprindo-os ou não. Algumas coisas boas e algumas coisas ruins começam a acontecer nesse ponto.

Por um lado, destacamos o fracasso sem realmente abordar o fato de termos escolas subfinanciadas e segregadas. Por outro lado, estamos começando a ver estados investindo na sistematização da educação de uma forma útil. Queríamos que os alunos de todo o estado da Carolina do Norte ou do Texas tivessem as mesmas oportunidades e, embora não estejamos no ponto de perceber essa ideia, pelo menos agora estamos dizendo que queremos que seja mais padronizado.

Quando os dados sobre o desempenho do aluno e da escola começam a ser divulgados, isso alimenta o litígio de financiamento da escola, porque agora eles têm notas de testes que dão crédito à ideia de que existem alguns lugares no estado da Carolina do Norte ou Texas ou onde quer que não sejam realmente proporcionando uma educação de qualidade a seus alunos, o que viola a constituição estadual. Os litígios sobre o financiamento das escolas começam a se espalhar por todo o país, estado a estado.

Isso parece um potencial passo à frente, mas então você acaba com o No Child Left Behind. Você mencionou anteriormente que havia um amplo círculo eleitoral em defesa dessa lei, mas qual foi o resultado real?

Derek W. Black

No Child Left Behind foi aprovada em 2001. Dizia que deveria haver um professor altamente qualificado em cada sala de aula, todos os alunos deveriam ser proficientes nas disciplinas acadêmicas básicas até 2014 e que a proficiência seria medida por testes padronizados. Quem poderia discordar disso?

Mas, estatisticamente, a proficiência total não fazia sentido. Sempre haverá alguma porcentagem da população que não atinge a proficiência por uma variedade de razões. Qualquer estatístico poderia ter dito a você que essa meta levava as escolas públicas ao fracasso automático.

Então, o que você ganha são muitas escolas, incluindo escolas muito boas, sendo rotuladas como fracassadas nos governos Bush e Obama. E você obtém indicadores de fracasso cada vez mais altos a cada ano, à medida que as escolas são punidas por não fazerem o progresso adequado em direção à meta de proficiência total. Os estados estavam em uma situação difícil, porque mesmo as escolas que estavam progredindo, mas não rápido o suficiente, estavam fora de conformidade, No Child Left Behind, o que desencadeou uma série de cortes, sanções e intervenções.

Ex-secretário de educação Arne Duncan. (Center for American Progress / Flickr)

A maioria dos alunos foi rotulada como fracassada durante a gestão de Arne Duncan, o secretário de educação de Obama. E porque os estados estavam em uma situação difícil, Duncan usou essa falha para extrair concessões dos estados que não adotaram suas políticas de educação.

Meagan Day

Quais são as origens do movimento de “reforma educacional” e quando ele realmente se acelerou?

Derek W. Black

Bem, existem muitas faces diferentes do movimento de reforma educacional. É claro que existem libertários que não gostam de educação pública, independentemente de como ela está indo, e eles querem um sistema mais privatizado, sejam vouchers ou charter schools - qualquer coisa para tirar o governo do negócio da educação.

Mas então, especialmente na era Obama, você também tem democratas que estão cientes do fato de que o estado realmente nunca cumpriu com suas obrigações para com os alunos desfavorecidos, e eles estão pensando que talvez devêssemos tentar algo novo. Muitos desses democratas aderiram às escolas charter, persuadidos pelo argumento libertário de que o problema é que o sistema de educação pública tem o monopólio.

Os Kochs e DeVoses inicialmente empurraram os vouchers, mas não havia um grande apetite por vouchers nas comunidades minoritárias, e os professores eram ainda mais militantes contra os vouchers do que contra as charter schools, então o primeiro nunca realmente pegou no Partido Democrata . Mas as charter schools se popularizaram. Em muitos casos, eram as famílias de minorias que os exigiam, especialmente depois de cortes no financiamento da educação pública durante a Grande Recessão.

Você também tinha economistas na época que pensavam que poderiam inovar e gerenciar o sistema educacional do país de um lugar melhor. Não acho necessariamente que eles tiveram motivações ruins, mas alguns deles confiavam excessivamente no poder de seus dados e de suas prescrições. Acho que eles convenceram o governo Obama, e particularmente Duncan, de que as charter schools funcionariam e que a gestão do sistema educacional seria tão fácil e limpa quanto vender widgets no Walmart.

Meagan Day

O resultado dessa confluência de fatores foi que as charter schools explodiram ao mesmo tempo que os estados cortaram os orçamentos para a educação na esteira da crise financeira. Isso colocou os defensores da educação pública em retrocesso por uma década, enquanto a privatização das escolas avança rapidamente.

Mas a onda de greves de professores de 2018-19 pode ser lembrada como um turning point. Foi fundamental para chamar a atenção para as verdadeiras causas sistêmicas das deficiências de nosso sistema de ensino público e pode ter mudado a maré da opinião pública sobre a privatização das escolas. Quais são seus efeitos duradouros?

Derek W. Black

Os professores de escolas públicas tendem a ser indivíduos extraordinariamente pacientes e sofredores. Eles estão acostumados a ser sobrecarregados e mal pagos. Eles vão aparecer e votar no dia da eleição, mas geralmente não são agitadores.

Após os cortes no orçamento da Grande Recessão, eles ficaram sentados por cerca de cinco anos e disseram: "Certamente eles farão o que é certo conosco." Então, seis anos se passaram, depois sete anos, e eles começaram a dizer: “Você está falando sério? Normalmente não reclamamos, mas você só pode nos dobrar antes de quebrarmos.”

Nos primeiros anos após a recessão, os estados realmente aproveitaram a boa vontade de professores e defensores da educação pública. Se eles tivessem impedido o ataque à educação pública, provavelmente poderiam ter se safado, mas não desistiram. Não houve qualquer minar que fosse demais para os opositores ao ensino público, e o setor privado agarrou cada vez mais com a autorização dos estados. Eventualmente, isso fez com que professores de todo o país saíssem às ruas.

Não começou em bastiões liberais. Na verdade, tudo começou em West Virginia, depois mudou-se para Kentucky, Oklahoma e Arizona. Estes não são redutos democratas. Eu vi os protestos aqui na Carolina do Sul. Fora os eventos familiares, foi um dos dias mais incríveis da minha vida. Toda a praça do lado de fora do Capitólio estava envolta em vermelho, com pessoas em camisetas vermelhas espalhando-se pela rua principal.

Nunca vimos esse tipo de protesto aqui antes. Nem mesmo os protestos dos Direitos Civis tiveram tantas pessoas. Quando vi isso, imaginei as pessoas que se aproveitaram dos educadores públicos e pensei: "Sim, você errou. Você foi longe demais e agora está voltando para o outro lado."

Dito isso, não tenho certeza de onde estamos desde o início da pandemia COVID-19. Eu estava pensando que deveríamos dar outro salto adiante na história da educação pública neste país, mas acho que a pandemia pode ter minado parte da energia e do ímpeto desse movimento.

No início da pandemia, havia grande aprovação dos professores e uma compreensão generalizada de como seu trabalho era difícil. Mas, à medida que a pandemia avançava, Betsy DeVos e Donald Trump aproveitaram-se do fato de que os pais estavam frustrados com o fato de as escolas não reabrirem. E agora a direita está levando as pessoas a um novo frenesi sobre questões curriculares, e isso está rapidamente se tornando muito politizado. Não posso dizer se o ímpeto de 2018-19 realmente acabou ou se pode ser recapturado.

Meagan Day

Qual é o seu argumento sobre a relação entre educação pública e democracia?

Derek W. Black

Freqüentemente ouvimos as pessoas conectarem a educação à democracia, mas quase sempre é apenas um pedaço de retórica para reunir as tropas. Acho que meu livro é singular na medida em que demonstra que, desde o início da concepção da democracia americana, a educação pública foi entendida como um componente necessário para realizá-la. Nunca realizamos totalmente nenhuma das ideias e elas só podem ser realizadas juntas.

Repetidamente, quando a América dá grandes saltos para garantir o direito à educação pública, isso é articulado como um componente necessário para cumprir a promessa de democracia. Este tópico corre ao longo da história americana. A cada momento em que a democracia se expande, como com a Primeira e a Segunda Reconstruções, a educação pública também se expande maciçamente. E a cada momento que a democracia é contraída, como com o Jim Crow e a reação contra o Movimento dos Direitos Civis, o ataque à educação pública aconteceu junto com essa contração.

O aviso que estou tentando comunicar é que o atual ataque à educação pública, na forma de privatização das escolas e subfinanciamento drástico, é, na verdade, uma ameaça à democracia. Precisamos acordar para a gravidade do que está em jogo. Vamos oferecer uma educação que é inerentemente projetada para reunir diferentes pessoas em um lugar em torno de valores comuns e fortalecer nossa democracia, ou vamos mandá-los para seus silos desiguais. Se fizermos o último, eles acabarão por acabar segurando garganta um do outro, e apenas os mais fortes sobreviverão.

Sobre o autor

Derek W. Black é professor de direito constitucional na Escola de Direito da Universidade da Carolina do Sul. Ele é o autor de Schoolhouse Burning: Public Education and the Assault on American Democracy.

Sobre a entrevistadora

Meagan Day é redatora da Jacobin. Ela é co-autora de Bigger than Bernie: How We Go from the Sanders Campaign to Democratic Socialism.

O teste de drogas da NBA deve terminar

Jogadores da NBA e outros atletas enfrentaram repetidamente proibições pelo uso de drogas recreativas. Essas políticas são um resquício racista da guerra contra as drogas. É hora de descartá-las.

Abdul Malik 

Jacobin

Jalen Harris do Toronto Raptors durante um jogo contra o Charlotte Hornets, 2020. (Jared C. Tilton / Getty Images)

Tradução / A velocista olímpica e aspirante à medalha de ouro Sha'Carri Richardson foi banida do esporte por um mês devido a um teste positivo de cannabis. Como punição por seu uso de drogas recreativas, a Agência Antidoping dos Estados Unidos proibiu Richardson de competir nas Olimpíadas de Tóquio. O incidente chamou a atenção para a injustiça das políticas de teste de drogas nos esportes.

Uma história semelhante, embora com menos destaque, foi divulgada várias semanas antes. A NBA dispensou o novato Jalen Harris, jogador do Toronto Raptors, em julho, por violar o programa antidrogas da liga. Harris não foi acusado de usar “drogas que melhoram o desempenho” (PEDs) para obter uma vantagem injusta sobre outros jogadores. Em vez disso, a NBA o acusou pelo uso de drogas recreativas. Isso tem muito mais a ver com a abordagem retrógrada dos Estados Unidos em relação às drogas e com o histórico de racismo que acontece na liga do que com qualquer tentativa de promover uma competição justa.

Classe, raça e cocaína

Nas décadas de 1970 e 1980, na esteira do Movimento dos Direitos Civis, os atletas negros se tornaram mais expressivos e seguros de si sobre seu status na NBA. Harry Edwards, que inspirou o famoso protesto dos atletas afro-americanos nas Olimpíadas da Cidade do México em 1968, previu e analisou essa mudança cultural em seu livro The Revolt of the Black Athlete [A Revolta do Atleta Negro], de 1969.

Entretanto, o avanço social durante esse período no mundo dos esportes coincidiu com a “guerra às drogas” lançada pelo ex-presidente Richard Nixon. Os meios de comunicação liberais e a direita criaram um pânico moral sobre o tráfico de drogas nas cidades do interior e nas comunidades negras.

Os atletas negros, que ganharam destaque durante essas décadas, tornaram-se alvos do pânico dos brancos incentivado pela mídia. Como observa Matthew Schneider-Mayerson, os atletas negros eram “vistos como estereotipicamente famosos como resultado de seu suposto abuso de drogas, brigas na quadra e conflitos públicos com sindicatos”.

Na década de 1970, a NBA passou de uma liga majoritariamente branca para uma liga majoritariamente negra, uma mudança que os racistas usaram para associar a liga ao consumo de drogas ilegais. Em consonância com séculos de medo branco generalizado em relação à degeneração moral dos negros, vários jornais afirmaram, com poucas evidências, que o número de jogadores que usavam drogas variava de 75% a 90%.

As décadas de 1970 e 1980 também foram um período de militância de trabalhadores na NBA. A ameaça persistente de greves fez com que o sindicato dos jogadores conquistasse enormes ganhos para a igualdade racial e melhores condições para os atletas. Nesse contexto, o uso de drogas tornou-se uma questão política. A cocaína, a droga com a qual a mídia mais se preocupava, passou a ser um símbolo da inquietação conservadora em relação à ascensão social dos negros.

Como observa Schneider-Mayerson:

Ao usar cocaína, os jogadores da NBA sinalizaram implicitamente que sua riqueza e poder lhes permitiam ignorar as fronteiras raciais. Historicamente, os afro-americanos que acumulam capital econômico ou social e/ou sobem de status – individual ou coletivamente, como fortuna pessoal ou movimento político - ameaçam o status quo que privilegiava os americanos brancos. Durante os anos 1970, uma década de relativa escassez, os jovens negros que ultrapassaram as fronteiras interligadas de cor e classe por meio de sua posição econômica representaram uma ameaça à ordem social do privilégio branco.

Em 1986, dois dias depois de ser escolhido em segundo lugar pelo Boston Celtics, o astro do basquete universitário Len Bias morreu de um ataque cardíaco devido à cocaína. Os conservadores usaram sua morte para justificar a intensificação da guerra contra as drogas. Eles defenderam a política antidrogas carcerária, o policiamento agressivo nos bairros e as políticas de tolerância zero nos campi universitários e nas universidades, apelando para a necessidade de proteger os jovens negros de terem o mesmo destino de Bias.

Embora Bias fosse membro da nova classe média negra, o então chefe da DEA, John C. Lawn, descreveu-o como uma vítima do gueto. O governo Nixon usou sua morte como estímulo para políticas de encarceramento em massa. Reagan sancionou a Lei Antidrogas de 1986 quatro meses após a morte do atleta universitário. Conhecida como a “Lei Len Bias”, ela previa uma pena mínima obrigatória de 20 anos de prisão e uma pena máxima de prisão perpétua, além de uma multa de até US$ 2 milhões.

Os debates públicos e acadêmicos sobre a morte de Bias não deram atenção suficiente à forma como ela foi usada para justificar políticas que privaram os atletas negros de seus direitos e os penalizaram. Após a overdose de Bias, o escrutínio da liga sobre o uso de drogas deixou de ser o uso de PEDs por toda a equipe e passou a se concentrar nos erros individuais dos jogadores que usavam drogas recreativas.

Uma política de drogas daltônica

Durante toda a década de 1980, a NBA insistiu que não aplicava proibições e multas aos infratores de sua política de drogas de forma discriminatória. Mas as cinco proibições e suspensões aplicadas naquela década envolviam todos os jogadores negros. O primeiro jogador branco suspenso permanentemente devido ao uso de uma substância proibida foi Chris Andersen, em 2004.

Os direitistas continuam a invocar a morte de Bias como pretexto para a violência nas atividades cotidianas da DEA e para a instituição de políticas de três strikes em relação ao uso de drogas. As táticas “Scared Straight” de suspensão permanente na NBA, conduzidas pelo ex-comissário David Stern, foram o início de uma série de políticas que tinham como alvo os jogadores negros.

Em seu livro Playing While White: Privilege and Power on and off the Field [Jogando enquanto branco: privilégio e poder dentro e fora do campo], David J. Leonard discute as diferentes maneiras pelas quais vários esportes gerenciam o uso de drogas. Como Leonard observa, os esportes dominados por brancos, nos quais o uso de drogas é um segredo aberto, como lacrosse e natação, são amplamente isentos de fiscalização semelhante.

Esse nível de isenção de vigilância é inédito para atletas negros. Durante o escândalo do uso de esteroides em 2004, os torcedores e a mídia perseguiram Barry Bonds, apesar de ser bem conhecido que o uso desse tipo de PED era desenfreado na Major League Baseball (MLB).

Muitos desses ataques tinham conotações explicitamente raciais. Um apresentador de rádio exortou a MLB a “enforcá-lo”, e os fãs aplaudiram quando um arremessador acertou Bonds. A resposta da MLB ao uso de drogas no esporte só piorou a situação. Resumida no imperativo do comissário Bud Selig de “erradicar os esteróides do esporte”, a MLB simplesmente desviou a crítica dos proprietários para os jogadores.

Simplesmente dizendo não às carreiras antes mesmo delas começarem

Aguerra contra as drogas arruinou a carreira de jogadores antes mesmo de eles terem a chance de entrar na NBA. Cumprir uma sentença de 45 dias por posse de maconha fez descarrilar os planos de Jonathan Hargett de jogar basquete universitário e profissional. Há inúmeros outros exemplos como o de Hargett, todos eles afetando mais o destino dos atletas negros do que o dos brancos. Jalen Harris é simplesmente a mais recente vítima dessa cruzada antidrogas.

Ao contrário da Agência Antidoping dos Estados Unidos, que aprovou a suspensão de Sha’Carri Richardson, a atual política antidrogas da NBA evoluiu a ponto de excluir o teste de maconha. Apesar desse progresso, o contrato de negociação do jogador ainda proíbe várias substâncias que não são PEDs.

De acordo com a política de drogas da NBA, a capacidade de Harris de retornar se baseia no fato de ele ter

... completado satisfatoriamente um programa de tratamento e reabilitação; a conduta do jogador desde sua suspensão, incluindo a medida em que o jogador tem se comportado desde então como um modelo adequado para os jovens; é julgada como portador de... bom caráter e moralidade.

É claramente absurdo que a NBA, uma liga que tem empregado continuamente supostos violadores dentro e fora das quadras, exija que os usuários de drogas demonstrem “bom caráter e moralidade”. Embora um programa de tratamento para dependentes de drogas possa ser louvável, a eficácia do tratamento compulsório ainda é incerta. Há evidências significativas que sugerem que o tratamento compulsório e as abordagens de “reabilitação” baseadas na abstinência são contraproducentes e muitas vezes perigosas.

Uma pesquisa recente de Ryan McNeil sobre a interação entre o despejo de moradias e o uso de metanfetamina sugere que o abuso de substâncias é uma resposta adaptativa às condições materiais. Estresses físicos e mentais podem, às vezes, tornar o uso de estimulantes uma forma lógica de comportamento. Essa percepção é totalmente contrária à visão que sustenta a política de drogas da NBA.

A demissão de Jalen Harris – uma escolha final de segunda rodada que enfrentava uma enorme pressão e uma posição de trabalho muito precária na liga – é um exemplo disso. Devemos nos perguntar se a pressão cruel da NBA e o apoio insuficiente à saúde mental dos jogadores levam os atletas a usar substâncias.

Há também a questão ética se a NBA deve ou não se preocupar com o uso de drogas por um jogador. Harris estava se saindo bem o suficiente para que os Raptors o recrutassem e, segundo relatos, era um bom companheiro de equipe. Simplesmente não deveria ser da conta da liga as substâncias que Harris escolhe usar em seu tempo livre.

Em todos os esportes, o avanço na questão do vício tem sido lento ou inexistente. Para uma liga que é amplamente considerada a mais progressista dos esportes, a NBA está falhando com seus jogadores ao adotar uma abordagem tão conservadora em relação à dependência. Precisamos de uma revisão completa das políticas de drogas da NBA.

A liga deve adotar métodos contemporâneos de redução de danos. Isso poderia ajudar de alguma forma a reparar a cumplicidade da NBA na guerra contra as drogas. Até que isso aconteça, os jogadores negros continuarão a sofrer mais com essas políticas retrógradas.

Jalen Harris assinou recentemente com um time na Itália para poder continuar jogando basquete. Independentemente de retornar ou não à NBA, Harris se tornou mais uma vítima da guerra contra as drogas, que não é possível vencer.

Colaborador

Abdul Malik é um roteirista e jornalista baseado em Edmonton, Alberta. Ele é co-apresentador do The Off Court Podcast.

Guia essencial para a Jacobin

A Jacobin tem divulgado conteúdo socialista em ritmo acelerado desde 2010. Eis aqui um guia prático para algumas das obras mais importantes ...