30 de junho de 2022

Crítica de Pessôa é questionável, mas é bom saber que não se opõe a taxar os ricos

André Singer e Fernando Rugitsky respondem a economista sobre revogação do teto de gastos

André Singer
Professor titular do Departamento de Ciência Política da USP e autor, entre outros livros, de "Os Sentidos do Lulismo" e "O Lulismo em Crise"

Fernando Rugitsky
Professor do Departamento de Economia da USP e da Universidade do Oeste da Inglaterra, em Bristol


[RESUMO] André Singer e Fernando Rugitsky respondem a críticas feitas pelo colunista da Folha Samuel Pessôa a artigo que publicaram na Ilustríssima e reafirmam a tese de que aumentar o gasto público é fundamental para alavancar a economia e proteger a democracia de ameaças autoritárias.

*

Em recente coluna nesta Folha, o economista Samuel Pessôa contesta raciocínios e informações usados por nós em artigo publicado na Ilustríssima sobre a revogação do teto de gastos. Para além de eventuais divergências de fundo, cabe esclarecer as objeções pontuais do colunista, de modo que os termos do debate fiquem equilibrados perante a opinião pública. Como é sabido, o diabo mora nos detalhes.

O primeiro reparo de Pessôa diz respeito aos Estados Unidos. Segundo o colunista, "os números do mercado de trabalho americano" não sustentam a interpretação que adotamos, segundo a qual o bloqueio ao programa American Families Plan, proposto por Joe Biden em 2021, contribui para a sobrevivência do trumpismo. A geração de emprego tem ido bem e a renda começa a se recuperar, diz ele. O verdadeiro risco para os democratas na eleição de meio de mandato seria a inflação, conclui.


A visão de Pessôa é parcial. A fragilidade do Partido Democrata nas eleições deste ano deve ser explicada à luz das condições de vida deterioradas de boa parte da população, não apenas por baixos salários, como também pelas mazelas do sistema de saúde, endividamento e precariedade dos postos de trabalho.

A atual escalada inflacionária —que, diga-se de passagem, tem origem na pandemia e na Guerra da Ucrânia— sem dúvida derruba ainda mais a popularidade do presidente. Todavia, não atua no vácuo, e o artigo que assinamos visava destacar tal pano de fundo, que levou Biden a propor, assim que assumiu, um vasto projeto de gastos públicos, que incluía o plano familiar barrado no Congresso.

A inflação, corretamente apontada por Pessôa como relevante fator eleitoral, reforça, aliás, a importância do American Families Plan, o qual poderia atenuar efeitos da alta dos preços sobre grupos vulneráveis.

Diante de um mercado de trabalho em que os proventos, em termos reais, estão caindo, medidas na direção do Welfare State ajudariam a atravessar a onda inflacionária. Por isso, o senador Bernie Sanders tem defendido que o partido reapresente no Congresso as propostas bloqueadas. "Está na hora de mostrar de que lado estamos", escreveu no jornal britânico The Guardian.

No que se refere ao Brasil, Pessôa afirma que "não é verdade" haver um estudo, conforme dissemos, da Instituição Fiscal Independente (IFI) mostrando "que o gasto público teria estimulado o crescimento entre 2006 e 2014".

Aqui, a redação do colunista induz a um erro quase ofensivo, pois o próprio Pessôa admite, na frase seguinte, a existência de um estudo que estima impulso fiscal positivo no período 2003-2014 (intervalo usado em nosso artigo). Para comprová-lo, basta consultar o Estudo Especial número 17 do IFI, publicado em 22 de dezembro de 2021, verificando o gráfico B1 da página 19.

Neste ponto seremos obrigados, pela opção de Pessôa e a exiguidade de espaço, a usar certo jargão econômico que pode parecer pouco claro ao leitor não especializado. Em dois parágrafos elípticos, o colunista expressa uma interpretação questionável do significado do impulso fiscal naquele período.

Os números por ele empilhados de forma apressada indicariam que, ao fazer a economia brasileira operar acima de sua capacidade, os gastos do governo teriam produzido um crescimento artificial (e inflacionário), que viria a ser revertido, portanto anulado.

Ocorre que a identificação da capacidade de crescimento de uma economia ou, para usar o termo técnico, de seu produto potencial, é sabidamente controversa. Mais: no caso concreto, os dados do mercado de trabalho não sustentam a ideia de que a economia estivesse com "pleno emprego", especialmente no início do período mencionado pelo articulista.

Em que pesem as confusões geradas pela coluna, ficamos felizes ao perceber no final da mesma que Pessôa se coloca como aliado para tornar o sistema tributário mais progressivo e, mediante tal mudança, revogar o teto de gastos. Persistir apostando na austeridade já se provou economicamente contraproducente e politicamente ameaçador para a própria democracia.

A expansão fiscal que mantém o gasto constante?

Corte de impostos e aumento de gastos serão positivos para o nível de atividades no segundo semestre

Nelson Barbosa


Governo tenta conter o efeito da alta de preços dos combustíveis sobre a inflação - Luo Jinglai/Xinhua

A falta de planejamento do governo gerou mais uma proposta de emenda constitucional, a "PEC da emergência eleitoral", para reduzir preço de combustível, transferir renda adicional aos mais pobres e criar o "bolsa caminhoneiro".

As três medidas fazem sentido econômico e poderiam ter sido adotadas de modo previsível, dentro de um plano de reconstrução econômica pós pandemia, caso o governo Bolsonaro tivesse se preocupado em planejar a saída da crise em vez de decretar repetidamente o seu fim.

Somando corte de imposto e aumento de gasto, o atual pacote orçamentário deve injetar 0,5% do PIB na renda disponível do setor privado, com impacto positivo sobre o nível de atividade econômica no segundo semestre.

Por enquanto estimo que as medidas "emergenciais" de Bolsonaro elevarão o gasto primário federal para 18,6% do PIB em 2022. Um aumento de 0,4 ponto em relação à projeção oficial de abril, quando o governo enviou o Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2023 ao Congresso.

O novo gasto de 18,6% do PIB é alto ou baixo? A resposta depende da base de comparação.

Para quem acredita no teto Temer de gasto, 18,6% do PIB é alto. A despesa primária federal deveria ter caído para 17% do PIB neste ano segundo a proposta original de Temer. Já para todos os demais economistas 18,6% do PIB é um valor neutro, pois este foi o gasto realizado em 2021.

Em outras palavras, o desgoverno Bolsonaro criou uma grande confusão legislativa para praticar o mesmo gasto do ano passado. Um mínimo de bom senso teria deixado espaço para novas medidas de estabilização sem alterar a Constituição. O governo Bolsonaro não tem bom senso.

No último ano completo do governo Dilma, 2015, o gasto primário federal também foi de 18,6% do PIB quando levamos em consideração o ajuste decorrente de anos anteriores (0,8% do PIB) determinado pelo TCU.

Depois, em 2016, o governo Temer elevou o gasto primário para 19,9% do PIB, mas com promessa de reduzi-lo nos anos seguintes. Houve redução? Inicialmente sim, mas em relação ao praticado pelo próprio Temer em 2016. Comparado ao praticado pelo governo Dilma segundo o TCU, Temer aumentou o gasto público.

Em números, o gasto primário federal foi de 19,4% do PIB, em 2017, e 19,3% do PIB, em 2018. Os dois valores ficaram acima dos 18,6% do PIB registrados no último ano completo de Dilma. Dizer que Temer reduziu gasto é uma das falácias do golpe de 2016, mas prossigamos.

Em 2019 e antes da Covid, Bolsonaro assumiu o governo e elevou a despesa primária federal para 19,5% do PIB. No ano seguinte a pandemia nos atingiu, Bolsonaro chamou a doença de gripezinha, sua equipe econômica disse que R$ 5 bi resolveriam o problema, mas a conta foi cem vezes maior.

Segundo o monitor de gasto do Tesouro Nacional, as ações emergenciais criadas pelo Congresso elevaram a despesa primária federal de 2020 em R$ 524 bi, aumentando o gasto primário total para 26,1% do PIB naquele ano.

As ações de 2020 foram corretas, pois amenizaram a crise e possibilitaram a recuperação em V da economia. O problema foi o governo Bolsonaro achar que a pandemia acabaria rápido e não ter plano de reconstrução para 2021 e 2022.

Entramos 2021 com o governo prometendo grande contração fiscal e depois voltando atrás. Começamos 2022 da mesma forma e agora estamos na fase de Guedes e cia voltarem atrás com novas medidas "temporárias". Juntando os dois anos, o despreparo administrativo do governo Bolsonaro prejudicou a recuperação da economia e aumentou a incerteza sobre 2023.

29 de junho de 2022

Quando as mulheres venceram a batalha pelo aborto na França

Em 1971, com o aborto na França ainda ilegal, 343 mulheres francesas se organizaram para declarar que haviam feito um. Foi um ato de desafio que quebrou tabus de longa data - e deve ser defendido hoje.

Vincent Chabany-Douarre


Manifestantes do Movimento de Libertação das Mulheres Francesas confrontam as forças de segurança em Paris em novembro de 1972, durante o julgamento de Chevalier. (AFP/Getty Images)

Tradução / No outono de 1971, Marie-Claire Chevalier percebe que está grávida. Ela não quer esse filho: ela tem 16 anos, foi agredida sexualmente por um colega de classe e vem de uma família da classe trabalhadora com pouco dinheiro para subsistência. Mas em 1971, os abortos são ilegais na França, a menos que a vida de uma mulher esteja em perigo.

A mãe-solo de Marie Claire, Michèle, estica seu magro salário para conseguir um aborto clandestino à filha. O procedimento quase mata a jovem, mas ela sobrevive. Algumas semanas depois, Marie-Claire é presa, assim como Michèle. O estuprador de Marie-Claire, que foi pego roubando um carro e esperava aliviar sua sentença, a denunciou às autoridades.

O julgamento começa em 1972. As Chevaliers são representadas por Gisèle Halimi, que recentemente fora notícia por defender Djamila Boupacha, uma combatente da libertação argelina que foi torturada e agredida sexualmente por soldados franceses. Há muitas mulheres no julgamento, apoiando Marie-Claire e testemunhando em seu favor, explicando por que elas também fizeram abortos ilegais. Essas mulheres não têm nenhum problema em admitir o que continua sendo um ato criminoso: toda a nação já sabe que interromperam uma gravidez.

Quem são essas mulheres e por que seu aborto já era um assunto de registro público? Poucos meses antes do julgamento de Marie-Claire, elas faziam parte de um coletivo de 343 mulheres francesas, que foram à mídia para contar a toda a França que haviam feito um aborto. Ao fazer isso, elas se denunciaram como criminosas e incitaram um Estado abusivo a puni-las. Mas, mesmo assim, elas venceram.

Embora o aborto na França tenha sido proibido no século XVI, a aplicação rigorosa da lei só começou com a Primeira Guerra Mundial. A guerra devastou a França e, com uma série de políticas nativistas, os políticos franceses procuraram reconstruir a população do país. Assim, em 1920, 314 deputados, todos homens, eleitos por um corpo eleitoral exclusivamente masculino, decidiram que qualquer mulher considerada culpada por fazer um aborto seria punida com três anos de prisão e uma pesada multa de 5.000 francos.

Essa repressão chegaria ao clímax na década de 1940. O hiperconservador regime ditatorial de Vichy encorajou avidamente a denúncia e a vigilância. No chão de fábrica, em leitos de hospital, nas ruas de suas próprias aldeias: nenhum lugar era seguro para as mulheres que procuravam interromper uma gravidez indesejada. Em 1940, 1.255 mulheres foram consideradas culpadas pelos tribunais franceses por terem feito um aborto, o dobro do registrado em 1938. Em 1944, em média, mais de dez mulheres foram condenadas todos os dias por essa acusação.

Embora o período do pós-guerra tenha marcado o fim de anos de dificuldades econômicas e lutas, ele trouxe pouco apetite por mudanças radicais. O aborto ainda era um tabu vergonhoso. Uma lei de 1955 permitia aos médicos interromper a gravidez apenas se a vida de uma mulher estivesse em perigo significativo, mas uma reação liderada pelos católicos ameaçou que houvesse mais progressos. A pílula anticoncepcional tornou-se disponível em 1967, mas as mulheres com menos de 21 anos precisavam da aprovação por escrito de seus pais. As únicas áreas onde o aborto e a contracepção foram relaxados foram Guadalupe, Martinica e La Réunion, onde pânicos racistas sobre o crescimento populacional levaram o Estado a abrandar a lei de 1920.

E, no entanto, algo estava se formando. Os protestos de 1968, nas palavras do jornalista Patrick Rotman, impulsionaram a França do século XIX ao XX. Nesse período, o feminismo encontrou novo vigor e, em 1970, nasceu o Mouvement de Libération des Femme (MLF) [em tradução livre Movimento de Libertação das Mulheres]. O MLF não estava interessado em concessões: elas protestaram, agitaram através de rádios e meios de comunicação franceses como Elle, e jogaram carne crua em líderes anti-aborto.

Mesmo com toda a proibição, o aborto não havia desaparecido. Mulheres ricas foram para a Inglaterra, Holanda e Suíça. Mulheres pobres faziam abortos clandestinos na França. O procedimento era muitas vezes traumático. A atriz Bulle Ogier, em sua autobiografia J’ai Oublié [Eu Esqueci, em tradução livre], conta como sua amiga quase morreu de sepse depois de interromper uma gravidez com uma agulha de tricô. Quando Ogier fez um aborto, ela foi agredida sexualmente pelo médico que o fez. O mesmo aconteceu com a cantora Brigitte Fontaine, no final da década de 1950, durante seu segundo aborto. Quanto à sua primeira interrupção de gravidez em 1956, Fontaine recebeu instruções claras: se algo der errado, não volte. Durante duas semanas, ela se automedicou com uísque para uma febre de 41 graus. Em 1958, Nadine Trintignant, a famosa diretora, conseguiu o dinheiro emprestado e foi para a Suíça: o médico a chamou de prostituta.

Essas histórias eram como segredos, sussurradas em círculos íntimos, mas nunca divulgadas na esfera pública. Isto, até 1971, quando o MLF foi abordada pela jornalista do Nouvel Observateur, Nicole Muchnik. Muchnik e seu editor-chefe queriam que as famosas integrantes da MLF anunciassem publicamente seus abortos. Eles argumentaram que, se figuras públicas respeitadas como Catherine Deneuve ou Françoise Sagan se manifestassem, quebrariam o tabu sobre o aborto e influenciariam a opinião pública – e o silêncio finalmente terminaria.

Esta era uma proposta perigosa. Embora as prisões por aborto fossem menos comuns do que na década de 1940, elas ainda eram frequentes. 289 mulheres foram condenadas por terem feito aborto em 1960, 720 em 1966 e 340 em 1970. Mas o manifesto também era cheio de potencial. Essas prisões prosperaram no silêncio e na vergonha. O aborto só acontecia com “pessoas estranhas”, com “mulheres más”. Se as mulheres do MLF se mantivessem juntas, o Estado francês teria uma escolha: prender essas celebridades amadas ou reconhecer a crueldade de suas leis.

A reação no MLF não foi unânime. A socióloga Christine Delphy deu as boas-vindas ao plano, mas participantes da base do MLF estavam relutantes. Eles não gostavam da ideia de fazer uma aliança com a imprensa burguesa e relutavam em fazer das mulheres ricas as figuras de proa de um movimento onde as mulheres pobres mais sofriam. Eventualmente, o MLF concordou, mas a lista teria que incluir muito mais do que apenas celebridades. Também apresentaria ativistas do MLF, de todas as idades, de todas as classes. Algumas seriam nomeadas, outras permaneceriam anônimas. Eles usariam as famosas assinaturas como escudos. Antecipando a reação, a advogada Gisèle Halimi fundou o Choisir, um grupo de ação, para defendê-las.

O manifesto foi escrito coletivamente no apartamento de Simone De Beauvoir em Paris. Agnès Varda assinou, assim como a física nuclear Annie Sugier, a tradutora Emmanuelle de Lesseps e a filósofa Monique Wittig, entre outras. Algumas, como a jornalista Yvette Roudy, colocaram o nome sem ter feito um aborto, por solidariedade.

Em 5 de abril de 1971, a capa do Nouvel Observateur dizia, em letras maiúsculas sobre fundo preto:

A lista das 343 francesas que tiveram a coragem de assinar o manifesto “EU FIZ UM ABORTO”.

Um pequeno texto explicava que um milhão de mulheres na França faziam abortos todos os anos, em condições perigosas. O manifesto exigia abortos livres e seguros e afirmava que cada signatária havia infringido a lei ao fazer um aborto.

Nenhuma das mulheres foi presa. Ainda assim, muitas pagaram por terem falado sobre seus abortos. Segundo Claudine Monteil, a signatária mais jovem, algumas perderam o emprego. Algumas foram ameaçadas. Algumas foram alijadas por suas famílias. A mãe de Claudine era uma acadêmica de renome, uma mulher educada e com visão de futuro. Mas quando ela leu o nome de sua filha naquela lista, durante uma viagem de trem, ela caiu em prantos na frente dos outros passageiros. Ela pensou que a vida de Claudine tinha acabado.

Mas Claudine não se arrependeu. Ao longo de quarenta e oito horas, o aborto passou de um segredo indescritível a uma palavra no rádio, falada em jantares de família em toda a França. Algo palpável havia mudado. Como observou a historiadora Bibia Pavard, pela primeira vez na história francesa, foram as mulheres que lideraram a conversa sobre o aborto e o enquadraram como um ato de libertação e autonomia. Mais tarde naquele ano, a revista alemã Stern publicou uma carta onde 374 mulheres alemãs, incluindo a atriz Romy Schneider, fizeram a mesma declaração. Médicos e ginecologistas franceses posteriormente publicaram cartas reconhecendo que haviam realizado a operação.

O manifesto influenciou a opinião pública durante o julgamento de Marie-Claire em 1972 e o juiz absolveu a jovem. O terceiro ato do manifesto veio alguns anos depois: em 1975, o governo francês aprovou a primeira lei do país legalizando o aborto. Foi um primeiro passo tímido. As mulheres elegíveis tinham que estar “em perigo”, receber aconselhamento médico e pagar do próprio bolso. Mas foi um marco – uma pequena chama, acesa pela faísca das 343 mulheres que deram um passo à frente em 1971.

Em 1974, Claudine Monteil, a mais jovem das 343, disse a Simone de Beauvoir que elas haviam vencido. Beauvoir a advertiu: uma crise e os direitos das mulheres seriam derrubados. Durante toda a sua vida, disse Beauvoir à Claudine, você deve permanecer vigilante.

Quando os Estados Unidos revogaram Roe v. Wade em junho de 2022, o presidente francês Emmanuel Macron imediatamente anunciou sua intenção de consagrar o aborto na Constituição francesa. A esquerda francesa já havia proposto essa ideia em julho de 2018. Mas o partido do presidente, então maioria na assembleia francesa, votou contra. Vários membros do gabinete de Macron foram acusados ​​de agressão sexual. Alguns de seus principais aliados, como o deputado Eric Woerth, expressaram recentemente que, ao formar uma coalizão na Assembleia Francesa, o partido do presidente preferiria trabalhar com a extrema direita do que com a esquerda.

Por isso, precisamos permanecer vigilantes.

Sobre o autor

Vincent Chabany-Douarre é historiador. Ele aponta a necessidade urgente de que suas leitoras e leitores doem à Brigid Alliance (em tradução livre Aliança Brígida) e à National Network of Abortion Funds (em tradução livre, Fundo Nacional de Redes de Apoio ao Aborto).

28 de junho de 2022

Como a esquerda está construindo a paz na Colômbia

Durante anos, o regime de direita da Colômbia colocou em risco o acordo de paz de 2016. Mas agora o primeiro presidente esquerdista do país se comprometeu com a plena implementação - incluindo a justiça econômica, o diálogo político e as demandas de paz por igualdade social.

Mariela Kohon


O candidato presidencial Gustavo Petro e sua candidata a vice-presidente Francia Marquez do Pacto Historico comemoram após o dia da eleição presidencial em 29 de maio de 2022 em Bogotá, Colômbia. (Guillermo Legaria / Getty Images)

Tradução / Em junho foram eleitos na Colômbia Gustavo Petro e Francia Marquez pelo Pacto Histórico (PH). Sua vitória é uma imenso avanço para a política progressista em toda a América Latina e seu significado na região não pode ser subestimado.

A Colômbia é às vezes referida como a “democracia mais antiga” da América Latina, geralmente por aqueles que não compreendem sua história complexa e violenta, ou por aqueles que têm um interesse direto em ocultá-la. Esta é a primeira vez que a Colômbia elege um governo de esquerda, que vem depois de uma longa e difícil luta para criar um espaço político progressista diante de décadas de repressão brutal sistemática.

Um legado de violência

Adifícil jornada até este ponto é melhor evidenciada pelo fato de que inúmeros candidatos presidenciais foram assassinados ao longo da história da Colômbia, desde Jorge Eliécer Gaitán em 1948 até Jaime Pardo Leal em 1987. Um partido político inteiro, a União Patriótica (UP) – fundada em 1985 durante uma longa insurgência armada, para dar vozes de esquerda a uma via democrática em busca de mudança – foi vítima de “genocídio político” entre seu início e 2018. A Jurisdição Especial para a Paz (conhecida pela sigla em espanhol JEP) – o tribunal de paz transitório criado pelo Acordo de Paz de 2016 – descobriu que 5.733 membros da UP foram assassinados nessa época.

A escala da repressão sofrida pela esquerda e pela sociedade civil não pode ser minimizada. Cerca de 3.000 sindicalistas foram assassinados. Mesmo após a assinatura do Acordo de Paz, mais de 1.300 mil ativistas políticos e sociais foram assassinados – 80 dos quais só este ano.

Francia Marquez vem do Sudoeste, do Distrito de Cauca na Colômbia, uma das regiões mais afetadas pelo conflito, com um número assombroso de líderes assassinados. Em seu discurso após as eleições, ela mesma, sobrevivente de uma tentativa de assassinato em 2019, prestou homenagem aos ativistas assassinados, agradecendo-lhes por “abrirem o caminho para o futuro, por semearem a resistência e a esperança”.

Esta eleição veio poucos dias antes de outro momento histórico para a Colômbia, no qual a Comissão da Verdade, um mecanismo criado pelo Acordo de Paz, divulgará seu relatório. Por todas estas razões, esta vitória deve ser vista em seu contexto histórico. E esse contexto histórico faz com que a eleição de Petro, ex-guerrilheiro e Márquez, uma líder de comunidades afro-colombianas, ativista ambiental e feminista, fortaleça especialmente aqueles que estão envolvidos no apoio à luta pela paz e justiça social no país.

A agitação de 2019-2020

Na história mais imediata, esta vitória só foi possível graças a uma luta mais determinada. Os protestos aconteceram em todo o país em uma escala sem precedentes em 2019 e 2020. Os jovens, os protagonistas desses protestos, ajudaram a quebrar os níveis históricos de abstenção nesta eleição: a participação foi de 58%, bem acima da média recente de 48%, refletindo a esperança renovada que o PH criou. A mãe de Dilan Cruz, um jovem assassinado pela polícia militar durante esses protestos, falou no comício da vitória de Petro e Márquez.

Embora tenha sido esta onda de ação popular que levou Petro e Márquez à vitória, a capacidade de construir alianças com o centro e partes da centro-direita também provou ser um fator importante, e será fundamental para a sobrevivência do governo.

Por exemplo, Petro obteve o apoio de figuras de alto nível da época de Juan Manuel Santos, o ex-presidente cujo o governo negociou o Acordo de Paz de 2016 com as FARC-EP. Estes políticos se tornaram importantes apoiadores de sua plataforma. Como resultado, nos dias seguintes a sua vitória, Petro renovou esforços para criar um “acordo nacional”, construindo um diálogo em todo o espectro político, inclusive convidando o ex-presidente de extrema-direita Álvaro Uribe a falar.

Marquez também desempenhou um papel crucial na mobilização de apoio ao PH entre os movimentos sociais de massa como a primeira vice-presidente negra em um país onde as comunidades negras e indígenas foram historicamente marginalizadas e desproporcionalmente afetadas pela desigualdade e exclusão sociopolítica. Ao receber suas credenciais como vice-presidente eleita, Marquez disse que isso em si foi um ato de justiça racial e justiça de gênero. Ela se comprometeu a fazer do combate à desigualdade racial estrutural e de gênero uma parte central do programa do PH para o governo e liderará um novo Ministério da Igualdade.

O Acordo de Paz

Omapa eleitoral mostra uma forte sobreposição entre aqueles que votaram em Petro e aqueles que votaram a favor do Acordo de Paz em 2016, tornando esse acordo um dos fatores cruciais para essa vitória histórica. No centro do acordo está o objetivo de criar um espaço democrático, abrindo a participação política e dando esperança à crença de que a Colômbia pode ser mudada por meios democráticos. Foi também este Acordo de Paz que abriu o caminho para a mobilização popular vista nas ruas entre 2019 e 2020.

Em sua essência, o conflito entre as FARC e o Estado colombiano – que o acordo buscava acabar – foi impulsionado pela terrível desigualdade da Colômbia e pela falta de espaço político para a oposição. O acordo, portanto, delineia importantes reformas estruturais para lidar com essas causas fundamentais. Mas muitos passos ainda precisam ser feitos para concretizar o acordo, prejudicado nos últimos 4 anos por uma sabotagem sistemática da extrema direita que se opõe ao processo.

Como resultado, o programa econômico da PH prioriza o desenvolvimento da produtividade doméstica em detrimento das indústrias puramente extrativistas, combatendo a desigualdade social através da reforma fiscal progressiva e protegendo o meio ambiente através da transição verde. Inclui a extensão dos serviços sociais como o acesso à saúde e à educação. A paz também depende da implementação da reforma agrária e da substituição de cultivos prevista no acordo a fim de corrigir a injustiça histórica no acesso à propriedade da terra, investindo no campo e dando aos camponeses opções além do cultivo da coca.

Petro se comprometeu em alcançar uma paz “completa”, tanto implementando o acordo de 2016 quanto abrindo negociações com as demais organizações guerrilheiras. O ELN, com quem o presidente Duque interrompeu as negociações em janeiro de 2018, já declarou sua disposição para entrar em diálogo. Outro grupo liderado por alguns ex-membros das FARC, que deixaram o processo atual desiludidos com seu processo, também fizeram uma declaração expressando esperança.

Desafios à frente

No entanto, Petro e sua ampla coalizão enfrentam enormes desafios. Apesar da disposição das demais forças de esquerda para entrar em diálogo, um teste fundamental para o novo governo será enfrentar os grupos paramilitares de direita e as organizações violentas de tráfico de drogas que ainda aterrorizam partes da Colômbia.

Nos últimos meses, vastas áreas do norte do país foram fechadas pelos grupos paramilitares do Clã do Golfo, faltando ao Estado a capacidade e talvez até mesmo a vontade de enfrentá-los. O Acordo de Paz inclui medidas para desmantelar esses grupos armados – responsáveis pelo assassinato de tantos líderes sociais – mas o próprio dia das eleições foi um lembrete sombrio da brutalidade enfrentada pelos militantes. Duas testemunhas eleitorais e militantes do PH, Roberto Rivas e Ersain Ramírez, foram mortos.

Ex-combatentes das FARC também são assassinados, com mais de 315 assassinatos desde que depuseram suas armas e cumpriram com suas obrigações no acordo de 2016. Outras organizações guerrilheiras precisarão ver resultados e ter certeza de que não arriscarão o mesmo destino.

Também será necessário fazer mudanças nas forças de segurança, já que o Exército e a polícia são responsáveis por algumas das piores atrocidades da Colômbia. Durante uma recente comitiva da Justiça para a Colômbia composta por sindicalistas e parlamentares britânicos, irlandeses e espanhóis, os defensores dos direitos humanos falaram da necessidade urgente de pôr um fim à doutrina militar de combate ao “inimigo interno”, que tem levado consistentemente a sociedade civil a se deparar com a violência do Estado. As greves e manifestações de 2019-20 levaram ao assassinato de 44 manifestantes pela polícia.

Quando nossa delegação viajou para Putumayo, no sul da Colômbia, ouvimos testemunhos assustadores de sobreviventes e parentes de vítimas de um massacre do Exército. Soldados haviam atirado em 11 civis em uma festa comunitária e depois os apresentaram como guerrilheiros dissidentes mortos em combate.

Este acontecimento fez lembrar o caso dos chamados “falsos positivos”, que viram soldados matarem 6.400 civis entre 2002 e 2008, e depois os apresentaram como guerrilheiros mortos em combate para inflar números e receber promoções e bônus. A reforma adequada das forças de segurança foi algo que o governo anterior não conseguiu incluir no Acordo de Paz final – portanto, esse é um grande desafio para o novo governo.

Aqueles justificadamente cheios de esperança por esta grande vitória também terão que controlar suas expectativas. Antes de 2016, o processo de paz dividiu o establishment, e nem todos os defensores de Petro são de esquerda. Como disse o ex-presidente uruguaio Pepe Mujica em sua mensagem de felicitações ao povo colombiano, Petro “não pode fazer mágica”.

Sem uma maioria no Congresso, fazer as mudanças legislativas propostas exige que Petro continue a construir alianças, algo que ele já parece estar fazendo. Em seu discurso de vitória, ele deu um tom realista: “Vamos desenvolver o capitalismo”, disse Petro aos apoiadores, “não porque o amamos, mas porque primeiro temos que superar a pré-modernidade, o feudalismo… temos que criar uma democracia”. E com mandatos presidenciais que duram apenas quatro anos, fazer mudanças duradouras, incluindo organização e planejamento a longo prazo para o próximo governo, será crucial.

Uma mudança progressista

Reconhecendo os desafios futuros, Petro e Márquez desempenharão um papel importante consolidando uma nova onda de governos progressistas na América Latina. A mudança está em movimento em todo o continente: vimos a vitória socialista na Bolívia derrubando um golpe de extrema direita e a eleição de Gabriel Boric no Chile; a esperança está se consolidando com uma aparente vitória de Lula nas próximas eleições no Brasil, e uma série de outros governos de esquerda estão liderando o caminho da região.

Os efeitos desta mudança ainda não podem ser superestimados. A Colômbia é há muito tempo a principal base dos Estados Unidos na América Latina, um fiel aliado de Washington em suas relações hostis com a Venezuela e Cuba. Quando o regime de Duque se recusou a implementar acordos protocolares assinados no caso do fracasso das conversações de paz com o ELN, generosamente acolhido pelo governo cubano, estabeleceu-se um precedente perigoso para os processos de paz em todo o mundo.

Talvez surpreendentemente, então, dada a história de interferência sangrenta dos EUA e a falta de respeito pelos governos de esquerda democraticamente eleitos na América Latina, o governo Biden foi rápido em reconhecer Petro, com os dois falando apenas dias após o resultado. Petro também anunciou que conversou com o presidente venezuelano Maduro, e reabrirá a fronteira comum.

Mais amplamente, a comunidade internacional tem estado muito quieta por muito tempo em relação aos abusos ocorridos na Colômbia. A retórica hipócrita e inconsistente do governo britânico sobre os direitos humanos no exterior ficou exposta por sua atitude em relação à Colômbia, e os sindicatos britânicos e colombianos têm se manifestado em nossa oposição ao acordo de livre comércio Reino Unido-Colômbia. Para aqueles comprometidos com a paz e a justiça social na Colômbia, então, este é um momento entusiasmante e emocionante, e um momento que se propõe a aumentar o apoio a organizações como a Justiça para a Colômbia.

Talvez o mais crucial, agora, é o momento de prestar homenagem a todos aqueles que perderam suas vidas durante esta luta, que não estão mais conosco e que foram brutalmente silenciados no caminho. Há muitos com os quais gostaríamos de compartilhar este momento maravilhoso. Em vez disso, é em sua honra que celebramos o presente – e ansiamos por um futuro melhor e mais brilhante na Colômbia.

Colaboradora

Mariela Kohon é oficial internacional sênior do TUC, ex-assessora no processo de paz da Colômbia e vice-presidente de Justiça da Colômbia.

A esquerda ao poder no Paraguai?

As eleições de 2023 constituem uma oportunidade para as forças da esquerda derrubarem o nefasto Partido Colorado.

Norma Flores Allende e Laurence Blair


Manifestação em Assunção contra o presidente Mario Abdo Benítez em 17 de março de 2021. (Foto: Jorge Saenz/AP)

Tradução / O som do helicóptero anunciava o inevitável: a polícia estava de volta, desta vez pronta para atirar para matar. Após um tenso impasse, os corpos de repente começaram a cair. Foi um confronto de facões, cavalos e rifles de alta potência de um lado contra velhas espingardas enferrujadas do outro, enquanto as mulheres e crianças fugiam de suas tendas. A terra vermelha testemunhou um massacre de 11 camponeses e 6 policiais que, dez anos depois, ainda não foi totalmente investigado.

22 de junho marcou uma década desde que Fernando Lugo, um ex-bispo de esquerda que liderou o único governo progressista do Paraguai, foi removido em um rápido golpe parlamentar após esse banho de sangue rural. Os assassinatos de 15 de junho de 2012 ocorreram em meio a uma ocupação por agricultores sem-terra em Marina Kue, em Curuguaty, leste do Paraguai. Eles foram seguidos por mais assassinatos de líderes camponeses e um julgamento cheio de irregularidades.

As forças conservadoras também usaram o despejo fracassado de Marina Kue como pretexto para impugnar Lugo, em um processo que durou apenas algumas horas. Governos progressistas em toda a América Latina chamaram isso de golpe; até mesmo os governos conservadores do Chile e Colômbia chamaram de volta seus embaixadores.

Golpes e lawfare

Os acontecimentos no Paraguai em 2012 seguiram o que aconteceu em Honduras três anos antes, quando outro presidente progressista, Manuel Zelaya, foi derrubado. Eles inauguraram uma era de golpes “soft” e lawfare em toda a região. A ex-presidente Dilma Rousseff comentou sobre o destino de Lugo em 2015 antes que ela também fosse destituída, em um rápido processo de impeachment que até mesmo seu substituto de direita mais tarde admitiu ter sido um golpe.

A década passada, desde 2012, foi sombria para o povo paraguaio, com um terço de sua população ainda vivendo na pobreza. Os conservadores evangélicos sufocaram qualquer progresso em relação aos direitos reprodutivos e LGBTQ, o crime organizado transnacional se aprofundou no país e a destruição do mundo natural do Paraguai pela agroindústria está se acelerando. Os ativistas urbanos e as comunidades indígenas e camponesas que resistem enfrentam uma repressão feroz.

“O primeiro partido nazista fora da Alemanha foi fundado no Paraguai em 1929.”

Em abril de 2023, o país votará em um novo presidente e congresso. O conservador Partido Colorado, que está atualmente no poder e disputa a presidência desde a década de 1940, está dividido por lutas internas entre diversas facções. Com Lugo fora da disputa devido ao limite de mandatos, uma série de rivais à direita, centro e esquerda espera tirar vantagem da situação.

Se a oposição puder superar os profundos obstáculos estruturais e divisões internas para recuperar o poder, ela poderá deter essas tendências sombrias e unir-se a uma luta regional com outras forças progressistas. A uma década do golpe e a menos de um ano das eleições, a questão é se a esquerda paraguaia pode replicar o triunfo eleitoral de Lugo sem ele nas urnas.

Sem paz, sem progresso

O Paraguai não é estranho à violência. Entre 1864 e 1870, a Guerra da Tríplice Aliança, formada por Argentina, Brasil e Uruguai, quase exterminou a população local. O século seguinte não foi melhor: guerras civis, revoluções, golpes e contragolpes foram pontuados por outro conflito exaustivo, desta vez contra a Bolívia. O autoritarismo infeccionou nas profundas feridas da instabilidade política. O primeiro partido nazista fora da Alemanha foi fundado no Paraguai em 1929.

Duas ditaduras militares, a do general Higinio Morínigo (1940-48) e a do general Alfredo Stroessner (1954-1989), governaram de mãos dadas com o partido político que governa o Paraguai até hoje. A duradoura hegemonia do Partido Colorado, também conhecido como Asociación Nacional Republicana (ANR), tem suas origens em uma sangrenta guerra civil. Em 1947, os colorados saíram vitoriosos, com o Paraguai se transformando em um Estado de partido único. O regime aniquilou toda a oposição; o Partido Comunista e a esquerda em geral se esconderam, e um grande número de pessoas foi forçado ao exílio, incluindo a maioria dos intelectuais do país.

A ditadura de Stroessner, apoiada pelos Estados Unidos, propagandeou o slogan “Paz e Progresso”. A realidade foi um regime totalitário que durou 35 anos – a ditadura mais longa da América do Sul – enquanto dava asilo a nazistas e franquistas, assassinava mais de 400 pessoas e sujeitava cerca de 19 mil pessoas à tortura.

Um legado de Stroessner para a política paraguaia hoje são os “colorado seccionales“: escritórios locais do partido que ainda estão presentes em praticamente todos os bairros de todas as cidades. Eles fornecem abertamente esmolas, remédios, empregos, contratos públicos e eventos esportivos para comprar votos e convocar, em ações físicas e digitais, os soldados de infantaria conhecidos como hurreros.

Esse controle social feroz, quase único na América Latina, instalou uma cultura política clientelista que cooptou a pequena classe média e enriqueceu aqueles que Tomás Palau chama de empresaurios: oligarcas capitalistas compadres próximos ao regime e seus sucessores. A queda de Stroessner não significou o fim do sistema autoritário que ele criou. Uma anedota popular conta que o ditador exilado, vendo uma foto do primeiro gabinete pós-transição do Paraguai, comentou: “Sou o único ausente”.

Uma esquerda no suporte de vida

Se o Partido Colorado se tornou dominante, a esquerda paraguaia sofre com múltiplas fraquezas estruturais – que por sua vez são difíceis de separar do legado do autoritarismo – que o diferencia regionalmente. Movimentos de massa (e, em menor grau, resistência armada) forçaram os regimes militares do Brasil, Chile e Uruguai a restaurar a democracia e criaram uma geração de líderes pós-ditaduras de esquerda (Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff, José Mujica) e centro-esquerda (Ricardo Lagos). No Paraguai, por outro lado, Stroessner foi derrubado apenas por um golpe palaciano em 1989 liderado por seu genro, general Andrés Rodríguez, que foi então legitimado em uma eleição nominalmente livre, mas injusta.

A continuidade subsequente do Colorado privou as forças progressistas de visibilidade, financiamento de campanha e experiência governamental além do truncado interregno de Lugo – que foi possibilitado apenas pela divisão do voto do Colorado entre dois candidatos e pelo jeito único de Lugo. Segundo Fernando Martínez, cientista político paraguaio da Universidade de Buenos Aires, o “fenômeno” de Lugo se baseou em uma aliança incomum entre os fiéis católicos rurais, os movimentos sociais de esquerda e o establishment do Partido Liberal Radical Autêntico (PLRA).

“A taxa de sindicalização do Paraguai, de apenas 6,7%, está bem abaixo do Brasil (18,9%), Argentina (27,7%), Uruguai (30,1%), Bolívia (39,1%) ou mesmo dos EUA (10,3%).”

“Lugo chega magicamente às pessoas, sobretudo aos pobres que estão distantes das estradas de asfalto das cidades”, lembra o colunista político Alfredo Boccia. A esquerda paraguaia ganhou poder em 2008 “por um atalho”, acrescenta. Hoje esse atalho não existe mais. Lugo representava um milagre, mas também uma espécie de maldição. Sua vitória personalizada privou a esquerda “de um processo de coordenação, debate, crescimento e construção de poder que não pode ser feito da noite para o dia”.

As universidades sul-americanas há muito fornecem um campo de treinamento para movimentos e políticos antiestablishment. O social-democrata chileno Gabriel Boric e sua chefe de comunicação comunista Camila Vallejo são apenas os exemplos mais recentes. No entanto, no Paraguai, os partidos tradicionais cooptam líderes universitários, até mesmo de ensino médio, como meio de colher novos eleitores.

Os operadores políticos costumam fazer dois ou três cursos de graduação sucessivos, diz David Riveros García, um ativista anticorrupção, “para que permaneçam na universidade para projetar influência política para si ou para seu partido. É uma loucura, mas acontece muito”. Quando os subornos falham, a repressão é empregada. Vivian Genes, estudante de arquitetura e organizadora da Universidade Nacional de Assunção (UNA), foi presa sem julgamento no ano passado junto com vários outros militantes durante protestos massivos contra a corrupção no Partido Colorado.

A etnicidade também não fornece uma estrutura organizadora para a política no Paraguai, como na vizinha Bolívia, onde a maioria indígena tem consistentemente devolvido ao Movimento ao Socialismo (MAS) o poder desde 2005. A maioria dos paraguaios é mestiça e fala um pouco de guarani e políticos falam da boca para fora sobre a herança indígena do país. No entanto, poucas pessoas se identificam com as comunidades indígenas marginalizadas de hoje, que somam apenas 120.000 pessoas e estão muito dispersas geograficamente (e em 19 povos distintos) para formar uma bancada indígena sólida.

Os partidos indigenistas nascentes precisam estar sob o guarda-chuva do movimento de esquerda mais amplo, argumenta Mario Rivarola, um artesão Mbyá Guarani e organizador da Organização Nacional de Aborígenes Independientes (ONAI). “Se os progressistas não se unirem”, acrescenta, os colorados “continuarão governando o Paraguai como sempre, com a extrema direita e a extrema corrupção. Não haverá um programa político para os pobres ou para nós indígenas”.

Enquanto os países vizinhos têm federações trabalhistas combativas que definem os parâmetros das políticas públicas, os sindicatos paraguaios são fracos e fragmentados. A taxa de sindicalização do Paraguai, de apenas 6,7%, está bem abaixo do Brasil (18,9%), Argentina (27,7%), Uruguai (30,1%), Bolívia (39,1%) ou mesmo dos Estados Unidos (10,3%). A economia é carente de empregos de manufatura ou mineração. Sete em cada dez pessoas trabalham na economia informal atomizada, vendendo chipa na beira da estrada ou atendendo famílias ricas. Apenas 0,6% dos empregados do setor privado são sindicalizados.

De acordo com a pesquisa de Ignacio González Bozzolasco, os trabalhadores frequentemente relatam a repressão sindical, incluindo intimidação por parte dos gerentes. Paradoxalmente, o baixo limite necessário para formar um sindicato setorial (trinta pessoas) significa que os patrões podem facilmente diluir o trabalho organizado por meio de recortes flexíveis. À medida que as empresas brasileiras aceitaram ansiosamente o convite de 2014 do ex-presidente Horacio Cartes para “usar e abusar do Paraguai” e sua (não sem relação) mão de obra barata, os últimos anos viram uma explosão no negócio têxtil. Essa forma de industrialização pouco qualificada nos moldes da América Latina dificilmente produzirá uma figura como Lula, que se formou no sindicato dos metalúrgicos de São Paulo, ou gerará condições para ações grevistas abrangentes como as que estabeleceram pisos salariais no Uruguai.

Os camponeses, normalmente sem o título da terra que trabalham, representam o setor político mais agitado, organizando marchas regulares, ocupações e manifestações, mas sofrem igualmente de desunião e repressão. Na década de 1970, a polícia de Stroessner desmantelou violentamente as Ligas Agrarias Cristianas, comunas camponesas autônomas e utópicas que haviam desafiado a dominação do Partido Colorada no campo. Seus herdeiros modernos, como a Federación Nacional Campesina, Conamuri e a Organización de Lucha por la Tierra, ajudam pequenos agricultores a reivindicar corajosamente terras públicas ocupadas ilegalmente pelo agronegócio, apesar de enfrentarem duras punições judiciais.

“No nível da luta social e em termos eleitorais, nos últimos 25 anos os camponeses têm sido o principal grupo social que oferece ideias transformadoras”, diz Najeeb Amado, secretário-geral do Partido Comunista Paraguaio (PCP). Mas a mídia corporativa e o governo são rápidos em pintar essas organizações com o mesmo pincel que o Ejército del Pueblo Paraguaio (EPP), um minúsculo grupo guerrilheiro ativo no norte.

Após as esperanças frustradas dos anos de Lugo, alguns movimentos rurais são ambivalentes em relação à política eleitoral, e seu poder está diminuindo à medida que pequenos proprietários familiares são forçados, muitas vezes sob a mira de armas, a migrar para a cidade ou para o exterior. Quanta chance a esquerda realmente tem, Boccia se pergunta em voz alta, em um país com uma população rural desenraizada e sem um proletariado urbano com qualquer poder real?

Engolir o sapo

O ano de 2023 pode, no entanto, fornecer uma brecha rara na notória “unidade granítica” dos Colorados. As duas facções rivais dominantes dentro do partido estão atualmente em guerra. O ex-presidente Horacio Cartes não é um Colorado por convicção, mas um latifundiário e plutocrata que se juntou ao partido há apenas uma década. Por outro lado, o presidente Mario Abdo Benítez – filho do carregador de malas de Stroessner – representa uma vertente mais estatista e tradicionalista do coloradismo.

No entanto, os analistas concordam que suas diferenças não são realmente sobre ideologia, mas sim sobre uma luta por riqueza e poder. Há meses, o governo Abdo Benítez vem informando que a fortuna de Cartes pode derivar de uma vasta operação internacional de contrabando de cigarros e lavagem de dinheiro em aliança com narcotraficantes: uma suspeita há muito compartilhada pela Agência Antidrogas dos EUA (DEA) e vários relatórios independentes. Cartes e seus funcionários insistem que tais alegações são politicamente motivadas e que a razão pela qual o magnata do tabaco reduziu suas viagens ao exterior não é o medo de ser preso como seu colaborador próximo Dario Messer, mas sim porque ele está cansado de viajar.

“No Paraguai, as eleições presidenciais são vencidas com maioria simples em um único turno: ou seja, a oposição só tem uma chance.”

Limites de mandato na Constituição paraguaia fazem com que nem Cartes nem Abdo Benítez possam concorrer no ano que vem, e seus sucessores nas primárias do Partido Colorado são profundamente sem inspiração. Santiago Peña, o tecnocrático de Cartes, foi derrotado nas primárias de 2017 por Abdo Benítez. Hugo Velázquez, o atual vice-presidente, é um veterano do partido perseguido por suas próprias alegações de corrupção.

As apostas para seus patronos rivais são tão altas que o perdedor das prévias em dezembro pode concorrer no ano que vem de qualquer maneira, dividindo ainda mais o voto do Partido Colorado e abrindo uma brecha para a esquerda, como aconteceu em 2008, quando a máquina partidária se uniu a um candidato e o vencedor saiu baqueado de toda confusão.

O desafio para a oposição, então, é reduzir o número de figuras centradas na personalidade em uma chapa unificada que possa tirar proveito das lutas internas do Partido Colorado. Dentro da crescente aliança centrista da Concertación, os pré-candidatos incluem Soledad Núñez, uma mulher de 39 anos que foi ministra da Habitação de Cartes, e Sebastián Villarejo, ex-vereador municipal do conservador Patria Querida (PPQ).

As diatribes da deputada Kattya González contra a corrupção são populares no TikTok, mas muitas vezes se transformam em estroessnerismo requentado sobre lei e ordem e valores “familiares”. No entanto, o PLRA, a segunda força política do Paraguai depois dos Colorados, provavelmente insistirá em mais uma vez impor seu líder sério Efraín Alegre, que concorreu à presidência e perdeu em 2013 e (mais estreitamente) em 2018. Os outros provavelmente se contentarão com cargos do primeiro escalão no gabinete e no Congresso.

O bloco de esquerda Ñemongeta por una Patria Nueva votou em Esperanza Martínez da Frente Guasú como sua candidata. Médico, especialista em saúde pública e senador que expandiu maciçamente a assistência médica gratuita como ministro da Saúde de Lugo, Martínez é uma figura de fala mansa em uma cultura política estridente. Mas seu apelo é óbvio depois que a pandemia revelou o estado abissal dos hospitais do Paraguai devido ao subfinanciamento e aos furtos do Partido Colorado.

Para o bem ou para o mal, parece provável uma chapa com Alegre e Martínez. Pode ser uma fórmula vencedora em 2023 – um arranjo semelhante chegou a alguns pontos percentuais da vitória em 2018 – mas há riscos. No Paraguai, as eleições presidenciais são vencidas com maioria simples em um único turno: ou seja, a oposição só tem uma chance. Se uma figura como González, o grosseiro e habilidoso ex-goleiro José Luis Chilavert, ou Euclides Acevedo – um social liberal que até recentemente era ministro das Relações Exteriores – decidir concorrer fora da emergente aliança Concertación-Ñemongeta, eles dividem fatalmente o voto da oposição.

Lugo, agora senador pela Frente Guasú, vai apostar em Martínez e na Concertación. Mas a bênção do ex-clérigo pode ser mista. Sua imagem foi manchada graças a escândalos sexuais que surgiram quando ele estava no cargo e à tentativa conjunta com Cartes de permitir que ambos concorressem a um segundo mandato por meio de uma emenda constitucional secreta, que levou manifestantes a incendiar o Congresso em março de 2017.

Mesmo que essa coalizão desajeitada seja vitoriosa, seus líderes podem lutar para realizar as mudanças significativas que o povo paraguaio tanto precisa, como a redistribuição de terras, os grandes aumentos de impostos e gastos recomendados até mesmo pelo Banco Mundial e pelo FMI, além de sérias reformas anticorrupção e o fortalecimento de movimentos que defendem os direitos reprodutivos e uma política de drogas mais inteligente. “Todos sabemos que o Partido Liberal é uma organização de direita”, diz Rivarola, que classifica Alegre como “traidor” por aderir à deposição de Lugo em 2012, “mas temos que engolir um pouco o sapo e a víbora para ganhar um espaço no poder para manter a organização. Acho que as pessoas vão se unir contra um inimigo claro: o Partido Colorado”.

Um jardim em um campo de soja

Um velho ditado cunhado pelo escritor Augusto Roa Bastos afirma que o Paraguai é uma ilha cercada de terra. Fica atrás de seus vizinhos em termos de direitos e liberdades, e é o único país sul-americano a manter relações com Taiwan e não com a China. Mas não está isolado das correntes políticas regionais. Com o Brasil provavelmente devolvendo Lula ao poder em outubro, o Paraguai pode ser o último de seus vizinhos a seguir a tendência de esquerda – parte maré rosa 2.0, parte anti-incumbência – varrendo a América do Sul.

Para conseguir isso, a desajeitada coalizão Concertación, incluindo a Ñemongeta, terá que unir com sucesso a oposição fraturada do Paraguai contra o Partido Colorados. Fazendo a ponte entre o campesinado sitiado e as classes médias urbanas espremidas, pode-se enfatizar como os colorados não apenas entregaram mais de oito milhões de hectares de terras agrícolas estatais a seus comparsas – uma área maior que o Panamá – mas estão ocupando ilegalmente pelo menos uma dúzia de parques públicos em Assunção, a capital, com seus escritórios partidários.

Também pode aproveitar o orgulho nacional feroz na resistência heróica do Paraguai nas guerras da Tríplice Aliança e do Chaco, enfatizando que o neoliberalismo do Partido Colorado deixou o país indefeso contra violentos cartéis transnacionais de drogas, os abusivos proprietários estrangeiros cortando suas florestas e diplomatas brasileiros tentando enganar o Paraguai pagando um preço injusto por sua abundante fonte de energia hidrelétrica.

“Os camponeses, embora perseguidos e exilados, continuem sendo os mais perspicazes na articulação de seus objetivos políticos e materiais.”

Expor a corrupção do governo pode ser uma tática de campanha eficaz. No entanto, os progressistas devem tomar cuidado para não deslegitimar o próprio gasto público, quando o estado do Paraguai quase não existe em muitos lugares, exceto para fornecer milícias armadas e uniformizadas para os barões do gado e da soja. A corrida será acirrada e observadores internacionais independentes precisarão ajudar a oposição a proteger cada voto.

Um Paraguai progressista seria um pontapé na cara dos direitistas latino-americanos e internacionais que há muito se inspiram em sua mistura de economia laissez-faire e governança autoritária: veja a recente visita do líder de pesquisa argentino Javier Milei, ou a onda de anti-vaxxers alemães e neonazistas que estão colonizando o campo do país. Também pode representar um desafio para os Estados Unidos, cuja a expansão da embaixada em Assunção, argumenta Amado, do Partido Comunista, ilustra o papel de longa data do Paraguai como ponta de lança dos interesses norte-americanos no Cone Sul.

Qualquer que seja o resultado em 2023, os movimentos sociais divididos, mas teimosos, continuarão sua luta contra as probabilidades. E é provável que os camponeses, embora perseguidos e exilados, continuem sendo os mais perspicazes na articulação de seus objetivos políticos e materiais.

Dez anos depois do golpe, a resposta ao refrão comum – “O que aconteceu em Curuguaty?” — permanece obscuro. Em 2018, no entanto, os 11 camponeses injustamente presos foram finalmente libertados e sua comunidade permanece no local. Em uma comemoração anterior ao massacre de 2012, Karina Paredes, que perdeu 2 irmãos na saraivada de balas, mostrou aos visitantes a aldeia florestal, seus pomares florescentes e hortas familiares, resistindo em meio a um horizonte infinito de soja. “Estamos muito orgulhosos”, disse ela. “Esses são os frutos da luta.”

Sobre os autores

Norma Flores Allende escreve para o jornal paraguaio Hína e para a mídia internacional, incluindo Tidningen Global (Suécia).

Laurence Blair reporta sobre o Paraguai para a mídia internacional, incluindo o The Guardian

27 de junho de 2022

Centrão lamenta Braga Netto na vice e prevê reforço da imagem radical de Bolsonaro

Aliados do presidente avaliam que Tereza Cristina seria uma opção melhor e ajudaria a ampliar eleitorado

Matheus Teixeira

Folha de S.Paulo

O presidente Jair Bolsonaro ao lado do então ministro Braga Netto (Defesa), durante cerimônia no Planalto - Antonio Molina - 12.jan.22/Folhapress

Aliados do presidente Jair Bolsonaro (PL) que integram os partidos do centrão fizeram uma avaliação negativa do anúncio de que o general Braga Netto (PL) será o vice na chapa do chefe do Executivo nas eleições deste ano.

Apesar de evitarem críticas públicas à escolha do mandatário, correligionários avaliam que o militar dificulta a missão de ampliar o eleitorado bolsonarista e reforça a imagem radical do presidente.

A preferência de grande parte do centrão era pela deputada e ex-ministra Tereza Cristina (PP). A decisão serviria para tentar melhorar o desempenho de Bolsonaro entre as mulheres, fatia do eleitorado em que tem um dos piores índices, segundo as pesquisas de intenção de votos. Além disso, havia a avaliação de que a parlamentar ajudaria a passar uma imagem mais moderada para a chapa do mandatário.

Embora tenha ouvido apelo de diversos aliados para mudar de escolha, Bolsonaro resistiu e anunciou no domingo (26) que decidiu manter a opção por Braga Netto.

Nos bastidores, interlocutores do Palácio do Planalto creditam a escolha ao fato de o chefe do Executivo ver o militar como uma pessoa mais confiável e que não representaria risco.

Cristina, por sua vez, tem bom trânsito no Congresso e, em uma eventual crise, poderia dar força a um movimento a favor do impeachment de Bolsonaro em um segundo mandato caso seja reeleito.

Braga Netto já era dado como certo para ocupar o posto de vice. Ele se filiou neste ano ao PL e deixou o Ministério da Defesa no prazo exigido para poder disputar as eleições. Em abril, o chefe do Executivo chegou a afirmar que o general tinha 90% de chance de ser seu vice.

Nas últimas semanas, porém, Bolsonaro começou a reavaliar a decisão. Diante da dificuldade para decolar nas pesquisas, o nome de Tereza Cristina passou a ser defendido por integrantes do governo e do Congresso como uma forma de o chefe do Executivo ampliar o eleitorado e melhorar a imagem junto ao público feminino.

O chefe do Executivo se mostrou aberto à discussão em conversas reservadas. Prova de que titubeou em relação ao general para seu vice foi a mudança de discurso recente quando abordado sobre o assunto.

Se em abril disse que tinha 90% de chance de indicá-lo para o posto, no último dia 15 equiparou as chances dele e de Cristina para ocupar a função. Na ocasião, em entrevista, afirmou que ambos estavam "cotadíssimos" para serem seu vice.

A hesitação ocorreu no momento em que mais sofria pressão para escolher a deputada. Depois de viver um momento de euforia pela saída do ex-juiz Sergio Moro (União Brasil) da disputa presidencial e pelo impacto positivo do aumento do valor do Auxílio Brasil, Bolsonaro estagnou nas pesquisas e aliados começaram a traçar novas estratégias em relação à disputa contra o ex-presidente Lula (PT) nas eleições deste ano.

A principal delas era criar um fato novo positivo e indicar uma mulher para vice. No último domingo (26), entretanto, Bolsonaro frustrou os aliados.

"Pretendo anunciar nos próximos dias", afirmou, em relação ao militar. "Vice é só um. Gostaria de poder indicar dez, aí não teria problema", disse ao programa 4 por 4, em entrevista feita por simpatizantes do presidente.

Braga Netto é um dos aliados mais fiéis de Bolsonaro e ajudou o presidente a consolidar o apoio da cúpula das Forças Armadas. Nos momentos de tensão, nunca se opôs às ameaças golpistas do chefe do Executivo, tampouco ao uso do Exército para pressionar o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) contra o sistema eletrônico de votação.

Além de ter sido ministro da Defesa, também ocupou a chefia da Casa Civil, ministério mais poderoso da Esplanada e quem tem a missão de coordenar a atuação de todas as outras pastas.

A filiação do militar ao PL ocorreu no final do prazo para estar apto a concorrer nas eleições deste ano e em um ato fechado, que não foi aberto ao público, como costuma acontecer em ações desta natureza.

Como já era dado como favorito para ser o vice, a campanha de Bolsonaro já vinha dando papel de protagonismo ao general nas discussões internas.

Ele tem sido usado por políticos próximos ao mandatário para trazer a ala militar do bolsonarismo para perto dos aliados do centrão, que hoje tocam o dia a dia da campanha.

O general tem participado de reuniões do comitê, como mostrou o Painel, e ficou responsável pela construção do programa de governo. Segundo aliados, caberá a ele reunir dados de entregas dos ministérios e apresentar um planejamento da administração para os próximos quatro anos.

O líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), elogia a escolha e afirma que o militar "será o braço direito do presidente Bolsonaro".

"É uma pessoa preparadíssima. Já foi chefe da Casa Civil, portanto é gestor do governo como um todo. Tem ampla visão das necessidades e da estrutura do Executivo e das oportunidades para o desenvolvimento do Brasil", diz.

Nas redes sociais, aliados de Bolsonaro também elogiaram a decisão do mandatário. Em alguns casos, publicaram a imagem do militar ao lado de uma foto do ex-governador Geraldo Alckmin (PSB), que será vice de Lula, e tentaram fazer comparações entre os dois.

25 de junho de 2022

Centrão joga pela reeleição de Bolsonaro, mas vê crise como chance de ampliar poder

Lira e Nogueira bancam aposta no presidente enquanto trabalham pelo próprio capital político

Bruno Boghossian


Presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), conversa com ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira (PP-PI), atrás do presidente Jair Bolsonaro (PL), em setembro de 2021 - Adriano Machado/Reuters

Na reunião convocada para discutir respostas ao aumento dos combustíveis, na segunda-feira (20), um aliado alertou o presidente da Câmara de que ele estava assumindo uma responsabilidade que não era sua.

O desgaste com a alta de preços, afinal, estava concentrado na figura de Jair Bolsonaro (PL), o que deveria obrigar o governo a liderar a busca de soluções para o problema. Arthur Lira (PP-AL) até concordou com aquelas premissas, mas avisou que não ficaria parado.

A associação com Bolsonaro rendeu um protagonismo inédito a Lira e seus aliados. O presidente da Câmara e o ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira (PP), controlam uma fatia mais do que generosa do Orçamento, negociam as propostas que rodam no Congresso e definem parte das políticas operadas pelo Palácio do Planalto. Em resumo: fazem praticamente o próprio governo.

Em tempos de crise, essa posição privilegiada dos chefes do centrão oferece uma oportunidade e impõe uma necessidade: a oportunidade de ampliar ainda mais essa influência e a necessidade de manter o presidente vivo. A encrenca em torno dos combustíveis apresentou ao grupo esses dois caminhos.

Lira e Nogueira aproveitaram o vácuo da articulação política do Planalto para liderar uma operação que permitisse a expansão de seus poderes. A dupla disparou ataques coordenados contra a Petrobras, telefonou para o então presidente da companhia sem dar muita satisfação a Bolsonaro e passou a elaborar uma agenda que atendesse aos interesses do grupo.

O centrão patrocinou o plano de reformular a Lei das Estatais como suposta solução para uma independência excessiva da empresa. Sob o pretexto de facilitar a demissão de diretores insubordinados, porém, estava a ideia de abrir caminho para a volta de nomeações políticas na petroleira –um expediente que abasteceu o PP e seus aliados durante governos petistas.

Um dos principais adversários de Lira e Nogueira dentro do governo se opôs a essa ideia. Paulo Guedes (Economia) espalhou a versão de que a ampliação do Auxílio Gás e o pagamento de um vale-combustível para caminhoneiros seria uma alternativa à reforma da Lei das Estatais. Lira mostrou quem dá as cartas ao dizer que o plano de mexer nas normas das empresas públicas continua de pé.

Os prognósticos cada vez mais nítidos de derrota de Bolsonaro explicam outra parte das atitudes de Lira e Nogueira. Seguindo as regras frias do jogo político, o centrão não se importaria tanto com a sorte eleitoral do presidente caso seu próprio destino não estivesse relacionado ao desempenho do capitão.

O centrão não só vendeu uma estabilidade política para o mandato de Bolsonaro, mas também investiu pesado na reeleição. A nomeação de Nogueira para a chefia da Casa Civil, há quase um ano, se deu com a condição de que ele trabalhasse para recauchutar a máquina governista, com o objetivo de ampliar as chances do presidente.

A aposta foi alta. Há poucos meses, Nogueira falava nas chances de uma vitória de Bolsonaro ainda no primeiro turno. Lira, que trabalha de maneira mais discreta como cabo eleitoral, afirmou que o presidente deveria ultrapassar Lula (PT) nas pesquisas "no final de maio ou junho". O prazo está terminando e não há sinal de que isso vá ocorrer.

O interesse desses atores numa recuperação vertiginosa de Bolsonaro parte de um cálculo simples. Num segundo mandato, a aliança seria renovada, com a expectativa de uma influência ainda maior desses políticos.

A vitória de qualquer outro candidato deixaria o centrão um pouco mais afastado do núcleo do poder ou, no mínimo, obrigaria os partidos a negociarem novos arranjos, numa posição pouco favorável. Aliados de Lula, por sinal, deixam claro que o petista jamais cederia um espaço tão nobre como a Casa Civil a um político do bloco.

A matemática também leva em conta a estatura do próprio centrão a partir do resultado das urnas. Embora as eleições para a Câmara e o Senado apresentem uma dinâmica ancorada em fatores locais, o derretimento de Bolsonaro pode ter efeitos colaterais sobre as bancadas do grupo.

Se o eleitor for às urnas em busca de punição aos responsáveis pela inflação e pelo mal-estar generalizado na economia, a coalizão de centro-direita que hoje sustenta o presidente certamente sentirá um impacto.

O efeito imediato dessa derrota se daria naquela que é a principal fonte de poder do centrão: a presidência da Câmara. Arthur Lira acumulou força no plenário graças às gordas emendas direcionadas às bases políticas dos deputados, mas perderá a condição de candidato natural ao comando da Casa se Bolsonaro estiver fora do Palácio do Planalto em 2023.

24 de junho de 2022

Fora Lasso

Soledad Stoessel



O governo neoliberal de Guillermo Lasso não poupou recursos na hora de reprimir a Greve Nacional no Equador, que já conta com 12 dias de protestos. Mas se as esquerdas não transcenderem seu sectarismo e ressentimentos para articular uma grande frente multinacional e popular, será difícil dar uma resposta profunda a essa crise.

"Fora, Lasso, fora” é ouvido nas ruas da capital equatoriana como parte do décimo segundo dia da greve nacional convocada pela Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE). Desde o início, o protagonismo da CONAIE foi acompanhado por inúmeras das mais amplas organizações e grupos do campo popular: estudantes, camponeses, sindicatos, transportadores, mulheres, feministas, artistas, trabalhadores informais.

A agenda de dez pontos exigida pela CONAIE foi a plataforma inicial com que lançaram a greve, mas à medida que a mobilização social avançava e a consequente resposta repressiva do Estado, bem como a miopia presidencial para processar esse conflito, a palavra de ordem destituíste ganhava mais força.

Esses tipos de slogans ("¡que se vayan todos!", "fora, presidente, fora!") de setores sociais mobilizados e fartos de representantes políticos distantes da sociedade não são novos no país andino. As três últimas quedas presidenciais (1997, 2000 e 2005) foram marcadas por intensos episódios contenciosos e de mobilização social discursivamente emoldurados por uma aversão à classe política, em particular à figura que encarna a mais alta investidura, o presidente.

Essa repulsa sempre adquiriu uma forma destituinte que se refletiu em um imaginário social peculiar: diante de qualquer crise social, econômica ou política que tenha seu correlato na ativação do poder constituinte (o povo mobilizado), a saída política é a renúncia ou a queda do presidente.

Os imaginários sociais, disse Cornelius Castoriadis, como conjunto de representações, normas, afetos, desejos e significados compartilhados por um grupo social, são fonte de criação. Eles produzem o mundo. Eles têm o poder de operar na realidade, oferecendo tanto oportunidades quanto restrições para as ações dos sujeitos que, por sua vez, podem ter efeitos instituintes e institucionais. Eles podem. Nem sempre acontece. Os imaginários sociais, mesmo os radicais (aqueles que, segundo o filósofo grego, se baseiam em uma imaginação, uma fantasia, projetada de forma autônoma, politizada, com vocação para a mudança), nem sempre produzem novas instituições e práticas sociais e rompem as relações de poder.

Durante la década de mayor estabilidad política en Ecuador —los años correístas— también se activó tal imaginario durante aislados y efímeros momentos. «Fuera, Correa, fuera» vitoreaban clases medias y herederas en constante ascenso social, en rechazo a un gobierno que dinamizaba la economía y la inversión pública y generaba empleo y acceso a la salud y educación pública para toda la población. Los rebeldes privilegiados, una minoría, pedían la cabeza presidencial.

El imaginario de una caída presidencial como forma de resolver la vida (o para impedir que otros vivan una digna, como el caso de los que reclamaban por no encontrar en el mercado productos importados, como la Nutella) aparece y desaparece en coyunturas críticas.

Octubre de 2019 también revivió dicho magma de representaciones destituyentes. La crisis social producida por el gobierno de Lenín Moreno ante el aumento por decreto del precio de los combustibles tuvo su contraparte en el estallido social más importante en lo que va del siglo XXI. Durante los trece días de intensas movilizaciones y de paro nacional, también convocado por el movimiento indígena, el fantasma de la caída presidencial pululó en las calles, en la sociedad civil y en la clase política. El saldo de la violenta represión estatal fueron 11 muertos y varios heridos y desaparecidos.

El conflicto se procesó institucional y políticamente por medio de un diálogo televisado públicamente entre los dirigentes indigenas y el presidente. Moreno y su gabinete (la ministra Romo, sometida a juicio político, y el exministro de Defensa Oswaldo Jarrín), denunciados internacionalmente por cometer crímenes de lesa humanidad, acabó su gobierno luego de cuatro años como si nada hubiera ocurrido.

El «fuera, Lasso, fuera» que ahora se escucha en parte —no todo— del campo popular organizado y movilizado contra el gobierno del banquero es el corolario de dos situaciones: el hartazgo de una sociedad que desde hace cuatro años sufre las consecuencias de un proyecto comandado por un bloque de poder oligárquico y el modo en que el gobierno de Lasso está interpretando y tramitando el conflicto.

Respecto a la primera, los reclamos públicos por parte de las organizaciones movilizadas van desde el rechazo a las políticas de austeridad (recortes presupuestarios en servicios públicos, como salud y educación), al aumento sostenido del precio de los combustibles y de la canasta básica (el video en que un niño pedía al gobierno controlar los precios de los bienes básicos como aceite y verduras porque su madre ya no podía prepararle salchipapas se viralizó al punto de ser un ícono de la resistencia y de reclamo de una vida digna), a la falta de inversión pública, a la privatización de servicios y empresas públicas, al extractivismo en territorios indígenas, hasta la carencia de una política pública eficiente y orientada al bien común.

A esta multiplicidad de demandas iniciales se sumó un repudio mayoritario —con excepción de las contramarchas «por la paz» a las que convocó en Quito el propio gobierno y operadores del imperio mediático privado— al modo en que el Estado, con todo su aparataje represivo, intervino en el conflicto desde el segundo día. Ni bien iniciada la protesta, el máximo dirigente de la CONAIE, Leonidas Iza, fue detenido ilegalmente (en estricto rigor, se trató de un secuestro) durante 24 horas durante las cuales se desconoció su paradero.

Si la protesta lucía ser una expresión más de descontento social, la respuesta gubernamental —violenta y represiva— la elevó a un estallido social sin precedentes, incluso sin parangón con los episodios de octubre. Respuesta gubernamental esperable. Al mes de asumido el gobierno, Lasso, en una ceremonia con las Fuerzas Armadas, se solidarizó con su colega Iván Duque por las denuncias que pesan sobre sus hombros por los crímenes de lesa humanidad cometidos durante las movilizaciones sociales en Colombia durante 2021. Y aprovechó el momento —guiño a las fuerzas del orden, amenaza al campo popular— para bloquear todo intento de ejercicio del derecho a la protesta y a la resistencia en Ecuador.

El quinto día de paro nacional, el gobierno, en un movimiento desesperado, decretó el Estado de excepción en tres provincias con el consiguiente toque de queda desde las 22 horas, la restricción de los derechos fundamentales y el uso progresivo de la fuerza. A las pocas horas, dada la lluvia de críticas (incluso de parte de sus propias filas) respecto a la restricción del derecho a la información, voceros presidenciales anunciaron que había habido un error, que el presidente firmó un borrador y lo remendarían. La ineptitud gubernamental en su máximo resplendor.

A los tres días de dicho torpe decreto, en una jugada macabra (no «maestra», como tildaron algunos twitteros lassistas) el gobierno firmó un nuevo decreto, anulando el previo, para extender la situación de excepcionalidad a tres provincias más, dado el alcance nacional que había adquirido el paro.

Al décimo día de paro nacional, la Alianza de Organizaciones por los Derechos Humanos ya contabilizaba 3 personas fallecidas, más de 90 heridas, 94 detenidas ilegalmente y 4 desaparecidas a causa de la represión gubernamental. Esta escalada de la violencia institucional se acompañó de escasos signos de apertura al diálogo por parte del gobierno nacional. De presidente a presidente, Lasso procuró establecer este «diálogo», adoptando como único interlocutor a Iza, a quien al mismo tiempo tildaba de violento, golpista y conspirador. A esta incompetencia gubernamental se sumaba la ocupación y militarización de espacios humanitarios emblemáticos, como universidades y la Casa de la Cultura Ecuatoriana, que funcionan como centros de acopio y refugio para las poblaciones indígenas movilizadas.

La calle vs. el gobierno; el pueblo vs. la oligarquía; el poder constituyente vs. el poder constituido —anquilosado en su insistencia por perpretar un neoliberalismo autoritario que ni media concesión al pueblo está dispuesto a hacer— no son meras consignas discursivas, como algunos nerviosos antipopulistas querrán proponer para denostar al populismo como estrategia política apoyada en una lógica binaria para alcanzar al poder.

Esta polarización estructural, ahondada por el gobierno nacional, tiene profundas bases materiales. Al tiempo que la sociedad se empobrece (1/3 de los ecuatorianos son pobres) y se sume al desempleo o al trabajo precarizado, al tiempo que las mayorías ya no cuentan con seguridad social y que los jóvenes no logran acceder a la universidad, que los sectores populares viven de remesas familiares (solo en el primer año del gobierno de Lasso salieron del país aproximadamente 91 000 personas) y que las clases medias deben pagar más impuestos, los grupos de poder gozan de la exención del impuesto a la herencia y de facilidades para fugar su capital en paraísos fiscales.

Como nunca en la historia del Ecuador, hoy la oligarquía tiene el poder instrumental y el poder estructural. Maneja los hilos de la economía al mismo tiempo que captura el Estado para sus propias arcas. Ya no fue necesario un intermediario, como lo fue Moreno. Ahora es la propia elite financiera, apoyada por las Fuerzas Militares (no olvidemos que en Ecuador han sido dirimentes en toda crisis política), los medios de comunicación privados y la Embajada la que controla los recursos públicos.

En esta polarización, instituciones democráticas como el parlamento y los partidos políticos brillan por su ausencia en tanto representantes del pueblo. Ante la imposibilidad de algunos partidos políticos de pronunciarse sobre (o encarnar) las salidas políticas-institucionales para procesar el conflicto, las calles se vuelven locus de la representación política.

¿Dicha imposibilidad responde a la falta de proyección política? ¿O a que están atrapados en una camisa de fuerza por posibles y conocidas persecuciones políticas que implantó como antecedentes el gobierno de Moreno? O sin más, ¿los partidos políticos, en una lectura «rational-choista» están sopesando los costos de involucrarse de primera mano para tramitar este conflicto social al que alimentaron varios de ellos, como el prebendalista y corporativista Pachakutik?

En este escenario, el imaginario social destituyente vuelve a reactivarse. Decíamos que un imaginario social solo en determinadas condiciones, según las particularidades de cada coyuntura, como las correlaciones de poder, el acumulado social y los poderes fácticos que sostienen el poder instituido, puede tener efectos instituyentes. ¿Lasso será destituido por medio de los mecanismos constitucionales que puede activar la Asamblea (artículo 130 de la Constitución)?

Dos bancadas parlamentarias (Izquierda Democrática y Partido Social Cristiano, suman aproximadamente 23 votos) ya anunciaron que no apoyarían la destitución, mientras que Iza exhortó a «sus» representantes partidarios (PK) a apoyarla. Por su parte, la bancada mayoritaria, la de UNES (Unión por la Esperanza), el partido correísta, por unanimidad y sin fisuras, puso sus curules a disposición y las firmas de sus asambleístas como gesto de apoyo a la destitución presidencial por medio del artículo 130.2 de la Constitución.

¿El presidente renunciará? En este escenario de radicalización de la derecha ecuatoriana que obtuvo el poder por la vía electoral, sumado a los aliados estratégicos a quienes una posible caída presidencial amenazaría sus posiciones, es difícil que a Lasso lo «dejen» renunciar. ¿El Poder Ejecutivo convocará a la novedosa figura de la «muerte cruzada» (artículo 148)? Meses atrás, ya Lasso había amenazado con hacerlo si la Asamblea continuaba «bloqueando» sus proyectos legislativos. ¿O simplemente el conflicto social se procesará por medio de una negociación política entre la CONAIE y el gobierno, de forma tal de bajar la intensidad de la contienda y cada parte conseguir una victoria, aunque parcial?

El patrón corporativo con que las organizaciones indígenas han negociado sus agendas los últimos años (recordemos la alianza entre la CONAIE, PK y el gobierno de Moreno) puede reactivarse en este escenario. Y, a esta altura, el gobierno puede declararse triunfante si logra ceder a varias de las diez demandas sociales declaradas por la CONAIE y esto es aceptado por la organización. En caso de abrirse este escenario, ¿se conformará el campo popular movilizado con la conquista de algunas de las reivindicaciones esbozadas por la CONAIE, excluyendo al resto de demandas ajenas a la organización indígena?

Como se delinea, el panorama luce más que preocupante. Hoy, en vísperas del doceavo día de paro y movilización nacional, que el conflicto encuentre un cauce democrático e institucional suena quimérico. El recrudecimiento de la represión y violación de derechos humanos a últimas horas de la noche del día once de paro (cuando por la tarde parecía establecerse una tregua para el diálogo), la acefalía gubernamental y el saludo celebratorio de operadores mediáticos y de un alto asesor presidencial a las fuerzas del orden por su «trabajo abnegado y heroico» no auguran nada bueno.

El bloque de poder lejos está de visualizar la urgencia de tramitar democráticamente las demandas legítimas que el campo popular viene exigiendo desde los años en que el neoliberalismo autoritario retornó al país andino, con miras a encarnarse como proyecto de poder excluyente, disciplinador y autoritario. Es acuciante, entonces, la conformación de un gran frente plurinacional-popular (¿un Pacto Histórico a la ecuatoriana?) que pueda trascender las parcelas particularistas y los resentimientos políticos de los representantes del campo popular para proponer una salida democrática a esta crisis social y política sin precedentes.

Sobre a autora

Doutora em Ciências Sociais e professora-pesquisadora da Universidade Nacional de La Plata e FLACSO-Equador.

23 de junho de 2022

As causas e consequências da crise na Ucrânia

A guerra na Ucrânia é um desastre multidimensional, que provavelmente ficará muito pior em um futuro próximo.

John J. Mearsheimer



Esta conferência foi proferida no Instituto Universitário Europeu (EUI), em Florença, na quinta-feira, 16 de Junho de 2022

Tradução / A guerra na Ucrânia é uma catástrofe multifacetada que provavelmente se agravará em um futuro previsível. Quando uma guerra é bem sucedida, pouca atenção é dada às suas causas, mas quando o seu resultado se torna catastrófico, a compreensão de como ela aconteceu torna-se primordial. As pessoas querem saber: como é que nos metemos em uma situação tão terrível?

Já testemunhei este fenômeno duas vezes na minha vida – primeiro durante a Guerra do Vietnã e depois durante a Guerra do Iraque. Em ambos os casos, os americanos queriam saber como é que o seu país pôde ter feito um tal erro de cálculo. Dado que os Estados Unidos e os seus aliados da OTAN desempenharam um papel decisivo nos acontecimentos que conduziram ao conflito militar na Ucrânia, e agora estão desempenhando um papel central nesta guerra, é apropriado avaliar a responsabilidade do Ocidente por esta catástrofe colossal.

Hoje vou apresentar dois argumentos principais.

Primeiro, os Estados Unidos são os principais culpados pelo surgimento da crise ucraniana. Isto não nega que Putin lançou uma operação militar especial na Ucrânia, e ele é também responsável pelas ações que os militares russos estão levando a cabo naquele país. Mas isto também não nega que os aliados também têm uma certa quota-parte da culpa pela Ucrânia, embora na sua grande maioria simplesmente sigam cegamente os Estados Unidos neste conflito. O meu principal argumento é que os Estados Unidos têm prosseguido e estão prosseguindo uma política em relação à Ucrânia que Putin e outros líderes russos veem como uma ameaça existencial para a Rússia. E ele tem afirmado isso repetidamente ao longo dos anos. Refiro-me especialmente à obsessão da América em arrastar a Ucrânia para a OTAN e transformá-la em um bastião do Ocidente na fronteira com a Rússia. A administração Biden não quis eliminar esta ameaça com a ajuda da diplomacia e, de fato, em 2021 confirmou o compromisso dos Estados Unidos em aceitar a Ucrânia na OTAN. Putin respondeu com uma operação militar especial na Ucrânia, que teve início a 24 de fevereiro deste ano.

Em segundo lugar, a administração Biden reagiu ao início da operação especial duplicando praticamente os seus esforços anti russos. Washington e os seus aliados ocidentais estão determinados a conseguir a derrota da Rússia na Ucrânia e a aplicar todas as sanções possíveis para enfraquecer significativamente o poder russo. Os Estados Unidos não estão seriamente interessados em encontrar uma solução diplomática para o conflito, o que significa que é provável que a guerra se arraste durante meses, se não anos. Ao mesmo tempo, a Ucrânia, que já sofreu terrivelmente, será ainda mais prejudicada. De fato, os Estados Unidos estão ajudando a Ucrânia a seguir o falso caminho das "vitórias" imaginárias, de fato, levando o país ao colapso total. Além disso, existe também o perigo de uma nova escalada do conflito ucraniano, uma vez que a OTAN pode estar envolvida no mesmo, e as armas nucleares podem ser utilizadas durante as hostilidades. Vivemos em tempos cheios de perigos mortais.

Deixem-me agora expor a minha argumentação de forma mais detalhada, começando com uma descrição das ideias geralmente aceitas sobre as causas do conflito ucraniano.

Ideias confusas do Ocidente

Existe uma forte convicção generalizada no Ocidente de que Putin tem plena responsabilidade pela crise na Ucrânia e, claro, pelas hostilidades em curso no território deste país. Dizem que ele tem ambições imperiais, ou seja, procura conquistar a Ucrânia e outros países – e tudo isto com o objetivo de criar uma grande Rússia que tenha alguma semelhança com a antiga União Soviética. Por outras palavras, a Ucrânia é o primeiro objetivo de Putin, mas não o seu último. Como disse um cientista, ele “persegue um objetivo sinistro e duradouro: apagar a Ucrânia do mapa do mundo”. Dados estes alegados objetivos de Putin, é bastante lógico que a Finlândia e a Suécia adiram à NATO, e que a aliança aumente o número das suas forças na Europa de Leste. A Rússia imperial, afinal de contas, deve ser contida.

No entanto, é de notar que embora esta narrativa seja repetida vezes sem conta nos principais meios de comunicação social ocidentais e por praticamente todos os líderes ocidentais, não existem provas que a apoiem. E quando os apoiantes deste ponto de vista geralmente aceite no Ocidente tentam representá-los, verifica-se que não têm praticamente nada a ver com os motivos de Putin para enviar tropas para a Ucrânia. Por exemplo, alguns enfatizam as palavras repetidas de Putin de que a Ucrânia é um “estado artificial” ou não um “estado real”. No entanto, tais declarações opacas da sua parte nada dizem sobre a razão da sua campanha na Ucrânia. O mesmo se pode dizer da declaração de Putin de que ele vê os russos e os ucranianos como “um só povo” com uma história comum. Outros notam que ele chamou ao colapso da União Soviética “a maior catástrofe geopolítica do século”. E que Putin também afirmou: “Aquele que não se lembra da União Soviética não tem coração. Aqueles que a querem de volta não têm cérebro”. Ainda outros apontam para um discurso em que ele afirmou que “a Ucrânia moderna foi inteiramente criada pela Rússia ou, mais precisamente, pela Rússia bolchevique, comunista”. Mas no mesmo discurso, falando hoje sobre a independência da Ucrânia, Putin disse: “É claro que não podemos mudar acontecimentos passados, mas devemos pelo menos reconhecê-los aberta e honestamente”.

Para provar que Putin procura conquistar toda a Ucrânia e anexá-la à Rússia, é necessário fornecer provas de que, em primeiro lugar, ele o considera um objetivo desejável, em segundo lugar, que o considera um objetivo realizável, e, em terceiro lugar, que pretende perseguir este objetivo. No entanto, não existem provas em fontes públicas de que Putin iria, e mais ainda, de que tencionava acabar com a Ucrânia como Estado independente e torná-la parte de uma Rússia maior quando lançou uma operação especial na Ucrânia, a 24 de Fevereiro.

Na realidade, tudo é exatamente o oposto. Há fortes indícios de que Putin reconhece a Ucrânia como um país independente. No seu artigo sobre as relações russo-ucranianas, datado de 12 de Julho de 2021, ao qual os apoiantes da opinião popular no Ocidente se referem frequentemente como prova das suas ambições imperiais, ele diz ao povo ucraniano: “Quer criar o seu próprio Estado? Só o saudamos”. E quanto à forma como a Rússia deve tratar a Ucrânia, ele escreve: “Só há uma resposta: com respeito”. E Putin termina este longo artigo com as seguintes palavras: “E como será a Ucrânia, é aos seus cidadãos que cabe decidir”. É difícil conciliar estas declarações com declarações no Ocidente de que quer incluir a Ucrânia na “grande Rússia”.

No mesmo artigo datado de 12 de Julho de 2021, e novamente num importante discurso por ele proferido em 21 de Fevereiro deste ano, Putin salientou que a Rússia aceita “a nova realidade geopolítica que se desenvolveu após o colapso da URSS”. Repetiu-o pela terceira vez a 24 de Fevereiro, quando anunciou que a Rússia estava a lançar a sua operação militar especial na Ucrânia. Em particular, declarou que “a ocupação do território ucraniano não faz parte dos nossos planos”, e deixou claro que respeita a soberania da Ucrânia, mas apenas até um certo ponto: “A Rússia não pode sentir-se segura, desenvolver-se e existir, estando sob constante ameaça do território da Ucrânia de hoje”. Na verdade, isto sugere que Putin não está interessado em que a Ucrânia se torne parte da Rússia. Ele está interessado em assegurar que não se torne um “trampolim” para a agressão ocidental contra a Rússia, sobre a qual vos falarei mais tarde.

Poder-se-ia argumentar que Putin, dizem, está a mentir sobre os seus motivos, que está a tentar disfarçar as suas ambições imperiais. Aconteceu que uma vez escrevi um livro sobre mentiras na política internacional – “Why Leaders Lie: the Truth about Lies in International Politics” – e é claro para mim que Putin não está a mentir. Em primeiro lugar, uma das minhas principais conclusões é que os líderes não mentem uns aos outros com frequência, mentem mais vezes ao seu povo. Quanto a Putin, não importa o que as pessoas pensam sobre ele, não há provas na história de que ele alguma vez tenha mentido a outros líderes. Embora alguns afirmem que ele mente frequentemente e não se pode confiar nele, há poucas provas de que tenha mentido a um público estrangeiro. Além disso, ao longo dos últimos dois anos, ele expressou repetidamente publicamente os seus pensamentos sobre a Ucrânia e salientou constantemente que a sua principal preocupação são as relações da Ucrânia com o Ocidente, especialmente com a NATO. Ele nunca insinuou que quer fazer da Ucrânia parte da Rússia. Se tal comportamento faz parte de uma gigantesca campanha enganadora, então não tem precedentes na história.

Talvez o melhor indicador de que Putin não procura conquistar e absorver a Ucrânia seja a estratégia militar que Moscovo tem utilizado desde o início da sua operação especial. O exército russo não tentou conquistar toda a Ucrânia. Isto exigiria uma estratégia clássica de blitzkrieg destinada a capturar rapidamente todo o território do país por forças blindadas com o apoio da aviação tática. Esta estratégia, contudo, não era viável porque o exército russo, que lançou a operação especial, tinha apenas 190.000 soldados, um exército demasiado pequeno para ocupar a Ucrânia, que não só é o maior país entre o Oceano Atlântico e a Rússia, como também tem uma população de mais de 40 milhões de pessoas. Sem surpresas, os russos seguiram uma estratégia de objetivos limitados que se centravam na criação de uma ameaça para capturar Kiev, mas principalmente na conquista de uma parte significativa do território no leste e sul da Ucrânia. Em suma, a Rússia não teve a oportunidade de subjugar toda a Ucrânia, para não falar de outros países da Europa Oriental.

Como foi assinalado por Ramzi Mardini (um conhecido cientista político americano, investigador sénior no influente Instituto Americano da Paz, professor na Universidade de Chicago) outro indicador dos objetivos limitados de Putin é a falta de provas de que a Rússia estava a preparar um governo fantoche para a Ucrânia, tivesse alimentado líderes pró-russos em Kiev, ou tivesse tomado quaisquer medidas políticas que lhe permitissem ocupar todo o país e, eventualmente, integrá-lo na Rússia.

Se desenvolvermos este argumento, é de notar que Putin e outros líderes russos provavelmente compreenderam, a partir da experiência da Guerra Fria, que a ocupação de países na era do nacionalismo é invariavelmente uma receita para problemas intermináveis. A experiência soviética no Afeganistão é um exemplo vivo disto, mas as relações de Moscovo com os seus aliados na Europa Oriental são mais relevantes para esta questão. A União Soviética manteve uma enorme presença militar na região e esteve envolvida na política de quase todos os países ali localizados. No entanto, estes aliados foram frequentemente um espinho para Moscovo. A União Soviética reprimiu uma grande revolta na Alemanha Oriental em 1953, e depois invadiu a Hungria em 1956 e a Checoslováquia em 1968 para os manter na sua órbita. Surgiram graves problemas na URSS e na Polónia: em 1956, 1970 e novamente em 1980-1981. Embora as próprias autoridades polacas tenham resolvido estes problemas, serviram como um lembrete de que a intervenção soviética pode, por vezes, ser necessária. A Albânia, a Roménia e a Jugoslávia causavam geralmente problemas a Moscovo, mas os líderes soviéticos tendiam a suportar o seu “mau” comportamento porque a sua localização geográfica os tornava menos importantes para dissuadir a NATO.

E quanto à Ucrânia moderna? Do artigo de Putin de 12 de Julho de 2021, é claro que ele compreendeu então que o nacionalismo ucraniano é uma força poderosa e que a guerra civil no Donbas, que tem vindo a decorrer desde 2014, envenenou largamente as relações entre a Rússia e a Ucrânia. Ele sabia, evidentemente, que o exército russo não seria acolhido pelos ucranianos de braços abertos e que seria uma tarefa “hercúlea” para a Rússia subjugar a Ucrânia, mesmo que tivesse as forças necessárias para conquistar todo o país, o que Moscovo não tinha.

Finalmente, vale a pena notar que quase ninguém afirmou que Putin tinha ambições imperiais desde o momento em que tomou as rédeas do poder em 2000 até à primeira eclosão da crise ucraniana, a 22 de Fevereiro de 2014. Além disso, vale a pena lembrar que o líder russo foi convidado na cimeira da NATO em Abril de 2008 em Bucareste, onde a aliança anunciou que a Ucrânia e a Geórgia acabariam por se tornar seus membros. As críticas de Putin a esta declaração quase não tiveram efeito em Washington, porque a Rússia era considerada demasiado fraca para impedir uma maior expansão da NATO, tal como era demasiado fraca para impedir as ondas de expansão da aliança em 1999 e 2004.

A este respeito, é importante notar que a expansão da NATO até Fevereiro de 2014 não se destinava a dissuadir a Rússia. Dado o deplorável estado do poder militar russo na altura, Moscovo não estava em condições de prosseguir uma política “imperial” na Europa de Leste. Falando abertamente, mesmo o antigo embaixador dos EUA em Moscovo, Michael McFaul, observa que a tomada da Crimeia por Putin não estava planeada antes da crise “Maidan” eclodir em 2014. Foi a reação impulsiva de Putin ao golpe que derrubou o líder pró-russo da Ucrânia. Em suma, a expansão da NATO ainda não se destinava a conter a ameaça russa, mas fazia parte de uma política mais vasta de extensão da ordem internacional liberal à Europa Oriental e de transformação de todo o continente numa Europa “Ocidental”.

Foi apenas quando a crise da praça Maidan eclodiu em Fevereiro de 2014 que os Estados Unidos e os seus aliados começaram subitamente a chamar a Putin um líder perigoso com ambições imperiais, e a Rússia uma séria ameaça militar que deve ser contida. O que causou esta mudança? Esta nova retórica pretendia servir um propósito importante: permitir ao Ocidente culpar Putin por desencadear a agitação na Ucrânia. E agora que esta crise de longa data se transformou numa guerra em grande escala, o Ocidente precisa de afirmar que Putin é o único culpado por esta viragem catastrófica dos acontecimentos. Este “jogo da culpa” explica porque é que Putin é agora amplamente retratado no Ocidente como um “imperialista”, embora não haja praticamente provas que sustentem este ponto de vista.

Permitam-me agora que me debruce sobre a verdadeira causa da crise ucraniana.

A verdadeira causa dos problemas

A raiz principal da atual crise na Ucrânia são os esforços dos Estados Unidos no sentido de transformar este país num bastião do Ocidente nas fronteiras da Rússia. Esta estratégia tem três direções: A integração da Ucrânia na UE, a transformação da Ucrânia numa democracia liberal pró-ocidental e, mais importante ainda, a inclusão da Ucrânia na NATO. A estratégia foi posta em marcha na cimeira anual da NATO em Bucareste, em Abril de 2008, quando a aliança anunciou que a Ucrânia e a Geórgia iriam “tornar-se seus membros”. Os líderes russos reagiram imediatamente com indignação, deixando claro que encaravam esta decisão como uma ameaça existencial e que não tinham a intenção de permitir a adesão de nenhum país à NATO. De acordo com um respeitado jornalista russo, Putin “ficou furioso” e avisou que “se a Ucrânia aderir à NATO, ficará sem a Crimeia e muitas das suas regiões orientais. Vai simplesmente desmoronar-se”.

William Burns, que é agora o chefe da CIA, e durante a cimeira da NATO em Bucareste era o embaixador dos EUA em Moscovo, escreveu um memorando à então Secretária de Estado Condoleezza Rice [administração de George W. Bush], no qual descreve sucintamente os pontos de vista da Rússia sobre esta questão. Segundo Burns: “A adesão da Ucrânia à NATO é a mais contrastante de todas as linhas vermelhas para a elite russa (e não apenas para Putin). Em mais de dois anos e meio de conversas com atores-chave russos, desde patriotas nos cantos escuros do Kremlin até aos mais duros críticos liberais de Putin, não encontrei ninguém que não considerasse a Ucrânia na NATO senão como um desafio direto aos interesses da Rússia”. Segundo ele, a NATO “será considerada… como uma estrutura militar que lança um desafio estratégico a Moscovo. E a Rússia de hoje irá responder. As relações russo-ucranianas irão simplesmente congelar… Isto irá criar um terreno fértil para a interferência russa nos assuntos da Crimeia e da Ucrânia oriental”.

Burns, claro, não foi o único político que compreendeu que a adesão da Ucrânia à NATO estava repleta de perigos. De facto, na cimeira de Bucareste, tanto a chanceler alemã Ângela Merkel como o presidente francês Nicolas Sarkozy opuseram-se à promoção da adesão da Ucrânia à NATO, porque compreenderam que isso iria causar alarme e a cólera da Rússia. Merkel explicou recentemente o seu desacordo na altura da seguinte forma: “Tinha a certeza absoluta de que Putin simplesmente não o permitiria. Do seu ponto de vista, seria uma declaração de guerra”.

A administração Bush, contudo, pouco se importou com as “linhas vermelhas mais contrastantes de Moscovo”, e pressionou os líderes da França e Alemanha a concordarem em fazer uma declaração pública de que a Ucrânia e a Geórgia acabariam por se juntar à aliança.

Sem surpresas, os esforços liderados pelos EUA para integrar a Geórgia na NATO levaram a uma guerra entre a Geórgia e a Rússia em Agosto de 2008 – quatro meses após a cimeira de Bucareste. No entanto, os Estados Unidos e os seus aliados continuaram a avançar com os seus planos de transformar a Ucrânia num bastião do Ocidente nas fronteiras da Rússia. Estes esforços acabaram por desencadear uma grande crise em Fevereiro de 2014, depois de um golpe de Estado norte-americano em Kiev ter forçado o presidente pró-russo da Ucrânia, Viktor Yanukovych, a fugir do país. Foi substituído pelo primeiro-ministro pró-americano Arseniy Yatsenyuk. Em resposta, a Rússia tomou a Crimea da Ucrânia e ajudou a desencadear uma guerra civil entre separatistas pró-russos e o governo ucraniano no Donbas, no leste da Ucrânia.

Ouve-se frequentemente o argumento de que nos oito anos entre o início da crise em Fevereiro de 2014 e o início da guerra em Fevereiro de 2022, os Estados Unidos e os seus aliados prestaram pouca atenção à entrada da Ucrânia na NATO. Dizem que esta questão foi de facto retirada do debate e, portanto, a expansão da NATO não poderia ser uma razão séria para a escalada da crise em 2021 e o subsequente início da operação especial russa no início deste ano. Este argumento é falso. De facto, a reação do Ocidente aos acontecimentos de 2014 foi de redobrar os seus esforços na atual estratégia e de aproximar ainda mais a Ucrânia à NATO. A Aliança começou a treinar os militares ucranianos em 2014, treinando anualmente 10.000 militares das Forças Armadas da Ucrânia ao longo dos oito anos seguintes. Em Dezembro de 2017, a administração Trump decidiu fornecer a Kiev “armas defensivas”. Em breve outros países da NATO juntaram-se aos Estados Unidos na ajuda militar à Ucrânia, fornecendo à Ucrânia ainda mais armas.

Os militares ucranianos começaram a participar em exercícios militares conjuntos com as forças da NATO. Em Julho de 2021, Kiev e Washington conduziram conjuntamente a Operação Sea Breeze, um exercício naval no Mar Negro em que participaram as forças navais de 31 países e que foi diretamente dirigido à Rússia. Dois meses mais tarde, em Setembro de 2021, o exército ucraniano liderou os exercícios Rapid Trident 21, que o exército norte-americano descreveu como “exercícios anuais destinados a melhorar a interoperabilidade entre países aliados e parceiros para demonstrar a prontidão das unidades para responder a qualquer crise”. Os esforços da NATO para armar e treinar as forças armadas ucranianas explicam em grande parte porque é que as Forças Armadas ucranianas colocaram uma resistência tão forte às forças armadas russas nas fases iniciais da operação especial. Como dizia o título do The Wall Street Journal no início da operação especial: “O segredo do sucesso militar da Ucrânia”: Anos de treino na NATO ” (o artigo apareceu no The WSJ a 13 de Abril de 2022, The Wall Street Journal ” The Wall Street Journal “The Secret of Ukraine’s Military Success: Years of NATO Training “, seguido da derrota esmagadora das Forças Armadas Ucranianas em Mariupol, Kherson e Severodonetsk – Aprox. InoSMI).

Para além dos esforços em curso da NATO para transformar as forças armadas ucranianas numa força de combate mais poderosa, a política relacionada com a adesão da Ucrânia à NATO e a sua integração no Ocidente mudou em 2021. Tanto em Kiev como em Washington, o entusiasmo pela concretização destes objetivos foi reavivado. O Presidente Zelensky, que nunca demonstrou muito zelo pela adesão da Ucrânia à NATO e foi eleito em Março de 2019 numa plataforma que apelava à cooperação com a Rússia para resolver a crise em curso, mudou de rumo no início de 2021 e não só decidiu expandir a NATO, como também tomou uma posição dura em relação a Moscovo. Tomou uma série de medidas, incluindo o encerramento de canais de televisão pró-russos e a acusação de traição a um grande amigo de Putin, que deve ter enfurecido Moscovo.

O Presidente Biden, que se mudou para a Casa Branca em Janeiro de 2021, há muito que está empenhado na adesão da Ucrânia à NATO e tem sido também muito agressivo em relação à Rússia. Não é surpreendente que em 14 de Junho de 2021, na sua cimeira anual em Bruxelas, a NATO tenha emitido o seguinte comunicado:

"Confirmamos a decisão tomada na Cimeira de Bucareste em 2008 de que a Ucrânia se tornará membro da Aliança com o Plano de Ação para a Adesão (MAP) como parte integrante do processo. Confirmamos todos os elementos desta decisão, bem como as decisões subsequentes, incluindo que cada parceiro será avaliado com base nos seus próprios méritos. Apoiamos firmemente o direito da Ucrânia a determinar independentemente o seu futuro e o curso da política externa sem interferência externa".

A 1 de Setembro de 2021, Zelensky visitou a Casa Branca, onde Biden deixou claro que os Estados Unidos estavam “firmemente empenhados” nas “aspirações euro-atlânticas” da Ucrânia. Depois, a 10 de Novembro de 2021, o Secretário de Estado Anthony Blinken e o seu homólogo ucraniano Dmitry Kuleba assinaram um documento importante – a Carta sobre Parceria Estratégica entre os Estados Unidos e a Ucrânia. O objetivo de ambas as partes, diz o documento, é “enfatizar… o empenho da Ucrânia em levar a cabo reformas profundas e abrangentes necessárias à plena integração nas instituições europeias e euro-atlânticas”. Este documento baseia-se claramente não só nos “compromissos para reforçar as relações de parceria estratégica entre a Ucrânia e os Estados Unidos, proclamados pelos presidentes Zelensky e Biden”, mas também confirma o compromisso dos Estados Unidos com a “Declaração da Cimeira de Bucareste de 2008”.

Em suma, poucos duvidam que, desde o início de 2021, a Ucrânia tenha começado a avançar rapidamente para a adesão à NATO. No entanto, alguns defensores desta política argumentam que Moscovo não se deveria ter preocupado, uma vez que “a NATO é uma aliança defensiva e não representa uma ameaça para a Rússia”. Mas não é assim que Putin e outros líderes russos pensam sobre a NATO e, aqui, o que importa é exatamente o que eles pensam. Não há dúvida que a adesão da Ucrânia à NATO permaneceu para Moscovo “a linha vermelha mais contrastante e perigosa”.

Para contrariar esta ameaça crescente, Putin destacou um número crescente de tropas russas para a fronteira com a Ucrânia entre Fevereiro de 2021 e Fevereiro de 2022. O seu objetivo era forçar Biden e Zelensky a mudar de rumo e parar os seus esforços para integrar a Ucrânia no Ocidente. A 17 de Dezembro de 2021, Moscovo enviou cartas separadas à administração Biden e à NATO exigindo garantias escritas: 1) a Ucrânia não aderirá à NATO, 2) as armas ofensivas não serão utilizadas perto das fronteiras da Rússia, 3) as tropas e o equipamento militar da NATO deslocados para a Europa de Leste desde 1997 serão devolvidos à Europa Ocidental.

Durante este período, Putin fez inúmeras declarações públicas que não deixaram dúvidas de que via a expansão da NATO para a Ucrânia como uma ameaça existencial. Falando na direção do Ministério da Defesa, a 21 de Dezembro de 2021, disse ele: “O que eles estão a fazer, a tentar ou a planear fazer na Ucrânia, não acontece a milhares de quilómetros da nossa fronteira nacional. Isto está a acontecer à nossa porta. Eles precisam de compreender que simplesmente não temos para onde recuar mais. Será que eles pensam realmente que não vemos estas ameaças? Ou será que pensam que ficaremos de braços cruzados, assistindo às crescentes ameaças à Rússia?” Dois meses mais tarde, numa conferência de imprensa a 22 de Fevereiro de 2022, apenas alguns dias antes do início da operação especial, disse Putin: “Somos categoricamente contra a adesão da Ucrânia à NATO, porque ela constitui uma ameaça para nós, e temos argumentos onde apoiamos esta posição. Tenho dito isto repetidamente nesta Sala”. Depois deixou claro que acredita que a Ucrânia já está a tornar-se um membro de facto da NATO. De acordo com Putin, os Estados Unidos e os seus aliados “continuam a bombear as atuais autoridades de Kiev com tipos modernos de armas”. Disse ainda que se isto não for impedido, Moscovo “será deixada sozinha com um país Anti Rússia armado até aos dentes. Isto é completamente inaceitável”.

A lógica de Putin devia ser perfeitamente clara para os americanos, que desde há muito tempo se empenham em aplicar a doutrina Monroe, segundo a qual não é permitido a nenhuma grande potência, mesmo que longínqua, implantar no Hemisfério Ocidental as suas tropas.

Poderia salientar que em todas as declarações públicas de Putin durante os meses que precederam a operação especial, não há a mínima evidência de que ele iria tomar a Ucrânia e torná-la parte da Rússia, para não mencionar o ataque a outros países da Europa Oriental. Outros líderes russos, incluindo o Ministro da Defesa, o Ministro dos Negócios Estrangeiros, o Vice-Ministro dos Negócios Estrangeiros e o Embaixador russo em Washington, também sublinharam o papel fundamental da expansão da NATO na emergência da crise ucraniana. O Ministro dos Negócios Estrangeiros Sergey Lavrov expressou-o sucintamente numa conferência de imprensa a 14 de Janeiro de 2022, quando afirmou: “A chave para tudo é garantir que a NATO não se expandirá para Leste”.

No entanto, as tentativas de Lavrov e Putin de forçar os Estados Unidos e os seus aliados a abandonarem as tentativas de transformar a Ucrânia num bastião do Ocidente na fronteira com a Rússia fracassaram completamente. O Secretário de Estado Anthony Blinken respondeu às exigências da Rússia em meados de Dezembro dizendo simplesmente: “Nenhuma mudança. Não haverá mudanças”. Depois Putin lançou uma operação especial na Ucrânia para eliminar a ameaça que viu da NATO na Ucrânia.

Onde estamos agora e para onde vamos?

As operações militares na Ucrânia têm sido violentas desde há quase quatro meses. Agora gostaria de apresentar algumas observações sobre o que aconteceu até agora e para onde a guerra pode ir. Irei concentrar-me em três questões específicas: 1) as consequências da guerra para a Ucrânia, 2) as perspetivas de escalada – incluindo a escalada nuclear, 3) as perspetivas do fim da guerra num futuro previsível.

Esta guerra é uma verdadeira catástrofe para a Ucrânia. Como já referi anteriormente, Putin deixou claro em 2008 que a Rússia destruiria a Ucrânia para a impedir de aderir à NATO. Ele cumpre essa promessa. As tropas russas capturaram 20% do território ucraniano e destruíram ou danificaram gravemente muitas cidades e vilas ucranianas. Mais de 6,5 milhões de ucranianos deixaram o país, e mais de 8 milhões tornaram-se pessoas deslocadas internamente. Muitos milhares de ucranianos, incluindo civis inocentes, foram mortos ou gravemente feridos, e a economia ucraniana está em profunda crise. De acordo com estimativas do Banco Mundial, a economia da Ucrânia irá diminuir quase 50% durante 2022. Segundo os especialistas, a Ucrânia foi danificada em cerca de 100 mil milhões de dólares, e será necessário cerca de um milhão de milhões de dólares para restaurar a economia do país. Agora Kiev precisa de cerca de 5 mil milhões de dólares em ajuda todos os meses apenas para manter o governo em funcionamento.

Parece haver pouca esperança agora de que a Ucrânia seja capaz de restaurar a utilização dos portos nos mares Azov e Negro num futuro próximo. Antes da guerra, cerca de 70% de todas as exportações e importações ucranianas e 98% das exportações de cereais passavam por estes portos. Esta é a situação atual, após menos de 4 meses de combates. É até assustador imaginar como será a Ucrânia se esta guerra se arrastar por mais alguns anos.

Então, quais são as perspetivas para a conclusão de um acordo de paz e o fim da guerra nos próximos meses? Infelizmente, pessoalmente não vejo a possibilidade de que esta guerra termine num futuro próximo. E esta opinião é partilhada por políticos proeminentes como o General Mark Milley, Presidente do Estado-Maior Conjunto dos EUA, e o Secretário-Geral da NATO Jens Stoltenberg. A principal razão do meu pessimismo é que tanto a Rússia como os Estados Unidos estão profundamente empenhados no objetivo de ganhar a guerra, e é impossível alcançar um acordo em que ambos os lados ganhassem agora. Mais especificamente, a chave do acordo do ponto de vista da Rússia é a transformação da Ucrânia num estado neutro, o que porá fim à perspetiva da integração de Kiev com o Ocidente. Mas um tal resultado é inaceitável para a administração Biden e uma parte significativa do poder estabelecido da política externa americana, porque significaria uma vitória para a Rússia.

Os líderes ucranianos, evidentemente, têm uma certa liberdade de ação, e pode-se esperar que possam adotar a neutralidade para salvar o seu país de mais destruição. De facto, Zelensky mencionou brevemente esta possibilidade nos primeiros dias da operação especial, mas nunca desenvolveu seriamente esta ideia. Contudo, é improvável que Kiev possa aceitar a neutralidade, porque os ultranacionalistas na Ucrânia, que têm um poder político significativo, não estão interessados em ceder pelo menos a qualquer exigência russa, especialmente uma que dite a orientação política da Ucrânia nas relações com o mundo exterior. É muito provável que a administração Biden e os países do flanco oriental da NATO, como a Polónia e os Estados Bálticos, apoiem os ultranacionalistas ucranianos nesta questão.

Complicar significativamente a situação é a questão de saber o que fazer com grandes áreas do território ucraniano que a Rússia conquistou desde o início da guerra, bem como o que fazer com a Crimeia? É difícil imaginar que Moscovo abdicaria voluntariamente de qualquer dos territórios ucranianos que agora ocupa, e ainda mais de toda a parte conquistada da Ucrânia, uma vez que os atuais objetivos territoriais de Putin são provavelmente diferentes dos que ele perseguia antes do início da operação especial. Ao mesmo tempo, é igualmente difícil imaginar que qualquer líder ucraniano concordaria com um acordo que permitisse à Rússia manter qualquer território ucraniano, com a possível exceção da Crimeia. Espero estar enganado, mas é precisamente por estas razões que não vejo o fim deste destrutivo conflito militar.

Permitam-me agora que me debruce sobre a questão da sua possível escalada. É amplamente reconhecido entre os estudiosos internacionais que existe uma forte tendência para a escalada de guerras prolongadas. Com o tempo, outros países estão normalmente envolvidos na luta, e o nível de violência aumenta. A probabilidade de isto acontecer na guerra na Ucrânia é real. Existe o perigo de os Estados Unidos e os seus aliados da NATO serem arrastados para hostilidades, que até agora conseguiram evitar, embora na realidade já estejam a travar uma guerra indireta por procuração contra a Rússia. Existe também a possibilidade de armas nucleares poderem ser utilizadas na Ucrânia, o que poderia mesmo levar a uma troca de ataques nucleares entre a Rússia e os Estados Unidos. A principal razão pela qual isto pode acontecer é que as apostas no conflito ucraniano na sua refração global revelaram-se tão elevadas para ambos os lados que nenhum deles se pode dar ao luxo de perder.

Como já sublinhei, Putin e os seus colaboradores pensam que a adesão da Ucrânia ao Ocidente representa uma ameaça existencial para a Rússia que precisa de ser eliminada. Na prática, isto significa que a Rússia tem de ganhar a guerra na Ucrânia. A derrota é inaceitável para Moscovo. A administração Biden, por outro lado, salientou que o seu objetivo não é apenas infligir uma derrota decisiva à Rússia na Ucrânia, mas também infligir enormes danos à economia russa com a ajuda de sanções. O Secretário da Defesa Lloyd Austin salientou que o objetivo do Ocidente é o de enfraquecer a Rússia a tal ponto que esta não possa voltar a entrar na Ucrânia. De facto, a administração Biden está a tentar fazer com que a Rússia saia das grandes potências. O próprio Presidente Biden chamou à guerra da Rússia na Ucrânia “genocídio” e acusou Putin de ser um “criminoso de guerra” que, após a guerra, deveria ser julgado por “crimes de guerra”. Tal retórica dificilmente é adequada para negociações sobre o fim da guerra. Afinal de contas, como negociar com um Estado que está a levar a cabo um genocídio?

A política americana tem duas consequências importantes. Primeiro, aumenta significativamente a ameaça existencial que Moscovo enfrenta nesta guerra, e torna a sua vitória na Ucrânia mais importante do que nunca. Ao mesmo tempo, esta política dos EUA significa que os Estados Unidos estão profundamente empenhados em que a Rússia perca. A administração Biden investiu agora tanto na sua guerra por procuração na Ucrânia – tanto material como retórica – que uma vitória russa significaria uma derrota esmagadora para Washington.

Obviamente, ambos os lados não podem ganhar ao mesmo tempo. Além disso, existe uma séria possibilidade de uma das partes começar em breve a perder fortemente. Se a política americana for bem sucedida e os russos perderem para os ucranianos no campo de batalha, Putin poderá recorrer a armas nucleares para salvar a situação. Em Maio, Evril Haines, Director dos Serviços Secretos Nacionais dos EUA, disse ao Comité dos Serviços Armados do Senado que esta é uma das duas situações que podem levar Putin a utilizar armas nucleares na Ucrânia. Para aqueles que pensam que isto é improvável, lembrem-se que a NATO planeou utilizar armas nucleares em circunstâncias semelhantes durante a Guerra Fria. É impossível prever agora como reagiria a administração Biden se a Rússia utilizasse armas nucleares na Ucrânia. Mas uma coisa é certa: Washington estará sob grande pressão e tentada a retribuir com a Rússia, o que aumentará a probabilidade de uma guerra nuclear entre as duas grandes potências. Há aqui um paradoxo perverso: quanto mais bem sucedidos forem os Estados Unidos e os seus aliados na realização dos seus objetivos, maior será a probabilidade de a guerra se tornar nuclear.

Vamos virar a mesa de jogo e perguntar o que acontece se se verificar que os Estados Unidos e os seus aliados da NATO estão a caminho da derrota, o que acontece se os russos derrotarem o exército ucraniano, e o governo em Kiev negociar um acordo de paz destinado a salvar o máximo possível da parte restante da Ucrânia. Neste caso, os Estados Unidos e os seus aliados serão tentados a tomar uma parte ainda mais ativa nos combates. É improvável, mas é bem possível que as tropas americanas ou talvez polacas estejam envolvidas em hostilidades, o que significa que a NATO estará em guerra com a Rússia no sentido literal da palavra. Segundo Evril Haines, este é outro cenário em que os russos podem recorrer a armas nucleares. É difícil dizer exatamente como irão evoluir os acontecimentos se este cenário for implementado, mas não há dúvida de que existe um sério potencial de escalada, incluindo a escalada nuclear. A própria possibilidade de um tal resultado deveria dar-nos a todos arrepios.

Esta guerra poderá provavelmente ter outras consequências desastrosas, que não posso discutir em pormenor por falta de tempo. Por exemplo, há razões para acreditar que a guerra conduzirá a uma crise alimentar global, na qual muitos milhões de pessoas morrerão. O Presidente do Banco Mundial David Malpass afirma que se a guerra na Ucrânia continuar, iremos enfrentar uma crise alimentar global que se tornará uma “catástrofe humanitária”.

Além disso, as relações entre a Rússia e o Ocidente estão tão gravemente envenenadas que serão necessários anos para as restabelecer. E esta profunda hostilidade irá alimentar a instabilidade em todo o mundo, mas especialmente na Europa. Alguém dirá que há um lado bom: as relações entre países do Ocidente melhoraram acentuadamente devido ao conflito na Ucrânia. Mas isto só é verdade de momento. Mesmo agora, existem fissuras profundas sob a superfície da unidade externa ocidental, e com o passar do tempo irão declarar-se de forma muito urgente e dolorosa. Por exemplo, é provável que as relações entre os países da Europa Oriental e Ocidental se deteriorem à medida que a guerra se arrasta, uma vez que os seus interesses e opiniões sobre o conflito não coincidem.

Finalmente, o conflito já está a causar sérios danos à economia global e, com o tempo, esta situação é suscetível de piorar seriamente. Jamie Diamond, CEO da JPMorgan Chase, diz que nos devemos preparar para um “furacão” económico. Se ele estiver certo, então a atual turbulência económica irá afetar a política de cada país ocidental, minar a democracia liberal e fortalecer os seus opositores, tanto à esquerda como à direita. As consequências económicas do conflito ucraniano irão afetar os países de todo o planeta, e não apenas o Ocidente. De acordo com um relatório da ONU publicado na semana passada, "as consequências do conflito irão espalhar o sofrimento humano muito para além das suas fronteiras. A guerra em todos os seus aspetos exacerbou uma crise global sem precedentes, pelo menos para a geração atual, pondo em perigo vidas, meios de subsistência e as nossas aspirações a um mundo melhor na década de 2030".

Conclusão

Em termos simples, o conflito em curso na Ucrânia é uma catástrofe colossal, o que, como observei no início desta minha intervenção, obrigará pessoas de todo o mundo a procurar as suas causas. Aqueles que acreditam em factos e lógica descobrirão rapidamente que os Estados Unidos e os seus aliados são os principais responsáveis por este descarrilamento do nosso comboio comum. A decisão tomada em Abril de 2008 sobre a adesão da Ucrânia e da Geórgia à NATO estava destinada a conduzir a um conflito com a Rússia. A administração Bush foi o principal arquiteto desta escolha fatídica, mas as administrações Obama, Trump e Biden intensificaram e agravaram esta política em cada curva, e os aliados da América seguiram obedientemente Washington. Apesar do facto de os líderes russos terem deixado bem claro que a adesão da Ucrânia à NATO significaria cruzar as “linhas vermelhas mais contrastantes” da Rússia, os Estados Unidos recusaram-se a aceitar as profundas preocupações da Rússia em matéria de segurança e, em vez disso, moveram-se incansavelmente para transformar a Ucrânia num bastião ocidental na fronteira com a Rússia.

A trágica verdade é que se o Ocidente não tivesse procurado expandir a NATO para a Ucrânia, é improvável que hoje em dia tivesse havido uma guerra na Ucrânia, e a Crimeia ainda faria muito provavelmente parte da Ucrânia. De facto, Washington desempenhou um papel central na condução da Ucrânia para o caminho da destruição. A história condenará severamente os Estados Unidos e os seus aliados pela sua política estúpida em relação à Ucrânia.

John J. Mearsheimer é professor de ciência política na Universidade de Chicago. Seus muitos livros incluem The Great Delusion: Liberal Dreams and International Realities e The Tragedy of Great Power Politics.

Guia essencial para a Jacobin

A Jacobin tem divulgado conteúdo socialista em ritmo acelerado desde 2010. Eis aqui um guia prático para algumas das obras mais importantes ...