Michael Lipkin
Sidecar
Tradução / Neste ano, a publicação da Teoria estética de Adorno completa 52 anos e, até agora, aquele texto hostil, com seus parágrafos que atravessam páginas e sua argumentação elusiva e paradoxal, ainda não disse tudo o que tinha para dizer. Em um artigo recente para a revista New Left Review, Patricia McManus citou as reflexões do livro acerca da relação entre a forma artística e os julgamentos de valor em sua resposta ao apelo de Joseph North por uma “crítica literária de esquerda que também seja uma educação estética radical, voltada para o cultivo de modos de sensibilidade e subjetividade que possam contribuir diretamente na luta por uma sociedade melhor”.
Se Adorno teria algo a contribuir para esta luta, isso está longe de ser algo dado. Para muitos leitores, com seu vocabulário conceitual fundado na tradição estética alemã e sua convicção de que a filosofia deve ditar os termos da arte, pode parecer que o livro pertence mais ao passado do que ao presente. Ainda assim, parece que a Teoria estética ainda tem algo a dizer sobre a questão acerca do que a arte é capaz e – talvez de forma ainda mais marcante – não é capaz de realizar em um mundo que continua tão não-livre do que quando Theodor Adorno o deixou.
Uma ressonância marcante com a discussão atual da New Left Review sobre a crítica literária pode ser encontrada no apelo de Theodor Adorno ao “estudo daqueles alienados da arte”. Trata-se do equivalente, na Teoria estética, da figura do “leitor ordinário”, com quem a crítica da última década, de acordo com McManus, esteve cada vez mais preocupada: o indivíduo que, para sua felicidade, desconhece os significantes, os discursos e qualquer outra parafernália da bibliografia literária, e simplesmente lê aquilo que gosta e não lê o que não gosta. Seria tal figura uma mera projeção, um sintoma da crise de legitimidade que afeta a academia, conforme argumentam Rachel Buurma e Laura Heffernan? Ou, como pensam Rita Felski, Amanda Anderson e Toril Moi, uma melhor compreensão das formas com que os leitores realmente leem poderia ser a base para uma crítica mais engajada com o mundo real?
O posicionamento de Theodor Adorno sobre esta questão é tipicamente dialético. Esta figura não é apresentada sem um toque de altivez elitista: “os ingénuos da indústria cultural, ávidos das suas mercadorias, situam-se aquém da arte”[i]. E, no entanto, sua falta de familiaridade é tida como lhes permitindo uma clareza que o frequentador regular da ópera, o patrono de museus ou o crítico literário não possuem. Eles são capazes de perceber a “inadequação [da arte] ao processo da vida social atual – mas não a falsidade deste – muito mais claramente do que aqueles que ainda se recordam do que era outrora uma obra de arte”[ii]. Aquele que aperta os olhos diante de uma obra de arte moderna e pergunta, “para que ela serve?”, tem, neste sentido, uma visão mais lúcida do estatuto contemporâneo da arte do que o crítico – em especial, de que, “o que diz respeito à arte deixou de ser evidente … até mesmo o seu direito à existência”[iii].
Na medida em que tais passagens realizam a fusão de uma falta de familiaridade condescendente em relação àqueles de fora da academia com a sua auto aversão interna, pode parecer que elas unem as fraquezas de ambos os lados do debate acerca do “leitor ordinário”. Mas Theodor Adorno não pretende idealizar nem depreciar. A figura que ele propõe é, em vez disso, uma intervenção crítica acerca da arte “engajada” e da crítica literária de seu tempo. Contrariamente a Benjamin, praticamente o único crítico que, durante a vida de Adorno, pode ser considerado digno de um engajamento constante com a Teoria estética, Adorno considera de forma axiomática que a democratização da arte foi um fracasso. Em vez de levar a arte às massas, a reprodutibilidade técnica da obra de arte, na visão de Adorno, simplesmente produziu uma forma mais refinada de cultura de massas – veja as lamúrias em torno do mundo editorial dizendo que “ficção literária” é apenas uma designação elitista de propaganda – enquanto a homogeneização das classes destruiu os públicos coerentes e identificáveis para quem era destinada a obra de arte.
Esta historicização da relação entre os produtores de arte e seus “consumidores” é um componente menor da crítica da Teoria estética a uma critique engagé. Theodor Adorno argumenta que, quando vistas através da perspectiva de um indivíduo sem sensibilidade artística, torna-se claro que as categorias de tal crítica são atiradas de uma pistola – isto é, lançadas sem qualquer conceituação rigorosa do que uma obra de arte realmente é. A máxima de Brecht de que a literatura deve ser “não menos inteligente do que a ciência” e, portanto, deve produzir um conhecimento tão verdadeiro e útil quanto as ciências sociais e, até mesmo, as naturais, parece ser ainda mais frágil quando se imagina explicando-a ao não-leitor. “Para questões como ‘porque se imita tal coisa’ ou: ‘por que se narra alguma coisa como se fosse verdadeira, quando não o é e apenas deforma a realidade’, não existe nenhuma resposta que convença aqueles que tais perguntas faz”[iv], escreve Adorno.
Existe algo de ridículo até mesmo nas mais graves obras de arte, ele argumenta, cujas raízes estão no caráter arcaico do “impulso mimético”. Os conceitos e as categorias da crítica política, que aproximam a seriedade das ciências sociais com a urgência moral da luta pela justiça, são, portanto, atraentes justamente porque colocam uma folha de figueira sobre a obra de arte, encobrindo-a – assim como os trajes vestidos pelo macaco, no conto de Kafka, em seu discurso para a academia.
Para Theodor Adorno, portanto, qualquer tentativa de obter uma educação moral e política diretamente das obras literárias está condenada a esbarrar na “não-identidade” da literatura. Foi esta reivindicação da autonomia da obra de arte – frequentemente acompanhada pela anedota do empalidecimento de Adorno quando estudantes com os seios descobertos invadiram a sua sala de aula – que costumou compor as acusações de quietismo político e, de forma ainda mais absurda, conservadorismo. Mas basta colocar algumas frases da Teoria estética ao lado daquelas da “nova estética” que – encabeçadas pelo livro Aesthetics and Ideology (1995) de George Levine – invocaram Adorno para convocar um retorno ao objeto artístico, contra a sua “politização” por Foucault, Jameson e Said para perceber a diferença.
Certamente, na medida em que ele insiste que a obra de arte, enquanto, obviamente, um fait social, não pode ser deduzida de suas circunstâncias sociais, Adorno está em desacordo com outras correntes da crítica marxista. Ele também resiste, ao menos em minha leitura, ao nietzcshianismo de esquerda de Deleuze e Guattari, cuja caracterização da obra de arte enquanto apenas um tipo de “assemblage” no “plano da imanência” sugere que as técnicas artísticas e os efeitos (nenhuma distinção mais profunda é traçada aqui) são práticas sociais simplesmente porque acontecem na sociedade.
De acordo com a Teoria estética, o que distingue a obra de arte do resto da realidade perceptível é o fato de que ela ordena seu material de acordo com sua lógica própria. No caso da literatura, isso aparece de forma mais óbvia na transposição de experiências não-linguísticas para a linguagem; mas também se manifesta nos negócios mais granulares do estilo – algo não considerado digno de atenção crítica pelo paradigma historicista contemporâneo.
Theodor Adorno, no entanto, afirma que a função social da arte parte precisamente de sua distinção com relação a outras mercadorias, modos de produção, serviços e formas de informação. A racionalidade autoimposta de acordo com a qual a obra de arte seleciona e organiza seus elementos constituintes parodia a racionalidade do mundo social. A obra de arte alcança sua função crítica não naquilo que diz, mas no que faz: “ela acusa a racionalidade da práxis social de ter-se tornado um fim em si mesma e, enquanto tal, a reversão irracional e insana dos meios em fins”. Os horrores da racionalidade técnica fora de controle, enlouquecida, – sobretudo, o Holocausto – nunca estão distantes da análise que Adorno faz da ‘negatividade’ de Beckett e Kafka.
Até mesmo o verso mais leve de Eduard Mörike tem, para ele, um caráter político, simplesmente porque seus elementos parecem ter-se unido por vontade própria, livres da crueldade com a qual o mundo social transforma tudo em seu interior em algo idêntico a si mesmo. Uma crítica de esquerda, orientada pela Teoria estética, não procuraria, portanto, aproximar a obra de arte do mundo social. Em vez disso, ela buscaria distanciá-la ainda mais.
Adorno é, para dizer o mínimo, elusivo acerca das implicações disso. A Teoria estética é parcimoniosa no uso dos verbos dever, ter e necessitar. Uma forma de compreender o livro seria como uma tentativa de definir limites às outras concepções de obra de arte. De fato, a Teoria estética parece muitas vezes criticar duramente os paradigmas do presente. É difícil não ler a afirmação de Adorno de que, por exemplo, as tecnologias, os processos sociais e as ideologias sem os quais a obra de arte não poderia existir estão cristalizados em seu interior enquanto uma defesa da experiência estética contra a episteme foucaultiana.
Sua resistência à politização total da arte, entretanto, poderia ser dirigida à academia americana do pós-George Floyd. Ela também expressa uma ambivalência nada pequena diante do tipo de materialismo proposto por McManus, que está, de forma compreensível, ganhando espaço em um clima generalizado de impulsos de sindicalização dentre os estudantes-trabalhadores de pós-graduação nas universidades americanas.
Nos termos de Theodor Adorno, uma crítica que considerasse as condições materiais realmente existentes – nas quais há “tanto para ler e tão pouco tempo”, como escreve McManus – teria que considerar o deslocamento destas forças no interior do objeto estudado para se tornar algo mais do que uma “mera” sociologia das universidades e do mundo editorial. Tais modelos críticos, no fim das contas, retêm a mesma obsessão com o princípio de realidade que domina o mundo administrado – com procurar “punir” a arte por afirmar ser algo mais do que é, diminuindo-a.
Encerrar com uma avaliação de suas contribuições ‘positivas’ seria trair a negatividade inabalável da Teoria estética. Todavia, em um certo sentido, pode-se afirmar que ela converge com a perspectiva de North, expressa em Literary criticism (2017), de que a crítica por vir daria maior ênfase a um uso “terapêutico” – uma palavra que eu utilizo deliberadamente em conexão com Adorno – “em vez de um uso meramente diagnóstico do literário”. Uma tal ênfase é, paradoxalmente, aparente na insistência de Adorno no “mutismo” da arte, isto é, na maneira com que ela transforma ideias discursivas e conceitos em aparências.
Mesmo as obras mais discursivas têm, para Theodor Adorno, mais coisas em comum com a natureza, que simplesmente é, do que com a filosofia ou a política. “Natureza”, aqui, diz respeito não apenas aos objetos naturais, mas a tudo aquilo que é dominado, mutilado e reprimido pelo processo civilizatório. A obra de arte torna-se um local de preservação para aqueles aspectos do mundo destruídos pela razão instrumental, oferecendo uma imagem negativa do que Fredic Jameson, em sua própria obra sobre Adorno, referiu-se como “uma visão poderosa de uma cultura coletiva libertada”.
Portanto, neste sentido, Theodor Adorno se mostra como tendo mais em comum com o espírito emancipatório dos anos 1960 do que ele deixava transparecer – ainda que, em sua perspectiva, diferentemente da “culinária ou da pornografia”, a arte atinge tal patamar justamente ao suspender a sensação imediata de prazer (“Qualquer um que escuta música procurando pelas passagens bonitas é um diletante”). Uma estética plenamente realizada não defenderia, no entanto, um antirracionalismo regressivo – cujas armadilhas foram definitivamente provadas pelo fascismo – ou um hedonismo sensorial. Seguindo o programa original da Escola de Frankfurt, ela operaria em uma aliança dinâmica com a psicanálise e a antropologia, iluminando tudo aquilo que se encontra nas sombras da razão, e que é necessário para resgatar a razão em seu sentido mais pleno e amplo de seu antagonista mais determinado – ela mesma.
Um tal projeto é consideravelmente mais abstrato do que aquele esquematizado no ensaio de McManus, ou, igualmente, do que qualquer coisa que a crítica procurou realizar desde o momento iconoclasta do pós-estruturalismo. Mas, até mesmo as considerações mais abstratas de Adorno são reforçadas por um compromisso ético angustiado. A contribuição mais significativa da Teoria estética para o momento presente talvez seja a centralidade do sofrimento em seus problemas e suas categorias.
Afinal, o resgate da estética não significa descartar a crítica dos compromissos morais e políticos. Pelo contrário, em uma época em que a arte não possui uma função social clara, uma justificativa para a continuidade de sua existência é a sua habilidade de reduzir o sofrimento. A arte é o meio apropriado para a compreensão e expressão do sofrimento porque ela “escapa e rejeita o conhecimento racional”. Enquanto a crítica engajada de hoje omite com muita frequência a distinção entre a representação e a realidade do sofrimento – um erro categórico pelo qual Adorno responsabilizaria a cultura de massas – uma estética adorniana poderia se situar dentre os paradoxos éticos da obra de arte terapêutica.
A obra de arte acaricia, com “mão afagadora da lembrança”, a angústia humana, um alívio que não contém em si qualquer medida de traição. A crítica pode oferecer uma linguagem para estes paradoxos, pode provocar e transmitir consolo. Diferentemente da política, ela é capaz de nos dizer o que pode e não pode ser dito – o que pode ser transformado e o que deixou para sempre a sua cicatriz.
Se Adorno teria algo a contribuir para esta luta, isso está longe de ser algo dado. Para muitos leitores, com seu vocabulário conceitual fundado na tradição estética alemã e sua convicção de que a filosofia deve ditar os termos da arte, pode parecer que o livro pertence mais ao passado do que ao presente. Ainda assim, parece que a Teoria estética ainda tem algo a dizer sobre a questão acerca do que a arte é capaz e – talvez de forma ainda mais marcante – não é capaz de realizar em um mundo que continua tão não-livre do que quando Theodor Adorno o deixou.
Uma ressonância marcante com a discussão atual da New Left Review sobre a crítica literária pode ser encontrada no apelo de Theodor Adorno ao “estudo daqueles alienados da arte”. Trata-se do equivalente, na Teoria estética, da figura do “leitor ordinário”, com quem a crítica da última década, de acordo com McManus, esteve cada vez mais preocupada: o indivíduo que, para sua felicidade, desconhece os significantes, os discursos e qualquer outra parafernália da bibliografia literária, e simplesmente lê aquilo que gosta e não lê o que não gosta. Seria tal figura uma mera projeção, um sintoma da crise de legitimidade que afeta a academia, conforme argumentam Rachel Buurma e Laura Heffernan? Ou, como pensam Rita Felski, Amanda Anderson e Toril Moi, uma melhor compreensão das formas com que os leitores realmente leem poderia ser a base para uma crítica mais engajada com o mundo real?
O posicionamento de Theodor Adorno sobre esta questão é tipicamente dialético. Esta figura não é apresentada sem um toque de altivez elitista: “os ingénuos da indústria cultural, ávidos das suas mercadorias, situam-se aquém da arte”[i]. E, no entanto, sua falta de familiaridade é tida como lhes permitindo uma clareza que o frequentador regular da ópera, o patrono de museus ou o crítico literário não possuem. Eles são capazes de perceber a “inadequação [da arte] ao processo da vida social atual – mas não a falsidade deste – muito mais claramente do que aqueles que ainda se recordam do que era outrora uma obra de arte”[ii]. Aquele que aperta os olhos diante de uma obra de arte moderna e pergunta, “para que ela serve?”, tem, neste sentido, uma visão mais lúcida do estatuto contemporâneo da arte do que o crítico – em especial, de que, “o que diz respeito à arte deixou de ser evidente … até mesmo o seu direito à existência”[iii].
Na medida em que tais passagens realizam a fusão de uma falta de familiaridade condescendente em relação àqueles de fora da academia com a sua auto aversão interna, pode parecer que elas unem as fraquezas de ambos os lados do debate acerca do “leitor ordinário”. Mas Theodor Adorno não pretende idealizar nem depreciar. A figura que ele propõe é, em vez disso, uma intervenção crítica acerca da arte “engajada” e da crítica literária de seu tempo. Contrariamente a Benjamin, praticamente o único crítico que, durante a vida de Adorno, pode ser considerado digno de um engajamento constante com a Teoria estética, Adorno considera de forma axiomática que a democratização da arte foi um fracasso. Em vez de levar a arte às massas, a reprodutibilidade técnica da obra de arte, na visão de Adorno, simplesmente produziu uma forma mais refinada de cultura de massas – veja as lamúrias em torno do mundo editorial dizendo que “ficção literária” é apenas uma designação elitista de propaganda – enquanto a homogeneização das classes destruiu os públicos coerentes e identificáveis para quem era destinada a obra de arte.
Esta historicização da relação entre os produtores de arte e seus “consumidores” é um componente menor da crítica da Teoria estética a uma critique engagé. Theodor Adorno argumenta que, quando vistas através da perspectiva de um indivíduo sem sensibilidade artística, torna-se claro que as categorias de tal crítica são atiradas de uma pistola – isto é, lançadas sem qualquer conceituação rigorosa do que uma obra de arte realmente é. A máxima de Brecht de que a literatura deve ser “não menos inteligente do que a ciência” e, portanto, deve produzir um conhecimento tão verdadeiro e útil quanto as ciências sociais e, até mesmo, as naturais, parece ser ainda mais frágil quando se imagina explicando-a ao não-leitor. “Para questões como ‘porque se imita tal coisa’ ou: ‘por que se narra alguma coisa como se fosse verdadeira, quando não o é e apenas deforma a realidade’, não existe nenhuma resposta que convença aqueles que tais perguntas faz”[iv], escreve Adorno.
Existe algo de ridículo até mesmo nas mais graves obras de arte, ele argumenta, cujas raízes estão no caráter arcaico do “impulso mimético”. Os conceitos e as categorias da crítica política, que aproximam a seriedade das ciências sociais com a urgência moral da luta pela justiça, são, portanto, atraentes justamente porque colocam uma folha de figueira sobre a obra de arte, encobrindo-a – assim como os trajes vestidos pelo macaco, no conto de Kafka, em seu discurso para a academia.
Para Theodor Adorno, portanto, qualquer tentativa de obter uma educação moral e política diretamente das obras literárias está condenada a esbarrar na “não-identidade” da literatura. Foi esta reivindicação da autonomia da obra de arte – frequentemente acompanhada pela anedota do empalidecimento de Adorno quando estudantes com os seios descobertos invadiram a sua sala de aula – que costumou compor as acusações de quietismo político e, de forma ainda mais absurda, conservadorismo. Mas basta colocar algumas frases da Teoria estética ao lado daquelas da “nova estética” que – encabeçadas pelo livro Aesthetics and Ideology (1995) de George Levine – invocaram Adorno para convocar um retorno ao objeto artístico, contra a sua “politização” por Foucault, Jameson e Said para perceber a diferença.
Certamente, na medida em que ele insiste que a obra de arte, enquanto, obviamente, um fait social, não pode ser deduzida de suas circunstâncias sociais, Adorno está em desacordo com outras correntes da crítica marxista. Ele também resiste, ao menos em minha leitura, ao nietzcshianismo de esquerda de Deleuze e Guattari, cuja caracterização da obra de arte enquanto apenas um tipo de “assemblage” no “plano da imanência” sugere que as técnicas artísticas e os efeitos (nenhuma distinção mais profunda é traçada aqui) são práticas sociais simplesmente porque acontecem na sociedade.
De acordo com a Teoria estética, o que distingue a obra de arte do resto da realidade perceptível é o fato de que ela ordena seu material de acordo com sua lógica própria. No caso da literatura, isso aparece de forma mais óbvia na transposição de experiências não-linguísticas para a linguagem; mas também se manifesta nos negócios mais granulares do estilo – algo não considerado digno de atenção crítica pelo paradigma historicista contemporâneo.
Theodor Adorno, no entanto, afirma que a função social da arte parte precisamente de sua distinção com relação a outras mercadorias, modos de produção, serviços e formas de informação. A racionalidade autoimposta de acordo com a qual a obra de arte seleciona e organiza seus elementos constituintes parodia a racionalidade do mundo social. A obra de arte alcança sua função crítica não naquilo que diz, mas no que faz: “ela acusa a racionalidade da práxis social de ter-se tornado um fim em si mesma e, enquanto tal, a reversão irracional e insana dos meios em fins”. Os horrores da racionalidade técnica fora de controle, enlouquecida, – sobretudo, o Holocausto – nunca estão distantes da análise que Adorno faz da ‘negatividade’ de Beckett e Kafka.
Até mesmo o verso mais leve de Eduard Mörike tem, para ele, um caráter político, simplesmente porque seus elementos parecem ter-se unido por vontade própria, livres da crueldade com a qual o mundo social transforma tudo em seu interior em algo idêntico a si mesmo. Uma crítica de esquerda, orientada pela Teoria estética, não procuraria, portanto, aproximar a obra de arte do mundo social. Em vez disso, ela buscaria distanciá-la ainda mais.
Adorno é, para dizer o mínimo, elusivo acerca das implicações disso. A Teoria estética é parcimoniosa no uso dos verbos dever, ter e necessitar. Uma forma de compreender o livro seria como uma tentativa de definir limites às outras concepções de obra de arte. De fato, a Teoria estética parece muitas vezes criticar duramente os paradigmas do presente. É difícil não ler a afirmação de Adorno de que, por exemplo, as tecnologias, os processos sociais e as ideologias sem os quais a obra de arte não poderia existir estão cristalizados em seu interior enquanto uma defesa da experiência estética contra a episteme foucaultiana.
Sua resistência à politização total da arte, entretanto, poderia ser dirigida à academia americana do pós-George Floyd. Ela também expressa uma ambivalência nada pequena diante do tipo de materialismo proposto por McManus, que está, de forma compreensível, ganhando espaço em um clima generalizado de impulsos de sindicalização dentre os estudantes-trabalhadores de pós-graduação nas universidades americanas.
Nos termos de Theodor Adorno, uma crítica que considerasse as condições materiais realmente existentes – nas quais há “tanto para ler e tão pouco tempo”, como escreve McManus – teria que considerar o deslocamento destas forças no interior do objeto estudado para se tornar algo mais do que uma “mera” sociologia das universidades e do mundo editorial. Tais modelos críticos, no fim das contas, retêm a mesma obsessão com o princípio de realidade que domina o mundo administrado – com procurar “punir” a arte por afirmar ser algo mais do que é, diminuindo-a.
Encerrar com uma avaliação de suas contribuições ‘positivas’ seria trair a negatividade inabalável da Teoria estética. Todavia, em um certo sentido, pode-se afirmar que ela converge com a perspectiva de North, expressa em Literary criticism (2017), de que a crítica por vir daria maior ênfase a um uso “terapêutico” – uma palavra que eu utilizo deliberadamente em conexão com Adorno – “em vez de um uso meramente diagnóstico do literário”. Uma tal ênfase é, paradoxalmente, aparente na insistência de Adorno no “mutismo” da arte, isto é, na maneira com que ela transforma ideias discursivas e conceitos em aparências.
Mesmo as obras mais discursivas têm, para Theodor Adorno, mais coisas em comum com a natureza, que simplesmente é, do que com a filosofia ou a política. “Natureza”, aqui, diz respeito não apenas aos objetos naturais, mas a tudo aquilo que é dominado, mutilado e reprimido pelo processo civilizatório. A obra de arte torna-se um local de preservação para aqueles aspectos do mundo destruídos pela razão instrumental, oferecendo uma imagem negativa do que Fredic Jameson, em sua própria obra sobre Adorno, referiu-se como “uma visão poderosa de uma cultura coletiva libertada”.
Portanto, neste sentido, Theodor Adorno se mostra como tendo mais em comum com o espírito emancipatório dos anos 1960 do que ele deixava transparecer – ainda que, em sua perspectiva, diferentemente da “culinária ou da pornografia”, a arte atinge tal patamar justamente ao suspender a sensação imediata de prazer (“Qualquer um que escuta música procurando pelas passagens bonitas é um diletante”). Uma estética plenamente realizada não defenderia, no entanto, um antirracionalismo regressivo – cujas armadilhas foram definitivamente provadas pelo fascismo – ou um hedonismo sensorial. Seguindo o programa original da Escola de Frankfurt, ela operaria em uma aliança dinâmica com a psicanálise e a antropologia, iluminando tudo aquilo que se encontra nas sombras da razão, e que é necessário para resgatar a razão em seu sentido mais pleno e amplo de seu antagonista mais determinado – ela mesma.
Um tal projeto é consideravelmente mais abstrato do que aquele esquematizado no ensaio de McManus, ou, igualmente, do que qualquer coisa que a crítica procurou realizar desde o momento iconoclasta do pós-estruturalismo. Mas, até mesmo as considerações mais abstratas de Adorno são reforçadas por um compromisso ético angustiado. A contribuição mais significativa da Teoria estética para o momento presente talvez seja a centralidade do sofrimento em seus problemas e suas categorias.
Afinal, o resgate da estética não significa descartar a crítica dos compromissos morais e políticos. Pelo contrário, em uma época em que a arte não possui uma função social clara, uma justificativa para a continuidade de sua existência é a sua habilidade de reduzir o sofrimento. A arte é o meio apropriado para a compreensão e expressão do sofrimento porque ela “escapa e rejeita o conhecimento racional”. Enquanto a crítica engajada de hoje omite com muita frequência a distinção entre a representação e a realidade do sofrimento – um erro categórico pelo qual Adorno responsabilizaria a cultura de massas – uma estética adorniana poderia se situar dentre os paradoxos éticos da obra de arte terapêutica.
A obra de arte acaricia, com “mão afagadora da lembrança”, a angústia humana, um alívio que não contém em si qualquer medida de traição. A crítica pode oferecer uma linguagem para estes paradoxos, pode provocar e transmitir consolo. Diferentemente da política, ela é capaz de nos dizer o que pode e não pode ser dito – o que pode ser transformado e o que deixou para sempre a sua cicatriz.
Sobre o autor
Michael Lipkin é doutor em filosofia pela Columbia University.
Michael Lipkin é doutor em filosofia pela Columbia University.
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