11 de novembro de 2022

Nota expõe estertor da volta dos militares à política e desafia Lula

Ministros do Supremo criticam manifestação de comandantes, mas querem evitar crise desnecessária

Igor Gielow


A nota em que os três comandantes das Forças Armadas fazem crítica veladas ao Judiciário representa um sinal claro do estertor da chamada doutrina Villas Bôas, mas também um desafio para o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Elaborada durante a gestão do mais influente comandante do Exército desde a redemocratização, general Eduardo Villas Bôas (2015-19), a doutrina em resumo buscou normalizar a presença de militares na política cotidiana, da qual foram alijados após a debacle da ditadura em 1985.

Protesto contra a eleição de Lula em frente ao Comando Militar do Sudeste, em São Paulo - Mathilde Missioneiro - 3.nov.2022/Folhapress

Descrita em seu livro-depoimento de memórias como uma permissão para que falas de chefes militares não sejam vistas como golpistas, ela desaguou na ideia corrente entre muitos generais de que a eleição de Jair Bolsonaro (PL) em 2018 representava uma volta ao poder dos fardados, ou de sua visão de mundo, pelo voto.

O resultado foi visto na prática, com a gestão desastrosa em setores como a Saúde durante a pandemia de Covid-19 e o imbróglio institucional que levou ministro da Defesa e comandantes de Forças a serem demitidos por não aderir à agenda do chefe.

Além de tudo, a ideia de que o "mau militar" Bolsonaro, para ficar nas palavras de Ernesto Geisel em 1993, seria um marionete fracassou de forma retumbante. O Golem imaginado nos quartéis engoliu o rabino que o criou, usando a metáfora judaica do monstro de barro a serviço de seu mestre.

Como é notório, há camadas diversas de estamento militar, o que raramente é percebido nas avaliações de políticos brasileiros, pouco afeitos a entender os fardados ou questões de defesa. O estrato mais barulhento e francamente golpista se encontra na reserva, não por acaso representada nos generais palacianos em torno de Bolsonaro.

O Ministério da Defesa, encampando a cruzada do presidente contra as urnas eletrônicas, tornou-se um aparelho da vanguarda bolsonarista a partir da crise militar de 2021, mas o serviço ativo sempre buscou equilibrar-se entre o distanciamento e o respeito hierárquico.

Com isso, oficiais-generais das três Forças passaram os picos da apoplexia golpista do comandante em silêncio e enviando sinais de que não embarcariam em aventuras autoritárias. Mas houve momentos em que a doutrina Villas Bôas falou mais alto, como no episódio em que bateram de frente com a CPI da Covid ou na nota desta sexta (11).

O texto atual é um primor de ambiguidade, por insinuar críticas sem ter coragem de assumi-las, ciente de que isso representaria um golpismo inaceitável. Foi lido por ministros do Supremo como uma provocação a mais numa semana tensa, mas a ideia geral é evitar a escalada.

Os magistrados já se haviam mostrado agastados com a nota emitida pela Defesa na quinta (9), quando o ministro Paulo Sérgio Oliveira insistiu que seu relatório descartando fraudes no sistema eletrônico de votação não dizia que elas não poderiam ocorrer. Ao jogar biscoitos para o bolsonarismo, foi qualificado como uma figura que será muito menor ao sair do cargo.

Entre oficiais-generais, a nota foi defendida como uma manifestação legítima ante o que consideram abusos de uma outra doutrina em formação, a de Alexandre de Moraes, o implacável presidente do Tribunal Superior Eleitoral. As críticas ao ministro não são novas, ao contrário da exposição delas em público.

Há também um sujeito oculto no texto, Lula. Na véspera, o presidente eleito deixou o prudente silêncio ante a questão da Defesa e fez um discurso em que criticou Bolsonaro por instrumentalizar as Forças. Exigiu desculpas aos militares, no que parecia uma esperta sinalização ao serviço ativo.

O problema é que fardados não gostam de se ver colocados como manipuláveis. Mais: pela tradição da República, fundada em um golpe militar e marcada por eles ao longo de sua história, as Forças Armadas se arrogam um papel de consciência do "povo", aspas mandatórias.

Assim, a nota desta sexta conversa com o infame tuíte de Villas Bôas admoestando o Supremo a não conceder habeas corpus que teria livrado Lula de 580 dias de cadeia, em 2018. Ambos os textos sugerem uma mediação única feita por militares entre o sentimento da população e os Poderes.

Por óbvio, no máximo a nota fala pelos que se dispõe a pedir intervenção militar ou outros golpismos na frente de quartéis, de resto um fenômeno que não deveria ser desprezado pelos novos donos do poder. O limite da agitação dos comandantes, expostos de crise em crise pelo bolsonarismo como um tigre de papel ante a realidade política-econômica do século 21, fica evidente.

Mas o potencial de disrupção nada tem de desprezível, e tudo o que Lula não precisa é de outra frente de batalha —sua fala esquerdista na quinta e a opacidade na transição da economia já ressuscitaram os fantasmas que a Faria Lima adora enxergar, seja por medo genuíno ou para lucrar. Nunca é demais lembrar a má vontade dos fardados com Lula e o petismo, vistos de forma geral como encarnação da corrupção.

Como receitaram dois políticos com amplo trânsito entre os fardados ao analisar o cenário, o melhor que o presidente tem a fazer é lidar com esse estertor da era Villas Bôas de forma objetiva: abrindo uma interlocução oficial, dentro da transição, e escolhendo sábia e rapidamente a nova cúpula militar. Fila que anda não gera queixa.

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