25 de fevereiro de 1998

A crise estrutural do capital

A diáspora iraniana é uma comunidade extraordinária, mas raramente notada na imprensa ocidental. Essa comunidade pode ser comparada à diáspora russa da década de 1890 ou à alemã da década de 1930. Ou seja, uma comunidade exilada de uma intelectualidade muitas vezes revolucionária com potencial para afetar o mundo muito além das fronteiras da terra que deixaram. Um sinal desse vigor é o lançamento em farsi do importante livro de István Mészáros, Beyond Capital (publicado pela Monthly Review Press, 1996), traduzido pelo amigo íntimo da Monthly Review, Dr. Morteza Mohit. Para esta edição, István Mészáros escreveu uma introdução especial.

István Mészáros



Tradução / Vivemos na era de uma crise histórica sem precedentes. Sua severidade pode ser medida pelo fato de que não estamos frente a uma crise cíclica do capitalismo mais ou menos extensa, como as vividas no passado, mas a uma crise estrutural, profunda, do próprio sistema do capital. Como tal, esta crise afeta — pela primeira vez em toda a história — o conjunto da humanidade, exigindo, para esta sobreviver, algumas mudanças fundamentais na maneira pela qual o metabolismo social é controlado.

Os elementos constitutivos do sistema do capital (como o capital monetário e mercantil, bem como a originária e esporádica produção de mercadorias) remontam a milhares de anos na história. Entretanto, durante a maioria desses milhares de anos, eles permaneceram como partes subordinadas de sistemas específicos de controle do metabolismo social que prevaleceram historicamente em seu tempo, incluindo os modos de produção e distribuição escravista e feudal. Somente nos últimos séculos, sob a forma do capitalismo burguês, pôde o capital garantir sua dominação como um “sistema social” global. Para citar Marx: “é preciso ter em mente que as novas forças de produção e relações de produção não se desenvolvem a partir do nada, não caem do céu, nem das entranhas da Ideia que se põe a si própria; e sim no interior e em antítese ao desenvolvimento existente da produção e das relações de propriedade tradicionais herdadas. Se no sistema burguês acabado cada relação econômica pressupõe outra sob a forma econômica-burguesa, e assim cada elemento posto é ao mesmo tempo pressuposto, tal é o caso em todo sistema orgânico. Este próprio sistema orgânico, enquanto totalidade, tem seus pressupostos, e seu desenvolvimento, até alcançar a totalidade plena, consiste, precisamente, na subordinação de todos os elementos da sociedade a si próprio, ou na criação, a partir dele, dos órgãos que ainda lhe fazem falta; desta maneira chega a ser historicamente uma totalidade.”[1]

Dessa forma, desvinculando seus antigos componentes orgânicos dos elos dos sistemas orgânicos precedentes e demolindo as barreiras que impediam o desenvolvimento de alguns novos componentes vitais,[2] o capital, como um sistema orgânico global, garantiu sua dominação, nos últimos três séculos, como produção generalizada de mercadorias. Através da redução e degradação dos seres humanos ao status de meros “custos de produção” como “força de trabalho necessária”, o capital pode tratar o trabalho vivo homogêneo como nada mais do que uma “mercadoria comercializável”, da mesma forma que qualquer outra, sujeitando-a às determinações desumanizadoras da compulsão econômica.

As formas precedentes de intercâmbio produtivo entre os seres humanos e com a natureza eram, em seu conjunto, orientadas pela produção para o uso, com um amplo grau de auto-suficiência como determinação sistemática. Isso lhes impôs uma grande vulnerabilidade frente aos flagrantemente diferentes princípios de reprodução do capital já operativos, mesmo que inicialmente em uma escala muito pequena, nas fronteiras dos antigos sistemas. Pois nenhum dos elementos constitutivos do sistema orgânico do capital que se manifestava dinamicamente necessitou alguma vez, ou foi capaz de, confinar a si próprio às restrições estruturais da auto-suficiência. O capital, como um sistema de controle do metabolismo social pôde emergir e triunfar sobre seus antecedentes históricos abandonando todas as considerações às necessidades humanas como ligadas às limitações dos “valores de uso” não quantificáveis, sobrepondo a estes últimos — como o pré-requisito absoluto de sua legitimação para tornarem-se objetivos de produção aceitáveis — o imperativo fetichizado do “valor de troca” quantificável e sempre expansível. É desta maneira que surgiu a forma historicamente específica do sistema capitalista, sua versão capitalista burguesa. Ela teve de adotar o irresistível modo econômico de extração de sobretrabalho, como mais-valia estritamente quantificável — em contraste com a pré-capitalista e a pós-capitalista de tipo soviético, formas basicamente políticas de controlar a extração de sobretrabalho —, de longe, o modo mais dinâmico de realizar, a seu tempo, o imperativo da expansão do sistema vitorioso. Além do mais, graças à perversa circularidade do sistema orgânico totalmente completo do capital — no qual “cada relação econômica pressupõe outra sob a forma econômica-burguesa” e “cada elemento posto é ao mesmo tempo pressuposto” — o mundo do capital reivindica sua condição de eterna e indestrutível “gaiola de ferro”, da qual nenhuma escapatória pode ou deve ser contemplada.

Entretanto, a absoluta necessidade de atingir de maneira eficaz os requisitos da irreprimível expansão — o segredo do irresistível avanço do capital — trouxe consigo, também, uma intransponível limitação histórica. Não apenas para a específica forma sócio-histórica do capitalismo burguês, mas, como um todo, para a viabilidade do sistema do capital em geral. Pois este sistema de controle do metabolismo social, teve que poder impor sobre a sociedade sua lógica expansionista cruel e fundamentalmente irracional, independentemente do caráter devastador de suas conseqüências; ou teve que adotar algumas restrições racionais, que, diretamente, contradiziam suas mais profundas determinações como um sistema expansionista incontrolável. O século XX presenciou muitas tentativas mal sucedidas que almejavam a superação das limitações sistêmicas do capital, do keynesianismo ao Estado intervencionista de tipo soviético, juntamente com os conflitos militares e políticos que eles provocaram. Tudo o que aquelas tentativas conseguiram foi somente a “hibridização” do sistema do capital, comparado a sua forma econômica clássica (com implicações extremamente problemáticas para o futuro), mas não soluções estruturais viáveis.

De fato, é extremamente significativo a este respeito — e apesar do triunfalismo que enalteceu, em anos recentes, as virtudes míticas de uma idealizada “sociedade de mercado” (sem mencionar a utilização propagandística apologética do conceito de um “mercado social” completamente fictício) e o “fim da história” sob a hegemonia, livre de ameaças, dos princípios do capitalismo liberal —, que o sistema do capital não pôde se completar como um sistema global em sua forma propriamente capitalista; isto é, fazendo prevalecer universalmente o irresistível modo econômico de extração e apropriação de sobretrabalho na forma de mais-valia. O capital, no século XX, foi forçado a responder às crises cada vez mais extensas (que trouxeram consigo duas guerras mundiais, antes impensáveis) aceitando a “hibridização” — sob a forma de uma sempre crescente intromissão do Estado no processo sócio-econômico de reprodução) como um modo de superar suas dificuldades, ignorando os perigos que a adoção deste remédio traz, a longo prazo, para a viabilidade do sistema. Caracteristicamente, tentativas de retroceder no tempo (até mesmo mais atrás do que a era de um Adam Smith grosseiramente mal representado) são proeminentes entre os defensores acríticos do sistema do capital. Desse modo, os representantes da “Direita Radical” continuam a fantasiar sobre “o recuo das fronteiras do Estado”, enquanto na realidade o oposto é claramente observável, devido à incapacidade do sistema para garantir a expansão do capital na escala requerida sem a administração, pelo Estado, de doses sempre maiores de “ajuda externa”, de uma maneira ou outra.

O capitalismo pode ter conseguido o controle na antiga União Soviética e no Leste europeu, mas é extremamente equivocado descrever o estado atual do mundo como dominado de maneira bem sucedida pelo capitalismo, apesar de estar, certamente, sob a dominação do capital. Na China, por exemplo, o capitalismo somente esta estabelecido, eficazmente, em “enclaves” costeiros, deixando a esmagadora maioria da população (isto é, bem mais de um bilhão de pessoas) fora de seus marcos. E mesmo nessas áreas limitadas da China, nas quais prevalecem os princípios capitalistas, a extração econômica do sobretrabalho precisa ser sustentada através de fortes componentes políticos, mantendo o custo do trabalho artificialmente baixo. A Índia — outro país com uma população imensa —, de maneira similar, encontra-se apenas parcialmente sob a administração bem sucedida do metabolismo sócio-econômico regulado de modo capitalista, deixando, até agora, a esmagadora maioria da população em uma situação bem diferente e difícil. [3] Mesmo na antiga União Soviética, seria bastante impreciso falar sobre a bem sucedida restauração completa do capitalismo, apesar da total dedicação dos organismos políticos dominantes a esta tarefa durante, pelo menos, os últimos doze anos. Alem do mais, a fracassada “modernização” do assim chamado “terceiro mundo”, em conformidade com as prescrições difundidas por décadas pelos países “capitalistas avançados”, destaca o fato de que um grande número de pessoas — não apenas na Ásia, como também na África e América Latina — ficou fora da terra, por muito tempo prometida, da prosperidade capitalista liberal. Dessa forma, o capital pode conseguir adaptar-se às pressões emanadas do fim de sua “ascendência histórica” somente retrocedendo atrás de sua própria fase progressiva de desenvolvimento e abandonando completamente o projeto capitalista liberal, apesar de toda mistificação ideológica auto-justificatória em contrário. É por isso que hoje se tornou mais óbvio do que nunca que o alvo da transformação socialista não pode ser somente o capitalismo, se quiser um sucesso duradouro; deve ser o próprio sistema do capital.

Esse sistema, em todas as suas formas capitalistas ou pós-capitalistas tem (e deve ter) sua expansão orientada e dirigida pela acumulação.[4] Naturalmente, o que está em questão a este respeito não é um processo delineado pela crescente satisfação das necessidades humanas. Mais exatamente, é a expansão do capital como um fim em si, servindo à preservação de um sistema que não poderia sobreviver sem constantemente afirmar seu poder como um modo de reprodução ampliado. O sistema do capital é essencialmente antagônico devido à estrutura hierárquica de subordinação do trabalho ao capital, o qual usurpa totalmente — e deve sempre usurpar — o poder de tomar decisões. Este antagonismo estrutural prevalece em todo lugar, do menor “microcosmo” constitutivo ao “macrocosmo” abarcando as relações e estruturas reprodutivas mais abrangentes. E, precisamente porque o antagonismo é estrutural, o sistema do capital é — e sempre deverá permanecer assim — irreformável e incontrolável. A falência histórica do reformismo social-democrata fornece um testemunho eloquente da irreformabilidade do sistema; e a crise estrutural profunda, com seus perigos para a sobrevivência da humanidade, destaca de maneira aguda sua incontrolabilidade. Na verdade, é inconcebível introduzir as mudanças fundamentais requeridas para remediar a situação sem superar o antagonismo estrutural destrutivo, tanto no “microcosmo” reprodutivo, como no “macrocosmo” do sistema do capital enquanto um modo global de controle do metabolismo social. E isso só pode ser atingido colocando em seu lugar uma forma radicalmente diferente de reprodução do metabolismo social, orientada para o redimensionamento qualitativo e a crescente satisfação das necessidades humanas; um modo de intercâmbio humano controlado não por um conjunto de determinações materiais fetichizadas mas pelos próprios produtores associados.

O sistema do capital é caracterizado por uma tripla fratura entre 1) produção e seu controle; 2) produção e consumo; e 3) produção e circulação de produtos (interna e internacional). O resultado é um irremediável sistema “centrífugo”, no qual as partes conflituosas e internamente antagônicas pressionam em muitos sentidos diferentes. No passado, em teorias formuladas do ponto de vista do capital, os remédios para a dimensão coesiva perdida eram, em seu conjunto, desejos conceitualizados. Primeiramente por Adam Smith, como “a mão invisível” a qual, obrigatoriamente tornaria as intervenções políticas do Estado e seus políticos — explicitamente condenada por Smith como extremamente prejudicial — completamente supérflua. Posteriormente, Kant ofereceu uma variante do “Espírito Comercial” de Adam Smith, defendendo a realização da “política moral” e (um tanto ingenuamente) esperando da ação do “Espírito Comercial” não apenas benefícios econômicos universalmente difundidos como, também, um politicamente louvável reino de “paz perpétua” no quadro de uma harmoniosa “Liga das Nações”. Mais adiante, no ápice dessa linha de pensamento, Hegel introduziu a ideia da “astúcia da Razão”, atribuindo a ela o desempenho de uma função muito parecida à “mão invisível” de Adam Smith. Entretanto, em completo contraste com Adam Smith — e refletindo a situação muito mais dilacerada pelos conflitos de seu próprio tempo — Hegel atribuiu ao Estado nacional, diretamente, o papel totalizante/universalista da Razão nos assuntos humanos, desdenhando a crença de Kant em um reino vindouro de “paz perpétua”. Também insistiu em que “o Universal é encontrado no Estado, em suas leis, suas disposições universais e racionais. O Estado é a Ideia Divina tal qual existe sobre a Terra”,[5] já que, no mundo moderno, “o Estado, como imagem e atualidade da Razão, tornou-se objetivo”.[6] Então, até mesmo os grandes pensadores que conceitualizaram estes problemas do ponto de vista do capital, puderam oferecer, somente, algumas soluções idealizadas das contradições subjacentes — isto é, para a tripla fratura, em última análise irreparável, mencionada acima. Contudo, eles reconhecerem, pelo menos por inferência, a existência dessas contradições, ao contrário dos atuais apologistas do capital — como os representantes da “Direita Radical”, por exemplo — que nunca admitiram a existência de qualquer necessidade de cura substantiva em seu acalentado sistema.

Dadas as contradições centrífugas internas de suas partes constitutivas, o sistema do capital somente poderia encontrar uma dimensão coesiva muito problemática na forma de suas formações nacionais estatais. Estas corporificam a estrutura de poder do capital, o qual provou-se adequado ao seu papel através da ascendência histórica do sistema. Entretanto, o fato de que essa dimensão coesiva corretiva seja historicamente articulada na forma de estados nacionais, que estão longe de ser mutuamente benevolentes e harmoniosos, sem qualquer desejo de conformar-se ao imperativo kantiano de uma “paz perpétua” vindoura, significava que o Estado, em sua realidade, está, na verdade, “infectado pela contingência”[8] de várias maneiras. Primeiro, porque as forças de destruição à disposição da guerra moderna tornaram-se absolutamente proibitivas, destituindo, dessa maneira, os estados nacionais de suas armas definitivas para solucionar os antagonismos internacionais mais abrangentes sob a forma de outra guerra mundial. Segundo, porque o fim da ascendência histórica do capital colocou em primeiro plano o desperdício e destrutividade irracional do sistema no nível da produção,[8] intensificando, assim, a necessidade de garantir novos escoadouros para os produtos do capital através da dominação hegemônica/imperialista sob condições nas quais o modo tradicional de impô-la não pode mais ser considerado uma opção rapidamente disponível; não somente por razões estritamente militares mas, também, devido ao avassalador potencial nelas contido quanto a uma guerra comercial global. E terceiro, porque a contradição, até há pouco velada, entre o irrefreável impulso expansionista do capital (tendendo a uma integração global completa) e suas formações estatais historicamente articuladas — como estados nacionais concorrentes — afloram abertamente, destacando não apenas a destrutividade do sistema, como também sua incontrolabilidade. Não espanta, portanto, que o fim da ascendência histórica do capital no século XX traga consigo a crise profunda de todas as suas formações estatais conhecidas.

Atualmente, vemos ser oferecida a varinha mágica da globalização como uma solução automática para todos os problemas e contradições enfrentados. Esta solução é apresentada como uma novidade completa, como se a questão da globalização aparecesse no horizonte histórico somente há uma ou duas décadas com sua promessa de bondade universal, ao lado da outrora igualmente saudada e reverenciada noção da “mão invisível”. Mas, na realidade, o sistema do capital moveu-se inexoravelmente em direção à “globalização” desde seu início. Devido à irrefreabilidade de suas partes constitutivas, ele não pode considerar-se completamente realizado a não ser como um sistema global totalmente abrangente. É por essa razão que o capital procurou demolir todos os obstáculos que permaneciam no caminho de sua plena expansão e porque ele deve continuar a fazê-lo enquanto o sistema perdurar.

É aqui que uma grande contradição torna-se claramente visível. Por que, enquanto o capital em sua articulação produtiva — atualmente através, principalmente, da ação de gigantescas corporações nacionais-transnacionais — tende a uma integração global (e, nesse sentido, verdadeira e substantivamente à globalização), a configuração vital do “capital social total” ou “capital global” é, hoje em dia, completamente desprovida de sua própria formação estatal. Isto é o que contradiz nitidamente a determinação intrínseca do próprio sistema como inexoravelmente global e desenfreado. Assim, o perdido “Estado do sistema do capital” como tal, demonstra a incapacidade do capital para atingir a lógica objetiva da irrefreabilidade do sistema em suas últimas conseqüências. É esta circunstância que deve colocar as expectativas otimistas de “globalização” sob a sombra de sua deplorável falência, sem remover, entretanto, o próprio problema — nomeadamente, a necessidade de uma verdadeira integração global dos intercâmbios reprodutivos da humanidade — para o qual somente uma solução socialista pode ser considerada. Pois, sem uma solução socialista, os necessariamente crescentes antagonismos fatais e confrontos hegemônicos pelos mercados exigidos entre principais poderes concorrentes — como, por exemplo, para tomar apenas um, dentro de duas ou três décadas a economia chinesa (mesmo a sua presente taxa de crescimento) deverá ultrapassar largamente a força econômica dos Estados Unidos, com um potencial militar para lhes fazer frente — pode resultar, apenas, em uma catastrófica ameaça à sobrevivência da humanidade.

A crise estrutural do capital é a séria manifestação do encontro do sistema com seus próprios limites intrínsecos. A adaptabilidade deste modo de controle do metabolismo social pode ir tão longe quanto a “ajuda externa” compatível com suas determinações sistemáticas permita fazê-lo. O próprio fato de que a necessidade desta “ajuda externa” aflore — e, apesar de toda a mitologia em contrário, continue a crescer durante todo o século XX — foi sempre um indicativo de que algo diferente da normalidade da extração e apropriação econômica do sobretrabalho pelo capital tinha que ser introduzido para conter as graves “disfunções” do sistema. E, durante a maior parte de nosso século, o capital pôde tolerar as doses do remédio ministradas e nos poucos “países capitalistas avançados” — mas somente neles — pôde até mesmo celebrar a fase mais obviamente bem sucedida de expansão do desenvolvimento durante o intervencionismo estatal keynesiano das décadas do pós-guerra.

A severidade da crise estrutural do sistema do capital confronta os socialistas com um grande desafio estratégico, oferecendo, ao mesmo tempo, algumas novas possibilidades vitais para enfrentá-lo. O que precisa ser destacado aqui é que não importa quão abundantes ou variadas sejam as formas de “ajuda externa” no século XX — bem diferente das fases iniciais do desenvolvimento capitalista, quando a política absolutista de “ajuda externa” (como apontado por Marx com referência a Henry VIII e outros) foi instrumental, ao invés de vital, para estabelecer a normalidade do capital e seu funcionamento saudável como um sistema global — toda esta ajuda, ajuda, em seu tempo, provou ser insuficiente para o objetivo de garantir a permanente estabilidade e a inquestionável vitalidade do sistema. Exatamente ao contrário. Pois as intervenções estatais do século XX puderam somente intensificar a “hibridização” do capital como um sistema social reprodutivo, acumulando, desse modo, problemas para o futuro. Em nosso futuro, a crise estrutural do capital — afirmando-se a si própria como a insuficiência crônica de “ajuda externa” no presente estágio de desenvolvimento — deverá tornar-se mais profunda. E, também, deverá reverberar através do planeta, até mesmo nos mais remotos cantos do mundo, afetando cada aspecto da vida, desde as dimensões reprodutivas diretamente materiais às mais mediadas dimensões intelectuais e culturais.

Certamente, uma mudança historicamente viável somente pode ser verdadeiramente epocal, colocando a tarefa de ir além do próprio capital como um modo de controle do metabolismo social. Isso significa um movimento de magnitude muito maior do que a substituição do sistema feudal pela subordinação hierárquico-estrutural de qualquer força de controle externo; em oposição à simples mudança da forma histórica específica sob a qual a extração e apropriação de sobretrabalho foi perpetuada, como sempre aconteceu no passado.

As “personificações do capital” podem assumir formas muito diferentes, desde a variedade capitalista privada à atual teocracia, e dos ideólogos e políticos da “Direita Radical” a partidos e burocratas estatais pós-capitalistas. Eles, inclusive, podem se apresentar como travestis políticos, assumindo a roupagem do “Novo Trabalhismo” (como faz o atual governo da Inglaterra, por exemplo) para espalhar mais facilmente mistificação no interesse da continuação da dominação do capital. Tudo isso, entretanto, não pode resolver a crise estrutural do sistema e a necessidade de superá-lo através da alternativa hegemônica do trabalho à ordem social metabólica do capital. É isto o que coloca na agenda histórica a tarefa da radical rearticulação do movimento socialista como um movimento de massas intransigente. Colocar um fim à separação do “braço industrial” do trabalho (os sindicatos) de seu “braço político” (os partidos tradicionais), que leva à impotência, e empreender uma ação direta politicamente consciente, em oposição à aceitação submissa das condições sempre piores, impostas aos produtores pelas regras pseudo-democráticas do jogo parlamentar, são os objetivos e movimentos transitórios que orientarão, necessariamente, um movimento socialista revitalizado no futuro previsível. A continua submissão ao curso globalmente destrutivo de desenvolvimento do capitalismo globalizado, verdadeiramente, não é uma opção.

Notas

[1] Karl Marx, Grundrisse, Harmondsworth, Penguin, 1973, p. 278.

[2] Principalmente pela superação da proibição da compra e venda de terra e trabalho, garantindo, dessa forma, o triunfo da alienação em todos os domínios.

[3] Muitos sobrevivem (se o fazem), exatamente “fechando a boca” na “economia tradicional” e
o número daqueles que permanecem completamente marginalizados, mesmo se desejando ainda — na maioria das vezes em vão — um emprego de qualquer tipo no sistema capitalista, está quase além do entendimento. Portanto, “enquanto o número total de pessoas desempregadas registradas pelas agências de emprego atingiu 336 milhões, em 1993, o número de pessoas empregadas, no mesmo ano, de acordo com a Comissão de Planejamento, atingiu somente 307,6 milhões, o que significa que o número de desempregados registrados é maior do que o número de pessoas empregadas. E a taxa de incremento percentual do emprego é praticamente desprezível”. Sem Sukomal, Working class of india: History of the emergence and movement 1830-1990, with na overwiew up to 1995, Calcuta, K.P. Bagchi & Co, 1997, p. 554.

[4] A crise crônica de acumulação, enquanto um problema estrutural grave, foi iluminada, em várias ocasiões, por Paul Swezzy e Harry Magdoff.

[5] Georg Hegel, The Philosophy of History, New York, Dover, 1956, p. 39.

[6] Idem, p. 223.

[7] Idem, p. 214.

[8] Schumpeter costumava louvar o capitalismo — de maneira um tanto autocomplacente — como uma ordem reprodutiva de “destruição produtiva”; hoje seria muito mais correto caracterizá-lo como um sempre crescente sistema de “produção destrutiva”.

1 de fevereiro de 1998

Meramente cultural

Judith Butler


I/227 • Jan/Feb 1998

Tradução / Proponho-me me a considerar dois tipos diferentes de afirmações que têm circulado recentemente, representando a culminação de um sentimento que vem sendo construído há algum tempo.[1] Um deles tem a ver com uma objeção explicitamente marxista à redução da pesquisa e do ativismo marxista ao estudo da cultura, às vezes entendido como uma redução do marxismo aos estudos culturais. O segundo ter a ver com a tendência a relegar os novos movimentos sociais à esfera da cultura, decerto para desqualificá-los como estando preocupados com o que é chamado “meramente” cultural, e então conceber esta política cultural como sectária, identitária e particularista. Se não dou nomes àqueles que sustentam esse ponto de vista, espero que seja perdoada. A suposição cultural em ação neste ensaio é que nós articulamos e ouvimos tais pontos de vista, que eles fazem parte dos debates que povoam a paisagem intelectual dentro dos círculos intelectuais progressistas. Presumo ainda que, ao ligar indivíduos a estes pontos de vista, corre-se o risco de desviar a atenção do significado e do efeito de tais concepções para uma política menor de quem disse o quê, e quem disse o quê de volta – uma forma de política cultural à qual, por enquanto, quero resistir.

Estas são algumas das formas que este tipo de argumento assumiu no ano passado: que o foco cultural da política de esquerda abandonou o projeto materialista de Marx, falhando em enfrentar questões de equidade e redistribuição econômica, e falhando também em situar a cultura nos termos de um entendimento sistemático dos modos sociais e econômicos de produção; que o foco cultural da política de esquerda a dividiu em seitas identitárias, e que, assim, perdemos um conjunto de ideais e metas comuns, um sentido de uma história comum, um conjunto de valores comuns, uma linguagem comum e até um modo de racionalidade objetivo e universal; que o foco cultural da política de esquerda substitui uma forma de política trivial e autocentrada que foca em eventos, práticas e objetos transitórios, em vez de oferecer uma visão mais robusta, séria e abrangente das interrelações sistemáticas entre as condições sociais e econômicas.

Claramente, um pressuposto mais ou menos implícito em alguns destes argumentos é a noção de que o pós-estruturalismo se tornou um obstáculo para o marxismo, e que qualquer habilidade em prestar contas sistematicamente à vida social ou em fazer valer normas de racionalidade – sejam elas objetivas, universais ou ambas – é agora seriamente dificultada por um pós-estruturalismo que entrou no campo da política cultural, no qual ele é tido como destrutivo, relativista e politicamente paralisante.

Talvez vocês estejam se perguntando como é que posso dedicar tempo a ensaiar estes argumentos deste modo, dando-lhes audiência, por assim dizer; e pode ser que estejam imaginando ainda se estou ou não parodiando tais posições. Penso que elas são inúteis, ou considero que são importantes e merecem uma resposta? Se estivesse parodiando estas posições, isso poderia implicar que penso que elas são ridículas, ocas e estereotipadas, que elas têm uma generalidade e uma atualidade como discurso, que permite que sejam tomadas por quase qualquer um e soar convincentes, mesmo quando proferidas pela pessoa mais improvável. Mas e se o meu ensaio envolve uma identificação provisória com elas, ainda que eu mesma participe da política cultural sob ataque? Esta identificação temporária que realizo, a qual levanta a questão se estou envolvida em uma paródia destas posições, não é precisamente um momento no qual, para bem ou mal, elas se tornam a minha posição?

Eu argumentaria que é impossível executar uma paródia de uma posição intelectual sem ter uma afiliação prévia com o que se parodia, sem ter e querer uma intimidade com a posição que se assume ou com o objeto da paródia. A paródia requer uma certa habilidade de identificar, aproximar e chegar perto; ela partilha uma intimidade com a posição da qual se apropria, que perturba a voz, o suporte, a performatividade do sujeito, de tal modo que a audiência ou o leitor não sabe muito bem onde você se apoia, se foi para o outro lado, se permanece do seu lado, se você pode ensaiar aquela outra posição sem se tornar presa dela no meio da performance. Vocês podem concluir: ela não está sendo séria de modo algum – ou podem concluir que esta é uma espécie de peça desconstrutiva e resolver olhar para outra parte a fi m de encontrar uma discussão séria. Mas, se quiserem, eu os convidaria a tomar parte em minha aparente hesitação, porque penso que ela realmente atende ao propósito de superar divisões desnecessárias na esquerda, e isto é parte do meu propósito aqui.

Quero sugerir que os esforços recentes de parodiar a esquerda cultural não poderiam ter ocorrido se não houvesse esta afiliação e intimidade preliminares, e que entrar na paródia é entrar em um relacionamento de ambos: desejo e ambivalência. Na farsa do ano passado, vimos uma forma peculiar de identificação em progresso, na qual quem realiza a paródia aspira, bem literalmente, a ocupar o lugar do parodiado, não apenas para expor os ícones da esquerda cultural, mas para adquirir e se apropriar desta própria iconicidade, e então se abrir alegremente à exposição pública como quem realizou a exposição, assim ocupando ambas as posições na paródia, territorializando a posição daquele outro e adquirindo temporariamente fama cultural.3 Assim, não se pode dizer que o propósito da paródia é denunciar o modo pelo qual a política de esquerda se tornou direcionada pela mídia ou centrada nela, degradada pelo popular e pelo cultural, mas, antes, precisamente entrar e mergulhar na mídia, para se tornar popular e triunfar nos mesmos termos que foram adquiridos por aqueles que se quer humilhar, assim reconfirmando e incorporando os valores de popularidade e sucesso midiático que levam a crítica a começar. Considere o eletrizante sadismo, o alívio do ressentimento reprimido no momento de ocupar o campo popular que é aparentemente deplorado como um objeto de análise, prestando tributo ao poder do oponente, assim revigorando a própria idealização que se pretendia desmontar.

O resultado da paródia é paradoxal: a alegre sensação de triunfo proporcionada pelos avatares de um marxismo ostensivamente mais sério em seu momento de protagonismo cultural exemplifica e sintomatiza precisamente o objeto cultural da crítica a que ele se opõe; a sensação de triunfo sobre o inimigo, a qual não pode se dar sem, de algum modo estranho, tomar o próprio lugar do inimigo, levanta a questão de se os objetivos e metas desse marxismo mais sério não se tornaram desesperadamente deslocados em um domínio cultural, produzindo um objeto transitório de atenção midiática no lugar de uma análise mais sistemática das relações econômicas e sociais. Esta sensação de triunfo reinscreve uma faccionalização dentro da esquerda no momento mesmo em que os direitos sociais estão sendo abolidos nos Estados Unidos, as diferenciações de classe estão se intensificando em todo o globo, e a direita conquista com sucesso o terreno do “meio”, fazendo efetivamente a própria esquerda invisível dentro da mídia – exceto naquela rara ocasião em que uma parte da esquerda ataca a outra, produzindo um espetáculo para ser consumido pelo mainstream liberal e conservador da imprensa, o qual fica muito contente em desacreditar toda e qualquer fração da esquerda dentro do processo político e em negar a esquerda como um forte poder a serviço de uma mudança social radical.

A tentativa de separar o marxismo dos estudos da cultura e de resgatar o conhecimento crítico dos obstáculos ocultos da especificidade cultural é simplesmente uma guerra por território entre os estudos culturais de esquerda e formas mais ortodoxas de marxismo? Como esta pretensa separação se relaciona com a afirmação de que os novos movimentos sociais dividiram a esquerda, privando-nos de ideais comuns, fracionando o campo do conhecimento e do ativismo político, reduzindo este último a uma mera reivindicação e afirmação de uma identidade cultural? A acusação de que os novos movimentos sociais são “meramente culturais”, de que um marxismo progressista e unificado deveria retornar a um materialismo baseado em uma análise de classe objetiva, presume ela mesma que a distinção entre a vida material e a vida cultural é estável. E este recurso a uma distinção aparentemente estável entre a vida material e a cultural é claramente um renascimento de um anacronismo teórico, o qual desacredita as contribuições à teoria marxista desde o deslocamento do modelo base-superestrutura de Althusser, assim como várias formas de materialismo cultural (por exemplo, de Raymond Williams, Stuart Hall e Gayatri Chakravorty Spivak). Com certeza, o inoportuno reaparecimento desta distinção está a serviço de uma tática que busca identificar os novos movimentos sociais com o meramente cultural, e o cultural com o derivado e secundário, adotando deste modo um materialismo anacrônico como a bandeira para uma nova ortodoxia.

Esta ressurgência da ortodoxia de esquerda clama por uma “unidade” que, paradoxalmente, viria a redividir a esquerda precisamente do modo que tal ortodoxia alega lamentar. Certamente, uma maneira de produzir esta divisão se torna clara quando perguntamos quais movimentos, e por quais razões, foram relegados à esfera do “meramente cultural”, e como esta mesma divisão entre o material e o cultural é taticamente invocada a fi m de marginalizar certas formas de ativismo político. Como a nova ortodoxia na esquerda trabalha junto a um conservadorismo sexual e social, que procura fazer com que questões de raça e sexualidade sejam secundárias em relação à questão “real” da política, produzindo uma nova e estranha formação de marxismos neoconservadores? Com base em quais princípios de exclusão e subordinação esta ostensiva unidade foi erigida? Quão rapidamente nos esquecemos de que os novos movimentos sociais baseados em princípios democráticos foram articulados contra uma esquerda hegemônica tanto quanto contra um centro liberal complacente e uma direita verdadeiramente ameaçadora? As razões históricas para o desenvolvimento de novos movimentos sociais semiautônomos foram alguma vez realmente levadas em conta por aqueles que agora lamentam sua emergência e os atribuem a estreitos interesses identitários? Esta situação não é simplesmente reproduzida nos esforços recentes de restaurar o universal por decreto, seja por meio da imaginária sutileza da racionalidade habermasiana ou de noções do bem comum que priorizam uma noção de classe racialmente purificada? Não é o ponto da nova retórica da unidade simplesmente “incluir”, por meio da domesticação e da subordinação, precisamente aqueles movimentos formados, em parte, em oposição a tal domesticação e subordinação, mostrando que os proponentes do “bem comum” falharam em ler a história que tornou este conflito possível?

Aquilo de que a ortodoxia ressurgente pode se ressentir em relação aos novos movimentos sociais é precisamente a vitalidade de que tais movimentos estão desfrutando. Paradoxalmente, os mesmos movimentos que continuam a manter a esquerda viva são responsabilizados por sua paralisia. Embora eu concorde que uma construção estreitamente identitária de tais movimentos possa levar a um estreitamento do campo político, não há razão para presumir que tais movimentos sociais são redutíveis a suas formações identitárias. O problema de unidade ou, mais modestamente, de solidariedade não pode ser resolvido por meio da transcendência ou da obliteração deste campo, e certamente não por meio da promessa vã de recuperar uma unidade forjada por meio de exclusões, que restitui a subordinação como condição de sua própria possibilidade. A única unidade possível não será a síntese de um conjunto de confl itos, mas será um modo de sustentar conflitos de formas politicamente produtivas, uma prática de contestação que exige que estes movimentos articulem suas metas sob a pressão uns dos outros, sem consequentemente se confundirem com eles.

Esta não é exatamente a cadeia de equivalência proposta por Laclau e Mouff e, ainda que mantenha, de fato, importantes relações com ela.4 Novas formações políticas não se colocam em uma relação analógica umas com as outras, como se fossem entidades discretas e diferenciadas. Elas constituem campos de politização sobrepostos, mutuamente determinantes e convergentes. Com efeito, os momentos mais promissores são aqueles nos quais um movimento social vem a encontrar sua condição de possibilidade em um outro. Aqui a diferença não corresponde simplesmente às diferenças externas entre movimentos, entendidas como aquilo que os diferencia uns dos outros, mas, antes, à autodiferença do movimento em si, uma ruptura constitutiva que torna os movimentos possíveis em fundamentos não identitários, que instala um certo conflito mobilizador como base da politização. A criação de facções, entendida como o processo pelo qual uma identidade exclui outra a fi m de fortalecer sua própria unidade e coerência, comete o erro de situar o problema da diferença como o que emerge entre uma identidade e outra; mas a diferença é a condição de possibilidade da identidade ou, antes, seu limite constitutivo: o que torna sua articulação possível é, ao mesmo tempo, aquilo que torna qualquer articulação final ou fechada impossível.

Dentro da academia, o esforço de separar os estudos de raça dos estudos da sexualidade e estes dos estudos de gênero marca várias necessidades de articulação autônoma, mas também produz invariavelmente um conjunto de confrontações importantes, dolorosas e promissoras que expõem os limites últimos de tal autonomia: a política de sexualidade dentro dos estudos afro-americanos; a política de raça dentro dos estudos queer, dos estudos de classe, do feminismo; a questão da misoginia dentro de qualquer um dos estudos acima; a questão da homofobia dentro do feminismo – apenas para nomear algumas. Isso parece ser precisamente o tedium das lutas identitárias que uma esquerda nova e mais inclusiva busca transcender. E, no entanto, para uma política de “inclusão” significar algo que não a redomesticação e a ressubordinação de tais diferenças, ela terá que desenvolver um sentido de aliança no curso de uma nova forma de encontro conflituoso. Quando os novos movimentos sociais são lançados como tantos “particularismos” em busca de um universal abran-gente, é necessário perguntar como a própria rubrica do universal só se tornou possível por meio do apagamento dos trabalhos prévios do poder social. Isso não significa que os universais são impossíveis, mas apenas que um universal abstraído de sua situação no poder será sempre falsificador e territorializante, clamando para que se resista a ele em qualquer nível. Seja qual for o universal que se torna possível – e pode ser que os universais sejam possíveis apenas por um certo tempo, “relampejando” [flashing up] no sentido benjaminiano –, ele será o resultado de um difícil trabalho de tradução no qual os movimentos sociais oferecem seus pontos de convergência contra um background de permanente contestação.

Culpar os novos movimentos sociais por sua vitalidade, como alguns fizeram, é precisamente recusar-se a entender que qualquer futuro para a esquerda será construído com base em movimentos que levam à participação popular, e que todo esforço para impor de fora uma unidade a tais movimentos será rejeitado mais uma vez como uma forma de vanguardismo dedicado à produção de hierarquia e dissensão, produzindo o mesmo sectarismo que afirma ter vindo de fora.

A nostalgia de uma unidade falsa e excludente está ligada ao menosprezo do cultural e a um renovado conservadorismo social e sexual na esquerda. Algumas vezes, isso toma a forma de uma tentativa de ressubordinar a raça à classe, falhando em considerar o que Paul Gilroy e Stuart Hall argumentaram, a saber, que a raça pode ser uma modalidade na qual a classe é vivenciada. Deste modo, raça e classe se tornam analiticamente distintas apenas para perceber que a análise de uma não pode proceder sem a análise da outra. Uma dinâmica diferente está em processo em relação à sexualidade, e proponho dedicar o restante deste ensaio a esta questão. Considerada inessencial àquilo que é mais premente na vida material, a política queer é usualmente retratada pela ortodoxia como o extremo cultural da politização.

Se as lutas de classe e de raça são entendidas como profundamente econômicas, e as lutas feministas como às vezes econômicas e às vezes culturais, as lutas queer são entendidas não apenas como lutas culturais, mas ainda como típicas da forma “meramente cultural” que os movimentos sociais contemporâneos assumiram. Consideremos o trabalho recente de uma colega, Nancy Fraser, cujas concepções não são de modo algum ortodoxas, e quem, pelo contrário, tem buscado encontrar caminhos para oferecer um quadro referencial abrangente para a compreensão das relações interligadas entre os vários tipos de lutas emancipatórias. Volto-me para o seu trabalho em parte devido ao fato de encontrar ali a pressuposição que tanto me preocupa, e porque eu e ela temos uma história de argumentação amigável – a qual confio que vá continuar a partir daqui como uma interlocução produtiva[5] (esta é também a razão pela qual ela permanece sendo a única pessoa que concordo em nomear neste ensaio).

No livro recente de Fraser, Justice Interruptus, ela acertadamente observa que “hoje, nos Estados Unidos, a expressão ‘política de identidade’ é cada vez mais utilizada como um termo depreciativo para o feminismo, o antirracismo e o anti-heterossexismo”.6 Ela insiste que tais movimentos têm tudo a ver com a justiça social, e argumenta que qualquer movimento de esquerda deve responder a seus desafios. Não obstante, ela reproduz a divisão que localiza certas opressões como parte da política econômica, e relega outras à esfera exclusivamente cultural. Abrindo um leque que abarca desde a economia até a cultura política, ela situa as lutas lésbicas e gays no polo cultural deste espectro político. A homofobia, ela argumenta, não tem qualquer raiz na economia política, pois os homossexuais não ocupam qualquer posição distintiva na divisão do trabalho, estão distribuídos ao longo de toda a estrutura classista, e não constituem uma classe explorada. “[A] injustiça que eles sofrem é essencialmente uma questão de reconhecimento” (ibid., p. 17-18), afirma Fraser, construindo deste modo as lutas lésbicas e gays como questões meramente de reconhecimento cultural, em vez de reconhecê-las como lutas seja por equidade ao longo de toda a esfera da economia política, seja pelo fi m da opressão material.

Por que um movimento preocupado em criticar e transformar os modos por meio dos quais a sexualidade é regulada socialmente não deveria ser entendido como central para o funcionamento da economia política? Certamente, o fato de que esta crítica e esta transformação são centrais para o projeto do materialismo era o argumento incisivo das feministas socialistas e daqueles interessados na convergência entre o marxismo e a psicanálise nos anos 1970 e 1980; e foi claramente inaugurado por Engels e Marx com sua insistência em que o “modo de produção” precisava incluir, também, formas de associação social. Em A ideologia alemã (1846), Marx celebremente escreveu: “os homens, que diariamente reproduzem sua própria vida, começam a produzir outros homens, a propagar sua espécie: a relação entre homem e mulher, pais e fi lhos, a família”.7 Apesar de Marx vacilar entre considerar a procriação como uma relação natural ou social, ele deixa claro não apenas que um modo de produção é sempre combinado com um modo de cooperação, mas ainda que, significativamente, “um modo de produção é em si mesmo uma ‘força produtiva’” (ibid.). Engels claramente desenvolve este argumento em A origem da família, da propriedade privada e do Estado (1884), oferecendo ali uma formulação que se tornou, por algum tempo, talvez a citação mais amplamente mencionada nas pesquisas feministas-socialistas:

De acordo com a concepção materialista, o fator determinante na história é, em última instância, a produção e a reprodução da vida imediata. Isso, outra vez, adquire um duplo caráter: de um lado, a produção dos meios de existência, de alimento, vestuário, abrigo e das ferramentas necessárias a esta produção; de outro lado, a produção dos próprios seres humanos, a propagação da espécie.[8]

Com certeza, muitos dos argumentos feministas durante este período procuraram não apenas identificar a família como parte do modo de produção, mas também mostrar como a própria produção do gênero tinha que ser entendida como parte da “produção de seres humanos”, em conformidade com as normas que reproduziam a família heterossexualmente normativa. Assim, a psicanálise surgia como um modo de mostrar como o parentesco operava para reproduzir pessoas em formas sociais que atendiam aos interesses do capital. Mesmo que alguns participantes destes debates tenham cedido o território do parentesco a Lévi-Strauss e aos sucessores lacanianos desta teoria, outros ainda sustentavam que uma consideração especificamente social da família era necessária para explicar a divisão sexual do trabalho e a reprodução do trabalhador marcada pelo gênero [gendered]. Essencial para a posição feminista-socialista da época foi precisamente a concepção de que a família não é um dado natural e que, como um arranjo social específico de funções parentais, ela permanecia historicamente contingente e, em princípio, transformável. A pesquisa nos anos 1970 e 1980 buscava estabelecer a esfera da reprodução sexual como parte das condições materiais da vida, como um traço próprio e constitutivo da economia política. Ela também procurava mostrar como a reprodução de pessoas marcadas pelo gênero, de “homens” e “mulheres”, dependia da regulação social da família e, de fato, da reprodução da família heterossexual como um espaço para a reprodução de pessoas heterossexuais aptas a entrarem na família como uma forma social. Com certeza, a pressuposição tornou-se, no trabalho de Gayle Rubin e outros, que a reprodução normativa do gênero era essencial para a reprodução da heterossexualidade e da família. Deste modo, a divisão sexual do trabalho não podia ser entendida separadamente da reprodução de pessoas marcadas pelo gênero, e a psicanálise entrava usualmente como um modo de compreender os vestígios psíquicos daquela organização social, bem como os modos por meio dos quais aquela regulação aparecia nos desejos sexuais dos indivíduos. Então, a regulação da sexualidade foi sistematicamente vinculada ao modo de produção adequado ao funcionamento da economia política.

Importa notar que ambos, gênero e sexualidade, tornam-se parte da vida material não apenas pelo modo com que eles servem à divisão sexual do trabalho, mas também porque o gênero normativo serve à reprodução da família normativa. A questão aqui é que, contra Fraser, as lutas para transformar o campo social da sexualidade não se tornam centrais para a economia política na medida em que podem ser diretamente relacionadas a questões de exploração e não remuneração do trabalho, mas, antes, porque elas não podem ser compreendidas sem uma expansão da própria esfera “econômica” para incluir tanto a reprodução de bens quanto a reprodução social de pessoas.

Dados os esforços das feministas socialistas para entender como a reprodução de pessoas e a regulação social da sexualidade faziam parte do próprio processo de produção e, deste modo, da “concepção materialista” da economia política, como é que de repente, quando o foco da análise crítica passa da questão de como a sexualidade normativa é reproduzida para a questão queer de como esta mesma normatividade é confundida pelas sexualidades não normativas que ela abriga dentro de seus próprios termos – para não mencionar as sexualidades que prosperam e sofrem fora daqueles termos –, a ligação entre tal análise e o modo de produção é repentinamente abandonado? É apenas uma questão de reconhecimento “cultural” quando as sexualidades não normativas são marginalizadas e rebaixadas, ou entra no jogo a possibilidade de subsistência? É possível distinguir, mesmo analiticamente, entre uma falta de reconhecimento cultural e uma opressão material, quando a própria definição legal de “pessoa” é rigorosamente circunscrita às normas culturais que são indissociáveis de seus efeitos materiais? Tome-se, por exemplo, aquelas instâncias nas quais lésbicas e gays são rigorosamente excluídos das noções de família sancionadas pelo Estado (que, segundo as leis de imposto e propriedade, forma uma unidade econômica); detidos na fronteira; considerados inadmissíveis à cidadania; têm seletivamente negado o status de liberdade de expressão e de associação; têm o direito negado, como membros do exército, de falar sobre seu desejos; ou são desautorizados por lei a tomar decisões médicas emergenciais a respeito de um companheiro à beira da morte, a receber as propriedades de um parceiro morto, ou a receber do hospital o corpo de um parceiro morto – estes exemplos não indicam a “sagrada família” mais uma vez restringindo as vias pelas quais os interesses de propriedade são regulados e distribuídos? Isso é simplesmente a circulação de atitudes culturais difamatórias ou tais privações marcam uma operação específica de distribuição sexual e de gênero de direitos legais e econômicos?

Caso se continue a tomar o modo de produção como a estrutura definidora da economia política, então certamente não faz qualquer sentido para as feministas rejeitarem o insight duramente conquistado de que a sexualidade deve ser entendida como parte desse modo de produção. Mas ainda que se tome a “redistribuição” de direitos e bens como o momento definidor da economia política, como Fraser faz, como é que podemos falhar em reconhecer como as operações de homofobia são centrais ao funcionamento da economia política? Dada a distribuição de assistência médica neste país, é realmente possível dizer que as pessoas gays não constituem uma “classe” diferencial, considerando como a organização de assistência médica e de produtos farmacêuticos, orientada pelo lucro, impõe encargos diferenciais sobre aqueles que vivem com o HIV e a AIDS? Como podemos entender a produção da população HIV-positiva como uma classe de devedores permanentes? Os índices de pobreza entre lésbicas não merecem ser pensados em relação com a heterossexualidade normativa da economia?

Em Justice Interruptus, apesar de Fraser reconhecer que o “gênero” é “um princípio básico estruturador da economia política”, a razão que ela oferece para isso é que ele estrutura o trabalho reprodutivo não remunerado.9 Mesmo que ela deixe muito claro seu apoio às lutas emancipatórias lésbicas e gays, bem como sua oposição à homofobia, ela não dá continuidade de modo sufi cientemente radical às implicações deste apoio para a conceitualização que oferece. Ela não pergunta como a esfera da reprodução que garante o lugar do “gênero” dentro da economia política é circunscrito pela regulação sexual; ou seja, ela não questiona as exclusões obrigatórias por meio das quais a esfera da reprodução se torna delimitada e naturalizada. Existe alguma maneira de analisar como a heterossexualidade normativa e seus “gêneros” são produzidos dentro da esfera da reprodução sem notar os modos compulsórios pelos quais a homossexualidade e a bissexualidade, assim como o transgênero, são produzidos como uma sexualidade “abjeta”, e sem estender o modo de produção 9 para dar conta precisamente deste mecanismo social de regulação? Seria um erro entender tais produções como “meramente culturais” se elas são essenciais para o funcionamento da ordem sexual da economia política – isto é, se constituem uma ameaça fundamental a sua própria viabilidade. O econômico, vinculado ao reprodutivo, está necessariamente ligado à reprodução da heterossexualidade. Não é que formas não heterossexuais de sexualidade são simplesmente deixadas de fora, mas que sua supressão é essencial para a operação daquela normatividade prévia. Isso não é simplesmente uma questão de certas pessoas sofrendo uma falta de reconhecimento cultural por parte de outros, mas, antes, um modo específico de produção e troca sexual que atua para manter a estabilidade do gênero, a heterossexualidade do desejo e a naturalização da família.[10]

Por que, então, considerando este lugar fundamental da sexualidade no pensamento da produção e da distribuição, a sexualidade emergiria como uma fi gura exemplar para o “cultural” no contexto de formas recentes de argumentos marxistas e neomarxistas?11 Quão rapidamente – e às vezes inadvertidamente – a distinção entre o material e o cultural é reconstruída quando contribui para a definição das linhas que descartam a sexualidade da esfera da estrutura política fundamental! Isso sugere que a distinção não é um fundamento conceitual, já que reside em uma amnésia seletiva da própria história do marxismo. Afinal, além da suplementação estruturalista de Marx, considera-se que a distinção entre cultura e vida material entrou em crise a partir dos mais diferentes cantos. O próprio Marx argumentou que as formações |econômicas pré-capitalistas não poderiam ser completamente retiradas dos mundos culturais e simbólicos nos quais estavam integradas, e esta tese orientou o importante trabalho em antropologia econômica (Marshall Sahlins, Karl Polanyi, Henry Pearson) que expande e refi na a tese de Marx em Formações econômicas pré-capitalistas, que busca explicar como o cultural e o econômico, eles mesmos, tornaram-se estabelecidos como esferas separadas – de fato, como a instituição do econômico como uma esfera separada é a consequência de uma operação de abstração iniciada pelo capital mesmo. O próprio Marx estava consciente de que tais distinções são o efeito e a culminação da divisão do trabalho, não podendo, portanto, ser excluídas de sua estrutura. Em A ideologia alemã ele escreve, por exemplo, que “a divisão do trabalho só se torna verdadeiramente tal a partir do momento em que uma divisão entre o trabalho material e o mental aparece”.12Isso move, em parte, o esforço de Althusser em repensar a divisão do trabalho em “Ideologia e aparatos ideológicos de Estado” em termos da reprodução da força de trabalho e, mais enfaticamente, “das formas de sujeição ideológica que [sustentam] a reprodução das habilidades da força de trabalho”.13 Esta ênfase do ideológico na reprodução de pessoas culmina no inovador argumento de Althusser de que “uma ideologia sempre existe em um aparato e em sua prática ou práticas. Esta existência é material” (ibid., p. 166). Assim, mesmo se a homofobia fosse concebida somente como uma atitude cultural, esta atitude ainda deveria ser localizada no aparato e na prática de sua institucionalização, isto é, em sua dimensão material.

No contexto da teoria feminista, a virada para Lévi-Strauss trouxe a análise da troca de mulheres para a crítica marxista da família, adquirindo por algum tempo um status paradigmático para pensar ambos gênero e sexualidade. Além disso, foi este movimento importante e problemático que perturbou a estabilidade da distinção entre a vida cultural e a vida material. Se as mulheres eram uma “dádiva”, segundo Lévi-Strauss, então elas entravam no processo de troca de maneiras que não podiam ser reduzidas a uma esfera cultural ou material apenas. De acordo com Marcel Mauss, cuja teoria da dádiva foi apropriada por Lévi-Strauss, a dádiva estabelece os limites do materialismo. Para Mauss, o econômico é somente uma parte de uma troca que assume várias formas culturais, e a distinção entre as esferas econômica e cultural não é tão nítida quanto viria a parecer. Apesar de Mauss não atribuir ao capitalismo a distinção entre vida cultural e vida material, ele oferece uma análise que culpa os modos atuais de troca por formas brutas de materialismo: “originalmente a res não precisava ser a coisa crua, meramente tangível, o simples e passivo objeto de transação que se tornou”.14 Ao contrário, a res é compreendida como sendo o local para a convergência de um conjunto de relações. Similarmente, a “pessoa” não é primariamente separável de seus “objetos”: a troca consolida ou ameaça os vínculos sociais.

Lévi-Strauss não apenas mostrou que esta relação de troca era simultaneamente cultural e econômica, mas também tornou a distinção inapropriada e instável: a troca produz um conjunto de relações sociais, comunica um valor cultural ou simbólico (cuja junção se torna decisiva para o afastamento lacaniano de Lévi-Strauss), e assegura vias de distribuição e de consumo. Se a regulação da troca sexual torna a distinção entre o cultural e o econômico difícil, se não impossível, então quais são as consequências para uma transformação radical dos contornos da troca na medida em que eles excedem e confundem as estruturas de parentesco ostensivamente elementares? A distinção entre o econômico e o cultural seria mais fácil de traçar se as trocas sexuais não normativas e contranormativas viessem a constituir o circuito excessivo da dádiva em relação ao parentesco? A questão não é se a política sexual pertence assim ao cultural ou ao econômico, mas como as próprias práticas de troca sexual confundem a distinção entre as duas esferas.

Com efeito, os esforços justapostos dos estudos queer, lésbicos e gays têm procurado desafiar a suposta ligação entre o parentesco e a reprodução sexual, assim como a ligação entre a reprodução sexual e a sexualidade. Pode-se perceber nos estudos queer um retorno importante à crítica marxista da família, baseado em um insight mobilizador sobre uma abordagem de parentesco socialmente contingente e socialmente transformável, a qual se distancia do pathos universalizante dos esquemas de Lévi-Strauss e Lacan, que se tornaram paradigmáticos para algumas formas de teorização feminista. Apesar de a teoria de Lévi-Strauss ter ajudado a mostrar como a normatividade heterossexual produzia o gênero a serviço de seu próprio autorreforço, ela não pôde oferecer as ferramentas críticas para apontar um caminho para fora de seus impasses. O modelo compulsório de troca sexual reproduz não apenas a sexualidade limitada pela reprodução, mas também uma noção naturalizada de “sexo” para a qual o papel relevante na reprodução é central. Na medida em que os sexos naturalizados funcionam para assegurar a díade heterossexual como a estrutura sagrada da sexualidade, eles continuam a subscrever os direitos legais, econômicos e de parentesco, bem como aquelas práticas que delimitam o que será uma pessoa socialmente reconhecível. Insistir que as formas sociais da sexualidade não apenas excedem, como ainda confundem os arranjos heterossexuais de parentesco, bem como a reprodução, é também argumentar que aquilo que pode ser qualificado como uma pessoa e um sexo será radicalmente alterado – um argumento que não é meramente cultural, mas que confirma o lugar da regulação sexual como um modo de produzir o sujeito.

Estaríamos talvez testemunhando um esforço acadêmico para melhorar a força política das lutas queer mediante a recusa em ver a mudança fundamental na conceitualização e na institucionalização das relações sociais que elas demandam? Seriam a associação do sexual com o cultural e o esforço concomitante em tornar autônoma e degradar a esfera cultural, as respostas irrefletidas a uma degradação sexual percebida como tendo lugar dentro da esfera cultural, um esforço em colonizar e conter a homossexualidade na e como a própria cultura?

Buscando desconsiderar o cultural, o neoconservadorismo dentro da esquerda sempre pode ser apenas uma outra intervenção cultural, seja lá o que mais for. E ainda assim, a manipulação tática da distinção entre o cultural e o econômico para reinstituir a noção desacreditada de opressão secundária apenas provocará, mais uma vez, a resistência à imposição de unidade, fortalecendo a suspeita de que aquela unidade só é adquirida por meio de amputações ou ressubordinações violentas. De fato, acrescentaria que a compreensão desta violência foi o que levou à afiliação da esquerda ao pós-estruturalismo, o que é uma via de leitura que nos permite entender o que precisa ser suprimido de um conceito de unidade para que ele ganhe a aparência de necessidade e coerência e permita que a diferença permaneça constitutiva de qualquer luta. Esta recusa a se tornar, de novo, subordinado a uma unidade que caricaturiza, desmerece e domestica a diferença se torna a base para um impulso político mais expansivo e dinâmico. Esta resistência à “unidade” pode trazer consigo a cifra da promessa democrática na esquerda.

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