11 de novembro de 2000

Simples e torto

Fábio Wanderley Reis

Folha de S.Paulo

"Medo" de esquerda e direita? Como não capto o alcance da esquisita insinuação de André Singer na réplica a minha resenha de seu livro, dirijo-me ao que interessa.

1. Ressalto que minha resenha começa por conceder a possível ocorrência de alguma "ideologização" no processo eleitoral brasileiro que os dados do livro indicam e que se ajusta à afirmação do PT no nível da disputa presidencial e aos efeitos do segundo turno. Meu problema, assim, é antes o de tentar apontar os simplismos e exageros quanto à leitura dessa possível ideologização que resultam dos defeitos da análise de Singer.

2. André Singer desconjunta em "motivos" e temas diversos minha crítica, que contém dois pontos focais: a manipulação metodologicamente deficiente dos dados e o entendimento insatisfatório e as distorções quanto à dimensão cognitiva da noção de ideologia. Quanto aos dados, o que é tratado por ele como um "artifício" meu, isto é, a demanda de que a correlação encontrada entre voto e autolocalização na "esquerda" e na "direita" seja examinada separadamente entre os que sabem e os que não sabem o significado das categorias, corresponde na verdade a uma regra elementar da lógica da análise multivariada, a ser encontrada em qualquer manual de metodologia, que recomenda a introdução de variáveis de controle para aferir a força ou o sentido real de correlações aparentes. Cerca de 20% de eleitores informados, que os dados de Singer mostram, combinados com eleitores desinformados, que se distribuam às cegas entre esquerda e direita e "acertem" casualmente na correspondência com o voto, podem produzir "preditores" razoáveis deste -e as correlações iniciais de Singer (que, aliás, não vão além de "V" de Cramer de 0,33 e 0,37) podem se mostrar, com o controle sugerido, bem menos afins a suas teses.

Singer afirma que "fez o teste" (onde?, quais são os números?) e que a correlação entre os desinformados é "fortemente significativa". Ora, essa reiteração do uso ritualista de coeficientes de significação, em que o livro é abundante, ilustra o equívoco banal de esquecer que a significação estatística, a qual se refere a erro amostral, não tem nenhuma conexão necessária com a intensidade das correlações: correlações fracas podem ser significativas. No "teste" feito, como se comparam, do ponto de vista da intensidade, as correlações que se dão nos casos dos informados e dos desinformados? A possibilidade que avento tem a ver com algo substantivo: mesmo numa boa amostra (ou no universo...), eleitores desinformados podem, sim, estabelecer por acaso a correspondência "correta" entre o voto e a autolocalização, particularmente tratando-se de categorias pouco numerosas em ambas as variáveis. Não vejo como se poderá negar tal possibilidade, quanto à qual coeficientes de significação nada acrescentam.

3. Dizer que "definir esquerda e direita não é fácil", que há confusões entre liberalismo político e liberalismo econômico, ou o que mais seja, redunda justamente em dizer que a ideologia contém um importante elemento cognitivo. Se André Singer pretende nos ensinar algo com a idéia de que, mesmo não sendo capaz de verbalizá-lo, o eleitor teria a percepção "intuitiva" do conteúdo de "esquerda" e "direita", esse algo não pode ser senão que tal eleitor se encontraria em níveis intermediários de cognição, diferentes dos do eleitor que não tem nem sequer essa intuição. Ora, o que nos interessa são precisamente os matizes que o eleitorado apresenta a respeito. Trabalhos anteriores já foram, quanto a isso, muito além de André Singer, revelando a articulação de níveis diversos de cognição e estruturação ideológica com condições socioeconômicas distintas e seus efeitos sobre o voto. "Dialogar adequadamente" com esses trabalhos seria levá-los em conta e procurar avançar com respeito a eles. E caberia esperar que André Singer tratasse, quem sabe, de esclarecer a "relevância" de esquerda e direita, mostrando-nos como a operação dessas categorias se relaciona com os matizes já estabelecidos. Mas, em vez de lidar de maneira devidamente refinada e atenta com a dimensão cognitiva e de explorá-la nos dados, a análise de André Singer apaga os matizes e joga no mesmo saco, como eleitor "ideológico", tanto o eleitor sofisticado que opera com informações complexas ao votar quanto o eleitor tosco que projeta sua indigência e desinformação sobre partidos e candidatos, e que é eventualmente manipulável. Com isso, perdemos mais do que boa análise: arriscamos confundir as metas pelas quais cabe ansiar. Vale talvez a pena esperar uma segunda edição revista. Bem revista.

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

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