6 de março de 2007

Dar voz à barbárie?

Em vez de valorizar uma sociedade democrática e pacífica, o autor dá vazão ao que há de pior, cooperando para sua reprodução

Wolfgang Leo Maar

Folha de S.Paulo

DIZER O INDIZÍVEL é ser porta-voz da barbárie? O mais preocupante em relação ao artigos "Razão e sensibilidade", publicado no dia 18 de fevereiro, e "Dizer o indizível", de 4 de março [ambos de autoria de Renato Janine Ribeiro e publicados no caderno Mais! desta Folha], é existir um contingente grande de pessoas que podem ser iludidas com a falsa argumentação em prol da violência. Isso exige que se tome partido de público. Urge criticar a instrumentalização conservadora de intelectuais pelo status quo, esta, sim, irmã do fascismo.

Todos nós, sensíveis em relação aos outros, partilhamos o sentimento de horror em relação a crimes bárbaros.

Mas isso não significa contrapor sensibilidade e razão. Ao contrário, precisamos de mais, e não menos razão.

Há que dizer, por mais que isso contrarie relações privadas, que os dois artigos se rendem voluntariamente ao existente em sua face mais desumana e aterrorizante, que é justamente o objeto da intervenção transformadora das políticas públicas democráticas.

Os textos nem sequer tomam como objeto da experiência de seu autor a impotência a que se vê reduzido, mas embarcam ideologicamente na esfera hiperindividualizante de uma realidade desprovida de direitos humanos. Em vez de valorizarem o que deveria ser uma sociedade democrática e pacífica, dão vazão ao que há de pior no presente e, assim, contribuem para a sua reprodução.

O autor sucumbe completamente ao autoritarismo vigente em sua apresentação mais cruel, construção de uma ideologia sustentada no terror, centrada no discurso da segurança, que arrasa com os direitos construídos ao longo do processo civilizatório para impor à força uma ordem injusta. A sensibilidade é aparente: é aceitação insensível da violência.

O autor, em vez de se posicionar como intelectual, diz só o que agrada: "sentimentos". Procura "razões" para uma pretensa "sensibilidade", mas só expressa com insensibilidade o mais rasteiro lugar-comum imediato do revide. Os artigos referidos apagam a distinção entre a terrível situação em que se vive e a experiência política, ética, civil de uma formação social que, ao fazer valer a liberdade, não se curva às imposições do comportamento vigente.

Impressiona que alguém, publicamente, ceda tanto à realidade em vigor que não consiga sequer imaginar, quanto mais propor, nada diferente, em termos de sociedade, do que o que se impõe como vigente. Ele se curva a uma realidade cuja aparência de civilização tem pés de barro. Ao mesmo tempo, atribui pés de barro à experiência de emancipação efetiva!

O quadro vigente é conseqüência do descaso prolongado do poder público com a valorização da vida individual e da educação pública. Mais: é o que convém a interesses que exigem um contexto de terror para se impor. Vide a política do terror travestida de "segurança" que resultou na Guerra do Iraque.

Uma posição digna diante desse quadro é realçar criticamente a experiência da distância que separa a realidade do horror do cotidiano de uma esfera pública centrada na liberdade e na paz. É contribuir para realizar o que está ausente, em vez de reforçar manifestações dignas de Talião.

Precisamente do intelectual se espera que não se renda ao vigente. Seu compromisso ético reside em tornar o conflito com o vigente objeto de experiência crítica e elaboração progressiva. Que não aja apenas regido pelo estabelecido em seus padrões de punição, mas saiba diferenciar entre o que ocorre sob o controle da violência e as possibilidades de uma organização social pautada em reconhecimento mútuo, solidariedade e aspiração da igualdade. Ter sensibilidade pelo outro é tomar partido a favor dos direitos da liberdade e da igualdade.

Em vez disso, o autor manifesta uma adesão comportada a pedir aplausos (seria esse o objetivo principal?) a padrões coletivizados de comportamentos de massa que prosperam na penumbra de uma cultura da violência e do autoritarismo e que favorecem a ausência de controles político-sociais e democráticos.

Estes últimos representam a lenta aquisição de uma ética pública de igualdade e liberdade, jogada pelo autor dos dois artigos na lata de lixo.

Não seria essa conquista gradual e coletivamente mediatizada de hábitos de convívio democrático no plano da reprodução material da sociedade, para além do pseudo-sentimento belicista do agrado das massas em sua hiperindividualização, o que se chama de educação?

Sobre o autor

WOLFGANG LEO MAAR, 61, doutor em filosofia pela USP, é professor titular de filosofia da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos). É autor, entre outras obras, de "O que É Política".

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Guia essencial para a Jacobin

A Jacobin tem divulgado conteúdo socialista em ritmo acelerado desde 2010. Eis aqui um guia prático para algumas das obras mais importantes ...