4 de dezembro de 2007

Jesus: Messias ou Bolchevique?

O Cristo dos Evangelhos é de fato um revolucionário – mas de um tipo mais milenarista do que propriamente político.

Terry Eagleton



Era Jesus um revolucionário?

Ele certamente mantinha companhias políticas sombrias. Uma delas, do seu círculo mais íntimo, era conhecido como Simão, o Zelote – sendo zelotes um movimento anti-imperial clandestino, empenhado em dirigir os romanos para fora do território palestino. Os zelotes desejavam um Estado judaico teocrático, mais purificado e tradicionalista; e difundiram uma ideologia não muito diferente da Al-Qaeda de hoje. Para uma audiência regular, os ensinamentos de Jesus podem ter soado como familiar propaganda Zelote. Podemos tomar como óbvio que entre as massas que rodeavam Jesus havia Zelotes e outros dissidentes, comprovando quão “politicamente correto” ele soava.

É, no entanto, pouco provável que Jesus tenha tomado partido da resistência anti-imperial. Por um lado, parece ter apoiado o pagamento de impostos (“A César o que é de César”), enquanto os zelotes não o faziam. Por outro, cruzou sabres com os Fariseus, que eram, de alguma forma e em alguma medida, algo como o que se pode dizer a ala teológica dos zelotes.

Outra razão pela qual Jesus parece não ter sido um zelote é que seus discípulos não foram presos após sua execução. Fossem eles rebeldes presumidos e as forças de ocupação imperial, muito provavelmente, teriam se movido para varrê-los do mapa. Pode ser que tenha havido uma pitada de militantes políticos entre seus discípulos, mas as autoridades romanas parecem ter enxergado claramente que o movimento de Jesus não intencionava colocar o Estado abaixo. Não foi por isso que o seu dirigente máximo foi, por fim, crucificado.

Teriam certamente soado o alerta caso Jesus tivesse se proclamado Messias; já que o Messias era visto pela maioria como um militante político disposto a colocar o Estado de Israel de pé novamente. Mas Jesus não se proclamou Messias, exceto em duas ocasiões, ambas as quais historicamente ambíguas. De qualquer forma, a ideia de que um errante carismático e sua comitiva desarmada – grande, porém não massiva – pudesse destruir o Templo, ou derrubar o Estado é absurda, assim como as autoridades judaicas e romanas devem ter reconhecido à época. Havia forças suficientes para parar-lhes os pés: milhares de guardiães templários, para já não dizer nada sobre as guarnições romanas.

Pode ser que a ação violenta de Jesus – na tentativa de varrer do Templo os usurários cambistas, navegando nas adjacências das perigosas águas da Blasfêmia – tenha sido o suficiente para que seus antagonistas o pregassem na Cruz. Pôr para correr cambistas não foi, contudo, um gesto de intenção “anti-capitalista”. Jesus teria posto de pernas para o ar as mesas de cambistas e pequenos vendilhões, e, daí, declarado o lugar como um covil de bandidos; mas o excesso retórico de tais palavras é hoje, sabidamente, um acréscimo póstumo. Ele provavelmente significava não mais do que a destruição do Templo de um modo tão-só meramente simbólico, mais do que expressão de um intempestivo desgosto, para com esse ato de ganância mercantilista.

Ele – mais provavelmente – teria sido condenado por insubordinação e entregue à lei como um perigo à Ordem pública. Pôncio Pilatos provavelmente enviou Jesus à morte como um candidato a Messias mesmo que ele, ou o próprio Jesus, não acreditasse que assim o fosse. O Messias (ou “Christos”, em grego) era considerado pelos judeus como uma figura-guerreira, da alta realeza, ao passo que a satírica entrada de Jesus em Jerusalém, montado este no traseiro de um jumento, pode ser lida como um gesto anti-messiânico por excelência, um satírico tapa na cara ao gosto de todas essas distintas noções do que é soberania militar.

Era Jesus, então, um líder “espiritual” mais do que um dirigente político propriamente dito?

Para Jesus, não poderia haver negociação alguma entre o domínio da justiça – o chamado “Reino de Deus” – e os poderes deste mundo terreno. Neste quesito, ele confrontou seus próximos com absoluta decisão. Não importava se estes fossem a favor ou contra ele, não lhes foi permitido qualquer meio-termo liberal. O que estava em jogo não era uma questão de reformas – de “servir vinho novo em velhas garrafas” –, mas todo um inimaginável novo regime o qual, na visão de Jesus, já estava vindo à tona impetuosamente neste mundo; e do qual ele se considerava tanto prenúncio como encarnação. Neste sentido muito específico, foi um vanguardista revolucionário, e não-reformador social.

Tal qual o socialismo para Marx, o domínio da justiça é tanto imanente no presente quanto um objetivo a ser conquistado no futuro. Mas não pode haver transição suave – do velho para o novo –, à maneira de algum socialismo evolucionário. Dada a urgência, e a severidade, de nossa condição – a que os Evangelhos se referem como o “pecado do mundo” – alcançar uma Ordem social justa envolve passar pela morte, pela condição do nada mais absoluto, pela turbulência irascível e pelo auto-despojamento radical.

Uma razão essencial para que Jesus e seus seguidores esperassem a chegada iminente do Reino dos Céus é que eles não tinham sequer a noção de que a atividade humana poderia jogar qualquer papel de auxílio em sua instauração na Terra. Para os primeiros cristãos, tal reino era, sobretudo, um dom de Deus, e não um ato histórico. Não podia haver espaço para uma tal política teológica na visão dos Evangelhos, razão pela qual Jesus não foi um revolucionário no sentido em que Lenin o fora. Ele não poderia sequer ter sonhado em ser um leninista porque não estava disponível, à época, qualquer concepção de mundo afim à auto-determinação histórica. O único tipo de conceito de história que poderia importar era a Heilsgeschichte ou, trocando em miúdos, algo como História da Salvação ou História Sagrada

O cristianismo, portanto, pode ser considerado uma visão de mundo mais pessimista que o humanismo secular, ao mesmo tempo em que é infinitamente mais otimista. Por um lado, é de um severo realismo em relação à teimosia da persistente condição humana – a perversidade do desejo humano, o prevalecimento da idolatria e/ou da auto-ilusão, o escândalo mesmo do sofrimento, a enfadonha continuidade da opressão e da injustiça, a carência de qualquer virtude pública, a insolência dos poderes, a fragilidade da bondade, e o insaciável apetite, por poder, e por interesses próprios.

Por um outro lado, sustenta que não só a redenção desta desafiante – e terrível – condição é possível mas que, surpreendentemente e, em certo sentido, já aconteceu. Nem mesmo o mais torpe mecanicista dos marxistas poderia proclamar – hoje em dia – que o socialismo é inevitável, e, muito menos, que ele já surgiu, sem que nos tivéssemos dado conta. Para a fé cristã, no entanto, o advento de tal reino é assegurado, uma vez que a vinda de Jesus do mundo dos mortos já o teria fundado. Uma nova polis – uma cidade futura – é possível em base a um corpus transfigurado. E isso é, tradicionalmente, concebido enquanto “ressurreição”.

Então, Jesus foi um revolucionário ou não? Não nos termos que um Lenin ou Trotsky o teriam reconhecido. Mas isso por que era menos revolucionário do que eles foram, ou ainda mais? Certamente menos, por que não defendia a superação da estrutura de poder que se lhe confrontava. Mas assim o fazia, entre outras razões, porque esperava que logo este seria varrido para longe por uma forma de existência mais perfeita em justiça, paz, camaradagem e exuberância de espírito do que até mesmo os camaradas Lenin e Trotsky poderiam ter sequer imaginado. Talvez a resposta desconcertante não seja que Jesus era menos ou mais revolucionário, mas que era tanto mais quanto menos.

Este é um trecho editado da introdução de Terry Eagleton para Os Evangelhos, publicado pela Verso a £ 7,99.

Sobre o autor

Terry Eagleton is a literary critic, writer and chair in English literature in Lancaster University's department of English and creative writing. His latest book is The Event of Literature

18 de outubro de 2007

É o petróleo

As forças americanas no Iraque estão instaladas em cima de um quarto das reservas mundiais.

Jim Holt

London Review of Books

Vol. 29 No. 20 · 18 October 2007

Tradução / A guerra do Iraque "não tem como ser ganha", é um "atoleiro", um "fiasco": eis a visão consagrada. Mas há bons motivos para achar que, da perspectiva de George W. Bush e Dick Cheney, ela não é nada disso. Na verdade, os Estados Unidos podem estar encalacrados exatamente onde Bush & Cia. queriam, e por isso não existe uma estratégia de retirada.

O Iraque tem reservas conhecidas de 115 bilhões de barris de petróleo, o que é mais do que cinco vezes o total das reservas americanas. Devido ao seu longo isolamento, ele é o menos explorado dos países ricos em petróleo. Meros 2 mil poços foram perfurados em todo o seu território, enquanto, só no Texas, há 1 milhão de poços abertos. O Conselho de Relações Exteriores dos Estados Unidos calcula que o Iraque possa ter mais uns 220 bilhões de barris de petróleo a descobrir. Outra avaliação fala em 300 bilhões. Se essas estimativas estiverem próximas da realidade, as forças americanas estão instaladas em cima de um quarto das reservas mundiais de petróleo. O valor do petróleo iraquiano, em grande parte óleo cru leve com baixos custos de produção, seria da ordem de 30 trilhões de dólares, em valores de hoje. Para fins comparativos, o custo total projetado da invasão/ocupação americana está em torno de 1 trilhão de dólares.

Quem vai ficar com o petróleo do Iraque? Uma das "metas" fixadas pelo governo Bush para o governo do Iraque é a aprovação de uma lei regulando a distribuição das receitas do petróleo. O projeto de lei que os Estados Unidos prepararam para o Congresso iraquiano cede praticamente todo o petróleo do país a empresas ocidentais. A Companhia Nacional de Petróleo do Iraque conservaria o controle de dezessete dos oitenta campos de petróleo, deixando o resto - inclusive todo o petróleo ainda por descobrir - sob o controle de empresas estrangeiras, por trinta anos. "As empresas estrangeiras não serão obrigadas a investir os seus lucros na economia iraquiana", escreveu a analista Antonia Juhasz, em março, no The New York Times, depois que o projeto de lei vazou e veio a público. "Elas poderiam até aproveitar a atual 'instabilidade' da economia iraquiana para assinar os contratos agora, num momento em que o governo do Iraque está no seu ponto mais fraco, e depois esperar até dois anos antes de entrar no país." Quando as negociações em torno da lei do petróleo chegaram a um impasse, em setembro, o governo autônomo da província iraquiana do Curdistão simplesmente assinou um acordo à parte com a Hunt Oil Company, sediada em Dallas e comandada por um aliado político do presidente Bush.

Como os Estados Unidos manterão a hegemonia sobre o petróleo iraquiano? Estabelecendo bases militares permanentes no país. Cinco "superbases" auto-suficientes estão em estágios diversos de construção. Todas ficam bem distantes das áreas urbanas, onde a maioria das baixas tem ocorrido. Essas bases têm sido pouco mencionadas na imprensa americana, composta de um número cada vez menor de correspondentes no Iraque, os quais não têm como se deslocar livremente, devido às altas taxas de risco. (Qualquer repórter precisa de muita coragem para deixar a Zona Verde sem escolta militar.) Em fevereiro do ano passado, o repórter Thomas Ricks, do The Washington Post, descreveu uma dessas instalações, a Base Aérea de Balad, a 65 quilômetros ao norte de Bagdá. A Balad é uma fatia (bem fortificada) de subúrbio americano, erguida no meio do deserto, que conta com lanchonetes fast-food, campo de golfe em miniatura, campo de futebol americano, cinema e vários bairros distintos - entre eles a "KBRlândia", nome inspirado na subsidiária da empresa Halliburton responsável pela maior parte das obras de construção da base. Embora poucos dos 20 mil soldados postados na base jamais tenham tido contato com um iraquiano, a sua pista de pouso é uma das mais movimentadas do mundo. "Só ficamos atrás do aeroporto de Heathrow, em Londres", disse a Ricks um comandante da Força Aérea.

Inicialmente, o Departamento de Defesa mostrou-se tímido em relação às bases. "Que eu me lembre, nunca ouvi menção à idéia de uma base permanente no Iraque", disse Donald Rumsfeld, em 2003. Nos últimos meses, porém, o governo Bush começou a falar abertamente em manter tropas no Iraque pelos próximos anos, ou mesmo décadas. Vários visitantes da Casa Branca contaram ao The New York Times que o próprio presidente passou a referir-se ao "modelo coreano". Depois que a Câmara dos Deputados decidiu negar recursos para a construção de "bases permanentes" no Iraque, o termo preferido passou a ser "bases duradouras", como se três ou quatro décadas não fossem na prática uma eternidade.

Os Estados Unidos serão capazes de manter uma presença militar no Iraque por tempo indefinido? Plausivelmente, alegarão que existe motivo para lá permanecerem enquanto o conflito civil continuar fervilhando, ou até ocorrer o extermínio de todos os grupelhos que, por conveniência, se auto-intitulam "Al-Qaeda". A guerra civil diminuirá de intensidade à proporção que os xiitas, os sunitas e os curdos se refugiarem em enclaves separados, reduzindo a superfície da fricção sectária, e à medida que os chefes guerreiros consolidarem sua autoridade local. O resultado será uma partilha do país de facto. Que jamais irá tornar-se uma divisão de jure. (Um Curdistão independente ao norte pode incomodar a Turquia, uma região xiita independente no leste pode converter-se num satélite do Irã, e uma região sunita independente no oeste pode transformar-se em porto seguro para a Al-Qaeda.)

Esse Iraque balcanizado será presidido por um governo federal fraco, em Bagdá, sustentado e supervisionado pela embaixada americana na cidade, um prédio recém-construído nas proporções do Pentágono de Washington - uma zona verde dentro da Zona Verde. Quanto ao número de soldados americanos no Iraque, o secretário da Defesa, Robert Gates, disse ao Congresso que, "na sua cabeça", imaginava uma força de longo prazo constituída de cinco brigadas - um quarto do número atual -, o que, somado ao pessoal de apoio, significaria um mínimo de 35 mil soldados, provavelmente acompanhados do mesmo número de mercenários a serviço da segurança terceirizada. (Pode ser que ele tenha errado por excesso de modéstia, já que cada uma das cinco superbases tem a capacidade de acomodar entre 10 e 20 mil soldados.)

Essas forças podem deixar as suas bases para reprimir escaramuças civis ocasionais, ao custo de um número de baixas cada vez menor. Como disse um membro destacado do governo Bush ao The New York Times, em junho, as bases de longo prazo "são lugares onde podemos pousar e decolar os aviões sem a necessidade de soldados americanos postados a cada esquina". Mas a principal função no dia-a-dia será proteger a infra-estrutura petrolífera.

É essa a "balbúrdia" que Bush e Cheney entregarão ao próximo governo americano. E se esse governo for democrata? Ele desmantelará as bases e retirará todas as forças americanas? Parece improvável, tendo em vista os muitos beneficiários da ocupação prolongada do Iraque e da exploração dos seus recursos petrolíferos. Os três principais candidatos do Partido Democrata - Hillary Clinton, Barack Obama e John Edwards - já garantiram a sua posição futura, recusando-se a prometer que, se eleitos, irão retirar as forças americanas do Iraque antes de 2013, o fim de um primeiro mandato.

Nesse caso, entre os vencedores estão: empresas de serviços petrolíferos como a Halliburton; as próprias grandes companhias de petróleo (os lucros serão inimagináveis e os democratas também podem ser comprados); os eleitores americanos, a quem se poderá garantir a estabilidade dos preços nos postos de gasolina (isso às vezes parece ser a única coisa que conta para eles); a Europa e o Japão, que se beneficiarão do controle ocidental sobre tamanha parte das reservas petrolíferas mundiais; e, estranhamente, Osama bin Laden, que nunca mais precisará se preocupar com a possibilidade de que os sítios sagrados de Meca e Medina venham a ser profanados por tropas americanas, pois a estabilidade da dinastia saudita deixará de ser uma das principais preocupações dos Estados Unidos. Entre os perdedores está a Rússia, que não poderá mais controlar a Europa por meio dos seus recursos energéticos. Outra grande perdedora é a Organização dos Países Exportadores de Petróleo, a OPEP, e especialmente a Arábia Saudita, cujo poder de manter no alto os preços do petróleo, através da imposição de cotas de produção, ficará seriamente comprometido.

Há ainda o caso do Irã, que é mais complicado. A curto prazo, o Irã vem se beneficiando muito com a guerra no Iraque. A coalizão xiita que governa o Iraque é hoje controlada por uma facção favorável a Teerã, e os Estados Unidos acabaram armando, a contragosto, os elementos mais pró-Irã dos militares iraquianos. Quanto ao programa nuclear do Irã, nem ataques aéreos e nem negociações parecem poder detê-lo no momento. Mas o regime iraniano é precário. Mulás impopulares mantêm o poder financiando os serviços de segurança internos e comprando as elites com o dinheiro do petróleo, que representa 70% da renda do governo. Se os preços do petróleo de repente caíssem, por exemplo, a 40 dólares o barril (de um preço atual acima de 80), o regime repressor de Teerã perderia a sua receita contínua. Os Estados Unidos poderiam fazer isso com facilidade, abrindo a torneira do petróleo iraquiano pelo tempo necessário (e, de quebra, talvez conseguissem a queda do venezuelano Hugo Chávez, cujo atrevimento se baseia em petróleo).

Leve-se em consideração, ainda, as relações entre os Estados Unidos e a China. Como conseqüência do déficit comercial, está nas mãos da China cerca de 1 trilhão de dólares da dívida americana em moeda nacional (aí inclusos 400 bilhões de dólares em títulos do Tesouro americano). Isso dá a Pequim um enorme poder de barganha: caso decidisse descarregar grandes parcelas da dívida americana, a China poderia deixar a economia dos Estados Unidos de joelhos. De acordo com cifras oficiais, a economia da China cresce a uma taxa próxima de 10% ao ano. Mesmo que o número real esteja mais próximo de 4 ou 5%, como acreditam alguns, o peso crescente da China representa uma ameaça para os interesses americanos. (Um fato: a China está adquirindo novos submarinos cinco vezes mais rápido que os Estados Unidos.) Em contrapartida, o acesso à energia é a principal limitação ao crescimento da China - que, com os Estados Unidos no controle da maior parte do petróleo do planeta, ficaria em grande parte à mercê de Washington. Assim, a ameaça chinesa seria neutralizada.

Muita gente ainda se diz perplexa com os motivos exatos que teriam levado Bush e Cheney à invasão e ocupação do Iraque. Thomas Powers, um dos mais astutos observadores do mundo da chamada "inteligência", admitiu certo espanto, no artigo "Por que Bush invadiu o Iraque?" [publicado na piauí número 14]. "O mais bizarro", escreveu ele, "é que parece não ter havido uma versão interna, sofisticada e profissional do pensamento que deu forma aos acontecimentos." Alan Greenspan, em suas memórias recém-publicadas, é bem mais claro sobre essa questão. "Fico entristecido", diz ele, "por ser politicamente inconveniente reconhecer o que todo mundo sabe: a guerra no Iraque se deve em grande parte ao petróleo."

Será que a estratégia de invadir o Iraque para assumir o controle de seus recursos petrolíferos foi decidida pela força-tarefa sobre energia, organizada por Dick Cheney, em 2001? Não se pode saber ao certo, uma vez que as deliberações dessa força-tarefa, composta em grande parte por diretores de companhias petrolíferas e de energia, foram mantidas em segredo pelo governo, sob a alegação de "privilégio do Executivo". Não se pode dizer com certeza que o petróleo tenha sido o motivo primordial. Mas a hipótese é bem forte quando se busca explicar o que de fato aconteceu no Iraque. A ocupação pode parecer um serviço horrivelmente malfeito, mas a atitude descuidada do governo Bush em relação à "construção de uma nação" praticamente garantiu que o Iraque venha a se transformar num protetorado americano pelas próximas décadas - uma condição necessária para a extração da sua riqueza petrolífera.

Se os Estados Unidos tivessem conseguido criar um governo forte e democrático, num Iraque efetivamente protegido por uma polícia e um exército próprios, e depois tivessem saído do país, o que impediria esse governo de assumir o controle do seu próprio petróleo, como todos os outros regimes do Oriente Médio? Partindo-se do princípio que a estratégia de Bush e Cheney gira em torno do petróleo, as táticas adotadas - a dissolução do exército, a desmontagem do Partido Baath, um incremento da guerra que acelerou a migração interna - não poderiam ter sido mais eficientes. Os custos - alguns bilhões de dólares por mês e mais algumas dúzias de baixas americanas (um número que deve diminuir e é comparável ao número de motociclistas americanos que morrem devido à revogação das leis sobre o uso do capacete) - são irrisórios, se comparados com 30 trilhões de dólares em reservas de petróleo, a garantia da supremacia geopolítica americana e a gasolina barata para os eleitores. Em termos de realpolitik, a invasão do Iraque não foi um fiasco. É um sucesso retumbante.

Ainda assim, há motivos para ceticismo, em relação ao quadro que descrevi: ele supõe que um plano secreto e altamente ambicioso tenha resultado exatamente da maneira imaginada pelos seus criadores, e isso quase nunca acontece.

Sobre o autor

Jim Holt’s Why Does the World Exist? will be published later this year.

20 de setembro de 2007

Um heroísmo da decisão, uma política do acontecimento

Na República, Sócrates e os irmãos de Platão saem de Atenas e caminham até o porto de Pireu, deixando a cidade para trás. Depois de demolir rapidamente as visões predominantes de ...

Simon Critchley

London Review of Books

Vol. 29 No. 18 · 20 September 2007

Polemics
por Alain Badiou, traduzido por Steven Corcoran.
Verso, 339 pp., £17.99, novembro 2006, 1 84467 089 9

Na República, Sócrates e os irmãos de Platão saem de Atenas e caminham até o porto de Pireu, deixando a cidade para trás. Depois de demolir rapidamente as visões predominantes de justiça na sociedade ateniense, Sócrates passa a sonhar com outra cidade, uma cidade justa governada por filósofos cujas almas seriam orientadas para o Bem. A objeção familiar a Platão, de que o ideal da cidade filosófica é utópico ou impossível de realizar, é fatídica. Claro que a cidade dos filósofos é utópica: esse é o ponto. Você pode argumentar que é dever da filosofia pensar de uma forma que nos permita acreditar que outro mundo é possível, por mais difícil que seja alcançá-lo.

Alain Badiou é um platônico, e é importante ter isso em mente ao ler os escritos políticos reunidos em Polêmicas. Esta coleção substancial e bem traduzida, compreendendo os três volumes de Circonstances publicados em francês entre 2003 e 2005 e duas palestras fascinantes sobre a Comuna de Paris e a Revolução Cultural Chinesa, faz parte de uma recente enxurrada de traduções da obra de Badiou. A fonte do considerável apelo de Badiou está na compreensão particular da filosofia que ele defende. "A filosofia é algo que ajuda a mudar a existência", ele escreve. "Não é nem um corte de lógica técnica nem uma poetização desconstrutiva e melancólica" (o que Badiou chama de "as delícias da margem"). Pelo contrário, a filosofia é uma disciplina afirmativa e construtiva do pensamento. Crucialmente, este é pensado "não sobre o que é, mas sobre o que não é".

A filosofia é a construção da possibilidade formal de algo que romperia com o que Badiou chama de "esterilidade febril" do mundo contemporâneo. Ele chama isso de "evento", e a única questão da política, para Badiou, é se há algo que possa ser digno do nome "evento". Se a filosofia é entendida, como Heráclito a tinha, como uma "tomada pelo pensamento do que rompe com o sono do pensamento", então a política é uma tomada revolucionária do poder que rompe com o sono sem sonhos de um mundo injusto e violentamente desigual. Como tal, Badiou não está preocupado com a realidade banal da política existente, que ele tende a descartar como "o fetiche "democrático"", mas com momentos de rara e evanescente invenção e criatividade política. Como Sócrates na República, Badiou sonha com outra cidade no discurso; acusá-lo de ser irrealista é se recusar a empreender o experimento em pensamento que sua filosofia representa.

Em Polêmicas, há críticas fulminantes e demolições espirituosas da chamada guerra contra o terror, a invasão do Iraque, o bombardeio da Sérvia e a pantomima da democracia parlamentar, usando o exemplo das eleições presidenciais francesas de 2002. Há uma deliciosa sátira swiftiana sobre o caso do véu islâmico e uma denúncia do racismo que levou aos tumultos nas banlieues no final de 2005: "Temos os tumultos que merecemos". Badiou vê a França como um país politicamente "doente" e "desproporcionalmente abjeto", cuja realidade política não está localizada no ideal republicano infinitamente invocado da Revolução, mas na reação contra ela. Para Badiou, a França é o país do massacre dos comunardos de Adolphe Thiers, da colaboração de Pétain com os nazistas e das guerras coloniais de De Gaulle. Neste contexto, a vitória de Sarkozy é uma afirmação do Pétainismo e do Le Penismo, e uma continuação da longa guerra da França contra o inimigo interno.

Há alguns momentos menos maravilhosos em Polemics, como o longo, retórico e um tanto tolo apelo à fusão política da França e da Alemanha. No centro do livro está uma tradução de Uses of the Word ‘Jew’, que colocou Badiou em apuros terríveis: ele foi denunciado como antissemita quando foi publicado na França em 2005. É verdade que é irregular, mas o argumento central é claro e poderoso: por causa da destruição nazista de judeus europeus, a palavra ‘judeu’ se tornou um significante excepcional, de fato transcendente, na política contemporânea, empregado para legitimar e exonerar as ações violentas de Israel contra seus vizinhos e os antigos habitantes de seu território. Em resposta a algumas perguntas um tanto vagas em uma entrevista com o Ha’aretz, Badiou propõe uma resposta ao problema do Oriente Médio nos seguintes termos: ‘É a existência de uma Palestina única, democrática e secular (ou qualquer outro nome escolhido em conjunto), onde nomes como “judeu” e “árabe” poderiam ser nomes do múltiplo no mesmo lugar, nomes de paz.’ A acusação de antissemitismo é equivocada: Badiou é contra todas as formas de particularismo político, quer tomem a forma de sionismo, nacionalismo árabe, islamismo ou mesmo multiculturalismo liberal e política de identidade.

Quando Badiou imagina uma alternativa à indulgência cada vez mais fácil do mundo com a desigualdade social, ele descreve um "Iluminismo, cujos elementos estamos lentamente reunindo". Tal Iluminismo não pode ser entendido nem como o que Badiou chama de "democracia estatal", ou seja, parlamentarismo, nem como "burocracia estatal", o partido-estado socialista. A luta política é "uma luta de unhas e dentes para organizar uma força popular unida". Isso requer "disciplina" - uma palavra frequentemente repetida nestes ensaios. É importante enfatizar que isso não é disciplina partidária no sentido leninista. O que está em questão aqui é a invenção de uma política sem partido e à distância do estado, uma política local que se preocupa com a construção de uma coletividade.

Mas o que isso pode significar? Para entender a ideia de política de Badiou, é útil considerar a proximidade de suas visões com outro antigo platônico, Jean-Jacques Rousseau. Em O Contrato Social, Rousseau, como Badiou, está tentando estabelecer as condições formais de uma política legítima. A questão mais marxista ou sociológica das condições materiais para tal política é continuamente evitada. Na visão de Badiou, Rousseau estabelece o conceito moderno de política, que é baseado no "ato pelo qual um povo é um povo", como ele coloca em O Contrato Social. Para Badiou, a chave para a ideia de soberania popular de Rousseau é a declaração coletiva e unânime pela qual um povo deseja a si mesmo em existência. Este ato é entendido como um momento coletivo de criação. A radicalidade de tal evento consiste em não se originar em nenhuma estrutura apoiada dentro do que Badiou chama de "ser" ou a "situação", como o reino socioeconômico ou a dialética das relações e forças de produção em Marx. O evento político é a criação de algo do nada através do ato do sujeito. Badiou é um voluntarista político.

Rousseau é o grande pensador do que Badiou chama de "genérico". Politicamente, o genérico não é uma máxima particular de ação, mas uma norma universal: igualdade. A política tem que ser baseada na igualdade rigorosa de todas as pessoas e ser dirigida a todos. O meio para a criação de uma política genérica e igualitária é a vontade geral, concebida como o sujeito político cujo ato de unanimidade une uma coletividade. A política, escreve Badiou, é "sobre encontrar novos locais para a vontade geral". Ele insiste que uma verdadeira política genérica só pode ser realizada localmente e se opõe tanto à globalização capitalista quanto ao seu inverso, o chamado movimento antiglobalização. Mas o fato de toda política ser local não significa que seja particular. Pelo contrário, Badiou, como Rousseau, argumenta a favor do que poderíamos chamar de universalismo local ou situado.

A questão então é como identificar um local para a política. Rousseau lutou para encontrar exemplos de política legítima. Por um tempo, ele olhou para Genebra, até que começaram a queimar seus livros após a publicação de O Contrato Social em 1762. Ele também tinha esperanças para a Córsega e escreveu uma fascinante constituição especulativa para a Polônia, mas ambas falharam com ele no final. Se a verdadeira política é o ato pelo qual um povo deseja a si mesmo para existir como uma ruptura radical e local com o que existia antes, então é extremamente raro. O único exemplo real que Badiou dá é a Comuna de Paris.

As reflexões de Badiou sobre as eleições francesas de 2002 culminam em uma reafirmação dos argumentos de Rousseau em O Contrato Social contra o governo representativo, eleitoral e a regra da maioria. A vontade geral ou genérica não pode ser representada, certamente não por nenhuma forma de governo estadual. A política não é sobre representação governamental através do mecanismo do voto, mas sobre a apresentação de um povo a si mesmo. ‘A essência da política, de acordo com Rousseau’, escreve Badiou, ‘afirma a apresentação sobre e contra a representação.’ Isso leva Rousseau a seguir Platão em sua crítica à representação teatral ou mimese e a defender festivais públicos, nos quais o povo seria o ator de seu próprio drama político.

No entanto, Badiou e Rousseau vão um passo além, um passo que não sou capaz de dar. Badiou não defende apenas a soberania popular, que é tão controversa quanto torta de maçã na era moderna (desde que ninguém a coloque em prática). Ele também defende o argumento de Rousseau para a ditadura esboçado no final do Livro Quatro de O Contrato Social. Rousseau argumenta, pensando como sempre na história romana, que a ditadura é legítima quando há uma ameaça à vida do corpo político. Em tais momentos de crise, as leis que emanam da autoridade soberana do povo podem ser suspensas — os juristas romanos chamavam isso de iustitium, um estado de exceção. A afirmação de Badiou é um pouco diferente: "A ditadura é a forma natural de organização da vontade política". A forma de ditadura que Badiou tem em mente não é a tirania, mas o que ele chama de "disciplina cidadã". Em outras palavras, o que Marx, Lenin e Mao chamaram de "ditadura do proletariado".

O caráter profundamente rousseauniano da abordagem de Badiou à política fica claro nas duas palestras que concluem Polêmicas. O que interessa a Badiou sobre a Comuna de Paris é a "intensidade excepcional de seu surgimento repentino". Tudo gira em torno do momento em 18 de março de 1871, quando um grupo de trabalhadores parisienses que pertenciam à Guarda Nacional se recusou a entregar suas armas ao governo de Versalhes. É esse momento de resistência e a subsequente eleição do governo da Comuna em 26 de março que constitui um evento político para Badiou. O que acontece na Comuna de Paris é um momento de autodeterminação política coletiva, uma criação de algo do nada - o que ele chama de "existência de um inexistente". Mas, crucialmente, a compreensão de Badiou sobre a Comuna é libertada da crítica extremamente influente de Lenin em O Estado e a Revolução, onde seu fracasso é usado para justificar a tomada do poder estatal pelos bolcheviques em 1917.

É esse momento da Comuna de Paris que foi repetido — muito conscientemente repetido — na Comuna de Xangai em fevereiro de 1967. Isso ocorreu após intensas lutas de poder dentro do Partido Comunista Chinês e a mobilização dos Guardas Vermelhos por Mao contra o que ele via como o "revisionismo" e o burocratismo do regime. Embora Badiou esteja bem ciente de que Mao ordenou a dissolução da Comuna de Xangai e sua substituição por um Comitê Revolucionário controlado pelo Partido, é esse breve momento da ditadura autoautorizada do proletariado que o fascina. Tendo tentado mobilizar as massas politicamente nos estágios iniciais da Revolução Cultural, Mao criticou a Comuna de Xangai por "anarquismo extremo" e por ser "muito reacionária".

Se a política é o que Badiou chama de "evento evanescente", o ato pelo qual um povo se declara existente e busca cumprir essa declaração, podemos dizer que a política é a comuna e somente a comuna. ‘Acredito que esse outro mundo reside para nós na comuna’, escreve Badiou, muito platonicamente. A comuna é a transformação repentina da esterilidade febril do nada do mundo em algo fecundo, um momento de ruptura radical que obceca Badiou, uma apreensão pelo pensamento em um evento que é uma apreensão de poder. Além disso, o evento não dura. Após 72 dias, a Comuna de Paris foi esmagada pelas forças militares de Thiers, o futuro primeiro presidente da Terceira República. Cerca de vinte mil parisienses foram massacrados.

Esse breve momento de política sem partido e estado foi repetido em um registro ligeiramente diferente em maio de 1968. Entendida biograficamente, a categoria do ‘evento’ é a tentativa de Badiou de dar sentido à experiência de novidade e ruptura que acompanhou os événements de 1968. Em sua forma mais simples, a questão geral de Badiou é: o que é novidade? O que é criação? Como a novidade chega ao mundo? Entendido politicamente, o evento é aquele momento de ruptura nova, breve, local e comunitária que rompe com uma situação geral de injustiça e desigualdade social.

Por mais convincente que eu ache a compreensão de Badiou sobre política, seu gosto pela ditadura é difícil de aceitar. Apesar dos protestos liberais de Hannah Arendt, simpatizo com a ideia de que o problema da política é a formação da vontade geral ou genérica, de uma frente popular, o que Marx chamou de "uma associação de seres humanos livres". Mas certamente isso não deveria levar a um pedido de desculpas pela ditadura. Por que não abraçar, em vez disso, a política anarquista que Badiou rejeita firmemente, uma política que também é sem partido e distante do estado? Por trás da conversa de Badiou sobre disciplina, mesmo que não seja mais disciplina partidária, há uma nostalgia afetuosa e profundamente equivocada pela violência revolucionária. Por mais sedutora que seja, a concepção de política de Badiou sofre de um heroísmo da decisão, uma propaganda do ato violento em todo o seu romance ilusório. Para abordar a situação atual, a resistência à violência do neoliberalismo militar não deve assumir a forma de contraviolência — essa é a lógica neoleninista da Al-Qaeda — mas deve ser dedicada à perseguição e ao cultivo da paz. Mas a paz não é passividade ou um estado de repouso. É um processo, uma atividade, uma prática extremamente difícil.

Apesar de todo o otimismo aparente e da robusta afirmatividade da concepção de filosofia de Badiou, permanece a suspeita de que há algo profundamente pessimista em seu cerne. As condições formais que definem uma política verdadeira são tão rigorosas e os exemplos dados tão limitados que é difícil não concluir que muito depois da Comuna, e quarenta anos depois de 1968, qualquer política do evento se tornou impossível. Mas isso seria esquecer a imagem de Sócrates de Platão sonhando com uma cidade justa. Rousseau termina seu Segundo Discurso mostrando que o desenvolvimento da desigualdade social culmina em um estado de guerra entre pessoas, tribos, nações e civilizações. No momento presente, diante de tal estado de guerra, o sonho do filósofo de outra cidade sempre parecerá irremediavelmente utópico. Nessa medida, a impossibilidade da política de Badiou pode ser sua maior força.

27 de agosto de 2007

Uma década de Bolsa Família

Ana Fonseca e Carlos Lopes

Folha de S.Paulo


Costuma-se dizer que o sucesso tem muitas mães. Quase sempre isso é verdade. Como participantes do processo que deu corpo ao Bolsa Família, consideramos oportuno acrescentar ângulos à reflexão do balanço de uma década dessa conquista do povo brasileiro.

O Bolsa Família atende hoje a 13,8 milhões de famílias. O valor médio de seu benefício mensal é de R$ 152. Em 2003, quando implantado, ele atendia a 3,6 milhões de famílias com cerca de R$ 74 mensais, em média.

Mas esse resultado é fruto de um processo histórico em que se logrou aperfeiçoar uma engenharia social capaz de enfrentar a miséria da população de maneira mais profunda.

Pessoas e instituições que se arvoram como protagonistas de uma construção que foi coletiva estão equivocadas. A produção de memórias é sempre parte de um campo de disputas de interesses. Os relatos que apagam tal construção estão longe de serem inocentes.

O desenvolvimento do Bolsa Família se beneficia de experiências anteriores. Em 1995, em Campinas e Ribeirão Preto, no Estado de São Paulo, e no Distrito Federal, foram implantados programas de renda mínima que logo se espalharam por muitos municípios.

Não foi por acaso que, em 2003, o presidente Lula aprovou a expressão "Bolsa Família, uma evolução dos programas de complementação de renda com condicionalidades", em reconhecimento dos antecedentes múltiplos e variados.

O cadastro único dos programas sociais consolidou-se como uma conquista contra os interesses setoriais, que preferiam criar e gerir os seus próprios cadastros, reproduzindo, também no campo da identificação do público alvo, a fragmentação, a disputa de poder e a sobreposição de esforços.

Atribui-se a isso, em parte, o sucesso do Bolsa Família. Em setembro de 2003, estavam registradas no Cadastro Único federal, recebendo benefícios de distintos programas, cerca de 17,2 milhões de famílias. O Bolsa Escola repassava a cada beneficiário por mês R$ 24,80, em média. O Bolsa Alimentação, R$ 21. Em dezembro daquele ano, o Bolsa Família já concedia o triplo da média dos outros programas.

O I Seminário Nacional do Cadastro Único, ainda em 2003, foi o primeiro fórum a reunir gestores federais, estaduais e municipais para discutir as muitas facetas do processo de cadastramento. Com ele, criou-se um ponto de apoio importante para a discussão federativa e republicana sobre a gestão do cadastro único. Ao longo dos anos, ele se converteu em uma ferramenta de planejamento e gestão de políticas.

Em 2011, o governo federal inseriu o Bolsa Família em uma política mais ampla de transferência de renda. Com o plano Brasil sem Miséria, assumiu o compromisso de garantir aos brasileiros uma renda mínima mensal de R$ 70. Comprometeu-se a ampliar o acesso a serviços públicos e a efetuar a inclusão produtiva urbana e rural.

Os dez anos do maior programa de transferência de renda do mundo são motivo de orgulho e esperança para a população brasileira, e é isso que nós devemos celebrar.

Sobre os autores

Ana Fonseca, 62, é pesquisadora do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi secretária-executiva do programa Bolsa Família (2003)

Carlos Lopes, 52, economista, ex-representante da Organização das Nações Unidas no Brasil (2003-2005), é secretário-executivo da comissão econômica para a África da ONU.

16 de agosto de 2007

Irresponsabilidade compartilhada: Fatah e Hamas

Rashid Khalidi sobre a crise palestina

Rashid Khalidi


Vol. 29 No. 16 · 16 August 2007

Mesmo quando eles estavam politicamente unidos, os palestinos enfrentaram uma luta árdua para atingir qualquer um de seus objetivos nacionais, mas suas perspectivas quando eles estavam politicamente divididos foram ainda mais sombrias. O período da década de 1960 ao início da década de 1980, quando a OLP, dominada pelo Fatah, era universalmente reconhecida como representante dos palestinos, foi de derrotas repetidas, mas também um período durante o qual os palestinos mantiveram sua unidade, e houve um consenso quanto aos seus objetivos.

A crise pela qual o movimento nacional palestino está passando agora é, em muitos aspectos, semelhante à que passou nas décadas de 1930 e 1940. Então, profundas divisões internas, habilmente alimentadas por forças externas, contribuíram para uma série de derrotas e levaram em 1948 à expulsão e desapropriação de mais da metade da população árabe do Mandato Palestino. Nas décadas de 1920 e 1930, o movimento nacional palestino, constantemente minado pelas autoridades do Mandato Britânico, nunca concordou com um objetivo político claro e foi repetidamente enfraquecido por divisões e lutas internas. O movimento entrou em colapso espetacularmente após a grande revolta de 1936-39 (durante a qual aproximadamente 10 por cento da população masculina adulta árabe palestina foi morta, ferida, presa ou exilada) e levou décadas para ser reconstruída. Agora, como nas décadas de 1930 e 1940, apenas a solidariedade dos palestinos comuns e suas redes familiares e sociais impediu a fragmentação total da sociedade palestina, pois ela sofreu pressão de forças externas e sofreu com a profunda fraqueza de suas próprias estruturas políticas.

O Fatah e o Hamas têm lutado pelo controle de uma Autoridade Palestina que não tem autoridade real. O comportamento de ambos tem sido vergonhoso: não apenas centenas de palestinos foram mortos por seus militantes, mas seus líderes têm sido totalmente irresponsáveis ​​ao se deixarem arrastar para uma guerra civil. Nas quatro décadas desde a fundação da OLP, nunca houve tamanho abismo entre duas partes do movimento nacional.

A culpa deve ser compartilhada. A decisão do Hamas de participar das eleições do Conselho Legislativo Palestino de janeiro de 2006 foi questionável, para dizer o mínimo. Não é defesa argumentar, como alguns fazem, que seus líderes não esperavam vencer. O Hamas enfrentou uma escolha difícil. Ele poderia tentar capitalizar sua crescente popularidade, concorrer nas eleições e aceitar as regras sob as quais a AP foi constituída — o que significaria reconhecer explicitamente Israel, concordar em lidar com ele e aceitar o princípio de uma solução de dois estados. Ou poderia permanecer puro, recusando-se a participar das eleições da AP, continuando a rejeitar os Acordos de Oslo e Israel e pregando a resistência. Não poderia fazer as duas coisas. E, no entanto, é isso que tentou fazer nos últimos 18 meses, com consequências desastrosas.

Agora que o Hamas assumiu o controle da Faixa de Gaza, e com ela a responsabilidade pelos 1,5 milhões de habitantes do território, ele enfrenta a mesma contradição ainda mais fortemente: como pode alegar ser um movimento de resistência e, ao mesmo tempo, lidar com Israel sobre questões práticas como o movimento de água, combustível e alimentos para Gaza, e de bens e pessoas para dentro e para fora de Gaza? Os israelenses e seus apoiadores americanos e europeus estão agora fazendo o melhor para tornar o mais difícil possível resolver esse dilema, exercendo pressão sobre o Hamas reduzindo o movimento de bens e pessoas a um fio d'água (enquanto permite a entrada de apenas alimentos, combustível e medicamentos suficientes para evitar uma catástrofe), continuando assim a lenta sufocação do povo da Faixa de Gaza, em uma forma de punição coletiva.

Alguém também pode perguntar qual estratégia de libertação o movimento islâmico estava seguindo quando aceitou primeiro um papel de liderança no governo e depois a responsabilidade por toda a Faixa de Gaza. Na verdade, o Hamas adotou a estratégia Fatah/OLP que a maioria dos palestinos acredita ter falhado: tentar construir instituições palestinas de governo aceitando os Acordos de Oslo – que incluem uma proibição de resistência à ocupação – enquanto, ao mesmo tempo, tenta negociar a condição de estado com Israel a partir de uma posição de fraqueza. Já que Israel, apoiado pelos EUA, por quase sete anos se recusou a negociar seriamente com a AP quando era dominada por uma Fatah fraca e cada vez mais não representativa, com base em que o Hamas poderia esperar que Israel negociasse com ele após sua vitória eleitoral, dada sua posição política radical e as expectativas de sua base popular? Como ele pode alegar ser um movimento de resistência e concordar em suprimir a resistência de outras facções, como é exigido pelos termos dos Acordos? Que pressão pode exercer contra uma ocupação de 40 anos com a qual o povo israelense parece geralmente confortável, e que foi aceita e financiada pelos EUA e pela União Europeia, se não pode exercer alguma forma de pressão sobre o próprio Israel? E como os palestinos, muito mais fracos do que os israelenses para começar, podem lidar com eles efetivamente quando estão tão divididos? Essas não são questões apenas para o Hamas: são para todos que desejam ver o conflito resolvido. Mas são particularmente urgentes para o Hamas.

Depois, há o Fatah, por décadas o movimento hegemônico na política palestina. Ele perdeu rapidamente o apoio popular no final da década de 1990 por causa de seu péssimo histórico em negociações com Israel e seu fracasso em estabelecer um governo efetivo ou o estado de direito na Cisjordânia e em Gaza. Fraco e incompetente, sua administração caracterizada por corrupção e nepotismo, o Fatah recebeu sua punição quando perdeu as eleições do PLC de 2006. No entanto, seus líderes se comportaram como se suas políticas tivessem sido justificadas, como se tivessem um direito inalienável ao cargo. A relutância do Fatah em aceitar o resultado da eleição, a necessidade de reforma interna e a necessidade de compartilhar o poder com o Hamas, apesar das repetidas propostas do Hamas, levaram os palestinos à crise atual. Quando alguns líderes do Fatah, como o preso Marwan Barghouti, quiseram aceitar a oferta do Hamas, os obstinados do Fatah (e alguns linha-dura do Hamas) torpedearam a iniciativa, assim como fizeram com o governo de coalizão mediado pela Arábia Saudita criado em fevereiro de 2007.

O Fatah estava especialmente relutante em compartilhar a responsabilidade pela segurança. Não foi preciso muito incentivo para que o conselheiro de segurança nacional Muhammad Dahlan, com o apoio pelo menos tácito de Mahmoud Abbas, sucumbisse às bajulações americanas e tentasse montar um golpe armado contra o Hamas na Faixa de Gaza. Se o Hamas antecipou isso com um golpe próprio, ou se o Fatah deu o primeiro passo, é irrelevante. Nenhum dos movimentos foi capaz de ver que tais divisões profundas significariam que eles teriam ainda menos chance de atingir seus objetivos nacionais. Nisso, eles foram igualmente irresponsáveis.

E, claro, grande parte da culpa deve recair sobre o governo Bush. Seu desprezo pela decisão democrática do povo palestino e seu incentivo a uma guerra civil palestina são as consequências naturais de sua visão de mundo essencialista. Ele vê tudo no Oriente Médio como parte de uma vasta luta cósmica entre os Estados Unidos e os chamados "moderados", de um lado, e extremistas terroristas, de outro. De acordo com essa visão, o Irã é o mesmo que o Hamas, que é o mesmo que o Hezbollah, que é o mesmo que a Al-Qaeda, que era o mesmo que Saddam Hussein. É isso que impulsiona a política dos EUA para o Oriente Médio, e é responsável por criar ou exacerbar toda uma série de conflitos.

1 de agosto de 2007

Contra o realismo histórico

Dentro do épico Guerra e Paz de Tolstoi, Hayden White argumenta, três gêneros são entrelaçados: histórico, romance e filosófico. Se os dois primeiros - e as batalhas, amores e mortes que eles contam - continuam a linha do realismo europeu, no terceiro Tolstoi apresenta a história como uma força além do controle humano, em uma tentativa de desmantelar as ideologias de progresso.

Hayden White

New Left Review

NLR 46•JULY/AUG 2007

Nós, os russos em geral, não sabemos escrever romances no sentido em que se entende esse gênero na Europa.[1]  
Tolstói 

Tradução / Guerra e paz (1865-1869), de Liev Tolstói, é uma obra volumosa e de enorme complexidade, à qual nenhum breve resumo é capaz de fazer justiça. Ela consiste basicamente em dois livros alentados, um histórico, outro ficcional, integrados para expor o efeito da invasão napoleônica em 1812 sobre a sociedade russa. Como a obra mescla vários gêneros – história, romance, épica –, os críticos divergem sobre sua classificação. Aqui vou considerá-la como exemplo daquilo que ela é de maneira mais flagrante, a saber, um romance histórico. Mas Guerra e paz é um romance histórico de tipo específico: procura mostrar que, mesmo sendo impossível deixar de usar a “história” como contexto para a representação de grandes eventos, as exposições “históricas” de tais eventos não conseguem de maneira nenhuma explicá-los. Na verdade, Guerra e paz é uma obra que consuma e, ao mesmo tempo, efetivamente desmantela o romance histórico. Com isso, ela corrói os fundamentos do realismo literário da Europa ocidental, questionando a ideologia da história em que ele se baseava.

O próprio Tolstói negava que sua exposição da invasão napoleônica da Rússia em 1812 recaísse sob a rubrica de algum gênero específico. Em 1931, o crítico Boris Eikhenbaum disse que Tolstói havia iniciado a obra – cujo título original era 1805 – como uma combinação entre dois gêneros russos consolidados, o “romance de família” e o “romance militar-histórico”.[2] Mas, do começo do Livro VII em diante, afirmava Eikhenbaum, o livro passava para um novo gênero, o épico histórico-filosófico. Assim, podemos identificar pelo menos três linhas de gênero que se entrelaçam na composição de Guerra e paz: uma linha histórica (o relato da invasão da Rússia por Napoleão), uma linha romanesca (o impacto dessa guerra sobre quatro famílias ficcionais da nobreza russa) e uma linha filosófica (digressões discursivas sobre certas ideias abstratas sugeridas pelos eventos, históricos e ficcionais, narrados no livro). É essa combinação de linhas que faz de Guerra e paz uma consumação do gênero do romance histórico. Tolstói não só compõe um romance histórico, como submete o gênero a uma análise à luz de sua filosofia da história própria. Essa dimensão crítico-filosófica estava totalmente ausente dos grandes romancistas históricos anteriores a Tolstói: Scott, Manzoni e Dumas.

I

Embora Guerra e paz seja muito longo, a ação descrita se estende por um período de tempo relativamente curto: os sete anos entre a Batalha de Austerlitz em 1805 e a retirada de Napoleão da Rússia em 5 de dezembro de 1812. A ação se divide a grosso modo entre um relato das campanhas, batalhas e manobras militares da guerra e uma exposição da vida na alta sociedade russa, tal como fora afetada pela guerra. Aquele fala do esforço em conquistar terras, poder e glória por meios militares; esta, do esforço em conquistar amor, poder e riqueza pelos meios fornecidos pela “sociedade”. As duas narrativas nunca convergem inteiramente, mas nem há razão para isso, visto que tratam da mesma coisa: as similaridades entre “guerra” e “paz”.

Guerra e paz saiu originalmente como uma série entre 1865 e 1869, e a maioria de suas edições divide a obra em vários livros, com capítulos ou subseções. Há pouquíssima continuidade entre um livro e outro (embora sigam uma ordem cronológica) ou entre uma subseção e outra. Os segmentos constituem uma série de vinhetas, pequenos episódios, historietas (eis três em seguida no Livro VIII: “Os Rostov no teatro de ópera, Helene no camarote ao lado”, “Descrição da ópera”, “Anatole e Dolokhov em Moscou”). Essas vinhetas às vezes se assemelham aos faits divers dos jornais da época. Os personagens não se desenvolvem de um episódio ao outro, mas simplesmente reaparecem de tempos em tempos com um novo leque de atributos. Mas, por outro lado, a ação inteira do livro cobre apenas sete escassos anos. Há alguns momentos de revelação: um com Bolkonski, vários com Pierre; e um personagem, Natacha Rostova, realmente se desenvolve – mas nenhum deles apresenta qualquer mudança de caráter significativa e duradoura. Mais do que um desenvolvimento, a maioria dos personagens passa por uma espécie de reconfiguração, com o acréscimo de novos traços e o rearranjo de traços anteriores, à medida que sofrem uma decepção ou frustração atrás da outra, tanto na “guerra” quanto na “paz”. Não é um romance feliz, ainda que, originalmente, Tolstói o planejasse como uma espécie de comédia, em que bem estaria o que bem terminasse.

As seções que compõem Guerra e paz formam uma série, mas não uma sequência. A sequencialidade distribui o sentido num espaço narrativo por hipotaxe, distinguindo gradualmente o que é e o que não é importante entre todos os dados no texto e encaminhando tudo para um desfecho ou uma conclusão em que finalmente é possível captar ou entender a significação dominante dos eventos relatados. Usualmente, um tratamento histórico dos eventos consiste na tentativa de revelar a sequência (criação de um enredo narrativo) em lugar daquilo que parece ser mera serialidade (crônica). Mas Tolstói resiste à sequencialidade precisamente porque está lidando com a história: ele não acredita que a história tenha enredo. Então, para resistir à tentação de criar um enredo, ele volta à cronologia como o grande princípio organizador de seu retrato da vida na Rússia entre 1805 e 1812.

Assim, os Livros I a VI relatam eventos dos anos 1805-1810 e consistem numa exposição bastante direta das relações militares e diplomáticas entre a França e a Rússia, em descrições de algumas batalhas iniciais entre o Grande Exército de Napoleão e uma aliança russo-austríaca, e a apresentação dos principais personagens ficcionais, representando a nobreza russa. O livro começa sem qualquer introdução, assim como, cerca de 1.400 páginas depois, terminará sem um fim. Mergulhamos imediatamente numa cena social em São Petersburgo, uma soirée onde conversam sobre a súbita ascensão da carreira de Napoleão Bonaparte. Somos apresentados a Pierre Bezukhov, que mais à frente revela ser a principal figura ficcional do livro, mas não recebemos praticamente nenhuma informação sobre ele (é filho ilegítimo, mas sua mãe nunca é mencionada e nada sabemos de sua infância ou criação). Ele nada tem de marcante – e assim continua até o final. Pouco age, mas acontecem-lhe muitas coisas.

Como herói, Pierre deixa muito a desejar; é mais o tipo do interiorano rústico que vai para a cidade do que a encarnação da virtus aristocrática. Seu amigo Andrei Bolkonski é um candidato mais promissor para o papel. Os seis primeiros livros seguem de modo intermitente o decurso do casamento sem amor do príncipe Andrei e a morte da esposa durante o parto, seu melancólico desencantamento com a vida, o amor pela bela e jovem condessa Natacha Rostov e o noivado dos dois. Mas ele também é um fiasco como herói. Estraga o noivado com Natacha e morre antes de acertar a situação com ela.

Os Livros VII e VIII fornecem uma espécie de transição entre os anos 1807- 1812 e uma preparação para a nova filosofia da história que será utilizada para desmontar as versões oficiais da Guerra de 1812. O Livro VII aborda a “paz”, a vida no campo e a feliz família Rostov em casa, enquanto o Livro VIII apresenta a vida na cidade – Moscou – e a sedução de Natacha Rostov por Anatole Kuráguin, cunhado de Pierre. Pierre frustra o plano de Anatole para raptar Natacha. Andrei repudia Natacha, ela tenta se suicidar, sem êxito, e Pierre percebe que ama Natacha e não a esposa errante, Helene Kuraguina, com quem se casara vergonhosamente apenas por luxúria. Como sugere esse insuficiente resumo, nas seções ficcionais do livro começam a acontecer muitas coisas, enquanto Tolstói nos prepara para as complicações que surgem devido ao impacto da “história”.

Os Livros IX a XV, a “porção” mais extensa de Guerra e paz, abordam os sete meses de “guerra”, de maio a dezembro de 1812. Contam como Napoleão invade a Rússia e encontra a oposição dos soldados sob o comando do Marechal de Campo Kutuzov, velho, cansado, aleijado e quase cego. O exército napoleônico avança, ocupa e saqueia Moscou, mas Napoleão perde o controle dos soldados que se convertem numa turba entregue a bebedeiras e pilhagens, e decide se retirar de Moscou e voltar à França. O que resta de seu exército é destroçado durante a retirada; Napoleão acaba por abandonar o que restou dos quinhentos mil homens que conduzira até a Rússia e retorna à França, para seu Waterloo.

Causalidade e liberdade 

É nessa porção do texto que se encontra a substância de Guerra e paz. É aqui que a “história” deixa de ser um relato do passado e brota como força em si, revelando-se a manipuladora oculta dos destinos dos indivíduos e das nações. A mudança da noção de história como soma total dos eventos no passado para a de “história” como uma força que faz os eventos acontecerem e dá à sociedade humana uma direção específica, ainda que incognoscível, emerge explicitamente no Livro IX, onde o narrador reflete sobre a ironia da crença dos grandes homens de serem eles causas, e não consequências, da transformação histórica. Tolstói argumenta que os historiadores alimentam a vaidade de reis e generais escrevendo a história como se suas ocorrências se devessem à vontade, aos desejos e às ordens deles. Na verdade, insiste o autor, todo evento histórico é consequência de “miríades de causas”, tão numerosas a ponto de tornar a história “irracional e incompreensível”. Os movimentos de indivíduos e povos exigem a concordância de todos os envolvidos, de modo que qualquer coisa que tenha acontecido poderia muito bem não ter acontecido, mas, depois de acontecer, aparece retrospectivamente como algo necessário e inevitável.

Assim, ficamos entregues a uma situação paradoxal, em que devemos reconhecer que somos determinados pela história e, ao mesmo tempo, somos livres em relação a ela. Tolstói, a esse respeito, parece acreditar numa “coincidência de opostos”. Pois, embora dedique muito tempo a mostrar que tudo na história “aconteceu porque tinha de acontecer”, ele também sustenta que, em última análise, é irrelevante se nos consideramos livres ou determinados em qualquer situação dada. Assim, escreve Tolstói:

Há dois lados na vida de todo homem, sua vida individual, que é tanto mais livre quanto mais abstratos são seus interesses, e sua vida natural de colmeia, em que ele obedece inevitavelmente a leis que lhe são postas. 
O homem vive conscientemente para si próprio, mas é um instrumento inconsciente na consecução dos fins históricos universais da humanidade.3 

Os homens estão divididos – afirma Tolstói – entre sua vida consciente, que vivenciam como se fossem livres, e sua vida animal, física, “de colmeia”, que não é “vivenciada”, mas simplesmente vivida como se fosse “natural”. Tolstói sustenta que essas duas dimensões da vida humana estão inversamente relacionadas com o grau de poder social de que goza o indivíduo: “Quanto mais alta a posição de um homem na escala social, quanto maior o número de pessoas a que está ligado e maior o poder que tem sobre os outros, tanto mais evidentes são a predestinação e a inevitabilidade de todas as suas ações”. Dessa forma, para Tolstói, “um rei é escravo da história” – e segue-se, ou assim parece, que o servo mais vil é, em certo sentido, o mais “livre” dos homens.

Segundo esse tipo de raciocínio, a realização pessoal consiste no reconhecimento de que aquilo que queremos, desejamos ou ambicionamos conscientemente é, na realidade, resultado do condicionamento social, ao passo que o que deveríamos querer e buscar é a imersão na vida “de colmeia”, onde a regeneração e a morte servem aos fins da “vida” mais do que aos da sociedade. Ainda que Napoleão pensasse ser o arquiteto das guerras que travava para conquistar a Rússia, “ele nunca estivera tanto sob o domínio de leis inevitáveis que o levavam, pensando agir por vontade própria, a realizar para a vida de colmeia – isto é, para a história – tudo o que fosse preciso realizar”.4 Isso é menos paradoxal do que pode parecer à primeira vista. Pois Tolstói acredita que, visto que todo evento é resultado de todas as forças causais em operação no conjunto da história, deve-se considerar o senso humano de livre arbítrio como algo predestinado; dessa maneira, sejam os homens livres ou não, o senso de serem livres precisa ser incluído entre as causas que contribuem para a ocorrência de todos os eventos causados por seres humanos. O aspecto mais importante assinalado por Tolstói é que, quanto maior o poder de um indivíduo ou grupo, maior a ilusão quanto à natureza e extensão desse poder e maior o sofrimento causado em seu exercício. A realização, portanto, consistirá no abandono de qualquer tentativa de obter ou exercer o poder e no retorno à vida “de colmeia” representada pela família, casta e raça. A passividade é a condição a que se deve aspirar. A capacidade de agir, característica dos heróis, é a fonte de tudo o que há de terrível na existência socialmente organizada.

Assim, a aparente diferença entre atividade e paciência, ou ação e paixão, base para a distinção entre, de um lado, uma vida heroica e, de outro lado, uma vida comum, humilde ou despretensiosa, revela-se uma falsa dicotomia. Mostrar-se-á que Napoleão, o homem de ação por excelência, era o produto de forças sobre as quais ele não tinha absolutamente controle nenhum, ao passo que Kutuzov, o não-general idoso, distraído, sonolento, quase cego, irá se revelar como vencedor de Napoleão e salvador da Rússia. Kutuzov é a encarnação da passividade ativa, enquanto Napoleão não passa de um ativista passivo. A força de vontade de Kutuzov se manifesta em sua resistência a qualquer tentativa de obrigá-lo a combater Napoleão, enquanto Napoleão aparece em sua insistência em combater a qualquer momento e em qualquer lugar. Assim, a vitória de um é decidida pela passividade; a derrota do outro, pela ação. Em Guerra e paz, a guerra é uma atividade absurda, no fundo uma farsa.

No Livro X, por exemplo, Tolstói interrompe sua narração da visita de Pierre Bezukhov ao campo de batalha de Borodino para comentar a falta de sentido de se ter travado tal batalha.

Em 24 de agosto foi travada a batalha do Reduto de Shevardino, no dia 25 não se disparou nenhum tiro de nenhum dos lados e no dia 26 ocorreu a própria batalha de Borodino. 
Como e por que se deram e foram aceitas as batalhas de Shevardino e Borodino? Por que se travou a batalha de Borodino? Não havia o menor sentido nela, nem para os franceses, nem para os russos. Seu resultado imediato para os russos foi, e estava fadado a ser, que nos aproximamos mais da destruição de Moscou – coisa que mais temíamos no mundo; para os franceses, seu resultado imediato foi que se aproximaram mais da destruição de todo o seu exército – coisa que mais temiam no mundo. Qual seria o resultado, era totalmente óbvio e, apesar disso, Napoleão ofereceu e Kutuzov aceitou aquela batalha.5 

A explicação de Tolstói – contra a das falsas ideias dos historiadores oficiais – foi que “Kutuzov agiu involuntária e irracionalmente. Mas depois, para se encaixar com o que ocorrera, os historiadores apresentaram sinais engenhosamente fabricados do gênio e clarividência dos generais, os quais, entre todos os instrumentos cegos da história, eram os mais escravizados e involuntários”. Tolstói zomba de táticos e estrategos, com seus mapas, quadros e diagramas, que tentam converter a guerra moderna de massa numa questão de planejamento rigoroso. Os meros números dos exércitos engajados na invasão da Rússia asseguravam que as campanhas travadas por ambos os lados eram uma questão mais de força inercial do que de escolha e decisão. Tolstói mostra Napoleão tomando decisões arbitrárias para as quais não se apresenta nenhuma razão, consumindo seu exército como um menino comendo doces e fazendo birra quando surgem impedimentos à sua vontade. Kutuzov, por outro lado, sabe apenas uma coisa: manter o exército ou seus remanescentes intactos, lutar apenas quando forçado a isso e recuar, recuar, recuar – mesmo ao ponto de entregar Moscou ao inimigo. É uma batalha do falso brilho e egocentrismo contra a mais autêntica obtusidade, paciência e resignação ao destino. Ao fim, Napoleão se vê ocupando uma cidade desabitada, seus soldados sem equipamentos para o inverno, suas linhas de abastecimento cortadas.

Todavia, Napoleão, o maior de todos os gênios, que os historiadores afirmam que tinha controle do exército... usou seu poder para escolher o mais tolo e desastroso de todos os rumos que lhe estavam abertos... [D]eixou Moscou... Durante todo aquele período, Napoleão, que parece ter liderado todos esses movimentos – assim como a figura de proa de um navio pode, a um selvagem, parecer que está no comando da nau – agiu como uma criança que, segurando dois cordéis dentro de uma carruagem, pensa que está a dirigi-la.6 

É por isso que o relato de guerra em Guerra e paz, embora mostrando inúmeros esforços, lutas, batalhas e destruições, ao fim e ao cabo nada terá de heroico em si. O que de início aparece como algo nobre e heroico, até mesmo trágico para os historiadores do período, é desmascarado por Tolstói como uma aventura insensata, sangrenta e infrutífera de um charlatão do Ocidente, que não tinha ideia do que estava fazendo. O “heroísmo” dos russos, em reação ao ataque de Napoleão, é de tipo estoico e passivo. Os russos simplesmente suportam. Este é o gênio da raça.

Assim, depois de uma conversa com o general Kutuzov, o príncipe Andrei volta a seu regimento,

tranquilizado quanto ao curso geral das coisas e quanto ao homem a que ele fora confiado. Quanto mais percebia a ausência de qualquer motivo pessoal naquele velho – a quem parecia restarem apenas o hábito das paixões e, em lugar de um intelecto (reunindo fatos e extraindo conclusões), apenas a capacidade de contemplar calmamente o curso dos eventos –, mais tranquilizado se sentia de que tudo seria como deveria ser... “E acima de tudo”, pensou o príncipe Andrei, “acredita-se nele porque é russo”.7 

Este, claro, é Andrei falando, não Tolstói; e não é possível saber com certeza se Tolstói não deseja que seus leitores interpretem as ideias de Andrei com alguns grãos de sal – principalmente porque Andrei é um daqueles homens “inteligentes” que sempre enxergam a realidade mais pela lente de sua razão do que por meio de seus sentimentos. Apesar disso, a “russidade” desempenha um papel no épico de Tolstói, como explicação da vitória da Rússia sobre o tirano do Ocidente.

De fato, pode-se afirmar que, nas partes militar-históricas do romance, Tolstói lança a “francidade” contra a “russidade”, uma totalmente composta de consciência, brilho, raison, estilo e ação; a outra, de sentimento, solidez, paciência, prosaísmo e paixão. É por isso que, apesar de todo o movimento, todo o som e fúria do relato de guerra, nada acontece realmente. Embora haja muitas ocorrências em Guerra e paz, é muito difícil identificar eventos específicos e as cadeias de consequências que um dado evento qualquer poderia acarretar para os eventos subsequentes. As batalhas começam mais por acaso do que por deliberação e terminam sem resultados decisivos. Monarcas, generais e outras autoridades lançam ordens, mas invariavelmente elas se perdem, chegam ao destinatário errado ou são ignoradas pelos subordinados. Os franceses ocupam Moscou, mas nunca chegam a submetê-la plenamente. Quando a cidade é abandonada pelo exército russo, Napoleão aparece como vencedor da guerra, mas os russos se recusam a reconhecer sua vitória, a tratar com ele ou a combatê-lo abertamente. No fim, Napoleão é obrigado a abandonar Moscou, porque os russos simplesmente agem como se ele nunca tivesse estado ali. Kutuzov vence – se é que se pode dizer que “venceu” – agindo o mínimo possível, batendo em retirada e abandonando Moscou, permitindo que Napoleão esgote suas forças na inútil espera de ser saudado como conquistador. Assim, como relato da invasão napoleônica da Rússia, Guerra e paz é uma história sem eventos ou os tipos de ações que poderiam formar um enredo. Nessa ausência de eventos e de enredo, pode-se dizer, portanto, que ele se aproxima, se é que não o antecipa, do romance modernista – ou daquele aspecto do modernismo já imanente num realista como o Flaubert de A educação sentimental.

II

Todos os principais personagens ficcionais russos em Guerra e paz pertencem à nobreza. A exceção é Platon Karataiev, um velho soldado analfabeto que acredita piamente na harmonia do universo, faz amizade com Pierre no cativeiro, é abatido como um cachorro quando cai de exaustão na beira da estrada e a quem Pierre considera “a personificação de tudo o que é russo... do espírito e da verdade”. Ao contrário de todos os aristocratas no livro, Karataiev possui uma sabedoria nascida do solo e do gênio russos, mas é uma sabedoria mais vivida do que refletida. “Toda palavra e ação dele era a manifestação de uma atividade desconhecida a si, a qual era sua vida. Mas sua vida, tal como ele a via, não tinha sentido como uma coisa separada. Tinha sentido apenas como parte de um todo do qual ele sempre foi consciente.”8

Karataiev representa o paradigma de um ser humano que se libertou da sociedade. Não aspira a nada, não quer nada, aceita o que lhe vem, não sente nenhuma separação entre si mesmo e seu meio, não tem um “eu”. Para Pierre, Karataiev era “uma personificação insondável, completa, eterna do espírito de simplicidade e verdade”. É o anti-herói por excelência, ou seja, um santo. Todos os demais personagens de Guerra e paz acabam sendo medidos por ele – e ficam aquém. E bem no final do romance, no epílogo que nos mostra as famílias Bezukhov e Rostov em 1820, Karataiev é invocado para testar o desejo de Pierre de retornar ao mundo da sociedade e participar de um movimento político. Natacha pergunta a Pierre se Karataiev aprovaria seus planos de entrar na luta política.

“Não, não aprovaria”, disse Pierre depois de refletir. “O que ele aprovaria seria nossa vida em família. Ele sempre desejou muito encontrar correção, felicidade e paz em tudo, e eu ficaria orgulhoso em deixar que ele nos visse.” 

Esta é a última cena do romance. Não é um final, mas não fazemos ideia do que o futuro reserva para Pierre e Natacha. Sabemos apenas que Pierre e Natacha encontraram em seu mútuo amor e em sua vida familiar um modelo – é o que Pierre pelo menos pensa – do que a sociedade poderia vir a ser. “Gostaria apenas de dizer”, continua Pierre, “que as ideias que têm grandes resultados são sempre simples. Minha ideia geral é que, se as pessoas ruins estão unidas e constituem um poder, então as honestas deveriam fazer o mesmo. Ora, isso é bastante simples”.9

Em certo sentido, Tolstói quer que acreditemos que a nobreza russa da época perdera sua “russidade” na medida em que se “socializara”. Ao se civilizarem, galicizaram-se. Tolstói indica esse aspecto ao apresentar seus aristocratas russos falando em francês com mais facilidade do que em russo; retomam o russo quando estão no campo e precisam se comunicar com seus servos e criados. Vemos Pierre no começo do livro logo depois de voltar dos estudos em Paris, admirador de Napoleão e do iluminismo francês, adotando maneiras francesas em vívido contraste com sua natureza russa rústica, que se reflete em sua aparência grosseira, sua miopia e deselegância.

Fisiologicamente, Pierre é a própria antítese dos belos cavalheiros da corte russa: Andrei, Anatole, Dolokhov, Boris etc. Como Kutuzov, Pierre é gordo demais para montar a cavalo comodamente, míope demais para observar o que se passa ao redor, tosco demais na fala para conquistar belas mulheres e persuadir homens inteligentes. Meu palpite – mas não disponho de nenhuma indicação no texto que lhe dê base – é que Pierre era filho de uma serva e que seus traços físicos pretendem indicar suas raízes no solo da Mãe Rússia. Seja como for, a Bildung ou “educação sentimental” de Pierre nos modos e maneiras do mundo é o inverso da de seus correspondentes ocidentais. Suas experiências de “guerra e paz” o afastam sempre mais da “sociedade”, aprofundando mais e mais a busca do tipo de comunidade que encontrara com outros homens, ao ficar como prisioneiro dos franceses, ameaçado de morte, privado de qualquer bem material, restando-lhe apenas a fraternidade de Karataiev – e suas parábolas sobre o poder terapêutico do amor. Depois que Karataiev foi morto por um guarda francês, certa noite Pierre cai exausto e tem mais uma vez o sonho que tivera em Mozhaisk, após a batalha de Borodino:

Outra vez fatos reais se misturaram com sonhos e outra vez alguém, ele ou outro, deu expressão a seus pensamentos, e até aos mesmos que haviam sido expressos em seu sonho em Mozhaisk. “A vida é tudo. A vida é Deus. Tudo muda e move e esse movimento é Deus. E enquanto há vida há alegria na consciência do divino. Amar a vida é amar Deus. Mais difícil e mais abençoado do que tudo é amar esta vida nos próprios sofrimentos, nos sofrimentos de inocentes.” “Karataiev!”, veio à mente de Pierre.10 

A mudança pela qual passa Pierre, como resultado de sua experiência de cativeiro e degradação, é radical:

A própria pergunta que antes o atormentara, a coisa que tentara continuamente encontrar – a finalidade da vida –, agora não existia mais para ele. Aquela busca da finalidade da vida não só meramente desaparecera por algum tempo – ele sentiu que ela não existia mais para si e não iria se apresentar outra vez. E essa própria ausência de uma finalidade lhe deu a sensação completa e jubilosa de liberdade que agora constituía sua felicidade... Agora ele tinha fé – não fé em algum tipo de norma, em palavras ou ideias, mas fé num Deus sempre vivo, sempre manifesto. 

Essa nova fé em Deus, porém, fornece a Pierre uma nova relação com outros homens e mulheres.

Essa peculiaridade legítima de cada indivíduo que costumava enervar e irritar Pierre agora se convertia em base da simpatia que sentia e o interesse que nutria por outras pessoas. A diferença e, às vezes, a total contradição entre as opiniões e a vida dos homens e entre um homem e outro agradavam-no e lhe despertavam um sorriso gentil e divertido.11 

Pierre não persistirá nessas novas percepções: “todo o sentido da vida” se concentrará na encantadora Natacha, agora mais humilde depois de passar pela experiência da morte do príncipe Andrei.

Trajetórias 

O príncipe Andrei Bolkonski, a coisa mais próxima de um herói romântico no livro, perde o amor de sua vida, Natacha Rostova, e morre pelos ferimentos que recebeu num fortuito fogo de barragem. Ele é melancólico, inteligente e corajoso, filho devotado, bom amigo, mas marido indiferente, pai enfastiado com o filho, amante formal de Natacha. Num rascunho inicial do livro, Tolstói pretendia que ele vivesse, se casasse e fosse feliz. Mas depois resolveu matar Andrei numa cena que parece sugerir que a morte de um espírito nobre testado pela adversidade e pela perda pode levar à realização pessoal. Eis o discurso que vem logo após o trecho narrando como o príncipe Andrei aceitou a morte:

“Sim, a morte é um despertar!” E de súbito sua alma se iluminou e o véu que até então ocultara o desconhecido foi removido de sua visão espiritual. Ele sentiu como se os poderes até então confinados dentro de si tivessem se liberado, e aquela estranha claridade não o deixou mais.12 

A emotividade dessa cena, porém, é embaraçosa e poderia ser citada em prol de uma moção para excluir Tolstói de qualquer rol de realistas ao estilo ocidental.

Natacha, a beldade esguia e esplêndida de olhos negros, a coisa mais próxima de uma heroína romântica no livro, apaixona-se por um pretendente após o outro, trai Andrei com o volúvel Anatole, mostra, na verdade, que “ama o amor”, até que vem finalmente a se arrepender, quando vela Andrei em seu leito de morte. Mas ela se transforma em seu relacionamento com Pierre, passando no fim do livro por um improvável renascimento como dona de casa compulsiva e mãe obsessiva. É como se Natacha (interpretada por Audrey Hepburn na adaptação cinematográfica de King Vidor) finalmente ficasse adulta durante os sete anos transcorridos entre sua penúltima aparição aos vinte anos, em 1813, e sua última aparição em 1820. De borboleta social, passou a mãe de quatro filhos, esposa dominadora, ainda que devotada, entregue aos serviços domésticos. Mas, como veremos, as causas dessa transformação não são claras. É verdade que ela sofreu muito, mas seus sofrimentos não têm nada de trágico, pois não são enfrentados por nenhuma causa nobre.

Nicolai Rostov, o tipo do fidalgo rural simplório, soldado, caçador, filho respeitoso e cumpridor, mas amante indiferente, pouco dado à introspecção, mas industrioso e solene, finalmente se casa com a irmã de Andrei, a princesa Maria, e com isso – ela é uma herdeira rica – salva o patrimônio de seu pai dissipador. À política e à sociedade Nicolai prefere a caça, a montaria, a bebida, a vida de soldado e a camaradagem de caserna. Mas abandona a carreira militar para reconstruir a propriedade da família, arruinada pelo exército de Napoleão, zeloso fazendeiro e administrador de suas terras e, por fim, amável anfitrião das famílias que iam visitá-lo todos os anos – às vezes “com dezesseis cavalos e dezenas de criados, e ficavam por meses a fio”. No final do livro, ele se lança a um programa de leitura para aprimorar o intelecto.

Os Kuráguin, encabeçados pelo príncipe Vassíli, figura política de peso e dado às intrigas da corte, formam a única “má” família entre as quatro que têm importância no livro. Pierre se casa com a filha dos Kuráguin, Helene (Anita Ekberg na versão de Hollywood), de beleza voluptuosa, mas fria, que logo o rejeita como amante toleirão e inadequado, pega a maior parte da fortuna dele e o larga, deixando-o a refletir sobre sua culpa, em primeiro lugar, de ter se casado com ela por luxúria. Helene se torna o centro da cena social em São Petersburgo e detém considerável poder social, até que uma de suas intrigas sai errado. Ela morre em circunstâncias misteriosas – provavelmente por suicídio – depois de ser levada por sua sede de poder e riqueza a assumir compromisso de casamento com dois homens ao mesmo tempo. O irmão de Helene, o envolvente libertino Anatole, seduz Natacha, arruína seu noivado com Andrei, é expulso da localidade por Pierre (seu cunhado) e perde uma perna na batalha de Borodino.

Tal como resumi a narrativa, bastaria mudar os nomes e os cenários e a ação poderia se passar numa novela romântica da Harlequin ou num épico americano de costumes dos anos 1950. Mas há uma diferença fundamental: Tolstói trata com uma casta de aristocratas com os quais se identificava plenamente, admirando-os e partilhando os mesmos ideais. Quando Tolstói concebeu Guerra e paz, essa casta perdera sua função social original, mas não seus privilégios. Guerra e paz, porém, mostra a nobreza russa ainda a serviço de uma função militar vital, embora sua riqueza, fundada numa enorme população de servos trabalhando na ignorância e em condições similares à escravidão, com equipamentos antiquados e técnicas pré-industriais de agricultura e manufatura, vinha se dissipando rapidamente e seus privilégios tradicionais se tornando difíceis de justificar. O surgimento de forças sociais e tecnológicas que mal se discerniam na Rússia durante as guerras napoleônicas era plenamente visível na época em que Tolstói serviu na Guerra da Crimeia (1854-1856). A aristocracia russa por ele pintada ainda não se degenerou totalmente, mas já vem se esgarçando e Tolstói deixa isso muito claro.

No entanto, não se apontam as razões para esse declínio. Naturalmente, Tolstói estava longe de ser um defensor da modernização. Mais tarde, tornou-se uma espécie de radical social, dedicado ao pacifismo, ao vegetarianismo e a várias versões do pietismo cristão. Em Guerra e paz, tal como em Anna Kariênina, ele idealiza os efeitos redentores do trabalho na terra e, em seus idílicos quadros da vida em família ao final do livro, contrapõe a natureza pacífica desse ambiente à natureza beligerante da “sociedade”. Sua descrição da propriedade dos Rostov, depois que Nicolai a reconstrói, é uma pintura idealizada do que poderia ser uma fazenda bem dirigida, com servos tratados como seres humanos e não como gado, para uma nova vida na Rússia. Essa ideia era absurda, sem dúvida, mas não porque a abolição da servidão não fosse necessária, e sim porque a agricultura camponesa jamais poderia servir de base para uma sociedade moderna.

O sonho tolstoiano de uma comunidade baseada numa economia camponesa, mais eficiente graças ao respeito pela terra, fornece a dimensão utópica de Guerra e paz, mas também é um indicador da distância entre Tolstói e os escritores realistas ocidentais de meados do século. O sinal do realismo deles é a eliminação de qualquer fantasia utópica como alternativa às sociedades de classes para as quais escreviam.

III

Apontei como Tolstói invoca a história como tema e, ao mesmo tempo, reconceitualiza-a de uma forma que lhe retira qualquer força explicativa. Agora cabe dizer que ele faz algo muito parecido com suas ficções. Invoca os personagens arquetípicos das narrativas românticas e do romance histórico, ao mesmo tempo colocando-os num contexto em que guerra e paz são igualmente insuportáveis para eles. Assim, o que começa como análise social realista nas ficções de Guerra e paz termina como pastoral. Todos os principais personagens começam como representantes de sua posição e classe social e terminam ou destruídos por uma aceitação irrefletida do código social ou convertidos às alegrias da vida familiar no campo.

De fato, o final da narrativa de ficção é feito às pressas, simplesmente acrescentado como parte de um “epílogo” que se inicia com um longo discurso “sobre as forças operantes na história” e passa bruscamente para uma exposição das condições das famílias Rostov e Bezukhov em 1820. É como se Tolstói tivesse se entediado com o tema e até se irritado um pouco com os personagens. No final, ele descarta suas próprias criações como representantes insípidos de seu crescente arcaísmo.

Por exemplo, a Natacha que aparece em 1820, quinze anos depois de ser apresentada à sociedade, no começo do livro, passou por uma transformação física e espiritual que é totalmente infundada. Depois de páginas e mais páginas enaltecendo sua beleza e vitalidade – tendo como metonímia a esbelteza de pés e mãos, grandes olhos escuros e espírito impetuoso –, eis como ele a descreve, ao aparecer em 1820:

Natacha se casara no começo da primavera de 1813, e em 1820 já tinha três filhas, além de um filho que muito desejara e agora estava amamentando. Ela ficara mais larga e mais corpulenta, de modo que era difícil reconhecer nessa mulher maternal e robusta a esguia e vivaz Natacha de outrora. Seus traços estavam mais definidos e tinham uma expressão calma, suave e serena. Não havia em seu rosto nada da animação sempre refulgente que antes ali ardera e constituíra seu encanto. Agora o que se via geralmente eram apenas o rosto e o corpo, e sua alma não se apresentava à vista. O que se enxergava era uma mulher forte, fértil, fornida. Agora o antigo fogo raramente se avivava em seu rosto. Isso acontecia apenas quando, como era o caso naquele dia, o marido voltava ao lar ou um filho doente se recuperava... ou nas raras ocasiões quando acontecia algo que a fazia cantar, coisa que abandonara totalmente desde o casamento. Nos raros momentos em que o antigo fogo se avivava em seu corpo fornido e plenamente desenvolvido, ela ficava ainda mais atraente do que nos dias de outrora... Não se preocupava com seus modos ou com a delicadeza da linguagem, nem com sua toalete, nem em se mostrar ao marido com suas atitudes mais agradáveis ou em evitar incomodá-lo sendo exigente demais... O assunto que concentrava toda a atenção de Natacha era sua família.13

Natacha seria falsa, artificial, sem autenticidade, quinze anos antes, quando era a belle da sociedade moscovita? Por que agora “ela tinha demandas sobre seu tempo que só poderia atender renunciando à sociedade”? O que encontrou em Pierre que a converteu em sua acólita e em escrava de sua família? A motivação para tal metamorfose permanece obscura. Sabemos apenas que:

Desde os primeiros dias da vida de casados, Natacha anunciara suas exigências. Pierre ficou muito surpreso com a posição de sua esposa, para si totalmente inédita, de que todos os momentos da vida dele pertenciam a ela e à família. As exigências da esposa o espantaram, mas também o lisonjearam, e ele se submeteu a elas.

Terá assumido esse novo espírito junto com o peso que ganhou após o casamento? Tolstói se contenta em explicar a mudança de Natacha invocando o princípio geral de que “o homem tem a faculdade de se deixar absorver totalmente por um assunto, por mais trivial que seja, e não existe nenhum assunto tão trivial que o impeça de adquirir proporções imensas, se a pessoa lhe dedicar toda a sua atenção”. Simplesmente aconteceu que Natacha tomasse sua família como o principal objeto de sua atenção e, “quanto mais se aprofundava... no assunto que a absorvia, mais ele crescia e mais fracos e insuficientes lhe pareciam suas próprias capacidades, de modo que ela as concentrava inteiramente naquela única coisa, e ainda assim não conseguia fazer tudo o que considerava necessário”.14

É como se Tolstói sentisse um prazer perverso em destruir todos aqueles aspectos da personalidade de Natacha que haviam feito dela não só a belle da sociedade, mas também o objeto ideal do amor de tantos homens e mulheres. Na passagem que acabo de citar, Tolstói também faz alusão ferina às “discussões sobre os direitos das mulheres, as relações entre marido e mulher e suas liberdades e direitos”, que parecem incompreensíveis a Natacha. Tais discussões, observa Tolstói, são importantes “apenas para os que não veem no casamento nada além do prazer que os cônjuges obtêm entre si, ou seja, apenas os inícios do casamento e não toda a sua significação, que reside na família”.

Natacha não precisa de nada além do marido e da família. Foi-lhe dado um marido e ele lhe deu uma família. E ela não só não via necessidade nenhuma de qualquer outro marido melhor, mas, como todas as forças de sua alma estavam empenhadas em servir àquele marido e à família, não conseguia imaginar e não via nenhum interesse em imaginar como seria se as coisas fossem diferentes.15 

Os personagens de Tolstói são dilacerados por desejos, sentimentos, atitudes, convicções e aspirações paradoxais e contraditórios. Isso se aplica às duas figuras “históricas” mais importantes, Napoleão e Kutuzov: o primeiro aparece como um menino brilhante, mas ganancioso, o segundo como um velho cansado, mas obstinado. Porém isso se aplica especialmente aos principais personagens de ficção em Guerra e paz: Pierre Bezukhov, Nicolai e Natacha Rostov e Andrei Bolkonski. O caráter desses personagens é formado pela soma de inúmeros detalhes sobre o que sentem, o que querem, seus sofrimentos, seus momentos de alegria ou exaltação e, acima de tudo, sobre o que fazem. Pois todos eles, sendo aristocratas, dispõem dos meios materiais para dar vazão a seus desejos. Mas nunca ficam satisfeitos e estão sempre em movimento; e, movendo-se, mudam. É difícil crer, porém, que, ao mudarem, esses personagens se desenvolvam. Tolstói parece não contemplar a possibilidade de um tipo de materialização heroica de um potencial dado ao nascimento, à maneira do herói do Bildungsroman ocidental. O máximo que seus heróis podem esperar é o tipo de estabilidade e paz desfrutadas por Pierre e Natacha e por Nicolai e sua esposa Maria ao final do livro.

IV

Não que Guerra e paz tenha realmente um final. Ele apenas tropeça num fecho. É claro que muitos romances históricos se interrompem com o súbito anúncio de que a série de eventos narrados acabou e é hora de encerrar o relato. É o que acontece em Waverley, mas também em obras de história, com a designação arbitrária de um determinado evento numa longa série, como o ponto culminante da narrativa. Tolstói nota, de fato, que não existem começos nem fins na história, apenas um fluxo de acontecimentos que os historiadores recortam de diversas maneiras e a partir dos quais fazem relatos, de maneira totalmente arbitrária.

Na história, diz Tolstói, é como na astronomia e os problemas levantados pela descoberta do movimento da Terra em torno do Sol. “É verdade que não sentimos o movimento da Terra, mas, admitindo sua imobilidade, chegamos ao absurdo, ao passo que, admitindo seu movimento (que não sentimos), chegamos a leis.” O mesmo se dá também com a “história”: “É verdade que não somos conscientes de nossa dependência, mas, admitindo nosso livre arbítrio, chegamos ao absurdo, ao passo que, admitindo nossa dependência do mundo exterior, do tempo e das causas, chegamos a leis”.16 Isso parece sugerir que vivemos no dilema entre o que sentimos (ou vivenciamos) e o que sabemos. E a questão parece ser que o conhecimento das leis naturais não nos ajuda em nosso esforço de viver uma vida dotada de significado, em que o sentimento prevaleça sobre a razão e a vontade. Somos mais dependentes quando nos cremos livres e somos mais livres quando escolhemos nossa dependência – da natureza, da terra, de nosso cônjuge, de nossa família e do universo, tudo menos a sociedade ou o estado. Assim encontraremos aquela “paz” mencionada no título de nosso texto. Mas a paz não é o mesmo que a felicidade ou a satisfação do desejo. Na verdade, ela é a supressão do desejo, a capacidade de abandonar todos os projetos sociais, o tipo de calma desfrutada por um casal quando, após o jantar, depois de pôr as crianças na cama, os dois podem sentir prazer na contemplação de sua mútua adequação.

Se o relato de guerra em Guerra e paz é repleto de atividades, movimentos, conversas, intrigas e uma grande dose de violência, mas sem muitos incidentes, o mesmo se pode dizer sobre a narrativa de ficção da alta sociedade russa durante o período de guerra. Embora sejamos convidados a assistir à cena social seguindo os destinos de quatro famílias russas importantes durante o período de 1805 a 1812, não se pode dizer que aconteçam muitas coisas de natureza especificamente social. O conflito de classes, por exemplo, é apresentado não como intrínseco à estrutura social, mas como derivação de diferenças “naturais” primordiais entre a casta dos servos, de um lado, e a alta nobreza fundiária, de outro. Ainda que fosse um grande proprietário de terras, Tolstói dizia ter pouquíssimo entendimento dos servos, artesãos, escriturários e funcionários públicos da Rússia e praticamente esperança nenhuma de que houvesse uma melhoria de suas condições.

Mesmo os conflitos dentro da nobreza – entre os mais ricos e os mais pobres, entre as famílias antigas e os nouveaux riches, os senhores e seus administradores – são apresentados como questões de natureza pessoal ou familiar, desvinculados do tipo de transformações fundamentais da ordem social que um dia viriam a derrubar a autocracia czarista e conduziriam à Revolução Bolchevique. Tolstói era socialmente esclarecido (libertou seus servos, criou escolas para eles e foi um agitador, defendendo a reforma política na Rússia), mas o ponto de vista que molda Guerra e paz ainda era assumidamente aristocrático e pelo menos levemente eslavófilo.

Sempre há uma tendência de “trabalhar” os agentes históricos importantes a fim de lhes dar uma aura de heróis ou vilões no relato que o historiador elabora a partir de seus dados. Napoleão tem sido tratado com tanta frequência como figura dramática que é difícil pensá-lo a não ser como um mito. Tolstói estava ciente desse problema e se sentiu levado a tentar desmistificar Napoleão, tratando-o como homem comum à mercê de forças das quais não tinha consciência e não conseguia controlar. Ele converte todas as suas personalidades históricas em personagens. E faz – ou tenta fazer – o inverso com suas personagens de ficção, isto é, converte-as em personalidades. Pierre, Andrei, Nicolai, Natacha, princesa Maria, Helene Kuraguina, todos são apresentados como aristocratas... comuns. Não há nada de “heroico” neles. Não têm “personalidade” na acepção oitocentista do termo. O que têm são psiques – e, aliás, psiques especialmente complexas.

Finalidades da história 

O romance histórico do começo do século XIX foi fruto de dois desenvolvimentos que dificilmente se imaginariam um século antes: a transformação da história em ciência e o desenvolvimento da narrativa romanesca em gênero literário sério. Desde o Renascimento e ao longo de todo o Iluminismo, a historiografia era vista como um ramo da retórica e o conhecimento histórico como, acima de tudo, um instrumento pedagógico, uma maneira de ensinar a moral por meio de exemplos. No final do século XVIII, porém, a história foi removida da categoria das letras e passou a se vincular à filologia, à paleografia e à diplomacia. Então, no começo do século XIX, a história se estabeleceu como ciência, ganhou espaço nas universidades e recebeu a tarefa de fornecer uma genealogia dos novos estados nacionais que adquiriam forma na esteira das guerras napoleônicas. Essa nova ciência da história ficou oficialmente encarregada do estudo objetivo de eventos reais individuais e de sua descrição numa narrativa verídica (em oposição à narrativa de ficção). Deveria se separar da filosofia e da teologia e se limitar a descrever as coisas como realmente eram, e não como poderiam ter sido ou como gostaríamos que tivessem sido. Esta última tarefa foi entregue à “literatura” e, mais especificamente, à narrativa romanesca, gênero que, na origem, era majoritariamente escrito por mulheres e especificamente destinado a elas, em que a imaginação era autorizada a levantar voo, afastando-se do mundo prosaico da experiência comum e se refugiando num passado idealizado de aventura, amor e magia. Aristóteles diferenciara entre história e “poesia”, entre conhecimento do evento singular e conhecimento do universal. No século XIX, a história se contrapunha à literatura, como conhecimento do mundo real versus ficções de mundos possíveis. O fato histórico, a partir de então, passou a ser definido como o próprio oposto da ficção literária. Qualquer mistura desses dois modos era tão impensável quanto a mistura dos sexos.

Assim, quando publicou anonimamente Waverley, ou Passados sessenta anos em 1814, Walter Scott se desculpou por ter reunido o que Deus, o homem e a cultura haviam insistido em manter à parte. Apesar do sucesso imediato e universal do novo gênero, Scott se desculpou porque ele mesmo acreditava na historiografia nascente em sua época. Considerava que o conhecimento do passado devia se fundar numa pesquisa exaustiva das fontes originais e ele próprio baseou a parte histórica de seu livro na obra de estudiosos da história, literatura e folclore escoceses. Ele justificou a criação das aventuras do fictício Edward Waverley durante a rebelião escocesa de 1745 como recurso pedagógico capaz de facilitar a assimilação do tema histórico para o belo sexo. Confiava que os leitores não iriam confundir fato e ficção, história e romance, e traçou cuidadosamente a linha divisória entre eles. Mas, embora seu sucesso mundial tenha instaurado a legitimidade do novo gênero, os historiadores profissionais consideravam sua obra perigosa. A dignidade da história dependia de se manter intocada por qualquer tipo de “ficção” – literária, científica ou filosófica.

Tolstói não mostra nenhum vestígio desse respeito de Scott pelos historiadores profissionais. Pelo contrário, não só pretendia entender a história russa melhor do que eles, como também dizia compreender a natureza da realidade histórica melhor do que os historiadores e filósofos da história de sua época. Queria devolver vida ao passado, transmitir como era lutar numa batalha, ser ferido, marchar além dos limites da exaustão, arriscar-se à prisão ou à morte devido à incompetência dos líderes. E pensava que a arte podia chegar a isso melhor do que a história. Em Tolstói, não há nenhum romantismo na apresentação das cenas, sons, cheiros e gosto da guerra. Ele transmite o sentimento de camaradagem entre os homens em batalha e reconhece a emoção de situações extremas, como as batalhas de massa, as cargas de cavalaria e os combates corpo a corpo. Mas também mostra que o entusiasmo que os homens podem sentir ao entrar em batalha logo pode desaparecer, varrido por um fogo de barragem da artilharia ou um fogo da infantaria em massa. Tolstói nos oferece a “sensação” da guerra, mais do que a logística das campanhas e batalhas; oferece-nos o território do campo de batalha, mais do que o mapa que lhe daria transparência e racionalidade e o faria parecer mais organizado do que realmente era.

Tolstói faz a mesma coisa ao apresentar a sociedade. Mais uma vez, oferece-nos a sensação do território, não o mapa. Nessas partes do livro, ele queria transmitir como era ser aristocrata, pertencer à “sociedade”, ser russo, lidar com servos, passar o dia de tocaia numa caçada, ir à caça com cães e cavalos, duelar, apaixonar-se, casar-se bem ou mal, criar filhos, sofrer a morte do cônjuge, ser traído pelo ente amado. Ele pinta a vida da aristocracia russa por dentro, com simpatia e compreensão, mas não acriticamente. Mostra o antigo regime em seu derradeiro momento de grandiosidade, quando o czar conseguira inspirar o povo russo a defender o solo sagrado da terra materna, e a nobreza se mostrou à altura da emergência ao comandar o exército contra o invasor. Mas, do ponto de vista de sua própria época, “passados sessenta anos” desde 1805, Tolstói podia ver que a aristocracia russa estava com os dias contados. Em sua apresentação dos Rostov, ele mostra uma família nobre típica já acuada por dificuldades econômicas, com sua função social questionada e sua base social – dependendo da mão de obra dos servos – desgastada. O mesmo se passa com todas as outras famílias. Encabeçadas por tiranos envelhecidos de um ou outro tipo, têm como principal perspectiva de futuro a esperança de que as filhas se casem com algum grande proprietário de terras. No quadro da vida social russa pintado por Tolstói, há tão pouco romantismo quanto em seu quadro da guerra.

Em Guerra e paz, é o imperador Napoleão que a história castiga com uma espécie de loucura, em primeiro lugar por lhe conceder um sucesso militar que, na realidade, não merece; em segundo, por alçá-lo ao topo do poder político como imperador; em terceiro, por levá-lo a conceber uma campanha militar inexequível. A história fez tudo isso, mas sem nenhuma finalidade moral ou metafísica. E isso porque a “história” é apenas o nome que os homens dão às coisas como elas realmente são, as coisas que aconteceram no passado, estão acontecendo no presente e acontecerão no futuro. Como esses acontecimentos não exibem nenhum plano ou finalidade, qualquer conhecimento que se possa derivar do estudo deles é de tipo puramente localizado, contingente, concreto e limitado.

Assim, para Tolstói, a circunspecção é a melhor parte do conhecimento, tal como do valor. Os personagens admiráveis em Guerra e paz – o general Kutuzov, Pierre Bezukhov, Nicolai Rostov, sua irmã Natacha, a princesa Maria, o camponês místico Platon Karataiev – são, no fundo, ricos devido a qualquer sabedoria imaginável a que tenham renunciado. Afinal – ao término do romance –, depois que Napoleão tem de voltar a Paris, é deposto e exilado, depois que seu vencedor Kutuzov morre, depois que o czar Alexandre cai sob a influência de místicos e charlatães, depois que Moscou é reconstruída, depois que Nicolai e Maria se casam, depois que Pierre e Natacha são abençoados com quatro filhos, no final das contas pouquíssimo se ganhou em sabedoria humana e menos ainda em savoir-faire social. Pierre – o protagonista central do romance – parece aturdido como sempre com a realidade social; Natacha ficou adulta, mas dificilmente terá amadurecido; Nicolai resolveu seus problemas financeiros casando-se com uma mulher que aprecia bastante, mas não ama; o czar caiu no tipo de incompreensão reacionária da sociedade russa que fomentará uma revolta após a outra durante os cem anos seguintes, e assim por diante. A história não é algo que se entenda, é algo que se atura – quando se tem sorte.

Notas:

1 Liev Tolstói, “Drafts for an Introduction to War and Peace”, in Tolstoy, War and Peace: The Maude Translation, Backgrounds and Sources, Criticism, 2a. ed. Nova York, 1996, p. 1087. Todas as citações subsequentes foram extraídas dessa edição, doravante assinalada como WP. Este artigo foi publicado originalmente como “Contra il realismo storico”, in Franco Moretti (org.), Il romanzo, vol. V: Lezioni, Turim, 2003, pp. 221-37.
2 Eikhenbaum caracterizou a evolução das concepções de Tolstói sobre a história nos seguintes termos: “O anti-historicismo original de Tolstói lhe ditou uma ideia bastante modesta de uma crônica de guerra e família. Então, movido por preocupações da época, ele começou a transformar a crônica num poema histórico, num épico, e a introduzir toda uma série de noções histórico-filosóficas. Seu anti-historicismo se converteu em niilismo histórico, e sua crônica-romance se tornou um novo gênero, que nasceu da combinação da ação romanesca e de materiais históricos com a reflexão filosófica. O resultado foi um gênero negativo, na medida em que os elementos constituintes estavam em conflito entre si”. A seguir, Eikhenbaum afirma que “o romance de Tolstói não era um novo gênero”, mas uma combinação de duas formas correntes nos anos 1820 e 1830, o romance da vida familiar ou “do senhor rural” e o romance militar-histórico. Boris Eikhenbaum, “The Genre of War and Peace in the Context of Russian Literary History”, in WP, p. 1126.
3 WP, p. 537.
4 WP, pp. 537-8.
5 WP, pp. 671-2.
6 WP, pp. 886, 892.
7 WP, p. 664.
8 WP, pp. 1040-1.
9 WP, pp. 1040-1.
10 WP, p. 941.
11 WP, pp. 977-80.
12 WP, p. 873.
13 WP, pp. 1020-1.
14 WP, p. 1021.
15 WP, p. 1022.
16 WP, p. 1074.

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