De onde vem Barack Obama?
Larissa MacFarquhar
Tradução / Começa em uma fazenda, no final do verão passado, sem um dia específico. Em Carmi, Illinois, cidade de 5 500 habitantes à beira do rio Little Wabash, perto da ponta sul do estado, a uns 40 quilômetros do Kentucky, um grupo de doze agricultores – brancos corpulentos, com o rosto enrugado e cabelos muito curtos – está sentado em torno de um retângulo formado por mesas reunidas numa sala sem nada de notável. Conversam com o senador Barack Obama. Recostado para trás na cadeira, o senador apoiou o joelho na beira de uma das mesas. Usava gravata, mas havia tirado o paletó e arregaçado as mangas da camisa. Um agricultor tinha uma pergunta sobre o etanol.
"A dúvida me ocorreu durante o último discurso presidencial do Estado da União", explicou o agricultor. “O presidente Bush disse que era totalmente favorável aos biocombustíveis, e depois começou a falar sobre o switchgrass [capim alto típico das pradarias americanas]. E pensei: o etanol de celulose, que é obtido a partir desse capim, pode ser mais eficiente em termos de energia do que o obtido a partir do milho. Mas ninguém sabe direito como produzir o switchgrass, ou se os fazendeiros pensam em plantá-lo em grande escala. Então por que dar tanta ênfase ao etanol de celulose?”
“Bem, eu não sou cientista”, respondeu Obama, num tom muito calmo, “por isso preciso tomar cuidado antes de entrar nesses assuntos que não conheço a fundo. Mas a produção do etanol de celulose tem o potencial de ser oito vezes mais eficiente em matéria de consumo de energia do que o etanol obtido a partir do milho, devido à eliminação do estágio intermediário da conversão do milho em açúcar. Foi o que entendi. Eu sei que vocês são muito apegados ao milho, mas se alguém chegasse a vocês e dissesse que iam ganhar o mesmo dinheiro, ou até mais, plantando switchgrass nos seus campos...”
“Duvido muito”, interrompeu o agricultor. “Um sujeito me procurou antes da colheita do trigo e perguntou se eu queria lhe vender a minha palha, e eu disse que não.”
“Interessante”, disse Obama. “Por que o senhor não quis vender a sua palha?”
“É matéria orgânica!”, respondeu o agricultor, em tom triunfante.
“Ora, mas se é vantajoso, se for um bom negócio, o senhor devia se interessar. O senhor conhece bem melhor do que eu a economia disso tudo. É por isso que precisamos nos reunir com os agricultores e descobrir o que faz mais sentido. Porque eu não planto nada, e o que o senhor acabou de me descrever, que prefere deixar de vender a palha porque ela é importante, bem...”
“Na revista FarmWeek, um editorial dizia que estavam falando de uma coisa que ia contra tudo que nós defendemos nos últimos vinte ou trinta anos, que é devolver a matéria orgânica ao solo”, explica o agricultor. “Só que, de repente, começam a falar em deixar a terra nua...”
“O que é errado”, retomou Obama. “Achamos que ninguém pode impor aos plantadores idéias que não vão funcionar. Mas precisamos produzir um etanol mais eficiente, se quisermos ver um crescimento significativo do mercado. A questão é que o etanol brasileiro é bem mais barato que o americano. George Bush queria deixar o álcool do Brasil entrar no país, e eu e Durbin” – Richard Durbin, o senador mais antigo do estado de Illinois – “dissemos que não, que éramos a favor de manter as tarifas existentes para podermos desenvolver um mercado para o etanol americano. E quero ter certeza de que as nossas decisões vão levar em conta que temos alguns dos solos mais ricos do planeta, além dos melhores agricultores. Mas o outro lado da moeda é que os plantadores precisam participar da discussão, em vez de só levantarem a mão para votar, dizendo que não estão interessados porque já se acostumaram a plantar só milho e feijão.”
Existem três coisas que os políticos democratas tendem a fazer toda vez que entram em contato direto com os eleitores que representam: demonstrar um conhecimento impressionante de cada pormenor dos seus problemas, especialmente os que envolvem dinheiro; despertar a indignação, apontando que esses problemas são provocados pelos grupos poderosos que só pensam em enriquecer à custa das pessoas comuns; e apresentar propostas políticas formuladas com o maior cuidado, pois, caso fossem aprovadas, poderiam solucionar esses problemas e pôr os grupos poderosos no seu devido lugar.
Obama raramente faz qualquer dessas três coisas. Sua tendência é demonstrar um conhecimento apenas modesto dos assuntos, parecendo menos informado do que na verdade é. Raramente faz acusações, preferindo falar sobre os problemas na voz passiva, como coisas que estão erradas conosco, e não coisas erradas que fizeram conosco. E as soluções que propõe geralmente parecem modestas e locais, não de alcance profundo e nem sistêmicas.
Obama já presidiu a várias conferências sobre saúde. Nelas, sempre se mostra calmo e relaxado, como que decidido a poupar energia. Caminha devagar de um lado para o outro, dá meia-volta, balança a cabeça. Faz sempre seus comentários num tom neutro e desapaixonado. Não manifesta piedade para com a doença, desprezo pela burocracia e nem indignação com a injustiça. Diz que o sistema está avariado e precisa de conserto, mas não procura transmitir nenhuma urgência especial.
Esse seu comportamento é muitas vezes definido como professoral, e o próprio Obama costuma comparar essas conferências às aulas de direito constitucional que dava na Universidade de Chicago. Mas “professoral” implica algo cerebral ou didático, o que não é o caso. A despeito de todas as críticas que já recebeu, Obama permanece fiel ao que parece ser um instinto que lhe diz que o lugar de estudos é em sites da internet, e não nos seus discursos. É surpreendente, tendo em vista os resultados eleitorais recentes, que não lhe dêem mais crédito pela astúcia dessa postura. Mas a verdade é que não se trata de uma simples estratégia – Obama é assim mesmo.
“Ele não tem a desvantagem de muitas pessoas inteligentes, que sempre dão a impressão de menosprezar as pessoas com quem conversam”, diz George Haywood, investidor particular e amigo de Obama. “Adlai Stevenson, que também era de Illinois, tinha isso – sempre passava a imagem de um sabe-tudo e desagradava às pessoas. Barack é exatamente o contrário.” Uma das razões mais prováveis é que Obama parece não dar muito valor à inteligência em si mesma. Até na faculdade de direito, o lugar onde a inteligência pura e simples é bastante valorizada, mais talvez que em qualquer outro lugar, e o apreço pela argumentação é fundamental, ele nunca se entusiasmou pelos duelos acadêmicos.
O jeito desapaixonado de Obama, a calma que ele sempre apresenta em ambientes pequenos, é menos professoral do que doutoral – ele lembra um médico que, ao escutar a história do paciente sem manifestar nenhuma reação emocional, deixa-o mais tranqüilo, porque dá a entender que conhece bem aqueles sintomas. Ele é doutoral também num outro sentido: Obama vê o corpo político como um organismo vivo, diante do qual a reação indignada não faz sentido – como não faria sentido para um médico mostrar indignação diante do rim de um paciente que lhe provoque dor nas costas.
E também existe, é claro, o aspecto racial da situação: “Se você é negro e homem, não precisa se esforçar para convencer as pessoas da sua agressividade”, diz Haywood. “Houve uma época em que os negros que entravam para a política partidária achavam melhor deixar os cabelos brancos. David Dinkins foi um exemplo. Ou o prefeito Bradley, em Los Angeles. Para obter o apoio do eleitorado branco mais amplo, era melhor transmitir uma imagem de segurança, e não uma sensação de revolta. Não creio que Barack tenha tomado a decisão consciente de se apresentar assim, mas foi uma coincidência feliz. A política partidária não está pronta para um negro que solte fogo pela boca.”
De forma consciente ou não, o provável é que Obama tenha aprendido com esses exemplos e descoberto que a sua eventual eleição à presidência não representaria uma revolução nas relações inter-raciais, assim como a ascensão de primeiras-ministras mulheres não foi exatamente um sinal do florescimento feminista no sul da Ásia. O preconceito sempre abre as suas exceções.
A calma de Obama também é uma questão de temperamento. O primeiro comentário de quem o conhece é sobre a forma como passa a impressão de estar bem na sua pele. “Ele era quase anormalmente contido e equilibrado”, diz Christopher Edley Jr., um dos professores de Obama na faculdade de direito de Harvard, hoje diretor em Berkeley. E, de fato, existe algo quase assustador no autocontrole de Obama – um traço que é evidente e chama a atenção, como a imobilidade fora do normal de alguém capaz de baixar a própria pressão sangüínea só usando a vontade. Obama não se esforça para ser visto como qualquer um: mostra-se relaxado, mas nunca muito íntimo, e mais elegante do que familiar. Na superfície, ele exibe movimentos tão fluidos, uma voz tão constante e bem dosada que quase parece um ator no papel de um político, demonstrando uma falta de esforço que, se verdadeira, é implausível. Obama tornou-se conhecido por suas camisas de colarinho aberto – pode vir a dar à gravata o destino que John Kennedy deu ao chapéu – , mas nunca parece descomposto. “Tanto Gore quanto Bush têm essa característica meio galhofeira, coisa que nunca vi em Obama”, diz Robert Putnam, um cientista político de Harvard que conheceu os três políticos. “Não que ele seja um sujeito sempre sério. Mas Bush costuma fazer palhaçadas e Gore sabe fazer palhaçadas. Obama nunca faz uma palhaçada.”
O mais estranho é que o homem sereno descrito pelos amigos não podia ser mais diferente da descrição que ele faz de si mesmo nas suas memórias, Sonhos do Meu Pai. No livro, o jovem Obama aparece confuso e revoltado, com dificuldades para descobrir quem ele é, muitas vezes drogado, hostil tanto à condescendência branca quanto à rebeldia negra, nunca confiando em si mesmo, sempre suspeitando de que as suas convicções não sejam mais que um disfarce para o seu egoísmo e as suas emoções, meros sintomas da sua constituição racial peculiar. É bem verdade que no livro ele conta como emergiu desse estado de espírito – é uma narrativa tradicional de encontro de si próprio que termina, como é da tradição, com um casamento em que todas as suas confusões são sanadas. Mas o contraste entre o Obama do livro e o Obama que aparece para o mundo ainda assim é extremo, a ponto de chamar a atenção. “Ele era centrado, confortável em sua pele, sabia quem era, de onde tinha vindo, por que razão acreditava nas coisas”, diz Kenneth Mack, amigo de Obama em Harvard e hoje professor na mesma universidade. “Quando li o livro, fiquei surpreso – a confusão e a revolta que ele descreve podiam existir debaixo da superfície, mas nunca se manifestavam.”
Quando lhe perguntam a respeito, Obama diz que “o que me intriga é o motivo por que as pessoas ficam intrigadas. O personagem revoltado existiu dos meus 15 até mais ou menos os meus 21 anos. A explicação é que eu era um adolescente dotado de uma carga considerável de hormônios, depois de uma infância sabidamente complicada. Mas esse não era o meu temperamento natural. E o livro não descreve todos os aspectos da minha vida. Eu podia ter escrito um livro muito diferente, falando das alegrias do basquete e de como é bom pegar jacaré numa bela praia, enquanto o sol se põe”.
Então, por que ele não escreveu sobre as alegrias do basquete? Por que se concentrou num aspecto seu politicamente tão pouco aceitável? Quando Obama freqüentou a faculdade de direito, pouco antes de escrever Sonhos do Meu Pai, falava da sua vontade de tornar-se prefeito de Chicago. Uma vez que as pessoas, por algum motivo, tendem a tolerar prefeitos (na verdade, encantar-se) com um comportamento consideravelmente mais excêntrico e dúbio que o de outras autoridades eleitas, ele pode ter escrito o livro tendo essa ambição em mente. É provável que tenha percebido que revelar o seu uso de drogas no passado era a melhor maneira de neutralizar um questionamento futuro. Mas como Obama é um excelente contador de histórias, é provável que conhecesse a narrativa típica do candidato a cargos políticos – bons resultados escolares, seguidos do sucesso numa profissão. Entregar-se prazerosamente às realizações da vida (a vitória, a vingança, uma bela casa, o basquete, seja o que for), no entanto, não serve para comover ou inspirar ninguém.
Quando trabalhava como organizador comunitário em Chicago, Obama conversou com muitos pastores negros para convencê-los a se aliarem à sua organização. Com as conversas, descobriu que a maioria deles tinha uma coisa em comum. “Um pastor contou que tinha sido viciado em jogo”, escreve ele. “Outro me falou dos seus anos como executivo bem-sucedido mas secretamente um alcoólatra. Todos se referiram a períodos de dúvida religiosa… a terem chegado ao fundo do poço, e sobre o orgulho ferido. Finalmente, falaram da ressurreição pessoal, com uma identidade agora ligada a algo maior. Era essa a fonte da sua confiança, insistiam eles: a queda que tinham sofrido e a redenção subseqüente. Era o que lhes dava a autoridade para pregar a boa-nova.” Cassandra Butts, amiga de Obama no tempo da faculdade de direito, rememora: “Barack costumava dizer que uma das suas frases prediletas do movimento pelos direitos civis era: ‘Se você não aguenta o peso da cruz, não vai aguentar a coroa'”.
Obama despontou para a proeminência na Convenção do Partido Democrata de 2004, quando descreveu a sua vida como uma celebração do Sonho Americano: um “garoto magricela com um nome estranho”, produto de uma improvável união idealista entre um africano e uma garota do Kansas, emerge da obscuridade para ingressar na Faculdade de Direito de Harvard e mais adiante – o que àquela altura já ficara claro – torna-se o terceiro senador negro dos Estados Unidos desde os anos que se seguiram à Guerra Civil. Mas, num outro sentido, a vida dele mostra um trajeto oposto ao do Sonho Americano, pois recusa os sonhos dos pais e avós e sai à procura de algo ainda mais ancestral.
O avô materno de Obama, Stanley Dunham, cresceu como um pequeno delinqüente em El Dorado, Kansas. Não sabia o que fazer na vida, mas tinha certeza de que queria ir embora do Kansas – deixar a casa dos seus pais e o provincianismo sufocante das cidades pequenas do Meio-Oeste, onde “o medo e a falta de imaginação asfixiavam os sonhos de todos”, como presumiu o seu neto. Depois de alguns primeiros passos em falso, e de uma fuga amorosa com uma garota irrequieta, o avô tinha feito o que homens do seu tipo sempre acabavam fazendo: seguira para o Oeste. Foi para a Califórnia, depois para Seattle e, por fim, para a última fronteira, o ponto mais a oeste ao qual podia chegar sem retornar ao leste: o Havaí.
Distante 13 mil quilômetros a leste dali, no Quênia, o outro avô de Obama, Hussein Onyango, também tomou o mesmo rumo, e por motivos semelhantes. Descontente e ambicioso, deixou a aldeia onde o pai vivia, curioso acerca dos brancos recém-instalados numa pequena cidade próxima. Lá, passou a se vestir à moda européia e adotou noções européias de higiene e bons modos com o fervor de um recém-convertido. Durante a II Guerra Mundial, viajou para a Europa como cozinheiro do Exército britânico.
Os rebentos desses dois homens, os pais de Obama, distantes uma geração do lugar onde nasceram, foram mais livres ainda que os progenitores. A mãe de Obama, Ann, casou-se primeiro com um queniano e depois, quando ele foi embora, com um indonésio. Após o malogro do segundo casamento, voltou por algum tempo para o Havaí, decidida a cursar um mestrado de antropologia, e em seguida tornou a partir para a Indonésia, onde passaria vários anos dedicada às pesquisas de campo. Deu ao seu filho de 13 anos a opção de ir com ela ou ficar na escola que cursava no Havaí. O menino decidiu ficar.
O pai de Obama foi expulso da escola e teve os recursos cortados pelo genitor, mas logo em seguida conseguiu uma bolsa para freqüentar um college nos Estados Unidos. Abandonou a mulher grávida e o filho para estudar econometria na Universidade do Havaí. Lá conheceu Ann Dunham, casou-se com ela e teve mais um filho, Barack. Depois deixou a segunda família para voltar ao Quênia, onde foi trabalhar para o governo. Casou-se lá com outra americana, com quem teve mais dois filhos. Passados alguns anos, essa terceira família se desintegrou e, como ele não se dispunha a aceitar as injustiças ditadas pelo tribalismo persistente no Quênia, também perdeu o cargo no governo. Revoltado e sem tostão, entregou-se à bebida.
“O que mais me impressiona, quando penso na história da minha família”, diz Obama no seu livro, “é um recorrente traço de inocência, uma inocência que parece inimaginável, mesmo pelos critérios de uma criança.” Essa inocência, para ele, não é uma qualidade positiva, nem mesmo uma desculpa redentora: não é o contrário da culpa, mas o oposto da sensatez. Na descrição que Obama faz do seu avô materno, por exemplo, percebemos amor e também desprezo. “Ele tinha um caráter americano, típico dos homens da sua geração, homens que abraçavam a idéia da liberdade e o individualismo, e saíam pelas estradas sem saber exatamente o preço que pagariam”, escreve. “Homens que eram tão promissores quanto perigosos, justamente devido à sua inocência fundamental, homens que tendiam, no fim das contas, a sofrer decepções.” A filha testemunhou essa insatisfação, mas aprendeu a lição errada: o problema não tinha sido o pai ter ido embora sem um objetivo claro, vagando só por vagar, esperando que um outro lugar lhe trouxesse uma vida nova: o problema é que não fora longe o bastante. E ela decidiu ir além. “Foi o desejo de apagar o passado, aquela confiança de que poderia criar um mundo novo a partir do zero”, escreve Obama, “que acabaria sendo o legado mais duradouro do avô.”
A mãe de Obama, da maneira como ele a retrata, é uma inocente americana saída diretamente das páginas de Henry James: uma jovem que decide se arriscar no mundo acreditando que as coisas são exatamente como parecem, que a história de cada pessoa começa quando ela nasce, e as suas relações com os outros só principiam a partir do momento em que ela os conhece; que é possível sair de casa sem medo de machucar-se ou sofrer de solidão, porque as pessoas são mais ou menos as mesmas em qualquer lugar. Não tinha a menor idéia de onde estava se metendo quando deixou o Havaí. Poucos meses antes da sua chegada, a Indonésia sofrera um golpe de Estado fracassado, mas brutal, em que morreram centenas de milhares de pessoas. Alguém acabou lhe contando o que acontecera, mas a notícia não a afetou. “Num país onde o fatalismo era um instrumento necessário para suportar as provações”, escreve Obama, “ela era a única a crer no humanismo laico, a defensora isolada do New Deal, do Peace Corps, do liberalismo persistente adquirido na academia.” Ela tinha uma fé, herdada do pai e impermeável à experiência, segundo a qual “as pessoas racionais e capazes de refletir sempre conseguem moldar o seu destino”. E se considerava afortunada por ter emergido da experiência só com um segundo divórcio e duas crianças um tanto perplexas. “As coisas podiam ter acabado pior”, escreve seu filho. “Muito pior.”
Inocência, liberdade, individualismo, mobilidade – a convicção de que a pessoa pode deixar para trás uma história violenta ou sufocante, e iniciar uma nova vida, livremente escolhida -, tudo isso faz parte do sonho americano de avanço para o oeste, primeiro da Europa para a América, depois das cidades abarrotadas da Costa Leste para as Grandes Planícies centrais, e delas para o Pacífico. Mas esse sonho, para Obama, parece superficial. Quando o jovem Barack foi ao Quênia pela primeira vez, e soube o que tinha acontecido com a vida do seu pai – como ele tinha destruído a sua carreira imaginando que velhas fidelidades tribais fossem simples estreiteza mental, que podia se colocar acima do passado e modificar a sociedade pela simples força das suas convicções -, uma tia lhe contou que o seu pai nunca entendera que, como ela dizia, “se todo mundo faz parte da família, ninguém faz parte da família”. Obama achou essas palavras notáveis, tanto que as citou textualmente mais tarde, em itálico, no livro. O universalismo é uma ilusão. A liberdade, no final das contas, não passa de uma forma de abandono. Você pode começar largando a religião, depois os pais, a sua cidade, o seu povo e o seu modo de vida. Mais tarde quando você acaba largando a mulher ou o marido e os filhos, isso vem a lhe parecer o resultado de uma progressão natural.
Assim, quando chegou a vez de Obama sair de casa, ele fez o contrário dos seus avós, da sua mãe e do seu pai: deu meia-volta e tomou o rumo leste. Primeiro de volta ao continente, cursando um college na Califórnia por dois anos, e depois mais para o leste ainda, seguindo até Nova York. Acabou em Chicago, de volta ao Meio-Oeste de onde os pais da sua mãe partiram, adotando tudo o que eles tinham deixado para trás – as amarras da tradição, o peso da história, a pequenez provinciana da comunidade, a vida inteira passada num único lugar com o mesmo grupo de pessoas. Lembrou-se da grande migração negra que viera do sul para Chicago um século antes, e das tradições que os migrantes criaram na cidade. “Fui fazendo uma ligação entre a minha vida e os rostos que eu via, tomando de empréstimo as memórias alheias”, escreveu. Ele queria sentir-se preso a um destino.
É claro que, num certo sentido, ao decidir deixar a família e mudar-se para um lugar com o qual não tinha nenhuma ligação, estava fazendo exatamente a mesma coisa que os seus pais. Mas, ao contrário deles, decidiu acreditar que as suas escolhas haviam sido moldadas pelo destino e pela família. “Percebo que as minhas escolhas nunca foram na verdade só minhas”, escreveu ele, “e era assim mesmo que deviam ser, pois afirmar o contrário é perseguir um tipo lamentável de liberdade.” Escolher entre as opções tradicionais era o que estava ao seu alcance. Com o tempo, as raízes cresceriam. Casou-se com Michelle Robinson, que já era a pessoa na qual ele queria se transformar: tinha memórias e raízes, pois nascera em uma família intacta e religiosa do sul de Chicago. Barack foi trabalhar numa organização próxima a sua vizinhança, e que vinha sofrendo um processo de desintegração. Por meio do trabalho e da inspiração, ele esperava trazer a comunidade de volta à vida. Mais adiante, rejeitando o agnosticismo dos seus pais e o ceticismo dos seus próprios instintos, tornou-se cristão e entrou para uma igreja. “Acabei compreendendo”, escreveu ele em seu segundo livro, A Audácia da Esperança, que “sem um compromisso inequívoco com um determinado grupo religioso, de certa forma eu estaria sempre destinado a manter-me à parte, livre como a minha mãe era livre, mas também isolado como ela, que, em última instância, vivia isolada.”
Quando entrou na faculdade de direito, aos 27 anos, Barack se transformara no homem que havia imaginado. Toda a sua vida, fora considerado negro porque tinha a aparência de negro. Se antes algo estivera confuso em seu íntimo, agora estava superado. Sua conversão estava completa. “Se você o conhecesse, nunca perceberia que tinha uma origem birracial”, diz Kenneth Mack. “Nunca perceberia que foi criado no Havaí. Quando eu o conheci, ele parecia só mais um negro de Chicago. Mais um negro do Meio-Oeste americano.”
O triunfo da liberdade sobre a história não é apenas, evidentemente, uma narrativa americana sobre indivíduos, mas uma narrativa que a América elabora a respeito de si mesma. Quando foi proposto que os Estados Unidos invadissem o Iraque, para ali estabelecer uma democracia, Obama sabia que isso seria um erro terrível. Era a inocência americana na sua forma mais destrutiva, a liberdade em sua forma mais enganosa, o universalismo na sua forma mais ingênua. “Havia uma inocência extremamente perigosa na idéia de que seríamos saudados como libertadores, ou de que um pouco de assistência econômica e treinamento democrático bastaria para vermos uma democracia jeffersoniana florescer no deserto”, diz ele atualmente. “Existe na história americana uma corrente ativa de idealismo que é capaz de se manifestar de maneira poderosa e apropriada – como ocorreu depois da II Guerra Mundial com a criação das Nações Unidas e o Plano Marshall, no momento em que reconhecemos que a nossa segurança e prosperidade dependiam da segurança e da prosperidade alheias. Mas o mesmo idealismo também pode se manifestar como a crença de que somos capazes de recriar o mundo da maneira que quisermos, com o simples acionamento de um interruptor, devido à nossa superioridade tecnológica, econômica ou moral. E quando o nosso idealismo desemboca nesse tipo de ingenuidade e se recusa a levar em conta a história e o peso das outras culturas, acabamos nos vendo às voltas com sérios problemas, como aconteceu no Vietnã.”
Na sua visão da história, no seu respeito pela tradição, no seu ceticismo em relação à possibilidade de mudanças do mundo que ocorram de qualquer maneira que não seja muito, muito lenta, Obama é profundamente conservador. Há momentos em que chega a soar como um novo Burke [Edmund Burke, político britânico de origem irlandesa (1729-97), considerado um dos fundadores do pensamento conservador moderno]. Desconfia de abstrações, generalizações, extrapolações e projeções. Não só por achar que revoluções são improváveis, mas por dar mais valor à continuidade e à estabilidade, pelo que elas representam em si mesmas, do que a uma mudança para melhor. Com relação à saúde pública, por exemplo, “se estivéssemos começando do zero”, diz ele, “o sistema de um único pagante” – um sistema gerido pelo governo, como o do Canadá, tornando a assistência à saúde independente do emprego – “provavelmente faria sentido. Mas já temos em funcionamento todos esses sistemas que herdamos, e administrar a transição, além de ajustar a nossa cultura a um novo sistema, seria muito difícil. Por isso, precisamos de um sistema que não seja diferente a ponto de levar as pessoas a sentir que abandonamos repentinamente o que elas conhecem desde que nasceram.”
O histórico de votação de Obama é um dos mais liberais do Senado, mas ele é sempre bem-visto pelos republicanos, talvez por falar de metas liberais usando uma linguagem conservadora. Quando se pronuncia sobre a pobreza, não costuma denunciar os plutocratas gananciosos e as reduções injustas de impostos: diz que somos responsáveis por nossos irmãos, e que cuidar dos pobres é uma das tradições americanas. Quando lhe perguntam se mudou de idéia sobre alguma coisa nos últimos vinte anos, ele responde: “Acho que me tornei mais humilde na minha avaliação da velocidade com que programas governamentais podem solucionar nossos problemas. Acho, por exemplo, que a influência dos pais e das comunidades é tão importante quanto a quantidade de dinheiro investida na educação”.
Obama costuma estimular esse apelo a diferentes facções. Muitas vezes evita criticar diretamente o governo Bush. Recentemente, em New Hampshire, declarou à sua platéia: “Sou um democrata. Sou considerado um democrata progressista. Mas se um republicano, um conservador, um libertário ou um defensor do livre mercado tiver uma idéia melhor que a minha, terei o maior prazer em adotar as idéias de qualquer um, e nesse sentido sou um agnóstico”.
Seu ex-colega de faculdade que trabalhou no governo Clinton, Michael Froman, assim conta: “Um número impressionante de conservadores ligou para mim dizendo: ‘Ele é o democrata que eu poderia apoiar, não porque concorde comigo – porque não concorda – , mas porque levará em conta pelo menos o meu ponto de vista'”. Froman atualmente participa da campanha de Obama.
Depois do discurso de Obama na Convenção, muitos blogueiros republicanos apressaram-se em apoiá-lo, com títulos como “O Discurso Certo na Convenção Errada” ou “Barack Obama: Uma Alma Republicana Presa num Corpo de Democrata”. O discurso foi atipicamente reaganesco, apresentando uma visão quase uniformemente otimista dos Estados Unidos, que ele chamou de “uma terra mágica”. Hoje ele tende a ser um pouco mais sombrio. Ainda assim, os republicanos continuam a achá-lo mais aceitável, especialmente os que se opõem à guerra por motivos conservadores semelhantes aos dele. Alguns dos maiores financiadores de Bush estão contribuindo para a sua campanha. Na eleição para o Senado, Obama conquistou 40% dos votos republicanos. E existe um grupo chamado Republicanos a Favor de Obama, fundado por John Martin, estudante de direito e reservista da Marinha. É claro que nem todos os republicanos gostam de Obama – John Martin costuma receber um fluxo regular de e-mails irritados. “Olá John, só queria lhe dizer que não existem republicanos a favor de Obama Hussein Barack”, escreveu uma leitora, concluindo: “Favor me retirar da sua lista de correspondência e cuidar de superar a sua culpa de americano branco”.
Na passagem mais citada do discurso da Convenção de 2004, Obama disse: “Os sábios gostam de dividir o nosso país em estados vermelhos e estados azuis; os estados vermelhos para os republicanos, os azuis para os democratas. Mas tenho uma notícia para eles também. Cultuamos um Deus formidável nos estados azuis, e não gostamos de agentes federais enfiando o nariz nas nossas bibliotecas nos estados vermelhos”. Observadores da cena de Washington tendem a não dar importância a esses apelos em favor da unidade nacional e de cooperação entre os partidos, afirmando tratar-se de um mero clichê político. E mesmo os mais ardorosos defensores de Obama acham que essa insistência pode acabar soando inconvincente. “Todas essas afirmações politicamente corretas não são exatamente exemplos de uma retórica à moda de Churchill”, diz um amigo.
Obama está sempre decepcionando quem acha que ele dedica respeito excessivo, ou concede terreno demais ao outro lado, em vez de lutar de forma agressiva em defesa dos seus princípios. “Na faculdade, participamos juntos de um seminário e Charles Fried, que é muito conservador, era um dos nossos oradores”, conta Cassandra Butts. “Surgiu a questão da Segunda Emenda [que estabelece o direito dos cidadãos a ter armas], e Fried mostrou sua visão absolutista da matéria. Um dos nossos colegas era a favor do controle das armas – vinha de um meio urbano onde a questão da posse de armas era importante. E, embora Barack concordasse com o nosso colega, preferiu dar ouvidos a Fried – impressionava-se com o fato de Fried ter crescido no bloco soviético, onde essas liberdades não existiam. A aula havia terminado e o nosso colega continuava a discutir com Fried, mas Barack se mostrava tão pouco passional quanto antes, o que eu não entendia.” Recentemente, Obama declarou que, se Bush decidisse vetar uma lei de controle dos gastos militares com uma cláusula de retirada americana do Iraque, ele, Obama, daria apoio à anulação da cláusula, a fim de garantir a aprovação da lei. Os blogueiros liberais ficaram furiosos com essa capitulação, mas a escritora Samantha Power, que trabalha para Obama no campo da política externa, disse que “ficar num lado da sala de braços cruzados simplesmente não é o modus operandi dele”.
Novamente, isso é em parte uma questão de temperamento. “Por natureza, não sou o tipo de pessoa que se exalta muito com as coisas”, escreve Obama no seu segundo livro. Prefere considerar que seus adversários estão enganados ou sendo ridículos, em vez de encará-los como demônios. “Nunca fui adepto da teoria da conspiração”, diz ele. “Jamais acreditei que existissem pessoas que controlavam tudo, puxando cordões e apertando os botões. E o motivo é que, quanto mais velho fico, mais tempo passo conversando com gente do governo ou da elite empresarial, e mais humanos todos se tornam. O que eu acredito é que as pessoas que têm dinheiro, influência ou que controlam a maneira como os recursos são alocados na nossa sociedade tendem a proteger seus interesses, e são capazes de racionalizar ao infinito os motivos pelos quais devem ter mais dinheiro e poder que qualquer outro, e os motivos pelos quais essa distribuição é boa, de certa forma, para a sociedade como um todo.”
A tendência de Obama à conciliação vai além dos limites do expediente político – é instintiva, quase uma reação involuntária. “Barack tem uma capacidade incrível de operar a síntese entre realidades aparentemente contraditórias e torná-las compatíveis”, diz Cassandra Butts. “E isso se deve ao fato de vir de uma casa onde foi criado por brancos para depois cair no mundo e ser visto como um negro. Ele precisava decidir se aceitava essa contradição e se limitava a ser só uma das duas coisas, ou se preferia encontrar um modo de perceber que as partes formam um todo.” “Acho que os Estados Unidos passam por uma situação em que todos estão muito mais de acordo do que acreditam. E isso é uma coisa que eu sei a partir de dados de pesquisas – sentimo-nos divididos em termos de raça, de religião, de classe, de quase tudo, mas exageramos as nossas discordâncias. E é por isso que eu acho Obama a pessoa certa para o momento atual”, conclui Robert Putnam.
Às vezes, é claro, não existe possibilidade de convergência, e a resposta a uma certa questão só pode ser sim ou não. Nesses casos, Obama pode ou não sair em defesa daquilo que acredita. “Desafiar as convicções religiosas das pessoas – eis uma coisa que ele hesitaria muito em fazer”, diz Cass Sunstein, colega de Obama na Universidade de Chicago. O que não se deve apenas ao seu pragmatismo, acredita ele*, mas deriva também da sua idéia de que sempre existe algo que merece respeito num sentimento moral forte e difundido, mesmo que ele esteja errado. “Rawls fala da tolerância cívica como modus vivendi, como uma forma de vida em comum, e é assim que pensam alguns liberais”, diz Cass Sunstein [refere-se a John Rawls (1921-2002), filósofo político americano]. “Mas acho que, quanto a isso, Obama lembra mais Learned Hand [famoso juiz americano (1872-1961)], quando este declarou: ‘O espírito da liberdade é o espírito que não tem muita certeza de ter razão’. Obama leva essa idéia a sério. Acho que o motivo de os conservadores sentirem-se bem com ele é verem que ele pode concordar com algumas questões e que, mesmo que tenha uma posição diferente, sempre sabe que pode estar errado. Não me ocorre nenhum outro político americano que já tenha pensado da mesma maneira.”
“O herói dele é Lincoln, famoso por acreditar que existem certos princípios de que não se deve abrir mão em voz alta, mas que também existem razões pragmáticas e às vezes razões de princípio para a pessoa não agir com base neles”, diz Sunstein. Obama considera que a fundação dos Estados Unidos foi “uma conciliação grandiosa” e esse tipo de compromisso, para ele, não constitui uma erosão dos princípios em prol da realização de alguma coisa, mas um princípio em si – a certeza da incerteza, o fundamento da união. “Estou decidido a salvar a União”, escreveu Lincoln numa carta a Horace Greeley, o editor do New York Tribune. “Se eu pudesse salvar a União sem libertar nenhum escravo, eu salvaria; se eu pudesse salvá-la libertando todos os escravos, eu salvaria; e se eu puder salvá-la libertando alguns e deixando os outros como estão, também salvaria.” “Prefiro acreditar que, para Lincoln, o que esteve em jogo nunca foi o abandono das convicções em prol de vantagens imediatas”, escreve Obama. “Ao contrário, acredito que precisamos conversar e chegar a entendimentos comuns precisamente por sermos todos imperfeitos e nunca podermos agir com a certeza de que Deus está do nosso lado.”
Obama recosta-se numa cadeira do seu gabinete, em Washington. Transmite a impressão de que seria capaz de passar o dia inteiro sentado imóvel naquela cadeira, sentindo-se perfeitamente confortável. Enquanto fala, acena com a mão em gestos vagos e majestosos, como se, distraído, espantasse uma mosca. Fala sobre as conseqüências da guerra no Iraque, de como acredita ser crucial evitar um recuo isolacionista, ao estilo da síndrome pós-Vietnã.
“Não existe hoje país algum sem problemas de segurança”, diz ele. “Se tivermos espaços sem governo, eles se transformam em refúgio de terroristas, em campos de multiplicação de pandemias e de produção de refugiados que podem desestabilizar áreas de grande interesse para nós. A segurança e as preocupações humanitárias fazem parte do mesmo projeto, a criação de um mundo em que as pessoas tenham as suas oportunidades e que isso desperte o seu interesse em participar da manutenção da ordem. Eu pegaria parte das tropas que enviamos para o Iraque e a usaria para reforçar a presença da Otan no Afeganistão. Acho que ainda teremos a oportunidade de chegar a um bom resultado ali.”
Obama ficou conhecido pelo seu ceticismo em relação à guerra no Iraque, mas não é uma pomba e nem se mostra avesso a pensar em termos internacionais. Duas das questões a que dedicou mais atenção desde sua chegada ao Senado americano, a gripe aviária e a não-proliferação nuclear, são problemas globais em grande escala que, embora relativamente incontroversos, são mesmo assim escolhas arriscadas como questões preferenciais, pois em ambos os casos o sucesso é invisível e o fracasso pode provocar uma calamidade de proporções planetárias. Ainda assim, parece que o hábito de pensar globalmente é relativamente novo para ele. Quando o primeiro presidente Bush invadiu o Iraque, Obama estava próximo dos 30 anos e vinha pensando seriamente em uma carreira política, mas seus amigos daquele tempo não se recordam da posição dele sobre a guerra. “Não quero fazer afirmações como se na época eu tivesse condição de sustentar uma posição clara”, diz ele. “Lembro-me de acreditar que a invasão do Kuwait por Saddam justificava uma ação internacional, e se eu fosse forçado a articular uma política, talvez tivesse apoiado a iniciativa, depois da formação de uma coalizão internacional. Na época, eu estava ocupado demais na faculdade de direito, ou me preparando para o exame da Ordem.”
Na área de recepção do seu gabinete muita gente se acotovela, boa parte sem encontro marcado. O gabinete se transformou numa espécie de atração turística. Marian Wright Edelman procurava guiar um grupo de líderes religiosos, de pais e de crianças doentes, para falar com Obama por um ou dois minutos sobre a questão da saúde infantil. Cerca de vinte bombeiros rotundos de meia-idade chegaram e, sendo numerosos demais para caber na sala, espalharam-se pelo corredor, bloqueando a porta de entrada. Uma dupla de repórteres do Chicago Tribune – destacados pelo jornal para cobrir os movimentos de Obama em tempo integral – esperava no sofá por uma entrevista que já fora adiada uma vez. Um pai branco de Winnetka havia trazido seus dois filhos e o mais velho de uns 9 anos de idade lhe implorava para que esperasse até ele poder avistar Obama, mesmo que só por um segundo. Duas adolescentes – uma de Lake Elmo, Minnesota, carregando um refrigerante, e a outra, de meia-calça cor-de-rosa e carregando um sorvete de iogurte – passaram pelo gabinete, na esperança de tirar uma fotografia com o senador. Uma recepcionista entregou-lhes uma foto em preto-e-branco da pilha que mantém na sua mesa, e as garotas soltaram gritinhos de satisfação. A garota com o refrigerante tirou algumas fotos da área da recepção e da sala de reuniões vazia, e assinou o livro de visitantes. “Onde o senhor está? Nada de fotos conosco?”, escreveu ela, ao lado de comentários mais convencionais como: “Boa sorte, o senhor é um doce”, “Meu herói!”, “Obrigada, o senhor é mesmo o máximo!”
“Meu nome é Barack Obama e estou concorrendo à presidência.” É o que se ouve na Escola Secundária de Algona, Iowa. “Vagou uma cadeira no Senado estadual na área onde eu morava, e algumas pessoas que eu conhecia na comunidade vieram me procurar e perguntaram se eu me interessava”, conta Obama. “Fiz o que todo negro faz diante de uma decisão importante como essa: fui rezar em busca de inspiração, e perguntei à minha mulher o que devia fazer.” (Risos.) “E, depois de consultar esses dois poderes supremos, fiz o que todo candidato estreante sempre faz, que é sair falando com qualquer pessoa que se disponha a escutar. Fui a reuniões de pais e mestres, a barbearias, a jogos infantis de beisebol e, em todos os lugares aonde eu ia, ouvia as mesmas duas perguntas. Primeira: ‘De onde vem esse seu nome estranho, Barack Obama?’ Isso porque as pessoas acabam se confundindo na pronúncia. Já me chamaram de Alabama, já me chamaram de Yo’Mama.” (Risos.) “Mas foi a segunda pergunta que me levou a ser candidato à presidência. As pessoas me perguntavam: ‘Você parece boa pessoa, tem um belo diploma de advogado, ganha muito dinheiro, tem uma linda família que vai todo domingo à igreja. Então por que quer entrar para uma coisa tão suja e desagradável como a política?'”
“Ele sempre quis ser presidente”, conta Valerie Jarrett, amiga da família há muitos anos, desde que contratou a mulher de Obama para trabalhar no gabinete do prefeito Daley. (Michelle atua hoje como executiva nos hospitais da Universidade de Chicago.) “Nem sempre admitiu, mas não há a menor dúvida. A primeira vez que ele me contou, disse: ‘Acho que eu tenho algumas qualidades especiais, e que seria uma pena desperdiçá-las’. Penso que foi no início da campanha dele para o Senado Federal. E mais tarde complementou: ‘Sabe, acho que eu tenho um jeito para isso’.”
“Algumas pessoas que sabiam do meu ativismo na comunidade me perguntaram se eu tinha interesse em concorrer àquele cargo”, diz Obama em Ames. “E então eu fiz o que qualquer homem sensato faz diante de uma decisão como essa: fui rezar pedindo inspiração, e perguntei à minha mulher o que ela achava.” (Risos.) No final de 2006, quando refletia sobre a decisão de concorrer, os amigos lhe perguntaram se ele estava pronto para a luta, se a idéia da disputa estimulava a sua adrenalina, e ele respondeu: “Sim, mas eu não sei se estou interessado em toda a controvérsia”. Não é a resposta que se espera de alguém que está embarcando numa campanha presidencial – que não quer controvérsia. “Mas é por isso que ele é tão simpático”, diz um amigo. “É essa a qualidade que as pessoas enxergam nele; todos estão vendo como a campanha pode ser estafante.” “Bill Clinton era muito mais versado nas táticas da política”, diz David Axlerod, o principal conselheiro da campanha de Obama. “Era um consumidor voraz de pesquisas. Claro, ele era tão incansável que era capaz disso, de ler quatro livros por semana e ainda ser presidente dos Estados Unidos. Ninguém jamais contrataria Barack como chefe de campanha. Mas Bill Clinton daria um ótimo chefe de campanha.”
E essa não é a única diferença entre Obama e Clinton. Comparar os dois ajuda a ver como um político por vocação, como os dois são definidos, pode ser muito diferente comparado a outro. “Bill Clinton tem um talento quase sobrenatural para escutar”, diz Robert Putnam. “Após conversar com Clinton, você sai pensando que pela primeira vez na vida alguém realmente ouviu o que você tinha a dizer – que Bill Clinton foi a primeira pessoa no mundo que te compreendeu. É uma coisa quase mágica.” Parte dessa qualidade, numa forma mais contida e sublimada, está presente também em Hillary Clinton – em seu desejo intenso de conquistar as pessoas, em sua preparação exaustiva, na disposição de dar tudo que é capaz para conseguir um voto.
O que não é nem de longe o estilo de Obama. Ele nunca dá mostras de avidez. Parece gostar de gente, mas não dá a impressão de precisar dos outros. Quando a maioria dos políticos fala a uma platéia, parece que vive para isso; Obama, em encontros locais, mostra-se empenhado mas com menos ardor, como se houvesse várias outras coisas que ele gostaria igualmente de fazer naquele dia. Quase sempre mantém na reserva o poder de oratória que demonstrou na Convenção de 2004. Mesmo nos grandes comícios atuais, nunca tenta deslumbrar ninguém – seus olhos não soltam chispas, suas mãos permanecem desvencilhadas e sempre abaixo da linha dos ombros, e ele nunca parece a ponto de ter uma experiência de mística.
Obama, é óbvio, está concorrendo à presidência dos Estados Unidos, mas isso não quer dizer que ele não esteja ávido por mais apoio: apenas sua maneira de conquistá-lo é mais sutil. Quando um dos redatores dos seus discursos, Jon Favreau, que trabalhou na campanha de John Kerry em 2004, foi entrevistado para o cargo, Obama lhe perguntou que teoria usava para compor os discursos. “Eu não tinha uma teoria grandiosa no bolso”, conta Favreau, “mas respondi: ‘Quando eu vi o senhor na Convenção, o que me chamou mais a atenção foi que contou uma história do começo ao fim do seu discurso – uma história de sua vida, sobre como ela se encaixa na história americana mais ampla – e chegou um ponto em que as pessoas queriam aplaudir, sem que o senhor precisasse fazer o tipo de declaração que sempre provoca aplausos. Os democratas não costumam fazer isso’. E Barack respondeu que era exatamente isso que ele tentava fazer.” Eis a teoria do discurso segundo Obama, e também, ao que parece, a sua teoria da campanha eleitoral: não tente obter muitos pontos o tempo todo, não se mate por um voto – uma campanha é um processo longo e lento, e você não precisa esgotar cada platéia, e tampouco descer do palco exausto.
Quando Christopher Edley conheceu Obama, na faculdade de direito, achou que ele iria longe porque era muito centrado. Mais tarde, quando leu o primeiro livro de Obama e viu o quanto ele desconfiava de si mesmo e dissecou a própria vida por anos a fio, achou que iria bem longe por causa disso. “A capacidade de reflexão a respeito de si mesmo é, na minha experiência, valiosíssima para um candidato ou um presidente”, diz ele. “É difícil descrever a alguém que nunca tenha se envolvido o quanto uma campanha presidencial é difícil. Quando você passa dia após dia voando de um canto a outro do país num tubo de alumínio a mais de 12 mil metros de altitude, a coisa mais fácil do mundo é se perder. E cada passo em falso pode se transformar em uma catástrofe midiática de 36 horas de duração, o que faz você passar a ter todos os motivos para desconfiar dos seus instintos, de maneira que ser sensível às suas forças e fraquezas e ter coragem de encará-las de frente ajudam muito cada vez que você enfrenta uma crise. Já vi candidatos procederem como um cervo congelado pelos faróis de um carro: não conseguem mais avançar e precisam ser conduzidos pela sua equipe. E também vi candidatos que, diante da adversidade, se transformam na mais teimosa das mulas e se mostram incapazes de se adaptar ou fazer qualquer ajuste. A maioria dos candidatos entra nos encontros perguntando a todo mundo: ‘Como estou indo? Como estou indo?’, sem a menor capacidade de se verem no espelho. Assim, a capacidade de ser brutalmente autocrítico, que Barack demonstra no seu livro, é uma qualidade de peso.”
“Muita gente entra na política com uma idéia. Obama entrou com um exemplo. O único político que ele analisa com certo vagar, no seu primeiro livro, é o negro que ocupava a prefeitura de Chicago quando se mudou para a cidade, em 1985: Harold Washington. Obama não fala da plataforma de Washington, e nem do que conseguiu realizar no exercício do cargo, fala do efeito que sua eleição teve sobre a comunidade negra. Quando chegou a Chicago, Obama percebeu que, por toda a área sul da cidade, as pessoas penduraram o retrato de Harold Washington na parede. “Na noite em que Harold venceu, vou lhes contar, as pessoas saíram correndo pelas ruas”, conta um barbeiro que Obama chama de Smitty. “Foi igual ao dia em que Joe Louis nocauteou Max Schmeling. O mesmo sentimento. As pessoas não estavam só orgulhosas de Harold. Estavam orgulhosas de si mesmas.” Ficou claro para Obama que a vitória de Harold Washington provocou nas pessoas um sentimento quase religioso de libertação. “Da mesma forma que a minha idéia de organização”, conclui o candidato, Harold Washington “prometia uma redenção coletiva.”
Mas a redenção é frágil. Depois da morte súbita de Washington, no meio do seu segundo mandato, sua obra desfez-se quase de imediato. “Não havia uma organização política montada, princípios claramente definidos a seguir”, escreve Obama. “A totalidade da política negra girava em torno de uma pessoa, radiosa como um sol.” Para um homem menos conservador, esse fracasso poderia acarretar um sentimento esmagador – uma demonstração da impossibilidade da mudança -, mas para Obama mostrou ser apenas uma prova adicional de que o carisma é enganoso, de que as revoluções são ilusórias, de que a verdadeira mudança é sempre lenta. Agora que ele próprio está concorrendo, é provável que saiba que tanto pode ser prejudicado como exaltado pelas expectativas elevadas, de modo que tenta, de maneira sutil, desestimulá-las. Obama tem os pés no chão. Se ele achasse que a sua vitória demandaria uma revolução, não seria candidato.