30 de abril de 2007

O conciliador

De onde vem Barack Obama?

Larissa MacFarquhar


Obama em campanha na cidade de Iowa. Ele apostou sua candidatura na união - em reunir duas metades da América que estão profundamente divididas e associando-se a Lincoln - e ele sabe o que essas duas coisas significam. Fotografia de Samantha Appleton.

Tradução / Começa em uma fazenda, no final do verão passado, sem um dia específico. Em Carmi, Illinois, cidade de 5 500 habitantes à beira do rio Little Wabash, perto da ponta sul do estado, a uns 40 quilômetros do Kentucky, um grupo de doze agricultores – brancos corpulentos, com o rosto enrugado e cabelos muito curtos – está sentado em torno de um retângulo formado por mesas reunidas numa sala sem nada de notável. Conversam com o senador Barack Obama. Recostado para trás na cadeira, o senador apoiou o joelho na beira de uma das mesas. Usava gravata, mas havia tirado o paletó e arregaçado as mangas da camisa. Um agricultor tinha uma pergunta sobre o etanol.

"A dúvida me ocorreu durante o último discurso presidencial do Estado da União", explicou o agricultor. “O presidente Bush disse que era totalmente favorável aos biocombustíveis, e depois começou a falar sobre o switchgrass [capim alto típico das pradarias americanas]. E pensei: o etanol de celulose, que é obtido a partir desse capim, pode ser mais eficiente em termos de energia do que o obtido a partir do milho. Mas ninguém sabe direito como produzir o switchgrass, ou se os fazendeiros pensam em plantá-lo em grande escala. Então por que dar tanta ênfase ao etanol de celulose?”

“Bem, eu não sou cientista”, respondeu Obama, num tom muito calmo, “por isso preciso tomar cuidado antes de entrar nesses assuntos que não conheço a fundo. Mas a produção do etanol de celulose tem o potencial de ser oito vezes mais eficiente em matéria de consumo de energia do que o etanol obtido a partir do milho, devido à eliminação do estágio intermediário da conversão do milho em açúcar. Foi o que entendi. Eu sei que vocês são muito apegados ao milho, mas se alguém chegasse a vocês e dissesse que iam ganhar o mesmo dinheiro, ou até mais, plantando switchgrass nos seus campos...”

“Duvido muito”, interrompeu o agricultor. “Um sujeito me procurou antes da colheita do trigo e perguntou se eu queria lhe vender a minha palha, e eu disse que não.”

“Interessante”, disse Obama. “Por que o senhor não quis vender a sua palha?”

“É matéria orgânica!”, respondeu o agricultor, em tom triunfante.

“Ora, mas se é vantajoso, se for um bom negócio, o senhor devia se interessar. O senhor conhece bem melhor do que eu a economia disso tudo. É por isso que precisamos nos reunir com os agricultores e descobrir o que faz mais sentido. Porque eu não planto nada, e o que o senhor acabou de me descrever, que prefere deixar de vender a palha porque ela é importante, bem...”

“Na revista FarmWeek, um editorial dizia que estavam falando de uma coisa que ia contra tudo que nós defendemos nos últimos vinte ou trinta anos, que é devolver a matéria orgânica ao solo”, explica o agricultor. “Só que, de repente, começam a falar em deixar a terra nua...”

“O que é errado”, retomou Obama. “Achamos que ninguém pode impor aos plantadores idéias que não vão funcionar. Mas precisamos produzir um etanol mais eficiente, se quisermos ver um crescimento significativo do mercado. A questão é que o etanol brasileiro é bem mais barato que o americano. George Bush queria deixar o álcool do Brasil entrar no país, e eu e Durbin” – Richard Durbin, o senador mais antigo do estado de Illinois – “dissemos que não, que éramos a favor de manter as tarifas existentes para podermos desenvolver um mercado para o etanol americano. E quero ter certeza de que as nossas decisões vão levar em conta que temos alguns dos solos mais ricos do planeta, além dos melhores agricultores. Mas o outro lado da moeda é que os plantadores precisam participar da discussão, em vez de só levantarem a mão para votar, dizendo que não estão interessados porque já se acostumaram a plantar só milho e feijão.”

Existem três coisas que os políticos democratas tendem a fazer toda vez que entram em contato direto com os eleitores que representam: demonstrar um conhecimento impressionante de cada pormenor dos seus problemas, especialmente os que envolvem dinheiro; despertar a indignação, apontando que esses problemas são provocados pelos grupos poderosos que só pensam em enriquecer à custa das pessoas comuns; e apresentar propostas políticas formuladas com o maior cuidado, pois, caso fossem aprovadas, poderiam solucionar esses problemas e pôr os grupos poderosos no seu devido lugar.

Obama raramente faz qualquer dessas três coisas. Sua tendência é demonstrar um conhecimento apenas modesto dos assuntos, parecendo menos informado do que na verdade é. Raramente faz acusações, preferindo falar sobre os problemas na voz passiva, como coisas que estão erradas conosco, e não coisas erradas que fizeram conosco. E as soluções que propõe geralmente parecem modestas e locais, não de alcance profundo e nem sistêmicas.

Obama já presidiu a várias conferências sobre saúde. Nelas, sempre se mostra calmo e relaxado, como que decidido a poupar energia. Caminha devagar de um lado para o outro, dá meia-volta, balança a cabeça. Faz sempre seus comentários num tom neutro e desapaixonado. Não manifesta piedade para com a doença, desprezo pela burocracia e nem indignação com a injustiça. Diz que o sistema está avariado e precisa de conserto, mas não procura transmitir nenhuma urgência especial.


Esse seu comportamento é muitas vezes definido como professoral, e o próprio Obama costuma comparar essas conferências às aulas de direito constitucional que dava na Universidade de Chicago. Mas “professoral” implica algo cerebral ou didático, o que não é o caso. A despeito de todas as críticas que já recebeu, Obama permanece fiel ao que parece ser um instinto que lhe diz que o lugar de estudos é em sites da internet, e não nos seus discursos. É surpreendente, tendo em vista os resultados eleitorais recentes, que não lhe dêem mais crédito pela astúcia dessa postura. Mas a verdade é que não se trata de uma simples estratégia – Obama é assim mesmo.

“Ele não tem a desvantagem de muitas pessoas inteligentes, que sempre dão a impressão de menosprezar as pessoas com quem conversam”, diz George Haywood, investidor particular e amigo de Obama. “Adlai Stevenson, que também era de Illinois, tinha isso – sempre passava a imagem de um sabe-tudo e desagradava às pessoas. Barack é exatamente o contrário.” Uma das razões mais prováveis é que Obama parece não dar muito valor à inteligência em si mesma. Até na faculdade de direito, o lugar onde a inteligência pura e simples é bastante valorizada, mais talvez que em qualquer outro lugar, e o apreço pela argumentação é fundamental, ele nunca se entusiasmou pelos duelos acadêmicos.

O jeito desapaixonado de Obama, a calma que ele sempre apresenta em ambientes pequenos, é menos professoral do que doutoral – ele lembra um médico que, ao escutar a história do paciente sem manifestar nenhuma reação emocional, deixa-o mais tranqüilo, porque dá a entender que conhece bem aqueles sintomas. Ele é doutoral também num outro sentido: Obama vê o corpo político como um organismo vivo, diante do qual a reação indignada não faz sentido – como não faria sentido para um médico mostrar indignação diante do rim de um paciente que lhe provoque dor nas costas.

E também existe, é claro, o aspecto racial da situação: “Se você é negro e homem, não precisa se esforçar para convencer as pessoas da sua agressividade”, diz Haywood. “Houve uma época em que os negros que entravam para a política partidária achavam melhor deixar os cabelos brancos. David Dinkins foi um exemplo. Ou o prefeito Bradley, em Los Angeles. Para obter o apoio do eleitorado branco mais amplo, era melhor transmitir uma imagem de segurança, e não uma sensação de revolta. Não creio que Barack tenha tomado a decisão consciente de se apresentar assim, mas foi uma coincidência feliz. A política partidária não está pronta para um negro que solte fogo pela boca.”

De forma consciente ou não, o provável é que Obama tenha aprendido com esses exemplos e descoberto que a sua eventual eleição à presidência não representaria uma revolução nas relações inter-raciais, assim como a ascensão de primeiras-ministras mulheres não foi exatamente um sinal do florescimento feminista no sul da Ásia. O preconceito sempre abre as suas exceções.

A calma de Obama também é uma questão de temperamento. O primeiro comentário de quem o conhece é sobre a forma como passa a impressão de estar bem na sua pele. “Ele era quase anormalmente contido e equilibrado”, diz Christopher Edley Jr., um dos professores de Obama na faculdade de direito de Harvard, hoje diretor em Berkeley. E, de fato, existe algo quase assustador no autocontrole de Obama – um traço que é evidente e chama a atenção, como a imobilidade fora do normal de alguém capaz de baixar a própria pressão sangüínea só usando a vontade. Obama não se esforça para ser visto como qualquer um: mostra-se relaxado, mas nunca muito íntimo, e mais elegante do que familiar. Na superfície, ele exibe movimentos tão fluidos, uma voz tão constante e bem dosada que quase parece um ator no papel de um político, demonstrando uma falta de esforço que, se verdadeira, é implausível. Obama tornou-se conhecido por suas camisas de colarinho aberto – pode vir a dar à gravata o destino que John Kennedy deu ao chapéu – , mas nunca parece descomposto. “Tanto Gore quanto Bush têm essa característica meio galhofeira, coisa que nunca vi em Obama”, diz Robert Putnam, um cientista político de Harvard que conheceu os três políticos. “Não que ele seja um sujeito sempre sério. Mas Bush costuma fazer palhaçadas e Gore sabe fazer palhaçadas. Obama nunca faz uma palhaçada.”


O mais estranho é que o homem sereno descrito pelos amigos não podia ser mais diferente da descrição que ele faz de si mesmo nas suas memórias, Sonhos do Meu Pai. No livro, o jovem Obama aparece confuso e revoltado, com dificuldades para descobrir quem ele é, muitas vezes drogado, hostil tanto à condescendência branca quanto à rebeldia negra, nunca confiando em si mesmo, sempre suspeitando de que as suas convicções não sejam mais que um disfarce para o seu egoísmo e as suas emoções, meros sintomas da sua constituição racial peculiar. É bem verdade que no livro ele conta como emergiu desse estado de espírito – é uma narrativa tradicional de encontro de si próprio que termina, como é da tradição, com um casamento em que todas as suas confusões são sanadas. Mas o contraste entre o Obama do livro e o Obama que aparece para o mundo ainda assim é extremo, a ponto de chamar a atenção. “Ele era centrado, confortável em sua pele, sabia quem era, de onde tinha vindo, por que razão acreditava nas coisas”, diz Kenneth Mack, amigo de Obama em Harvard e hoje professor na mesma universidade. “Quando li o livro, fiquei surpreso – a confusão e a revolta que ele descreve podiam existir debaixo da superfície, mas nunca se manifestavam.”

Quando lhe perguntam a respeito, Obama diz que “o que me intriga é o motivo por que as pessoas ficam intrigadas. O personagem revoltado existiu dos meus 15 até mais ou menos os meus 21 anos. A explicação é que eu era um adolescente dotado de uma carga considerável de hormônios, depois de uma infância sabidamente complicada. Mas esse não era o meu temperamento natural. E o livro não descreve todos os aspectos da minha vida. Eu podia ter escrito um livro muito diferente, falando das alegrias do basquete e de como é bom pegar jacaré numa bela praia, enquanto o sol se põe”.

Então, por que ele não escreveu sobre as alegrias do basquete? Por que se concentrou num aspecto seu politicamente tão pouco aceitável? Quando Obama freqüentou a faculdade de direito, pouco antes de escrever Sonhos do Meu Pai, falava da sua vontade de tornar-se prefeito de Chicago. Uma vez que as pessoas, por algum motivo, tendem a tolerar prefeitos (na verdade, encantar-se) com um comportamento consideravelmente mais excêntrico e dúbio que o de outras autoridades eleitas, ele pode ter escrito o livro tendo essa ambição em mente. É provável que tenha percebido que revelar o seu uso de drogas no passado era a melhor maneira de neutralizar um questionamento futuro. Mas como Obama é um excelente contador de histórias, é provável que conhecesse a narrativa típica do candidato a cargos políticos – bons resultados escolares, seguidos do sucesso numa profissão. Entregar-se prazerosamente às realizações da vida (a vitória, a vingança, uma bela casa, o basquete, seja o que for), no entanto, não serve para comover ou inspirar ninguém.

Quando trabalhava como organizador comunitário em Chicago, Obama conversou com muitos pastores negros para convencê-los a se aliarem à sua organização. Com as conversas, descobriu que a maioria deles tinha uma coisa em comum. “Um pastor contou que tinha sido viciado em jogo”, escreve ele. “Outro me falou dos seus anos como executivo bem-sucedido mas secretamente um alcoólatra. Todos se referiram a períodos de dúvida religiosa… a terem chegado ao fundo do poço, e sobre o orgulho ferido. Finalmente, falaram da ressurreição pessoal, com uma identidade agora ligada a algo maior. Era essa a fonte da sua confiança, insistiam eles: a queda que tinham sofrido e a redenção subseqüente. Era o que lhes dava a autoridade para pregar a boa-nova.” Cassandra Butts, amiga de Obama no tempo da faculdade de direito, rememora: “Barack costumava dizer que uma das suas frases prediletas do movimento pelos direitos civis era: ‘Se você não aguenta o peso da cruz, não vai aguentar a coroa'”.


Obama despontou para a proeminência na Convenção do Partido Democrata de 2004, quando descreveu a sua vida como uma celebração do Sonho Americano: um “garoto magricela com um nome estranho”, produto de uma improvável união idealista entre um africano e uma garota do Kansas, emerge da obscuridade para ingressar na Faculdade de Direito de Harvard e mais adiante – o que àquela altura já ficara claro – torna-se o terceiro senador negro dos Estados Unidos desde os anos que se seguiram à Guerra Civil. Mas, num outro sentido, a vida dele mostra um trajeto oposto ao do Sonho Americano, pois recusa os sonhos dos pais e avós e sai à procura de algo ainda mais ancestral.

O avô materno de Obama, Stanley Dunham, cresceu como um pequeno delinqüente em El Dorado, Kansas. Não sabia o que fazer na vida, mas tinha certeza de que queria ir embora do Kansas – deixar a casa dos seus pais e o provincianismo sufocante das cidades pequenas do Meio-Oeste, onde “o medo e a falta de imaginação asfixiavam os sonhos de todos”, como presumiu o seu neto. Depois de alguns primeiros passos em falso, e de uma fuga amorosa com uma garota irrequieta, o avô tinha feito o que homens do seu tipo sempre acabavam fazendo: seguira para o Oeste. Foi para a Califórnia, depois para Seattle e, por fim, para a última fronteira, o ponto mais a oeste ao qual podia chegar sem retornar ao leste: o Havaí.

Distante 13 mil quilômetros a leste dali, no Quênia, o outro avô de Obama, Hussein Onyango, também tomou o mesmo rumo, e por motivos semelhantes. Descontente e ambicioso, deixou a aldeia onde o pai vivia, curioso acerca dos brancos recém-instalados numa pequena cidade próxima. Lá, passou a se vestir à moda européia e adotou noções européias de higiene e bons modos com o fervor de um recém-convertido. Durante a II Guerra Mundial, viajou para a Europa como cozinheiro do Exército britânico.

Os rebentos desses dois homens, os pais de Obama, distantes uma geração do lugar onde nasceram, foram mais livres ainda que os progenitores. A mãe de Obama, Ann, casou-se primeiro com um queniano e depois, quando ele foi embora, com um indonésio. Após o malogro do segundo casamento, voltou por algum tempo para o Havaí, decidida a cursar um mestrado de antropologia, e em seguida tornou a partir para a Indonésia, onde passaria vários anos dedicada às pesquisas de campo. Deu ao seu filho de 13 anos a opção de ir com ela ou ficar na escola que cursava no Havaí. O menino decidiu ficar.

O pai de Obama foi expulso da escola e teve os recursos cortados pelo genitor, mas logo em seguida conseguiu uma bolsa para freqüentar um college nos Estados Unidos. Abandonou a mulher grávida e o filho para estudar econometria na Universidade do Havaí. Lá conheceu Ann Dunham, casou-se com ela e teve mais um filho, Barack. Depois deixou a segunda família para voltar ao Quênia, onde foi trabalhar para o governo. Casou-se lá com outra americana, com quem teve mais dois filhos. Passados alguns anos, essa terceira família se desintegrou e, como ele não se dispunha a aceitar as injustiças ditadas pelo tribalismo persistente no Quênia, também perdeu o cargo no governo. Revoltado e sem tostão, entregou-se à bebida.

“O que mais me impressiona, quando penso na história da minha família”, diz Obama no seu livro, “é um recorrente traço de inocência, uma inocência que parece inimaginável, mesmo pelos critérios de uma criança.” Essa inocência, para ele, não é uma qualidade positiva, nem mesmo uma desculpa redentora: não é o contrário da culpa, mas o oposto da sensatez. Na descrição que Obama faz do seu avô materno, por exemplo, percebemos amor e também desprezo. “Ele tinha um caráter americano, típico dos homens da sua geração, homens que abraçavam a idéia da liberdade e o individualismo, e saíam pelas estradas sem saber exatamente o preço que pagariam”, escreve. “Homens que eram tão promissores quanto perigosos, justamente devido à sua inocência fundamental, homens que tendiam, no fim das contas, a sofrer decepções.” A filha testemunhou essa insatisfação, mas aprendeu a lição errada: o problema não tinha sido o pai ter ido embora sem um objetivo claro, vagando só por vagar, esperando que um outro lugar lhe trouxesse uma vida nova: o problema é que não fora longe o bastante. E ela decidiu ir além. “Foi o desejo de apagar o passado, aquela confiança de que poderia criar um mundo novo a partir do zero”, escreve Obama, “que acabaria sendo o legado mais duradouro do avô.”

A mãe de Obama, da maneira como ele a retrata, é uma inocente americana saída diretamente das páginas de Henry James: uma jovem que decide se arriscar no mundo acreditando que as coisas são exatamente como parecem, que a história de cada pessoa começa quando ela nasce, e as suas relações com os outros só principiam a partir do momento em que ela os conhece; que é possível sair de casa sem medo de machucar-se ou sofrer de solidão, porque as pessoas são mais ou menos as mesmas em qualquer lugar. Não tinha a menor idéia de onde estava se metendo quando deixou o Havaí. Poucos meses antes da sua chegada, a Indonésia sofrera um golpe de Estado fracassado, mas brutal, em que morreram centenas de milhares de pessoas. Alguém acabou lhe contando o que acontecera, mas a notícia não a afetou. “Num país onde o fatalismo era um instrumento necessário para suportar as provações”, escreve Obama, “ela era a única a crer no humanismo laico, a defensora isolada do New Deal, do Peace Corps, do liberalismo persistente adquirido na academia.” Ela tinha uma fé, herdada do pai e impermeável à experiência, segundo a qual “as pessoas racionais e capazes de refletir sempre conseguem moldar o seu destino”. E se considerava afortunada por ter emergido da experiência só com um segundo divórcio e duas crianças um tanto perplexas. “As coisas podiam ter acabado pior”, escreve seu filho. “Muito pior.”

Inocência, liberdade, individualismo, mobilidade – a convicção de que a pessoa pode deixar para trás uma história violenta ou sufocante, e iniciar uma nova vida, livremente escolhida -, tudo isso faz parte do sonho americano de avanço para o oeste, primeiro da Europa para a América, depois das cidades abarrotadas da Costa Leste para as Grandes Planícies centrais, e delas para o Pacífico. Mas esse sonho, para Obama, parece superficial. Quando o jovem Barack foi ao Quênia pela primeira vez, e soube o que tinha acontecido com a vida do seu pai – como ele tinha destruído a sua carreira imaginando que velhas fidelidades tribais fossem simples estreiteza mental, que podia se colocar acima do passado e modificar a sociedade pela simples força das suas convicções -, uma tia lhe contou que o seu pai nunca entendera que, como ela dizia, “se todo mundo faz parte da família, ninguém faz parte da família”. Obama achou essas palavras notáveis, tanto que as citou textualmente mais tarde, em itálico, no livro. O universalismo é uma ilusão. A liberdade, no final das contas, não passa de uma forma de abandono. Você pode começar largando a religião, depois os pais, a sua cidade, o seu povo e o seu modo de vida. Mais tarde quando você acaba largando a mulher ou o marido e os filhos, isso vem a lhe parecer o resultado de uma progressão natural.

Assim, quando chegou a vez de Obama sair de casa, ele fez o contrário dos seus avós, da sua mãe e do seu pai: deu meia-volta e tomou o rumo leste. Primeiro de volta ao continente, cursando um college na Califórnia por dois anos, e depois mais para o leste ainda, seguindo até Nova York. Acabou em Chicago, de volta ao Meio-Oeste de onde os pais da sua mãe partiram, adotando tudo o que eles tinham deixado para trás – as amarras da tradição, o peso da história, a pequenez provinciana da comunidade, a vida inteira passada num único lugar com o mesmo grupo de pessoas. Lembrou-se da grande migração negra que viera do sul para Chicago um século antes, e das tradições que os migrantes criaram na cidade. “Fui fazendo uma ligação entre a minha vida e os rostos que eu via, tomando de empréstimo as memórias alheias”, escreveu. Ele queria sentir-se preso a um destino.

É claro que, num certo sentido, ao decidir deixar a família e mudar-se para um lugar com o qual não tinha nenhuma ligação, estava fazendo exatamente a mesma coisa que os seus pais. Mas, ao contrário deles, decidiu acreditar que as suas escolhas haviam sido moldadas pelo destino e pela família. “Percebo que as minhas escolhas nunca foram na verdade só minhas”, escreveu ele, “e era assim mesmo que deviam ser, pois afirmar o contrário é perseguir um tipo lamentável de liberdade.” Escolher entre as opções tradicionais era o que estava ao seu alcance. Com o tempo, as raízes cresceriam. Casou-se com Michelle Robinson, que já era a pessoa na qual ele queria se transformar: tinha memórias e raízes, pois nascera em uma família intacta e religiosa do sul de Chicago. Barack foi trabalhar numa organização próxima a sua vizinhança, e que vinha sofrendo um processo de desintegração. Por meio do trabalho e da inspiração, ele esperava trazer a comunidade de volta à vida. Mais adiante, rejeitando o agnosticismo dos seus pais e o ceticismo dos seus próprios instintos, tornou-se cristão e entrou para uma igreja. “Acabei compreendendo”, escreveu ele em seu segundo livro, A Audácia da Esperança, que “sem um compromisso inequívoco com um determinado grupo religioso, de certa forma eu estaria sempre destinado a manter-me à parte, livre como a minha mãe era livre, mas também isolado como ela, que, em última instância, vivia isolada.”

Quando entrou na faculdade de direito, aos 27 anos, Barack se transformara no homem que havia imaginado. Toda a sua vida, fora considerado negro porque tinha a aparência de negro. Se antes algo estivera confuso em seu íntimo, agora estava superado. Sua conversão estava completa. “Se você o conhecesse, nunca perceberia que tinha uma origem birracial”, diz Kenneth Mack. “Nunca perceberia que foi criado no Havaí. Quando eu o conheci, ele parecia só mais um negro de Chicago. Mais um negro do Meio-Oeste americano.”


O triunfo da liberdade sobre a história não é apenas, evidentemente, uma narrativa americana sobre indivíduos, mas uma narrativa que a América elabora a respeito de si mesma. Quando foi proposto que os Estados Unidos invadissem o Iraque, para ali estabelecer uma democracia, Obama sabia que isso seria um erro terrível. Era a inocência americana na sua forma mais destrutiva, a liberdade em sua forma mais enganosa, o universalismo na sua forma mais ingênua. “Havia uma inocência extremamente perigosa na idéia de que seríamos saudados como libertadores, ou de que um pouco de assistência econômica e treinamento democrático bastaria para vermos uma democracia jeffersoniana florescer no deserto”, diz ele atualmente. “Existe na história americana uma corrente ativa de idealismo que é capaz de se manifestar de maneira poderosa e apropriada – como ocorreu depois da II Guerra Mundial com a criação das Nações Unidas e o Plano Marshall, no momento em que reconhecemos que a nossa segurança e prosperidade dependiam da segurança e da prosperidade alheias. Mas o mesmo idealismo também pode se manifestar como a crença de que somos capazes de recriar o mundo da maneira que quisermos, com o simples acionamento de um interruptor, devido à nossa superioridade tecnológica, econômica ou moral. E quando o nosso idealismo desemboca nesse tipo de ingenuidade e se recusa a levar em conta a história e o peso das outras culturas, acabamos nos vendo às voltas com sérios problemas, como aconteceu no Vietnã.”

Na sua visão da história, no seu respeito pela tradição, no seu ceticismo em relação à possibilidade de mudanças do mundo que ocorram de qualquer maneira que não seja muito, muito lenta, Obama é profundamente conservador. Há momentos em que chega a soar como um novo Burke [Edmund Burke, político britânico de origem irlandesa (1729-97), considerado um dos fundadores do pensamento conservador moderno]. Desconfia de abstrações, generalizações, extrapolações e projeções. Não só por achar que revoluções são improváveis, mas por dar mais valor à continuidade e à estabilidade, pelo que elas representam em si mesmas, do que a uma mudança para melhor. Com relação à saúde pública, por exemplo, “se estivéssemos começando do zero”, diz ele, “o sistema de um único pagante” – um sistema gerido pelo governo, como o do Canadá, tornando a assistência à saúde independente do emprego – “provavelmente faria sentido. Mas já temos em funcionamento todos esses sistemas que herdamos, e administrar a transição, além de ajustar a nossa cultura a um novo sistema, seria muito difícil. Por isso, precisamos de um sistema que não seja diferente a ponto de levar as pessoas a sentir que abandonamos repentinamente o que elas conhecem desde que nasceram.”


O histórico de votação de Obama é um dos mais liberais do Senado, mas ele é sempre bem-visto pelos republicanos, talvez por falar de metas liberais usando uma linguagem conservadora. Quando se pronuncia sobre a pobreza, não costuma denunciar os plutocratas gananciosos e as reduções injustas de impostos: diz que somos responsáveis por nossos irmãos, e que cuidar dos pobres é uma das tradições americanas. Quando lhe perguntam se mudou de idéia sobre alguma coisa nos últimos vinte anos, ele responde: “Acho que me tornei mais humilde na minha avaliação da velocidade com que programas governamentais podem solucionar nossos problemas. Acho, por exemplo, que a influência dos pais e das comunidades é tão importante quanto a quantidade de dinheiro investida na educação”.

Obama costuma estimular esse apelo a diferentes facções. Muitas vezes evita criticar diretamente o governo Bush. Recentemente, em New Hampshire, declarou à sua platéia: “Sou um democrata. Sou considerado um democrata progressista. Mas se um republicano, um conservador, um libertário ou um defensor do livre mercado tiver uma idéia melhor que a minha, terei o maior prazer em adotar as idéias de qualquer um, e nesse sentido sou um agnóstico”.

Seu ex-colega de faculdade que trabalhou no governo Clinton, Michael Froman, assim conta: “Um número impressionante de conservadores ligou para mim dizendo: ‘Ele é o democrata que eu poderia apoiar, não porque concorde comigo – porque não concorda – , mas porque levará em conta pelo menos o meu ponto de vista'”. Froman atualmente participa da campanha de Obama.

Depois do discurso de Obama na Convenção, muitos blogueiros republicanos apressaram-se em apoiá-lo, com títulos como “O Discurso Certo na Convenção Errada” ou “Barack Obama: Uma Alma Republicana Presa num Corpo de Democrata”. O discurso foi atipicamente reaganesco, apresentando uma visão quase uniformemente otimista dos Estados Unidos, que ele chamou de “uma terra mágica”. Hoje ele tende a ser um pouco mais sombrio. Ainda assim, os republicanos continuam a achá-lo mais aceitável, especialmente os que se opõem à guerra por motivos conservadores semelhantes aos dele. Alguns dos maiores financiadores de Bush estão contribuindo para a sua campanha. Na eleição para o Senado, Obama conquistou 40% dos votos republicanos. E existe um grupo chamado Republicanos a Favor de Obama, fundado por John Martin, estudante de direito e reservista da Marinha. É claro que nem todos os republicanos gostam de Obama – John Martin costuma receber um fluxo regular de e-mails irritados. “Olá John, só queria lhe dizer que não existem republicanos a favor de Obama Hussein Barack”, escreveu uma leitora, concluindo: “Favor me retirar da sua lista de correspondência e cuidar de superar a sua culpa de americano branco”.

Na passagem mais citada do discurso da Convenção de 2004, Obama disse: “Os sábios gostam de dividir o nosso país em estados vermelhos e estados azuis; os estados vermelhos para os republicanos, os azuis para os democratas. Mas tenho uma notícia para eles também. Cultuamos um Deus formidável nos estados azuis, e não gostamos de agentes federais enfiando o nariz nas nossas bibliotecas nos estados vermelhos”. Observadores da cena de Washington tendem a não dar importância a esses apelos em favor da unidade nacional e de cooperação entre os partidos, afirmando tratar-se de um mero clichê político. E mesmo os mais ardorosos defensores de Obama acham que essa insistência pode acabar soando inconvincente. “Todas essas afirmações politicamente corretas não são exatamente exemplos de uma retórica à moda de Churchill”, diz um amigo.


Obama está sempre decepcionando quem acha que ele dedica respeito excessivo, ou concede terreno demais ao outro lado, em vez de lutar de forma agressiva em defesa dos seus princípios. “Na faculdade, participamos juntos de um seminário e Charles Fried, que é muito conservador, era um dos nossos oradores”, conta Cassandra Butts. “Surgiu a questão da Segunda Emenda [que estabelece o direito dos cidadãos a ter armas], e Fried mostrou sua visão absolutista da matéria. Um dos nossos colegas era a favor do controle das armas – vinha de um meio urbano onde a questão da posse de armas era importante. E, embora Barack concordasse com o nosso colega, preferiu dar ouvidos a Fried – impressionava-se com o fato de Fried ter crescido no bloco soviético, onde essas liberdades não existiam. A aula havia terminado e o nosso colega continuava a discutir com Fried, mas Barack se mostrava tão pouco passional quanto antes, o que eu não entendia.” Recentemente, Obama declarou que, se Bush decidisse vetar uma lei de controle dos gastos militares com uma cláusula de retirada americana do Iraque, ele, Obama, daria apoio à anulação da cláusula, a fim de garantir a aprovação da lei. Os blogueiros liberais ficaram furiosos com essa capitulação, mas a escritora Samantha Power, que trabalha para Obama no campo da política externa, disse que “ficar num lado da sala de braços cruzados simplesmente não é o modus operandi dele”.

Novamente, isso é em parte uma questão de temperamento. “Por natureza, não sou o tipo de pessoa que se exalta muito com as coisas”, escreve Obama no seu segundo livro. Prefere considerar que seus adversários estão enganados ou sendo ridículos, em vez de encará-los como demônios. “Nunca fui adepto da teoria da conspiração”, diz ele. “Jamais acreditei que existissem pessoas que controlavam tudo, puxando cordões e apertando os botões. E o motivo é que, quanto mais velho fico, mais tempo passo conversando com gente do governo ou da elite empresarial, e mais humanos todos se tornam. O que eu acredito é que as pessoas que têm dinheiro, influência ou que controlam a maneira como os recursos são alocados na nossa sociedade tendem a proteger seus interesses, e são capazes de racionalizar ao infinito os motivos pelos quais devem ter mais dinheiro e poder que qualquer outro, e os motivos pelos quais essa distribuição é boa, de certa forma, para a sociedade como um todo.”

A tendência de Obama à conciliação vai além dos limites do expediente político – é instintiva, quase uma reação involuntária. “Barack tem uma capacidade incrível de operar a síntese entre realidades aparentemente contraditórias e torná-las compatíveis”, diz Cassandra Butts. “E isso se deve ao fato de vir de uma casa onde foi criado por brancos para depois cair no mundo e ser visto como um negro. Ele precisava decidir se aceitava essa contradição e se limitava a ser só uma das duas coisas, ou se preferia encontrar um modo de perceber que as partes formam um todo.” “Acho que os Estados Unidos passam por uma situação em que todos estão muito mais de acordo do que acreditam. E isso é uma coisa que eu sei a partir de dados de pesquisas – sentimo-nos divididos em termos de raça, de religião, de classe, de quase tudo, mas exageramos as nossas discordâncias. E é por isso que eu acho Obama a pessoa certa para o momento atual”, conclui Robert Putnam.

Às vezes, é claro, não existe possibilidade de convergência, e a resposta a uma certa questão só pode ser sim ou não. Nesses casos, Obama pode ou não sair em defesa daquilo que acredita. “Desafiar as convicções religiosas das pessoas – eis uma coisa que ele hesitaria muito em fazer”, diz Cass Sunstein, colega de Obama na Universidade de Chicago. O que não se deve apenas ao seu pragmatismo, acredita ele*, mas deriva também da sua idéia de que sempre existe algo que merece respeito num sentimento moral forte e difundido, mesmo que ele esteja errado. “Rawls fala da tolerância cívica como modus vivendi, como uma forma de vida em comum, e é assim que pensam alguns liberais”, diz Cass Sunstein [refere-se a John Rawls (1921-2002), filósofo político americano]. “Mas acho que, quanto a isso, Obama lembra mais Learned Hand [famoso juiz americano (1872-1961)], quando este declarou: ‘O espírito da liberdade é o espírito que não tem muita certeza de ter razão’. Obama leva essa idéia a sério. Acho que o motivo de os conservadores sentirem-se bem com ele é verem que ele pode concordar com algumas questões e que, mesmo que tenha uma posição diferente, sempre sabe que pode estar errado. Não me ocorre nenhum outro político americano que já tenha pensado da mesma maneira.”

“O herói dele é Lincoln, famoso por acreditar que existem certos princípios de que não se deve abrir mão em voz alta, mas que também existem razões pragmáticas e às vezes razões de princípio para a pessoa não agir com base neles”, diz Sunstein. Obama considera que a fundação dos Estados Unidos foi “uma conciliação grandiosa” e esse tipo de compromisso, para ele, não constitui uma erosão dos princípios em prol da realização de alguma coisa, mas um princípio em si – a certeza da incerteza, o fundamento da união. “Estou decidido a salvar a União”, escreveu Lincoln numa carta a Horace Greeley, o editor do New York Tribune. “Se eu pudesse salvar a União sem libertar nenhum escravo, eu salvaria; se eu pudesse salvá-la libertando todos os escravos, eu salvaria; e se eu puder salvá-la libertando alguns e deixando os outros como estão, também salvaria.” “Prefiro acreditar que, para Lincoln, o que esteve em jogo nunca foi o abandono das convicções em prol de vantagens imediatas”, escreve Obama. “Ao contrário, acredito que precisamos conversar e chegar a entendimentos comuns precisamente por sermos todos imperfeitos e nunca podermos agir com a certeza de que Deus está do nosso lado.”


Obama recosta-se numa cadeira do seu gabinete, em Washington. Transmite a impressão de que seria capaz de passar o dia inteiro sentado imóvel naquela cadeira, sentindo-se perfeitamente confortável. Enquanto fala, acena com a mão em gestos vagos e majestosos, como se, distraído, espantasse uma mosca. Fala sobre as conseqüências da guerra no Iraque, de como acredita ser crucial evitar um recuo isolacionista, ao estilo da síndrome pós-Vietnã.

“Não existe hoje país algum sem problemas de segurança”, diz ele. “Se tivermos espaços sem governo, eles se transformam em refúgio de terroristas, em campos de multiplicação de pandemias e de produção de refugiados que podem desestabilizar áreas de grande interesse para nós. A segurança e as preocupações humanitárias fazem parte do mesmo projeto, a criação de um mundo em que as pessoas tenham as suas oportunidades e que isso desperte o seu interesse em participar da manutenção da ordem. Eu pegaria parte das tropas que enviamos para o Iraque e a usaria para reforçar a presença da Otan no Afeganistão. Acho que ainda teremos a oportunidade de chegar a um bom resultado ali.”

Obama ficou conhecido pelo seu ceticismo em relação à guerra no Iraque, mas não é uma pomba e nem se mostra avesso a pensar em termos internacionais. Duas das questões a que dedicou mais atenção desde sua chegada ao Senado americano, a gripe aviária e a não-proliferação nuclear, são problemas globais em grande escala que, embora relativamente incontroversos, são mesmo assim escolhas arriscadas como questões preferenciais, pois em ambos os casos o sucesso é invisível e o fracasso pode provocar uma calamidade de proporções planetárias. Ainda assim, parece que o hábito de pensar globalmente é relativamente novo para ele. Quando o primeiro presidente Bush invadiu o Iraque, Obama estava próximo dos 30 anos e vinha pensando seriamente em uma carreira política, mas seus amigos daquele tempo não se recordam da posição dele sobre a guerra. “Não quero fazer afirmações como se na época eu tivesse condição de sustentar uma posição clara”, diz ele. “Lembro-me de acreditar que a invasão do Kuwait por Saddam justificava uma ação internacional, e se eu fosse forçado a articular uma política, talvez tivesse apoiado a iniciativa, depois da formação de uma coalizão internacional. Na época, eu estava ocupado demais na faculdade de direito, ou me preparando para o exame da Ordem.”

Na área de recepção do seu gabinete muita gente se acotovela, boa parte sem encontro marcado. O gabinete se transformou numa espécie de atração turística. Marian Wright Edelman procurava guiar um grupo de líderes religiosos, de pais e de crianças doentes, para falar com Obama por um ou dois minutos sobre a questão da saúde infantil. Cerca de vinte bombeiros rotundos de meia-idade chegaram e, sendo numerosos demais para caber na sala, espalharam-se pelo corredor, bloqueando a porta de entrada. Uma dupla de repórteres do Chicago Tribune – destacados pelo jornal para cobrir os movimentos de Obama em tempo integral – esperava no sofá por uma entrevista que já fora adiada uma vez. Um pai branco de Winnetka havia trazido seus dois filhos e o mais velho de uns 9 anos de idade lhe implorava para que esperasse até ele poder avistar Obama, mesmo que só por um segundo. Duas adolescentes – uma de Lake Elmo, Minnesota, carregando um refrigerante, e a outra, de meia-calça cor-de-rosa e carregando um sorvete de iogurte – passaram pelo gabinete, na esperança de tirar uma fotografia com o senador. Uma recepcionista entregou-lhes uma foto em preto-e-branco da pilha que mantém na sua mesa, e as garotas soltaram gritinhos de satisfação. A garota com o refrigerante tirou algumas fotos da área da recepção e da sala de reuniões vazia, e assinou o livro de visitantes. “Onde o senhor está? Nada de fotos conosco?”, escreveu ela, ao lado de comentários mais convencionais como: “Boa sorte, o senhor é um doce”, “Meu herói!”, “Obrigada, o senhor é mesmo o máximo!”


“Meu nome é Barack Obama e estou concorrendo à presidência.” É o que se ouve na Escola Secundária de Algona, Iowa. “Vagou uma cadeira no Senado estadual na área onde eu morava, e algumas pessoas que eu conhecia na comunidade vieram me procurar e perguntaram se eu me interessava”, conta Obama. “Fiz o que todo negro faz diante de uma decisão importante como essa: fui rezar em busca de inspiração, e perguntei à minha mulher o que devia fazer.” (Risos.) “E, depois de consultar esses dois poderes supremos, fiz o que todo candidato estreante sempre faz, que é sair falando com qualquer pessoa que se disponha a escutar. Fui a reuniões de pais e mestres, a barbearias, a jogos infantis de beisebol e, em todos os lugares aonde eu ia, ouvia as mesmas duas perguntas. Primeira: ‘De onde vem esse seu nome estranho, Barack Obama?’ Isso porque as pessoas acabam se confundindo na pronúncia. Já me chamaram de Alabama, já me chamaram de Yo’Mama.” (Risos.) “Mas foi a segunda pergunta que me levou a ser candidato à presidência. As pessoas me perguntavam: ‘Você parece boa pessoa, tem um belo diploma de advogado, ganha muito dinheiro, tem uma linda família que vai todo domingo à igreja. Então por que quer entrar para uma coisa tão suja e desagradável como a política?'”

“Ele sempre quis ser presidente”, conta Valerie Jarrett, amiga da família há muitos anos, desde que contratou a mulher de Obama para trabalhar no gabinete do prefeito Daley. (Michelle atua hoje como executiva nos hospitais da Universidade de Chicago.) “Nem sempre admitiu, mas não há a menor dúvida. A primeira vez que ele me contou, disse: ‘Acho que eu tenho algumas qualidades especiais, e que seria uma pena desperdiçá-las’. Penso que foi no início da campanha dele para o Senado Federal. E mais tarde complementou: ‘Sabe, acho que eu tenho um jeito para isso’.”

“Algumas pessoas que sabiam do meu ativismo na comunidade me perguntaram se eu tinha interesse em concorrer àquele cargo”, diz Obama em Ames. “E então eu fiz o que qualquer homem sensato faz diante de uma decisão como essa: fui rezar pedindo inspiração, e perguntei à minha mulher o que ela achava.” (Risos.) No final de 2006, quando refletia sobre a decisão de concorrer, os amigos lhe perguntaram se ele estava pronto para a luta, se a idéia da disputa estimulava a sua adrenalina, e ele respondeu: “Sim, mas eu não sei se estou interessado em toda a controvérsia”. Não é a resposta que se espera de alguém que está embarcando numa campanha presidencial – que não quer controvérsia. “Mas é por isso que ele é tão simpático”, diz um amigo. “É essa a qualidade que as pessoas enxergam nele; todos estão vendo como a campanha pode ser estafante.” “Bill Clinton era muito mais versado nas táticas da política”, diz David Axlerod, o principal conselheiro da campanha de Obama. “Era um consumidor voraz de pesquisas. Claro, ele era tão incansável que era capaz disso, de ler quatro livros por semana e ainda ser presidente dos Estados Unidos. Ninguém jamais contrataria Barack como chefe de campanha. Mas Bill Clinton daria um ótimo chefe de campanha.”

E essa não é a única diferença entre Obama e Clinton. Comparar os dois ajuda a ver como um político por vocação, como os dois são definidos, pode ser muito diferente comparado a outro. “Bill Clinton tem um talento quase sobrenatural para escutar”, diz Robert Putnam. “Após conversar com Clinton, você sai pensando que pela primeira vez na vida alguém realmente ouviu o que você tinha a dizer – que Bill Clinton foi a primeira pessoa no mundo que te compreendeu. É uma coisa quase mágica.” Parte dessa qualidade, numa forma mais contida e sublimada, está presente também em Hillary Clinton – em seu desejo intenso de conquistar as pessoas, em sua preparação exaustiva, na disposição de dar tudo que é capaz para conseguir um voto.

O que não é nem de longe o estilo de Obama. Ele nunca dá mostras de avidez. Parece gostar de gente, mas não dá a impressão de precisar dos outros. Quando a maioria dos políticos fala a uma platéia, parece que vive para isso; Obama, em encontros locais, mostra-se empenhado mas com menos ardor, como se houvesse várias outras coisas que ele gostaria igualmente de fazer naquele dia. Quase sempre mantém na reserva o poder de oratória que demonstrou na Convenção de 2004. Mesmo nos grandes comícios atuais, nunca tenta deslumbrar ninguém – seus olhos não soltam chispas, suas mãos permanecem desvencilhadas e sempre abaixo da linha dos ombros, e ele nunca parece a ponto de ter uma experiência de mística.


Obama, é óbvio, está concorrendo à presidência dos Estados Unidos, mas isso não quer dizer que ele não esteja ávido por mais apoio: apenas sua maneira de conquistá-lo é mais sutil. Quando um dos redatores dos seus discursos, Jon Favreau, que trabalhou na campanha de John Kerry em 2004, foi entrevistado para o cargo, Obama lhe perguntou que teoria usava para compor os discursos. “Eu não tinha uma teoria grandiosa no bolso”, conta Favreau, “mas respondi: ‘Quando eu vi o senhor na Convenção, o que me chamou mais a atenção foi que contou uma história do começo ao fim do seu discurso – uma história de sua vida, sobre como ela se encaixa na história americana mais ampla – e chegou um ponto em que as pessoas queriam aplaudir, sem que o senhor precisasse fazer o tipo de declaração que sempre provoca aplausos. Os democratas não costumam fazer isso’. E Barack respondeu que era exatamente isso que ele tentava fazer.” Eis a teoria do discurso segundo Obama, e também, ao que parece, a sua teoria da campanha eleitoral: não tente obter muitos pontos o tempo todo, não se mate por um voto – uma campanha é um processo longo e lento, e você não precisa esgotar cada platéia, e tampouco descer do palco exausto.

Quando Christopher Edley conheceu Obama, na faculdade de direito, achou que ele iria longe porque era muito centrado. Mais tarde, quando leu o primeiro livro de Obama e viu o quanto ele desconfiava de si mesmo e dissecou a própria vida por anos a fio, achou que iria bem longe por causa disso. “A capacidade de reflexão a respeito de si mesmo é, na minha experiência, valiosíssima para um candidato ou um presidente”, diz ele. “É difícil descrever a alguém que nunca tenha se envolvido o quanto uma campanha presidencial é difícil. Quando você passa dia após dia voando de um canto a outro do país num tubo de alumínio a mais de 12 mil metros de altitude, a coisa mais fácil do mundo é se perder. E cada passo em falso pode se transformar em uma catástrofe midiática de 36 horas de duração, o que faz você passar a ter todos os motivos para desconfiar dos seus instintos, de maneira que ser sensível às suas forças e fraquezas e ter coragem de encará-las de frente ajudam muito cada vez que você enfrenta uma crise. Já vi candidatos procederem como um cervo congelado pelos faróis de um carro: não conseguem mais avançar e precisam ser conduzidos pela sua equipe. E também vi candidatos que, diante da adversidade, se transformam na mais teimosa das mulas e se mostram incapazes de se adaptar ou fazer qualquer ajuste. A maioria dos candidatos entra nos encontros perguntando a todo mundo: ‘Como estou indo? Como estou indo?’, sem a menor capacidade de se verem no espelho. Assim, a capacidade de ser brutalmente autocrítico, que Barack demonstra no seu livro, é uma qualidade de peso.”

“Muita gente entra na política com uma idéia. Obama entrou com um exemplo. O único político que ele analisa com certo vagar, no seu primeiro livro, é o negro que ocupava a prefeitura de Chicago quando se mudou para a cidade, em 1985: Harold Washington. Obama não fala da plataforma de Washington, e nem do que conseguiu realizar no exercício do cargo, fala do efeito que sua eleição teve sobre a comunidade negra. Quando chegou a Chicago, Obama percebeu que, por toda a área sul da cidade, as pessoas penduraram o retrato de Harold Washington na parede. “Na noite em que Harold venceu, vou lhes contar, as pessoas saíram correndo pelas ruas”, conta um barbeiro que Obama chama de Smitty. “Foi igual ao dia em que Joe Louis nocauteou Max Schmeling. O mesmo sentimento. As pessoas não estavam só orgulhosas de Harold. Estavam orgulhosas de si mesmas.” Ficou claro para Obama que a vitória de Harold Washington provocou nas pessoas um sentimento quase religioso de libertação. “Da mesma forma que a minha idéia de organização”, conclui o candidato, Harold Washington “prometia uma redenção coletiva.”

Mas a redenção é frágil. Depois da morte súbita de Washington, no meio do seu segundo mandato, sua obra desfez-se quase de imediato. “Não havia uma organização política montada, princípios claramente definidos a seguir”, escreve Obama. “A totalidade da política negra girava em torno de uma pessoa, radiosa como um sol.” Para um homem menos conservador, esse fracasso poderia acarretar um sentimento esmagador – uma demonstração da impossibilidade da mudança -, mas para Obama mostrou ser apenas uma prova adicional de que o carisma é enganoso, de que as revoluções são ilusórias, de que a verdadeira mudança é sempre lenta. Agora que ele próprio está concorrendo, é provável que saiba que tanto pode ser prejudicado como exaltado pelas expectativas elevadas, de modo que tenta, de maneira sutil, desestimulá-las. Obama tem os pés no chão. Se ele achasse que a sua vitória demandaria uma revolução, não seria candidato.

11 de abril de 2007

A única economia possível

Houve uma época em que o modo de produção capitalista representou um grande avanço sobre todos os anteriores, por mais problemático e de fato destrutivo que este avanço histórico no final tenha se revelado - e tenha de vir a se revelar. Ao quebrar a ligação direta, há muito prevalecente mas restritiva, entre o uso humano e a produção, e substituindo-a pela relação de mercadorias, o capital abriu as possibilidades de desenvolvimento dinâmico de uma expansão aparentemente irresistível para a qual - do ponto de vista do sistema do capital e das suas personificações voluntárias - não poderia haver limites concebíveis. Pois a determinação interior paradoxal e, em última análise, bastante insustentável do sistema produtivo do capital é que os seus produtos mercantilizados "são não-valores de uso para os seus proprietários e valores de uso para os seus não-proprietários. ... Portanto, as mercadorias devem ser realizadas como valores antes de poderem ser realizadas como valores de uso".

István Mészáros


Monthly Review Volume 58, Número 11 (Abril 2007)

1.

Tradução / No passado o modo de produção capitalista representou um grande avanço sobre todos os modos de produção precedentes, por mais problemático e na verdade destrutivo que este avanço histórico viesse a se tornar – e tinha que acabar se tornando. Ao romper o antigo, porém, limitante vínculo direto entre uso humano e produção, substituindo-o pela relação mercantil, o capital despertou possibilidades ocultas de expansão aparentemente irresistíveis para as quais – do ponto de vista do sistema do capital e de suas personificações – não poderia haver limites concebíveis. Pois a paradoxal e em última instância insustentável determinação intrínseca do sistema produtivo do capital é que os seus produtos mercantilizados “não são valores de uso para os seus proprietários e são valores de uso para os seus não-proprietários. Consequentemente, todos eles devem mudar de mãos... Portanto, as mercadorias devem necessariamente ser realizadas como valores antes que possam ser realizadas como valores de uso”.

Esta autocontraditória determinação interna do sistema, que impõe a submissão brutal das necessidades humanas às necessidades alienantes de expansão do capital, é o que impede a possibilidade do controle racional completo deste dinâmico sistema produtivo. O que acarreta perigosas e potencialmente catastróficas consequências em longo prazo, transformando finalmente este grande poder positivo de desenvolvimento econômico, inimaginável em tempos precedentes, numa devastadora negatividade sob a ausência do necessário controle reprodutivo.

O que é sistematicamente ignorado – e deve ser ignorado, devido aos inalteráveis imperativos fetichistas e aos interesses do próprio sistema do capital – é o fato inevitável de que vivemos num mundo finito com seus literais limites objetivos vitais. Por longo tempo na história humana, incluindo vários séculos de desenvolvimento capitalista, estes limites puderam ser – e de fato foram – ignorados com relativa segurança. Porém, uma vez que começam a se manifestar, como deve ocorrer enfaticamente em nossa irreversível época histórica, nenhum sistema produtivo irracional e predatório, não importa quão dinâmico (ou seja, quanto mais dinâmico pior), pode escapar às consequências. Pode-se apenas negligenciá-las por algum tempo através da própria reorientação rumo a uma rígida justificação do mais ou menos aberto imperativo destrutivo da autopreservação do sistema a todo custo. Isso se faz difundindo a visão do “não há alternativa”, com este espírito ignorando e, sempre que necessário, suprimindo brutalmente mesmo os mais óbvios sinais de advertência que prenunciam o futuro insustentável.

A falsa teorização é a consequência necessária desta determinação estrutural objetiva desequilibrada e da dominação do valor de uso pelo valor de troca, não só sob as mais absurdas e cegas condições do capitalismo contemporâneo, mas também no período clássico da economia política burguesa, na época de ascensão histórica do sistema do capital. Isto ocorre porque sob o domínio do capital uma produção ficticiamente ilimitada deve ser perseguida a todo custo, bem como justificada teoricamente como a única recomendável. Esta perseguição é imperativa mesmo não havendo garantia de que: 1) a “mudança de mãos” requerida e sustentável das mercadorias fornecidas realmente ocorrerá no mercado idealizado (graças à misteriosa “mão invisível” de Adam Smith); e 2) que as condições materiais objetivas para produzir a oferta ilimitada – e humanamente ilimitável, desde que em sua determinação primária prevalece o divórcio entre necessidade e uso – de mercadorias possa ser assegurada para sempre, independente do impacto destrutivo do modo de reprodução social metabólico do capital sobre a natureza.

A adequação ideal do mercado para retificar o defeito estrutural inalterável indicado acima no ponto 1 são reflexões posteriores gratuitas, que trazem consigo muitas suposições arbitrárias e projeções reguladoras impossíveis de serem cumpridas. A sóbria realidade subjacente ao mercado, como cura para estas reflexões posteriores, é um conjunto de relações de poder insuperavelmente adversas, tendentes à dominação monopolista e à intensificação dos antagonismos do sistema. Da mesma forma, o grave defeito estrutural de perseguir a expansão ilimitada do capital – idealizando o “crescimento” como um fim em si mesmo – como destacado acima no ponto 2, é complementado por uma igualmente fictícia reflexão posterior quando tem que ser admitido que algum remédio possa ser recomendável. E o remédio então projetado – como uma alternativa ao colapso do sistema dentro da irremediável negatividade do fatal “estado estacionário” teorizado pela economia burguesa no século XIX – é simplesmente a defesa generosa de tornar a distribuição “mais equitativa” (e, por isto, menos conflitiva), enquanto se deixa o sistema de produção tal como está. Esta proposta, mesmo se pudesse ser implantada – mas é evidente que não pode ser devido às fundamentais determinações hierárquico-estruturais da própria ordem do capital – não poderia resolver nenhum dos graves problemas de produção sobre os quais também se erguem as contradições insuperáveis do capital e do seu incurável sistema de distribuição.

Um dos principais representantes do pensamento liberal, John Stuart Mill, é tão sincero em sua preocupação com o “estado estacionário” do futuro, como irremediavelmente irrealista no remédio que propõe para este. Pois ele pode apenas oferecer vagas esperanças em sua discussão deste problema, que aparece como absolutamente inabordável do ponto de vista do capital. Ele escreve que “Eu espero sinceramente, para o bem da posteridade, que eles ficarão satisfeitos em estarem estacionários muito antes de serem obrigados a isto pela necessidade”.4 Deste modo, o discurso de Mill não passa de uma pregação paternalista, pois só pode reconhecer, em sintonia com a sua aceitação do diagnóstico malthusiano, as dificuldades oriundas do crescimento populacional, mas nenhuma das contradições da ordem reprodutiva do capital. Sua autocomplacência burguesa é claramente visível, destituindo sua análise e intenção paternalista de reforma de toda substância. Mill afirma peremptoriamente que “É apenas nos países atrasados do mundo que o aumento da produção ainda é importante: naqueles mais avançados, o que é economicamente necessário é uma melhor distribuição, para a qual o meio indispensável é um estrito controle da população”.5 Mesmo a sua ideia de “melhor distribuição” é irremediavelmente irrealista. Pois o que Mill possivelmente não pode reconhecer (ou admitir) é que o aspecto de importância fundamental da distribuição é a intocável repartição exclusiva dos meios de produção entre a classe capitalista. Compreensivelmente, portanto, sobre tal premissa operacional da ordem social prevalece sempre um sentimento paternalista de superioridade no sentido de que não se pode esperar qualquer solução “até que as melhores mentes tenham êxito em educar os outros”,6 de modo que aceitem o controle populacional e uma “melhor distribuição” que supostamente decorreria disto. Assim, o povo deveria esquecer tudo acerca de mudar as destrutivas determinações estruturais da ordem social metabólica estabelecida, que inexoravelmente conduz a sociedade em direção a um estado estacionário estagnado. No discurso de Mill, a utopia do milênio, com o seu estado estacionário sustentável, surgiria graças aos bons serviços das iluminadas “melhores mentes” liberais. E então, tanto quanto concerne às determinações estruturais da ordem social reprodutiva estabelecida, tudo continuará para sempre como antes.

Tudo isto faz algum sentido do ponto de vista do capital, por mais problemático e insustentável que este sentido acabasse por se mostrar, devido ao dramático início e cruel aprofundamento da crise estrutural do sistema. Mas mesmo o sentido parcial de algumas proposições esperançosas não será relacionado ao movimento político reformista que afirmava representar os interesses estratégicos do trabalho. Apesar disto, o movimento reformista socialdemocrático inicialmente se inspirava nestas reflexões a posteriori da economia política liberal, ainda que no início fossem genuinamente mantidas. Assim, devido à lógica interna das premissas sociais adotadas, que emanavam da ótica do capital e de seus interesses adquiridos como controlador imutável do metabolismo reprodutivo, no mínimo não seria surpreendente que o reformismo socialdemocrático completasse seu curso de desenvolvimento da forma que realmente o fez: transformando-se no “New Labour” (na Grã-Bretanha e seus equivalentes em outros países) e abandonando completamente qualquer preocupação mesmo com a mais limitada reforma da ordem social estabelecida. Ao mesmo tempo, em lugar do liberalismo genuíno, nesta fase histórica surgiram as mais selvagens e desumanas variedades de neoliberalismo, apagando a memória dos remédios sociais apregoados outrora – incluindo até as esperançosas soluções paternalistas – do passado progressista do credo liberal. E como uma amarga ironia do desenvolvimento histórico contemporâneo, os antigos movimentos reformistas socialdemocratas do tipo “New Labour” instalados no governo – não só na Grã-Bretanha, mas em todos os lugares do “avançado” e não tão avançado mundo capitalista – não hesitaram em identificar-se sem reservas com a fase neoliberal agressiva dos apologistas do capital. Esta transformação capitulatória marcou claramente o fim da via reformista que já se mostrava um beco sem saída desde o início.

2.

A fim de criar uma ordem social reprodutiva economicamente viável, e também historicamente sustentável em longo prazo, é necessário alterar radicalmente as determinações autocontraditórias intrínsecas à ordem estabelecida, que impõe a implacável submissão das necessidades humanas e de uso à necessidade alienante de expansão do capital. Isto significa que a precondição absurda do sistema produtivo dominante – por meio do qual os valores de uso, através de determinações de propriedade predeterminadas e totalmente iníquas, devam ser separados e opostos àqueles que os criam, para que produzam e legitimem circularmente/arbitrariamente a auto-realização ampliada do capital – tem que ser definitivamente relegada ao passado. Do contrário, o único significado viável de economia como utilização racional (economizing) dos recursos disponíveis e necessariamente finitos não pode ser instituído e respeitado como um princípio de orientação vital. Ao invés disto, a dilapidação domina a ordem socioeconômica – e a correspondente ordem política – do capital, que invariavelmente reafirma-se como irresponsabilidade institucionalizada, não obstante sua mitologia própria de “eficiência” absolutamente insuperável (para não haver dúvida, o tipo de “eficiência” glorificada desta maneira é de fato, em última instância, a eficiência autosolapadora do capital em conduzir cegamente as partes adversas/conflitivas ao custo incorrigível do todo). Compreensivelmente, portanto, as fantasias habilmente produzidas pelos governos de um “socialismo de mercado” tinham que fracassar na forma de um colapso humilhante, devido à aceitação de tais pressupostos e determinações estruturais capitalisticamente insuperáveis.

A concepção agora dominante de economia, que se mostra totalmente incapaz de estabelecer limites mesmo para os mais graves desperdícios, em nossa época numa escala verdadeiramente planetária, só pode operar através de tautologias autojustificadoras e arbitrariamente pré-fabricadas, bem como por falsas oposições e pseudoalternativas, rejeitadas simultaneamente, concebidas para o mesmo propósito de autojustificação do injustificável. Como uma grosseira – e perigosamente infectante – tautologia, nos é oferecida a definição arbitrária de produtividade como crescimento, e crescimento como produtividade, embora ambos os termos exijam por si próprios uma avaliação historicamente qualificada e objetivamente sustentável. Naturalmente, a razão do porque a óbvia falácia tautológica é preferível à necessária avaliação teórica e prática adequadas, é que ao decretar arbitrariamente a identidade destas duas expressões-chave de referência do sistema do capital a validade autoevidente e a superioridade atemporal de uma ordem social reprodutiva extremamente problemática – e em última análise até autodestrutiva – deveria parecer não só plausível como também absolutamente inquestionável. Ao mesmo tempo, a arbitrariamente decretada identidade tautológica de crescimento e produtividade é sustentada pela igualmente arbitrária e autojustificadora falsa alternativa entre “crescimento ou não crescimento”. Além disto, esta última é automaticamente prejulgada em favor do “crescimento” definido e postulado capitalisticamente. Ela é projetada e definida através de quantificação fetichista, como via adequada de pressupostos eternos, como autoglorificante sinônimo do próprio crescimento, nada mais específico e humanamente significativo do que a generalidade abstrata da expansão de capital ampliada como a precondição elementar para a satisfação das
necessidades humanas e de uso.

É aqui que se trai a si mesmo o divórcio incorrigível entre o crescimento capitalista e as necessidades humanas e de uso – na verdade, sua potencialmente mais devastadora e destrutiva contraposição às necessidades humanas. Uma vez que as mistificações fetichistas e postulados arbitrários que estão na raiz da categoricamente decretada falsa identidade de crescimento e produtividade são descartados, torna-se evidentemente claro que o tipo de crescimento postulado e ao mesmo tempo isentado de todo exame crítico não está de modo algum inerentemente conectado a objetivos sustentáveis correspondentes às necessidades humanas. A única conexão que deve ser afirmada e defendida a todo custo no universo metabólico social do capital é a falsa identidade da – aprioristicamente pressuposta – expansão do capital e do circularmente correspondente (mas, na verdade, também aprioristicamente pressuposto) “crescimento”, sejam quais forem as consequências impostas sobre a natureza e a humanidade até pelo mais destrutivo tipo de crescimento. Pois a preocupação real do capital só pode ser a sua própria eterna expansão ampliada, mesmo se isto trouxer consigo a destruição da humanidade.

Nesta visão, mesmo o mais letal crescimento canceroso deve preservar o seu primado conceitual sobre (contra) as necessidades humanas e de uso, se por acaso as necessidades humanas forem consideradas. E quando os apologistas do sistema do capital querem considerar The Limits of Growth7 - como fez o “Clube de Roma” em sua iniciativa de apologia do capital amplamente propagandeada no início da década de 1970, o objetivo inevitavelmente continua sendo a eternização das graves desigualdades existentes 8 mediante o fictício (e quixotesco) congelamento da produção global capitalista num nível totalmente insustentável, culpando primariamente o “crescimento populacional” (como costumeiro na economia política burguesa desde Malthus) pelos problemas existentes. Em comparação com estes “intentos de cura” insensíveis e hipócritas, que se pretendem retoricamente preocupados com nada menos do que “a Situação da Humanidade”, a pregação paternalista de Mill, anteriormente citada, com sua genuína defesa de uma distribuição mais equitativa do que aquela que lhe era familiar, aparece como o paradigma do iluminismo radical.

A característica falsa alternativa autojustificadora de “crescimento ou não crescimento” é evidente mesmo se considerarmos apenas o que seria o impacto inevitável do proposto “não crescimento” sobre as graves condições de desigualdade e de sofrimento na ordem social do capital. Isto significaria a condenação permanente da esmagadora maioria da humanidade às condições desumanas a que ela agora está sendo forçada a suportar. Pois ela é agora forçada, num sentido literal, a suportá-las aos milhares de milhões, quando poderia ser criada uma alternativa real para ela. Ou seja, quando seria perfeitamente factível retificar pelo menos os piores efeitos da privação global direcionando para o uso humanamente recomendável e recompensador o potencial de produtividade já alcançado, num mundo cujos recursos materiais e humanos são agora criminosamente desperdiçados.

3.

Na verdade, só podemos falar do positivo potencial de produtividade, e não do existente na realidade, como frequentemente mencionado com boas intenções coloridas de verde, mas com ilusões desmesuradas, por antiquados reformadores a asseverarem de modo anelante que poderíamos fazer o “correto já”, com os poderes produtivos à nossa disposição hoje, se realmente assim decidíssemos. Infelizmente, contudo, esta concepção ignora completamente o modo como o nosso sistema produtivo está presentemente articulado, exigindo no futuro uma rearticulação radical. Pois a produtividade vinculada ao crescimento capitalista, na forma da agora dominante realidade da produção destrutiva, é um de seus maiores adversários proibitivos. Para direcionar a potencialidade positiva do desenvolvimento produtivo para uma realidade muito mais necessária, de modo que possa retificar muitas das gritantes desigualdades e injustiças da sociedade existente, seria necessário adotar os princípios regulativos de uma ordem social qualitativamente diferente. Em outras palavras, o atual
destrutivamente negado potencial de produtividade da humanidade deveria ser libertado de seu invólucro capitalista para converte-se em poder produtivo socialmente viável. A quixotesca defesa de congelamento da produção ao nível alcançado no início da década de 1970 era uma tentativa de camuflar, com um vago modelo pseudocientífico criado no Massachusetts Institute of Technology, a brutal imposição das relações reais de poder do imperialismo do pós-guerra dominado pelos EUA. Naturalmente, esta variedade de imperialismo era muito diferente da forma anterior conhecida por Lênin.

Pois no tempo de Lênin pelo menos meia dúzia de significativos poderes imperialistas estava competindo pelas recompensas de suas conquistas reais ou esperadas. E mesmo na década de 1930, Hitler ainda estava disposto a partilhar os frutos do imperialismo violentamente redefinido com o Japão e a Itália de Mussolini. Ao contrário, em nosso tempo, temos que enfrentar a realidade – e os perigos letais – decorrentes do imperialismo hegemônico global, com os Estados Unidos como sua potência esmagadoramente dominante.9 Em contraste com Hitler, os Estados Unidos como hegemon único recusam-se a partilhar a dominação global com qualquer rival. E não se trata apenas de uma questão de contingências político-militares. Os problemas são muito mais profundos. Eles derivam das contradições permanentemente agravadas pelo aprofundamento da crise estrutural do sistema do capital. O imperialismo hegemônico global dominado pelos Estados Unidos é uma tentativa – em última instância fútil – de inventar uma solução para esta crise através do mais brutal e violento domínio sobre o resto do mundo, reforçado com ou sem a ajuda de “aliados servis”, agora através de uma sucessão de guerras genocidas. Desde a década de 1970 os Estados Unidos vem afundando, cada vem mais profundamente, num endividamento catastrófico. A solução fantasiosa proclamada publicamente por diversos presidentes dos EUA era “crescer para superar isto”. Porém, o resultado foi diametralmente oposto, na forma do endividamento astronômico e ainda crescente. Em consequência, os Estados Unidos devem apoderar para si próprios, por todos os meios disponíveis, incluindo a mais violenta agressão militar, sempre que necessária para tal propósito, de tudo o que puder, através da transferência dos frutos do crescimento capitalista de toda parte do mundo, graças à sua dominação socioeconômica global e político-militar. Será que alguma pessoa em sã consciência poderia então imaginar, não importa quão blindada esteja pelo menosprezo do “mito da igualdade”, que o imperialismo hegemônico global dominado pelos EUA consideraria seriamente, mesmo que por um momento, a panaceia do “não crescimento”? Somente o pior tipo de fé cega poderia sugerir tais ideias, não importando quão pretensiosamente empacotadas estejam nas hipócritas preocupações
acerca da “Situação da Espécie Humana”.

Por muitas razões não pode haver dúvidas sobre a importância do crescimento, tanto no presente como no futuro. Mas tal afirmação exige o exame adequado do conceito de crescimento, não somente daquele conhecido no presente, mas também como este pode ser encarado em sua sustentabilidade futura. Nosso respaldo à necessidade de crescimento não pode ser favorável ao crescimento não qualificado. A questão real tendenciosamente evitada é: que tipo de crescimento é plausível hoje, em contraste com o crescimento capitalista perigosamente depredador e mesmo debilitante visível ao nosso redor? Pois o crescimento também deve ser positivamente sustentável no futuro, numa base em longo prazo.

Como já mencionado, o crescimento capitalista é inevitavelmente dominado pelos limites inescapáveis da quantificação fetichista. O desperdício cada vez mais perdulário é um corolário necessário deste fetichismo, visto que não pode haver nenhum critério – nem nenhuma medida viável – através de cuja observância o desperdício possa ser corrigido. A quantificação mais ou menos arbitrária estabelece o contexto, criando ao mesmo tempo a ilusão de que, uma vez asseguradas as quantidades requeridas para os mais poderosos, já não haveria mais problemas significativos. Contudo, a verdade sobre esta questão, é que a quantificação auto-orientada, na realidade, não pode ser inteiramente mantida como uma forma de estratégia produtivamente viável sequer no curto prazo. Pois ela é parcial e míope (se não completamente cega), preocupada apenas com quantidades correspondentes aos obstáculos imediatos que impedem o cumprimento de determinada etapa produtiva, mas não com os necessariamente relacionados limites estruturais do próprio empreendimento socioeconômico, que – quer se saiba ou não – são os limites que em última instância decidem tudo. A confusão capitalisticamente necessária entre limites estruturais e obstáculos (que podem ser quantitativamente superados), a fim de ignorar os limites (já que estes correspondem a determinações insuperáveis da ordem social metabólica do capital), vicia a orientação de crescimento de todo o sistema produtivo. Viabilizar o crescimento exigiria aplicar-lhe considerações profundamente qualitativas. Mas isto é absolutamente impossibilitado pelo inquestionado e, inquestionável, impulso autoexpansionista desenfreado do capital, que é incompatível com a consideração restritiva da qualidade e dos limites.

A grande inovação do sistema do capital é que ele pode operar – não dialeticamente – através da dominação aniquiladora da quantidade: subsumindo tudo, inclusive o trabalho humano vivo (inseparável das qualidades da necessidade e do uso humanos), às determinações quantitativas abstratas, na forma de valor e de valor de troca. Então, tudo se torna vantajosamente equivalente e manejável por um determinado período de tempo. Este é o segredo – durante um longo tempo irresistível – do triunfo sócio-histórico do capital. Mas é também o arauto de sua insustentabilidade e necessária implosão final, logo que os limites do sistema estejam plenamente ativados, como deverá ocorrer progressivamente em nossa própria época histórica. É agora, em nosso tempo, que a dominação não dialética da qualidade pela quantidade torna-se perigosa e insustentável.

Por isto, em nosso tempo, é inconcebível ignorar a fundamental, mas sob o capitalismo necessariamente secundarizada, conexão inerente da economia como economização (que equivale a administração responsável). Chegamos agora a um ponto crítico na história, quando as personificações desejadas pelo sistema produtivo dominante fazem tudo ao seu alcance para eliminar a consciência desta conexão objetiva vital – optando pela destrutividade inegável, não somente pelo culto de práticas produtivas extremamente perdulárias, como também glorificando seu engajamento destrutivo letal em “guerras preventivas e antecipativas” sem limites.

A qualidade, pela sua própria natureza, é inseparável das especificidades. Consequentemente, um sistema social metabólico que respeita a qualidade – sobretudo das necessidades dos seres humanos vivos como sujeitos produtores – não pode ser regido hierarquicamente. Uma administração socioeconômica e cultural de tipo radicalmente diferente é exigida por uma sociedade operada com base em tal metabolismo reprodutivo qualitativamente diferente, brevemente sumarizado como autoadministração. A arregimentação era tanto factível quanto necessária à ordem social metabólica do capital. De fato, a estrutura de comando do capital não poderia funcionar de nenhum outro modo. A hierarquia estruturalmente assegurada e a arregimentação autoritária são as características definidoras da estrutura de comando do capital. A ordem alternativa é incompatível com a arregimentação e com o tipo de contabilidade – incluindo a estritamente quantitativa operação do tempo de trabalho necessário – que devem prevalecer no sistema do capital. Portanto, o tipo de crescimento necessário e factível na ordem social metabólica alternativa só pode ser baseado na qualidade diretamente correspondente às necessidades humanas: as necessidades reais e historicamente em desenvolvimento tanto da sociedade como um todo, quanto de seus indivíduos particulares.

Ao mesmo tempo, a alternativa à restritiva e fetichista contabilidade do tempo de trabalho necessário, só pode ser a liberação e emancipação do tempo disponível, conscientemente oferecido e administrado pelos próprios indivíduos sociais. Este tipo de controle social metabólico dos recursos materiais e humanos disponíveis – que pode realmente ser feito – respeitaria tanto os limites gerais decorrentes do princípio orientador da economia como economização; como, ao mesmo tempo, expandiria conscientemente estes limites e necessidades qualitativos conforme permitissem com segurança as condições históricas em desenvolvimento. Apesar de tudo, não deveríamos esquecer que “o primeiro ato histórico foi a criação de uma nova necessidade” (Marx). Só o modo descuidado do capital de tratar a economia – não como economização racional, mas como a mais irresponsável legitimação do desperdício ilimitado – é o que perverte totalmente este processo histórico, ao substituir a rica diversidade das necessidades humanas pela única e alienante necessidade real de autoreprodução ampliada a todo custo, ameaçando, assim, pôr fim à própria história humana.

4.

Não é possível introduzir na estrutura operacional do capital nem mesmo correções parciais, se estas são genuinamente orientadas para a qualidade. Pois as únicas qualidades relevantes a este respeito não são algumas características físicas abstratas, mas as qualidades humanamente significativas inseparáveis das necessidades. Naturalmente, como assinalado anteriormente, é verdade que tais características são sempre específicas, correspondendo a necessidades humanas particulares claramente identificáveis, tanto dos próprios indivíduos, como de suas historicamente dadas e cambiantes relações sociais. Consequentemente, na sua especificidade multilateral elas constituem um conjunto coerente e bem definido de determinações sistêmicas invioláveis, com seus próprios limites sistêmicos. É precisamente a existência destes limites sistêmicos – muito distante de abstratos – que impossibilita transferir qualquer determinação operacional e princípios orientadores significativos da ordem social metabólica alternativa considerada para o sistema do capital. Os dois sistemas são radicalmente excludentes entre si. Pois na ordem alternativa as qualidades específicas correspondentes às necessidades humanas trazem consigo as marcas indeléveis de suas determinações sistêmicas gerais como partes integrais de um sistema de controle reprodutivo social humanamente válido. Ao contrário, no sistema do capital, as determinações gerais devem ser inalteravelmente abstratas, porque a relação de valor do capital deve reduzir todas as qualidades (correspondentes às necessidades e ao uso) a quantidades genéricas mensuráveis, para afirmar sua dominação histórica alienante sobre tudo, no interesse da expansão do capital, independente das consequências.

As incompatibilidades dos dois sistemas tornam-se perfeitamente claras quando consideramos o seu relacionamento com o problema dos próprios limites. O único crescimento sustentável promovido positivamente sob o controle social metabólico alternativo é baseado na aceitação consciente dos limites, cuja violação ameaçaria a realização dos objetivos reprodutivos – e humanamente válidos – escolhidos. Portanto, o desperdício e a destrutividade (como conceitos limitantes claramente identificados) estão absolutamente excluídos pelas próprias determinações sistêmicas conscientemente aceitas, adotadas pelos indivíduos sociais como princípios orientadores vitais. Em contraste, o sistema do capital é caracterizado, e fatalmente orientado – consciente ou inconscientemente – pela rejeição de todos os limites, incluindo seus próprios limites sistêmicos. Mesmo estes últimos são arbitrariamente e perigosamente tratados como se fossem nada mais do que obstáculos contingentes sempre superáveis. Portanto, tudo neste sistema social reprodutivo aponta para a potencialidade – e em nossa época histórica, também para a possibilidade avassaladoramente grave – da destruição total.

Naturalmente, este relacionamento mutuamente excludente na questão dos limites prevalece também no outro caminho. Assim, não pode haver “corretivos parciais” emprestados do sistema do capital ao criar e fortalecer a ordem social metabólica alternativa. As incompatibilidades parciais – para não mencionar as incompatibilidades gerais – dos dois sistemas decorrem da incompatibilidade radical de sua dimensão de valor. Como mencionado acima, isto é assim porque as determinações particulares de valor e as relações da ordem alternativa não poderiam ser transferidas para a estrutura metabólica social do capital com o propósito de melhorá-lo, como postulado por algumas concepções reformistas absolutamente irreais, apregoadas à metodologia vazia do “pouco a pouco”. Pois mesmo as menores relações parciais do sistema alternativo estão profundamente embebidas nas determinações gerais de valor de uma estrutura completa de necessidades humanas cujo axioma elementar inviolável é a radical exclusão do desperdício e da destruição, de acordo com a sua natureza intrínseca.

Ao mesmo tempo, por outro lado, nenhum “corretivo” parcial pode ser transferido da estrutura operacional do capital para uma ordem genuinamente socialista, como o desastroso fracasso da aventura do “mercado socialista” de Gorbatchov dolorosa e conclusivamente demonstrou. Pois também a este respeito seremos sempre confrontados pela incompatibilidade radical de determinação de valor, mesmo se neste caso o valor envolvido seja o contravalor destrutivo, correspondendo aos limites finais – necessariamente ignorados – do próprio sistema do capital. Os limites sistêmicos do capital são perfeitamente compatíveis com o desperdício e a destruição. Pois tais considerações normativas só podem ser secundárias para o capital, enquanto determinações mais fundamentais prevalecem sobre estas preocupações. É por este motivo que a indiferença ao desperdício e à destruição presentes na origem do capital (nunca uma postura mais positiva que a indiferença) transforma-se na sua promoção mais ativa quando as condições exigem estas mudanças. De fato, o desperdício e a destruição devem ser buscados implacavelmente neste sistema, em subordinação direta ao imperativo de expansão do capital, que é o determinante sistêmico dominante.

Ainda mais quando suplantada a fase historicamente ascendente de desenvolvimento do sistema do capital. E ninguém deveria enganar-se pelo fato de que frequentemente a afirmação preponderante do contravalor seja dissimulada e racionalizada como “neutralidade de valor” pelos celebrados ideólogos do capital.

Portanto, é difícil entender como na época da malfadada “perestroika” de Gorbatchov, seu “ideólogo-chefe” (designado oficialmente por este nome) pudesse afirmar seriamente que o mercado capitalista e suas relações mercantis constituíam a personificação instrumental de “valores humanos universais” e um dos “maiores avanços da civilização humana”, acrescentando a estas grotescas afirmações capitulatórias, que o mercado capitalista era mesmo “a garantia da renovação do socialismo”.10 Estes teóricos dedicavam-se a falar sobre a adoção do “mecanismo de mercado”, quando o mercado capitalista era tudo menos um adaptável “mecanismo” neutro. Ele é, de fato, incuravelmente carregado de valor, e deve permanecer sempre assim. Neste tipo de concepção – curiosamente partilhada pelo “chefe da ideologia socialista” de Gorbatchov (e por outros) como os Friedrich Von Hayeks da vida, que denunciam violentamente qualquer ideia de socialismo como “O caminho para a servidão” (The Road to Serfdom)11 – a troca em geral era arbitrariamente e antihistoricamente equiparada com a troca capitalista, e a realidade cada vez mais destrutiva do mercado capitalista com um fictício “mercado” benevolente em geral.

Assim, quer percebessem ou não, eles acabaram capitulando ao idealizar os imperativos de um implacável sistema de necessária dominação de mercado (em última instância, inseparável das devastações do imperialismo) exigido pelas determinações intrínsecas da ordem social metabólica do capital. A adoção desta posição capitulatória foi igualmente expressa, porém, de modo ainda mais danoso, no documento de reforma de Gorbatchov, no qual insistiu que Não há alternativas ao mercado. Somente o mercado pode assegurar a satisfação das necessidades das pessoas, a distribuição justa da riqueza, direitos sociais e o fortalecimento da liberdade e da democracia. O mercado permitiria à economia soviética ligar-se organicamente a economia mundial e fornecer aos nossos cidadãos o acesso a todas as aquisições da civilização mundial.12

Naturalmente, dada a irrealidade completa do ilusório “não há alternativas” de Gorbatchov, e da expectativa na generosa oferta “ao povo” de todas aquelas maravilhosas supostas realizações e benefícios, em todos os domínios, do mercado capitalista global, esta aventura só poderia terminar, de forma humilhante, na mais completa implosão do sistema de tipo soviético.

5.

Não é de modo algum acidental ou surpreendente que a proposição do “não há alternativa” ocupe um lugar tão proeminente nas concepções políticas e socioeconômicas formuladas do ponto de vista do capital. Nem mesmo os maiores pensadores da burguesia – como Adam Smith e Hegel – foram exceções quanto a isto. Pois é absolutamente verdadeiro que a ordem burguesa, ou afirma-se com sucesso na forma da expansão dinâmica do capital, ou está condenada ao fracasso final. Realmente, do ponto de vista do capital, não pode haver nenhuma alternativa concebível à expansão infinita, determinando assim a visão de todos aqueles que a adotam. Mas a adoção deste ponto de vista também significa que a questão de “qual preço deve ser pago” pela expansão incontrolável do capital para além de certo ponto no tempo – uma vez que a fase ascendente de desenvolvimento do sistema tenha sido superada – não pode ser realmente considerada. Portanto, a violação do tempo histórico é a consequência necessária da adoção do ponto de vista do capital pela internalização dos imperativos expansionistas do sistema como seu mais fundamental e absolutamente inalterável determinante. Mesmo nas concepções dos maiores pensadores burgueses esta posição deve prevalecer. Não pode haver futura ordem social alternativa cujas características definidoras sejam significativamente diferentes daquelas já estabelecidas. É por isto que mesmo Hegel, que de longe formulou a mais profunda concepção histórica de sua época, deve também arbitrariamente pôr um fim à história no inalterável presente capitalista, idealizando o Estado-nação capitalista13 como o clímax insuperável de todo a desenvolvimento histórico concebível, apesar de sua aguda percepção das implicações destrutivas do sistema de Estados-nação como um todo.

Assim, no pensamento burguês não pode haver alternativa à decretação do pernicioso dogma do “não há alternativa”. Mas é totalmente absurdo para os socialistas adotar a posição da expansão infinita (e, por sua natureza, incontrolável) do capital. Pois a idealização corolária do “consumo” – novamente, caracteristicamente não qualificado– ignora a verdade elementar, que do ponto de vista acrítico favorável à autoexpansão do capital, não pode haver nenhuma diferença entre destruição e consumo. Uma é tão boa quanto o outro para o propósito exigido. Isto ocorre porque na relação capital, a transação comercial – mesmo aquela de tipo mais destrutivo, personificada nos produtos do complexo industrial-militar e no seu uso nas guerras desumanas – completa de forma exitosa o ciclo de autoreprodução ampliada do capital, permitindo iniciar um novo ciclo. Esta é a única coisa que realmente importa ao capital, independente de quão insustentáveis possam ser as consequências. Consequentemente, quando os socialistas internalizam os imperativos de expansão do capital como a base necessária do crescimento pretendido, eles não aceitam simplesmente um princípio isolado, mas um “pacote fechado” completo. Conscientemente ou não, eles aceitam ao mesmo tempo todas as falsas alternativas – como crescimento e não crescimento – derivadas da defesa acrítica da necessária expansão do capital.

A falsa alternativa do não crescimento deve ser rejeitada por nós não só porque a sua adoção perpetuaria a mais horrenda miséria e desigualdade que domina o mundo hoje, junto com as inseparáveis lutas e destrutividade que as acompanham. A negação radical desta abordagem só pode ser um ponto de partida necessário. A dimensão inerentemente positiva de nossa visão envolve a redefinição fundamental da própria riqueza tal como a conhecemos. Sob a ordem social metabólica do capital somos confrontados pelo domínio alienante da riqueza sobre a sociedade, afetando diretamente cada aspecto da vida, desde o estritamente econômico até os domínios culturais e espirituais. Consequentemente, não podemos sair do círculo vicioso do capital, com todas as suas determinações em última instância destrutivas e falsas alternativas, sem reverter completamente este relacionamento vital. Isto é, sem fazer a sociedade – a sociedade de indivíduos livremente associados – governar sobre a riqueza, redefinindo juntamente também a sua relação com o tempo e com o tipo de utilização que é dada aos produtos do trabalho humano. Como já escrevera Marx numa de suas primeiras obras:

Numa sociedade futura, na qual os antagonismos de classe terão desaparecido e na qual não haverá mais classes, o consumo [a utilização] não será mais determinado pelo tempo mínimo de produção; mas o tempo dedicado à produção de um artigo será determinado pelo grau de sua utilidade social.14

Isto significa uma ruptura irreversível com a visão da riqueza como uma entidade material fetichista que ignora os indivíduos reais que são os criadores da riqueza. Naturalmente, o capital – em sua falsa pretensão de ser idêntico à riqueza, como “criador e personificação da riqueza” – deve ignorar os indivíduos, a serviço da autolegitimação de seu próprio controle social metabólico. Desta forma, ao usurpar o papel da riqueza real e subverter a utilização potencial de sua possível alocação, o capital é o inimigo do tempo histórico. Isto é o que deve ser corrigido em benefício da própria sobrevivência humana. Então, todos os constituintes dos relacionamentos em desenvolvimento entre os indivíduos reais historicamente autodeterminados, juntamente com a riqueza que eles criam e alocam positivamente através da única modalidade de tempo viável – o tempo disponível – devem ser reunidos numa estrutura social metabólica qualitativamente diferente. Para utilizar as palavras de Marx:

A riqueza real é o desenvolvimento do poder produtivo de todos os indivíduos. A medida da riqueza já não é, de modo algum, tempo de trabalho, mas, ao contrário disso, tempo disponível. O tempo de trabalho como medida do valor coloca a própria riqueza como fundada sobre a pobreza, e o tempo disponível como existindo na e em decorrência da antítese com o tempo de trabalho excedente; ou, coloca todo o tempo de um indivíduo como tempo de trabalho, e, consequentemente, sua degradação como mero trabalhador, subsumindo-o no trabalho.15

O tempo disponível é o tempo histórico real dos indivíduos. Ao contrário, o tempo de trabalho necessário, exigido para o funcionamento do modo de controle metabólico social do capital é anti-histórico, negando aos indivíduos o único meio pelo qual eles podem afirmar-se e realizar-se como sujeitos históricos reais no controle de sua própria atividade vital. Na forma do tempo de trabalho necessário do capital os indivíduos estão subjugados ao tempo exercido como juiz tirânico e medida degradante, sem nenhuma corte de apelação, ao invés de serem julgados e avaliados por si próprios com base nos critérios qualitativos humanos “das necessidades dos indivíduos sociais”.16 O tempo anti-histórico e perversamente autoabsolutizante do capital sobrepõe-se assim à vida humana como um determinante fetichista que reduz o trabalho vivo a “carcaça de tempo”, como discutido em outro lugar, em relação “A Necessidade de Planejamento” (The Necessity of Planning). Então, o desafio histórico é avançar em direção à ordem social metabólica alternativa, afastando-se do domínio do tempo congelado do capital como determinante alienante, para tornar-se livremente determinado pelos próprios indivíduos sociais, que dedicam conscientemente os seus recursos de tempo disponível à realização de seus objetivos escolhidos, incomparavelmente mais ricos do que aqueles que poderiam ser lhes extorquidos através da tirania do tempo de trabalho necessário. Esta é uma diferença absolutamente vital. Pois somente os indivíduos sociais podem realmente determinar o seu tempo disponível, em contraste direto com o tempo de trabalho necessário que os dominam. A adoção do tempo disponível é a única forma concebível e justa pela qual o tempo pode ser transformado de determinante tirânico em constituinte autonomamente e criativamente determinado do processo de reprodução.

6.

Este desafio envolve necessariamente a supressão da divisão social do trabalho hierárquica imposta estruturalmente. Pois, enquanto o tempo dominar a sociedade, na forma do imperativo de extração de trabalho excedente de sua esmagadora maioria, o pessoal responsável por este processo deve levar uma forma de existência substancialmente diferente, em conformidade com sua função como executores satisfeitos do imperativo do tempo alienante. Ao mesmo tempo, a esmagadora maioria dos indivíduos é “degrada a meros trabalhadores, subsumidos pelo trabalho”. Sob tais condições, o processo de reprodução social deve afundar cada vez mais profundamente na crise estrutural, com as perigosas implicações finais de um caminho sem retorno possível.

O pesadelo do “estado estacionário” permanece um pesadelo mesmo que alguém tente aliviá-lo, como proposto por John Stuart Mill, através do ilusório remédio da “melhor distribuição”, tomada isoladamente. Pois não pode haver tal coisa como “melhor distribuição” sem uma reestruturação radical do próprio processo de produção. A alternativa socialista hegemônica ao domínio do capital exige fundamentalmente a superação da dialética truncada no inter-relacionamento vital de produção, distribuição e consumo. Pois sem isto, é inconcebível o objetivo socialista de transformar o trabalho na “primeira necessidade vital”. Para citar Marx:

Na fase superior da sociedade comunista, quando houver desaparecido a subordinação escravizadora dos indivíduos à divisão do trabalho e, com ela, o contraste entre o trabalho intelectual e o trabalho manual; quando o trabalho não for somente um meio de vida, mas a primeira necessidade vital; quando, com o desenvolvimento dos indivíduos em todos os seus aspectos, crescerem também as forças produtivas e jorrarem em caudais os mananciais da riqueza coletiva, só então será possível ultrapassar-se totalmente o estreito horizonte do direito burguês e a sociedade poderá inscrever em suas bandeiras: De cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades.17

Estes são os objetivos globais da transformação socialista que, simultaneamente, fornecem o compasso para a jornada e também a medida para os avanços alcançados (ou que deixem de ser alcançados) ao longo do caminho. Dentro desta visão de alternativa hegemônica à ordem social reprodutiva do capital não pode haver espaço para algo como “estado estacionário”, nem para nenhuma falsa alternativa associada ou derivada dele. “O desenvolvimento dos indivíduos em todos os seus aspectos”, exercendo conscientemente os recursos plenos de seu tempo disponível, dentro da estrutura do novo controle social metabólico orientado para a produção da “riqueza cooperativa”, providenciará a base de uma contabilidade qualitativamente diferente: a necessária contabilidade socialista, definida pelas necessidades humanas e diametralmente oposta à quantificação fetichista e ao concomitante desperdício inevitável.

Decorre disto a importância vital de um crescimento de tipo sustentável que possa ser reconhecido e administrado com êxito na estrutura social metabólica alternativa. Este controle metabólico da ordem social alternativa seria aquele em que a antítese entre trabalho físico e mental – sempre vital na manutenção da dominação absoluta sobre o trabalho pelo capital, como o usurpador da função de controle do sujeito histórico – deveria desaparecer para sempre. Consequentemente, a própria produtividade, conscientemente perseguida, poderia ser elevada a um nível qualitativamente superior, sem qualquer risco de desperdício incontrolável, trazendo avanço genuíno – e não meramente orientado para o lucro material – à riqueza da qual os “ricos indivíduos sociais” (Marx), como sujeitos históricos autônomos (e ricos precisamente neste sentido), estão no controle pleno.

No “estado estacionário”, em contraste, os indivíduos não podem ser sujeitos históricos genuínos. Pois eles não teriam o controle de suas próprias vidas, em função de estarem à mercê do pior tipo de determinações materiais, diretamente sob o domínio da escassez irremediável.

O desperdício sempre crescente – e catastrófico, em suas implicações finais – é inseparável, no sistema do capital, da forma irresponsável em que bens e serviços são utilizados, a favor da expansão lucrativa do capital. Perversamente, quanto mais baixa a sua taxa de utilização, maior é o alcance da substituição lucrativa – absurdo que decorre da alienada perspectiva do capital que é incapaz de uma distinção significativa entre consumo e destruição. Pois a destruição totalmente perdulária, da mesma forma que o consumo genuíno correspondente à utilização, podem ambos deflagrar e atender, da mesma maneira, à demanda exigida pela autoexpansão do capital para um novo ciclo lucrativo de produção. Entretanto, o momento da verdade chega, quando um alto preço deve ser pago pela administração criminosamente irresponsável do capital, no curso do desenvolvimento histórico. É neste momento que a adoção de uma taxa de utilização cada vez melhor e incomparavelmente mais responsável de bens e serviços produzidos – e, de fato, conscientemente produzidos, tendo em vista aquele objetivo vinculado às necessidades e usos qualitativamente humanos – torna-se um imperativo absolutamente vital. Pois a única economia viável – aquela que economiza de maneira significativa, sendo assim, sustentável, no futuro próximo e mais distante – só pode ser o tipo de economia racionalmente administrada e orientada pela utilização otimizada dos bens e serviços produzidos. Não pode haver nenhum crescimento de tipo sustentável fora destes parâmetros de administração racional orientada pelas necessidades humanas genuínas.

Para citar um exemplo crucialmente importante do que está incuravelmente errado a este respeito sob o domínio do capital, deveríamos pensar na forma em que o crescente número de automóveis é utilizado em nossas sociedades. Os recursos dissipados na produção e abastecimento dos automóveis são imensos sob o “capitalismo avançado”, representando a segunda despesa mais elevada – perdendo apenas para os compromissos hipotecários – das famílias. Contudo, de forma absurda, a taxa de utilização dos automóveis é inferior a um por cento (1%), justificada espuriamente pelos direitos exclusivos de posse conferidos aos seus compradores. Ao mesmo tempo, as alternativas reais perfeitamente praticáveis não são simplesmente negligenciadas, mas ativamente sabotadas pelos investimentos massivos de corporações semimonopolistas. Enquanto a simples verdade é que os indivíduos carecem (e não são supridos, apesar da pesada carga tributária imposta a eles) de serviços de transporte adequados, e não de mercadorias de posse privada, economicamente perdulárias e ambientalmente danosas que, além disto, os rouba incontáveis horas de vida em congestionamentos insalubres.

Evidentemente, a alternativa real seria desenvolver o transporte público a um nível qualitativamente superior, satisfazendo os necessários critérios econômicos, ambientais e de saúde pessoal, no contexto de um projeto racionalmente orientado. E, ao mesmo tempo, confinar o uso de automóveis – de propriedade coletiva e distribuídos adequadamente, não mais com base na posse exclusiva/perdulária. Assim, as próprias necessidades dos indivíduos – neste caso, a sua necessidade genuína de serviços de transporte adequados – determinaria as funções dos veículos e da infraestrutura de comunicação (como estradas, redes ferroviárias e sistemas de navegação) a ser construída e mantida, de acordo com o princípio de otimização da utilização, ao invés dos indivíduos serem dominados completamente pela necessidade fetichista do sistema estabelecido de lucrativa, mas definitivamente destrutiva, expansão do capital.

A questão inevitável, mas tendenciosamente evitada até o presente, da economia real, correspondendo às considerações apresentadas neste artigo, deve ser enfrentada num futuro muito próximo. Pois nos países do denominado Terceiro Mundo é impossível seguir o padrão de “desenvolvimento” perdulário do passado, que de fato condenou-os a suas precárias condições atuais, sob o domínio do modo de reprodução social metabólico do capital. O fracasso clamoroso das difundidas “teorias da modernização” e de suas correspondentes personificações institucionais demonstrou claramente a inutilidade deste enfoque.

7

Quanto a isto, pelo menos sob certo aspecto, vimos soar o alarme no passado recente – de modo característico, pressionando ao mesmo tempo pela afirmação e preservação absoluta dos privilégios dos países capitalistas dominantes. A preocupação é com a crescente demanda por fontes energéticas e com a intervenção competitiva de algumas grandes potências econômicas, sobretudo a China, no processo em curso. Hoje esta preocupação concerne primariamente à China, mas, naturalmente, com o passar do tempo, a Índia será incluída nesta lista de grandes países que inevitavelmente pressionarão por recursos energéticos vitais. E quando acrescentamos à China a população do subcontinente indiano, estamos falando de mais de dois bilhões e meio de pessoas. Naturalmente, se elas realmente seguissem a outrora grotescamente propagandeada prescrição de The Stages of Economic Growth,18 com sua grosseira defesa do “crescimento capitalista que conduz à maturidade”, as consequências para todos seriam devastadoras. Pois a sociedade integralmente motorizada de dois bilhões e meio de pessoas, com base no modelo norte-americano de “desenvolvimento capitalista avançado”, com mais de 700 automóveis para cada 1000 pessoas, significaria que estaríamos todos mortos antes que os benefícios globais “modernizantes” da poluição venenosa se propagassem, sem mencionar o esgotamento completo das reservas petrolíferas do planeta num átimo de tempo. Mas pelo mesmo sinal, num sentido oposto, ninguém poderia imaginar seriamente que estes países em questão pudessem ser relegados indefinidamente à condição em que se encontram atualmente. Imaginar que dois bilhões e meio de pessoas da China e do subcontinente indiano pudessem ser permanentemente condenadas às aflitivas condições em que se encontram, ainda mais, se submetidas a uma grande dependência da parte capitalista avançada do mundo, desafia toda a credulidade. A questão decisiva é saber se a humanidade pode encontrar uma solução racionalmente viável e verdadeiramente justa às demandas legítimas de desenvolvimento econômico e social dos povos envolvidos. Do contrário, a competição hostil e a luta destrutiva serão o caminho do futuro, como princípios operacionais e estrutura de orientação adequada ao modo de controle social reprodutivo do capital. Outro aspecto pelo qual o imperativo absoluto de adotar um modo qualitativamente diferente de organizar a vida econômica e social surgiu no horizonte de nosso tempo através da ecologia. Porém, novamente, o único meio viável de enfrentar os problemas crescentemente graves de nossa ecologia global – se quisermos enfrentar de modo responsável o agravamento dos problemas e contradições de nosso lar planetário, desde o impacto direto sobre questões vitais como o aquecimento global até demandas elementares por fontes de água limpa e ar respirável – é mudar da ordem existente de quantificação fetichista da administração perdulária para uma genuína ordem qualitativamente orientada. A ecologia, quanto a isto, é um aspecto importante, mas subordinado, da necessária redefinição qualitativa da utilização dos bens e serviços produzidos, sem a qual a defesa de uma ecologia permanentemente sustentável para a humanidade – um dever absoluto – não pode ser mais do que uma vã esperança.

O ponto final a enfatizar neste contexto é que a urgência de enfrentar estes problemas não pode ser subestimada, muito menos minimizada, dados os interesses do capital, sustentados pelas formações de Estados imperialistas dominantes em sua insuperável rivalidade entre si. Ironicamente, embora haja tanta conversa fiada sobre “globalização”, as exigências objetivas de criação de uma ordem reprodutiva de intercâmbios sociais racionalmente sustentável e globalmente coordenada são constantemente violadas. Contudo, dado o presente estágio de desenvolvimento histórico, permanece a verdade irreprimível de que em relação a todas as grandes questões discutidas neste artigo, estamos realmente preocupados com o crescente agravamento dos desafios globais, a exigirem soluções globais. Entretanto, nossa preocupação mais grave é que o modo de reprodução social metabólico do capital – em vista de suas determinações estruturais inerentemente antagônicas e de suas manifestações destrutivas – não é nada receptivo a soluções globais viáveis. O capital, dada a sua natureza inalterável, nada é a menos que possa prevalecer na forma de dominação estrutural. Mas a outra dimensão inseparável da dominação estrutural é a subordinação estrutural. Esta é a forma pela qual o modo de reprodução social metabólico do capital sempre funcionou e sempre tentará funcionar, acarretando mesmo as mais devastadoras guerras, das quais tivemos muito mais do que uma amostra em nossa época. A afirmação violenta dos imperativos destrutivos do imperialismo hegemônico global, através do outrora inimaginável poder destrutivo dos Estados Unidos como hegemon global, não pode fornecer soluções globais aos nossos problemas crescentemente graves, mas apenas o desastre global. Assim, a necessidade inevitável de corrigir estes problemas globais de um modo historicamente sustentável coloca na ordem do dia o desafio do socialismo no século XXI – a única alternativa hegemônica viável ao modo de controle social metabólico do capital.

Notas

3 Karl Marx, Capital, vol. 1 (Penguin Classics, 1992), 85.
4 John Stuart Mill, Principles of Political Economy (Prometheus Books, 2004), 751.
5 Mill, Principles, 749.
6 Ibidem.
7 Para citar este livro com o seu título completo e absolutamente pretensioso, conferir: Donella H. Meadows, et al., The Linits to Growth: A Report for the Club of Rome Project on the Predicament of Mankind (London : Earth Island Limited, 1972).
8 De forma reveladora, a principal figura teórica por trás desta iniciativa "limitadora do crescimento", foi o Prof. Jay Forrester, do MIT, que desdenhosamente descartou toda preocupação com a igualdade como mera "superstição igualitária". Ver sua entrevista no Le Monde de 1º de Agosto de 1972.
9 Ver István Mészáros, Socialism or Barbarism: From the “American Century” to the Crossroads (Monthly Review Press, 2001).
10 Vadim Medvedev, "The Ideology of Perestroika", in Perestroika Annual 2, Abel Aganbegyan (ed.) (London: Futura/Macdonald, 1989), 31-32.
11 O título do livro mais famoso da cruzada de Hayek.
12 Gorbatchov citado em John Rettie, "Only Market Can Save Soviet Economy", The Guardian, October 17, 1990.
14 Marx, The Poverty of Philosopy, in Marx-Engels Collected Works, vol. 6, 134.
15 Karl Marx, Grundrisse, 708.
16 Ibidem.
17 Karl Marx, Critique of Gotha Programme, in Marx and Engels, Selected Works, vol. 2, 23.
18 Ver Walt Rostow, The Stages of Economic Growth: A Non-Comunist Manifesto (Cambridge: Cambridge University Press, 1960.

István Mészáros é autor de Socialism or Barbarism: From the "American Century" to the Crossroads (Monthly Review Press, 2001) e Beyond Capital: Toward a Theory of Transition (Monthly Review Press, 1995). Este ensaio foi extraído de seu mais novo livro, The Challenge and Burden of Historical Time: Socialism in the Twenty-First Century (a ser publicado).

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