Catapultada de um status atrasado para a modernidade financeirizada, a Espanha é agora a última fronteira da crise da zona do euro. Surgimento da bolha econômica ibérica, distorções de seu padrão de crescimento — e erupção de protestos contra uma classe política complacente.
Isidro López e Emmanuel Rodríguez
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NLR 69 • MAY/JUNE 2011 |
Tradução / Antes da débacle de 2008, a economia espanhola era vista com grande admiração pelos comentadores ocidentais.[1] Segundo as metáforas pitorescas da imprensa financeira, o touro espanhol teve um desempenho muito melhor nos anos 1990 e no início dos anos 2000 do que os leões deprimidos da "velha Europa". Entre 1995 e 2005, 7 milhões de empregos foram criados e a economia cresceu a uma taxa de cerca de 4% ao ano. Entre 1995 e 2007, a riqueza nominal das famílias triplicou. A especialização histórica da Espanha nos setores imobiliário e de turismo parecia perfeitamente adequada à era da globalização, que, por sua vez, parecia sorrir para o país. A construção civil expandiu-se rapidamente seguindo a elevação acelerada dos preços dos imóveis, que cresceram 220% entre 1997 e 2007, enquanto o estoque imobiliário expandiu-se 30%, ou 7 milhões de unidades. A sensação de ser apenas o maior país da periferia do continente foi dissipada por uma nova imagem de modernidade, que não só alcançou, mas de certo modo ultrapassou, as expectativas europeias normais - pelo menos quando o dinamismo espanhol era comparado à rigidez das economias do centro da zona do euro. Some-se a isso o retorno ao poder, em 2004, do Partido Socialista, sob a liderança do jovem José Luis Rodríguez Zapatero, e o efeito de leis fundamentalmente "modernizadoras", como aquela a respeito do casamento entre pessoas do mesmo sexo, e a mistura adquire o buquê de um vinho tinto jovem: extremamente robusto no palato.
Em contraste, a crise financeira deu ao país uma imagem completamente diferente de si mesmo, cujos efeitos para a Europa ainda precisam ser calculados. A Espanha esteve por diversas vezes à beira de ser classificada como uma das economias da zona do euro que necessitará em algum momento de socorro financeiro, seguindo Grécia, Irlanda e Portugal. Seu setor de construção civil, que em 2007 representou cerca de um décimo do Produto Interno Bruto (PIB) do país, implodiu, deixando um estoque excessivo de casas não comercializadas maior do que o da Irlanda e o setor semipúblico de poupança e crédito [savings-and-loans] inundado de dívidas. Os efeitos do colapso do mercado imobiliário reverberaram em toda a economia: o desemprego está acima de 20%, e mais do que o dobro dessa taxa entre pessoas com menos de 25 anos. Uma recessão profunda foi combinada a medidas de austeridade draconianas, cujo objetivo, supostamente, é reduzir o déficit dos atuais 10% do pib para 3% até 2013. As sequelas políticas da crise estão colocando uma pressão adicional sobre as estruturas governamentais decentralizadas da Espanha, onde dezessete Comunidades Autônomas (CA) administram um percentual elevado do gasto público: na Catalunha e em outras regiões, os orçamentos das ca também estão incorrendo em déficits. A prostração do touro espanhol também tem implicações para toda a zona do euro. Com mais de 45 milhões de habitantes, a população da Espanha é quase o dobro das populações de Grécia, Irlanda e Portugal somadas. Sua economia é a quarta maior da zona do euro, com um pib de 1,4 bilhão de dólares, comparado a 305 bilhões da Grécia, 204 bilhões da Irlanda e 229 bilhões de Portugal. A escala de uma ajuda financeira para a Espanha, no caso de Madri enfrentar dificuldades para refinanciar suas dívidas, provavelmente aniquilaria as táticas atuais da zona do euro para lidar com sua periferia endividada - os mesmos empréstimos do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Central Europeu (BCE), sob duras condições, oferecidos a Grécia, Irlanda e Portugal com o objetivo de sustentá-los temporariamente, ao mesmo tempo que diminuem a exposição de grandes bancos alemães, franceses e ingleses. Até então, a aposta tem sido que, após uma dose de austeridade e reformas do mercado de trabalho, o modelo espanhol anterior à crise pode ser ressuscitado ainda mais enxuto e saudável. Seria esse um plano viável?
Arquitetos falangistas
A genealogia do modelo macroeconômico espanhol é complexa, irônica até. Suas origens remontam ao programa de modernização levado a cabo pela ditadura de Francisco Franco a partir do final dos anos 1950, que se fundamentava no desenvolvimento de um mercado de turismo de massa para o norte da Europa e na expansão radical da propriedade imobiliária. Essa "solução" para a eterna fragilidade competitiva da indústria espanhola foi uma anomalia notável no contexto de crescimento industrial que caracterizou o boom do pós-guerra no restante da Europa. Mas, conforme afirmou em 1957 o ministro da Habitação de Franco, o falangista José Luis Arrese: "Queremos um país de proprietários, não de proletários". Esse tatcherismo avant la lettre transformou o mercado imobiliário espanhol: nos anos 1950, o aluguel habitacional ainda era regra; em 1970, a propriedade imobiliária privada era responsável por 60% das moradias, dez pontos percentuais acima do nível do Reino Unido (Gráfico 1).
O legado da ditadura de Franco e a enorme debilidade da estrutura industrial do país não eram promissores, em um cenário de crescente competição nos mercados internacionais. A recessão iniciada em 1973 foi mais severa na Espanha do que na maior parte dos países europeus, sobrepondo-se à transição política que se seguiu à morte de Franco, em 1975. Mas o advento da democracia parlamentar não alterou a política macroeconômica. O Partido Socialista Obrero Español (PSOE), continuamente no poder entre 1982 e 1996, durante a presidência de Felipe González, não tinha modelo alternativo a propor. De fato, a estratégia para reativar a economia nos anos 1980 baseou-se no aprofundamento das "especializações" já existentes em turismo, no setor imobiliário e na construção civil, "vantagens competitivas" bem adaptadas às novas propostas da economia global ascendente: elevada mobilidade de capital e crescente competição pelas rendas financeiras.
Essa aposta foi efetivamente sancionada pelas outras potências europeias nas negociações que precederam a entrada da Espanha na Comunidade Econômica Europeia (CEE). Nesses acordos, que de fato constituíram uma agenda estratégica para o país, o governo González aceitou a desindustrialização parcial da economia em troca de subsídios extremamente generosos, que seriam responsáveis por 1%, em média, do PIU anual da Espanha entre 1986 e 2004. Conforme veremos, esses recursos desempenhariam um papel crucial na construção da infraestrutura (transporte, energia etc.) subjacente ao boom posterior da construção civil, a qual consumiu mais da metade do total dos subsídios. O período imediatamente anterior à integração à Comunidade Europeia, em 1º de janeiro de 1986, assistiu a um frenesi de investimentos, porque o capital europeu reconheceu a oportunidade aberta pelo ingresso dos países ibéricos na cee. Multinacionais alemãs, francesas e italianas ocuparam posições-chave na estrutura produtiva da Espanha, comprando a maior parte das grandes companhias do setor alimentício e das empresas do setor público que estavam sendo privatizadas, assumindo grande parte do setor dos supermercados e adquirindo o que restava das principais companhias industriais. Apenas os bancos, as empresas da construção civil e os monopólios estatais de eletricidade e telecomunicações permaneceram imunes à fúria de compra de ativos espanhóis.
O resultado dessa onda de investimentos (que gerou o primeiro período de crescimento contínuo desde 1973) foi um rápido superaquecimento dos mercados. A Bolsa de Valores de Madri assistiu a elevações de 200% entre 1986 e 1989, enquanto o mercado imobiliário da capital tornou-se um dos mais lucrativos do planeta. Paralelamente ao reaganismo nos Estados Unidos e ao thatcherismo na Grã-Bretanha, o ciclo econômico na Espanha sob González, entre 1985 e 1991, foi a primeira tentativa na Europa continental de crescimento por meio de bolhas de ativos financeiros e imobiliários, que teriam um efeito positivo sobre o consumo e a demanda domésticos, sem nenhum apoio significativo de uma expansão industrial.[2] A euforia não durou muito, no entanto. O déficit externo crescente e a ausência de um fundamento sólido para o crescimento acabaram desencadeando ataques especulativos contra a peseta espanhola, cujo valor o governo estava comprometido a manter a qualquer custo. A impressionante campanha publicitária em torno da pompa e cerimônia dos Jogos Olímpicos de Barcelona e da Exposição Universal de Sevilha, em 1992, provou-se incapaz de impedir a quebra dos mercados - seguida, finalmente, de uma série de desvalorizações cambiais agressivas. No começo dos anos 1990, a economia espanhola estava mais uma vez diante do problema de encontrar um caminho para o crescimento.
Impulso europeu
A partir desse momento, no entanto, a política macroeconômica espanhola seria crescentemente determinada em âmbito europeu, estruturada dentro do arcabouço dos critérios de convergência definidos para a união monetária e da doxa neoliberal consolidada no Tratado de Maastricht e em seus substitutos, aos quais tanto os governos do PSOE quanto os do Partido Popular (PP) deram apoio integral. A redução do gasto público, o regime de metas de inflação e a desregulamentação do mercado de trabalho, constantes no Tratado de Maastricht, permitiram a recuperação dos lucros financeiros, mas criaram novos problemas de estímulo da demanda das economias um tanto lentas da Europa. O ritmo da recuperação da economia espanhola após 1995 (acelerando a partir de 1997 para crescer 5% ao ano, em média, entre 1998 e 2000) não pode ser explicado, pois, pela implementação local das recomendações neoliberais. Ele assenta-se, na realidade, na capacidade das novas rodadas de valorização imobiliária e engenharia financeira de resolver, ainda que apenas temporariamente, diversas contradições inerentes à articulação caótica das próprias receitas neoliberais.
Quatro fatores foram decisivos. Primeiro, taxas de juros baixas, visto que o Tratado de Maastricht e o controle dos déficits públicos - assim como as demandas das grandes companhias financeiras, mais interessadas em angariar fregueses para seus novos produtos (tais como fundos de pensão e de investimento) do que em fortalecer as posições dos credores típicos dos anos 1980 - levaram a uma queda contínua do preço do crédito. A Espanha começou então uma longa jornada que a retiraria da condição de ostentar as taxas de juros mais elevadas da Europa para torná-la o país com os níveis mais elevados de endividamento interno do continente. Em segundo lugar, a união monetária e a incorporação definitiva à zona do euro em 1999-2002 garantiram à economia espanhola uma proteção internacional, dotando-a de forte capacidade de compra no estrangeiro e marginalizando a importância de seu déficit externo no contexto do superávit relativo da União Europeia (UE). Em terceiro lugar, a política liberalizante da ue determinou a privatização de empresas estatais em setores estratégicos, como eletricidade e telecomunicações. Enfim, a privatização das empresas estatais equivalentes da América Latina, frequentemente imposta a esses países por pacotes de ajuste do FMI, abriu oportunidades significativas para a internacionalização das principais companhias espanholas. Com a ajuda do poder de compra do euro, a grande bourgeoisie da Espanha tornou-se global, recolonizando os mercados latino-americanos afetados pela crise de 1998-2001 e abocanhando empresas locais a preço de banana. Os dois maiores bancos espanhóis, BBVA e Santander, tornaram-se os maiores da América ibérica, assim como a Telefónica e as empresas de eletricidade de Madri tornaram-se as maiores, em seus respectivos setores, nessa região. Em outras palavras, o arcabouço estabelecido pelo Tratado de Maastricht e pelo euro abriram a porta para o reposicionamento financeiro da economia espanhola dentro da divisão internacional do trabalho e também para aquilo que se tornaria seu elemento central: o ciclo de valorização imobiliária.
De um ponto de vista analítico, os mecanismos que permitiram que a bolha imobiliária se tornasse o motor doméstico da expansão econômica nesse período, removendo os problemas de formação de demanda em um contexto dominado por políticas de austeridade neoliberais, são incompreensíveis para a teoria econômica ortodoxa. O conceito sugestivo "keynesianismo de preço de ativos", emprestado da análise de Robert Brenner sobre a economia dos Estados Unidos entre 1995 e 2006, oferece uma visão mais frutífera.[3] De fato, esse keynesianismo, combinado com mecanismos que associam os valores elevados dos ativos privados ao crescimento da demanda privada interna, permite-nos explicar o relativo sucesso da economia espanhola durante esse período. Sua força motriz encontra-se precisamente nos chamados "efeitos-riqueza" criados pelo crescimento do valor dos ativos financeiros e imobiliários das famílias. Enquanto estes continuavam a aumentar, eles poderiam sustentar um "círculo virtuoso" duplo de aumento da demanda agregada e dos lucros financeiros, sem elevação de salários e gasto público.
Nesse sentido, o caso espanhol pode ser considerado um laboratório internacional. Diferentemente das tentativas anteriores, em outros lugares, de financeirização das poupanças das famílias, a novidade do experimento espanhol foi a escala do modelo, que se baseou desde o princípio na grande disseminação da propriedade imobiliária privada, a qual em 2007 atingiu 87%. Em comparação, nos Estados Unidos e no Reino Unido, o percentual de casas próprias nunca ultrapassou 70%. Além disso, cerca de 7 milhões de famílias espanholas (os 35% da população que são a "verdadeira" classe média) detêm duas ou mais casas. A valorização contínua dos preços das casas, crescendo em média 12% ao ano ao longo da década de boom entre 1997 e 2007, e uma expansão do crédito que quebrou recordes sustentaram uma elevação histórica do consumo das famílias que detinham propriedades, as quais, no caso da Espanha, constituíam a vasta maioria da população (Gráfico 2)[4].
Em suma, entre 1997 e 2007, os déficits foram transferidos de forma decisiva do Estado espanhol para as famílias, as quais, nos anos finais do ciclo, tornaram-se demandantes líquidas de financiamento. (Essa posição de poupança negativa, casada com elevado investimento em habitação e infraestrutura, mais uma vez abusa do arcabouço interpretativo da teoria econômica ortodoxa.) Paralelamente a isso, o patrimônio nominal nas mãos das famílias mais do que triplicou na esteira do aumento espetacular dos preços das casas, da expansão do crédito e do rápido crescimento do estoque de habitação.[5] De acordo com o FMI, o "efeito riqueza" espanhol traduziu-se em um aumento médio anual de 7% do consumo privado, entre 2000 e 2007, comparado a 4,9% no Reino Unido, 4% na França, 3,5% na Itália e 1,8% na Alemanha. Enquanto isso, o emprego, estimulado tanto pela construção civil quanto pelo consumo, registrou uma taxa de crescimento acumulada de 36%, maior do que em qualquer outro período histórico e bem acima das taxas dos outros países da UE. E tudo isso no contexto de uma queda de 10% no salário real médio, a ponto de o ingresso de 7 milhões de novos trabalhadores no mercado de trabalho produzir um aumento de apenas 30% na folha salarial total.
A economia espanhola parecia estar se adaptando proveitosamente ao novo contexto da desregulamentação financeira internacional. A relativa estagnação da produtividade ao longo do período entre 1997 e 2007 e a eterna carência de competitividade internacional de sua indústria não eram obstáculos ao crescimento. Pelo contrário, na medida em que a maior parte do desenvolvimento econômico ocorria em setores cujos produtos são não transferíveis, como o mercado imobiliário e os serviços pessoais, produtividade e competitividade tornavam-se variáveis irrelevantes. Pode-se dizer que o sucesso da Espanha estava baseado em uma inversão prática da clássica estratégia schumpeteriana de renda pela inovação. Ao mesmo tempo, a fórmula "crescimento dos lucros sem investimento"[6] (que alguns utilizaram para sintetizar a financeirização das economias centrais) é menos aplicável ao modelo espanhol, no qual aquilo que David Harvey chama de circuito secundário de acumulação desempenha um papel crucial.[7] De fato, o "milagre" espanhol só pode ser compreendido como uma combinação da recuperação dos lucros (e também da demanda) por meio de vias financeiras com o envolvimento generoso de mecanismos de acumulação operando através do ambiente construído e da construção residencial.
Enquanto isso, dentro da zona do euro, o papel da Espanha durante os anos da bolha era fornecer retornos recordes para o capital do norte da Europa, sobretudo da Alemanha, da França e da Grã-Bretanha. Entre 2001 e 2006, capitais estrangeiros investiram uma média de 7 bilhões de dólares por ano nos ativos imobiliários espanhóis, ou o equivalente a quase 1% do pib da Espanha, grande parte em segundas casas ou investimentos de cidadãos britânicos e alemães. Níveis elevados de demanda doméstica, impulsionados pelo keynesianismo de preço de ativos, também garantiam mercados importantes para exportações alemãs. Junto com Itália, Grécia, Portugal e Irlanda, a Espanha enfrentou um déficit crescente de sua balança de pagamentos, atingindo mais de 9% do pib entre 2006 e 2008, a maior parte devido a importações europeias.[8] Eis os efeitos paradoxais da sobrevalorização do euro a partir de 2003, que (enquanto minava a capacidade de exportação da zona do euro para além de suas fronteiras) na realidade garantia o poder de compra interno de seus países periféricos do sul, inclusive da Espanha. Segundo a Eurostat, calculando-se em termos de paridade de poder de compra, a renda per capita da Espanha era maior do que a da Itália, quase igual à da França e apenas 10% menor do que a da Alemanha e a da Grã-Bretanha. Em uma escala minúscula se comparada à circulação monetária entre a China e os Estados Unidos, estabeleceu-se uma simbiose dentro da zona do euro entre os polos superavitário e deficitário do capitalismo europeu. Nesse caso, importações dos países do sul, principalmente provenientes da Alemanha, eram em parte financiadas pela compra de ativos imobiliários e financeiros desses países (especialmente da Espanha) pelo norte. Nesse contexto, não é surpreendente que a percepção generalizada na Espanha era a de que se havia deixado o status periférico para trás, de uma vez por todas. Para as novas gerações, bastava viajar pela Europa para perceber que as diferenças haviam se tornado marginais e que a prosperidade e a modernidade, se é que existiam, podiam ser encontradas tanto no lado espanhol dos Pirineus quanto no outro.
Apoio estatal
A intervenção estatal cumpriu um papel crucial ao lubrificar as diferentes partes do circuito imobiliário para manter uma oferta habitacional que crescia permanentemente. A Ley de Suelo de 1998, mais comumente conhecida como lei "construa em qualquer lugar", acelerou enormemente os procedimentos para obtenção de permissão para construir e disponibilizou uma imensa área para a construção civil. De modo similar, políticas de redução do estoque de habitação pública, de marginalização dos aluguéis e de concessão de isenção tributária para compra de moradia haviam se tornado o centro da política habitacional do governo durante os 25 anos anteriores. Reformas sucessivas do mercado de hipotecas e do arcabouço legal também facilitaram a expansão da securitização, uma área na qual a Espanha está em segundo lugar na Europa, atrás apenas do Reino Unido. O imenso investimento em infraestrutura de transporte, que deu à Espanha proporcionalmente mais quilômetros de rede rodoviária e ferroviária de alta velocidade do que qualquer país europeu, desempenhou um papel importante ao abrir amplas áreas de terra urbanizável que anteriormente não tinham valor real no mercado. Adicione-se a isso uma política ambiental negligente, pouco inclinada a colocar obstáculos no caminho da urbanização, e subsídios para desperdiçar energia e água em empreendimentos imobiliários ineficientes, e fecha-se o círculo, com o Estado garantindo e regulando o funcionamento suave do circuito financeiro-imobiliário.
A dependência do crescimento econômico na bolha dos preços dos ativos imobiliários teve um efeito substancial nas divisões sociogeográficas do país (Gráfico 3). No contexto da estrutura administrativa altamente descentralizada da Espanha, na qual as CA regionais e os governos municipais têm amplas competências sobre desenvolvimento urbano, meio ambiente e transporte, unidades locais operam tipicamente como máquinas de crescimento em competição umas com as outras. De fato, governos locais tornaram-se impulsionadores de suas localidades, os principais anunciantes, tanto para a população quanto para toda a classe dos investidores, dos benefícios milagrosos advindos do crescimento frequentemente mal planejado ou desproporcional. Para ilustrar os inúmeros casos que combinaram inflação irracional dos investimentos com projeções futuras irrealistas, basta mencionar os planos (em andamento) de construir um megacomplexo de cassino, à maneira de Las Vegas, na região árida do interior do vale do Ebro, ou o desenvolvimento de oito superportos, com seus respectivos centros logísticos, em um litoral que tem espaço, no máximo, para duas instalações desse tipo.
Os custos ambientais desse modelo de crescimento são incalculáveis. As consequências da construção em massa de habitações nas regiões turísticas tradicionais (o litoral e os dois arquipélagos, Canárias e Baleares) geraram faixas de tecido urbano contínuo ao longo da costa, com entre dois e cinco quilômetros de largura e estendendo-se continuamente por cem quilômetros ou mais ao longo da costa do Sol e da costa do Alicante. Mesmo em áreas relativamente marginais, a construção de segundas casas e de complexos de turismo verde devastou regiões com grande valor ambiental, como o contraforte dos Pirineus e as cordilheiras do interior. Quanto ao consumo de terra, as chamadas superfícies artificiais expandiram 60% entre 1986 e 2006.[9]
A política da bolha
Os anos do boom serviram também para exacerbar antigas fraturas e desequilíbrios territoriais no sempre complicado quebra-cabeça espanhol. Um elemento da bolha imobiliária foi o escoamento renovado da população para o litoral e as grandes cidades, enquanto quase 75% dos territórios do interior continuam a perder habitantes. Hierarquias urbanas existentes foram reforçadas: Madri, a cidade mais beneficiada pelos anos de crescimento, é agora o centro de uma região metropolitana com mais de 6 milhões de habitantes e tornou-se a terceira maior cidade europeia em termos demográficos e econômicos. Além de ocupar uma posição central no "circuito secundário" da acumulação financeira espanhola, Madri abriga a sede da maioria das grandes multinacionais espanholas que operam na América Latina e na Europa. É uma "cidade global" emergente. Em comparação, a maior parte das outras grandes cidades da Espanha foi relegada a posições secundárias, colocando suas energias em diferentes estratégias de "empreendedorismo urbano", com o objetivo de capturar rendas locacionais do turismo internacional.[10] Barcelona tornou-se o exemplo global dessa estratégia: suas políticas anteriores e posteriores aos Jogos Olímpicos de 1992 foram "exportadas" para a América Latina, em particular, como o grande modelo de regeneração urbana e duplicadas, com resultados contraditórios, em Medellín e Valparaíso. Mas o sucesso relativo de Barcelona nessa área ainda é uma vitória de Pirro, quando considerado em conjunto com seu declínio de longo prazo como o principal centro industrial da Espanha.[11]
Politicamente, o efeito também foi a exacerbação das rivalidades territoriais e a inflamação das reivindicações particularistas de nacionalismos periféricos a respeito de questões como impostos, transporte, configuração regional e água, cuja oferta é escassa em dois terços do país. Ao mesmo tempo, um consenso completo prevaleceu entre os partidos principais acerca dos méritos do modelo econômico espanhol. A classe política local tem exibido historicamente uma complacência extraordinária nessa matéria. O estímulo à elevação dos valores dos imóveis era considerado uma questão de Estado, algo almejado tanto pelos governos do PSOE (1982-1996, 2004 até o presente) quanto pelo governo do PP sob Aznar (1996-2004). Em nível regional, a ca de Andaluzia, governada pelos socialistas, estava tão envolvida na concessão de empréstimos e permissões para construir para as incorporadoras imobiliárias quanto as administrações linha-dura do PP em Múrcia e Valência, ou os grandes empresários nacionalistas catalães do Partido Convergência e União (CIU), na Catalunha. Quando o CIU foi substituído, entre 2003 e 2010, por uma coalizão entre os socialistas e dois partidos menores (a Esquerda Republicana e o ambientalista Iniciativa para a Catalunha - Verdes), as práticas de valorização imobiliária continuaram inalteradas.
Os principais credores hipotecários eram as 45 cajas de ahorros, bancos semipúblicos de poupança e crédito administrados por depositantes, empregados e representantes políticos locais. Conselhos regionais e distritais podiam ganhar importantes receitas pela alteração do zoneamento de áreas não exploradas, permitindo o desenvolvimento urbano, e da venda subsequente da terra para uma incorporadora imobiliária, que pagaria por ela com empréstimo de uma caja administrada pelos mesmos conselheiros ou seus amigos. Com os preços das casas subindo, em média, 12% ao ano, o negócio parecia infalível. A natureza bipartidária do processo era exemplificada em Valência, onde a administração do PP implementou uma legislação extremamente agressiva para expropriar pequenos proprietários de terras, a fim de reunir os grandes terrenos requeridos por uma grande incorporadora. A legislação havia sido esboçada pelo governo federal do PSOE e foi utilizada em várias outras ca governadas pelo PSOE. Corrupção e nepotismo correram soltos: familiares e amigos do PP de Valência e do PSOE da Andaluzia estiveram entre os mais notórios beneficiários.[12]
Mas, se ambos os principais partidos, o PSOE e o PP, estão enredados no modelo de keynesianismo de preço de ativos da Espanha, foi o talante (abordagem, desenvoltura) de José Luis Rodríguez Zapatero que caracterizou especialmente os anos de boom, primeiro, e o crash, depois. A Espanha foi o único país europeu onde as mobilizações de massa contra a invasão norte-americana, britânica e espanhola do Iraque, em 2003, surtiram (tardiamente) algum efeito eleitoral. No ano seguinte, a tentativa de Aznar de culpar o grupo basco eta pelos ataques a bomba islâmicos, de 11 de março, que mataram 192 pessoas na estação ferroviário central de Madri, provocou uma imensa mobilização social, diretamente relacionada àquelas do ano anterior contra a participação da Espanha na Guerra do Iraque e o autoritarismo narcisista do governo Aznar. O resultado foi uma inversão de posição dos dois partidos nas pesquisas de opinião e a vitória devastadora de Zapatero. A mobilização refletiu a ascensão dos setores profissionais que haviam crescido graças à modernização acelerada do país e, especialmente, de uma nova geração, afetada em maior ou menor grau pela insegurança em relação ao emprego e geralmente mais instruída e secular do que seus pais.
A imagem progre[13] da Espanha de Zapatero foi alimentada por políticas como abertura de "diálogo" com os sindicatos, um salário simbólico para as auxiliares de enfermagem, uma lei sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo e gestos iniciais na direção de uma trégua com o eta. Zapatero cumpriu sua promessa de retirar as tropas espanholas do Iraque, mas compensou mandando-as para o Afeganistão. No entanto, ele se desentendeu com o grupo de mídia PRISA (El País, Digital+, Cadena ser), que até então sempre apoiara os socialistas, e ficou dependente do apoio de um novo jornal, Público, e do canal de televisão La Sexta. Desde o começo, o sucesso de Zapatero estava ligado ao uso consciente de estratégias de marketing político. O talante do novo governo era essencialmente cosmético. O gasto social foi muito levemente aumentado, mas não a ponto de pôr em risco os lucros financeiros ou a renda dos executivos super-remunerados das multinacionais sediadas na Espanha. Nenhuma alternativa foi desenvolvida ao modelo de Estado federal embaraçado por tensões entre nacionalismos periféricos e um nacionalismo espanhol centralizador, uma interação que estava se tornando crescentemente preocupante, mas que ainda assim funcionava com relação às máquinas locais de valorização imobiliária. Tampouco houve qualquer tentativa de controlar o mercado imobiliário cada vez mais superaquecido - muito menos de construir um modelo alternativo. Na eleição de 2008, o PSOE ampliou levemente sua parcela dos votos, recebendo 43,6% do total, em comparação com 42,6% em 2004. Mas esse aumento deve ter vindo principalmente do partido de esquerda Izquierda Unida, cuja votação caiu de 5% em 2004 para 3,8% em 2008, enquanto os votos do PP aumentaram de 37,7% em 2004 para 40,1% em 2008.
Inseguranças
Contanto que o crédito fluísse e os preços continuassem a ser sustentados pela bolha, parecia pouco importante que o gasto social fosse extremamente baixo, que os salários tivessem estagnado ou até caído ou que o mercado de trabalho espanhol apresentasse uma das maiores taxas de contratos temporários da Europa. (As taxas de desemprego cronicamente altas da Espanha, entre 8% e 12% na maior parte do início dos anos 2000, na realidade reflete altas taxas de emprego temporário, afetando mais de um terço da força de trabalho, e a alta participação em setores sazonais, como turismo. Em outras palavras, alta rotatividade em empregos incertos, em vez de desemprego estrutural.) Valores ascendentes dos imóveis vieram complementar um sistema previdenciário com financiamento insuficiente como uma garantia para a idade avançada. Jovens, frequentemente forçados a adiar a saída da casa dos pais, podem entretanto esperar se beneficiar do valor crescente das propriedades da família, seja na forma de herança, de investimento familiar ou de ajuda paterna na obtenção de uma hipoteca.
O problema de oferecer assistência, na ausência de provimento público decente, foi facilitado pela chegada à Espanha de um exército gigante (de alguns milhões de pessoas) de trabalhadoras domésticas transnacionais. Essas mulheres, na maior parte sem permissão de residência, assumiram o cuidado das crianças, dos idosos e dos deficientes e cumpriram as tarefas domésticas em milhões de casas da classe média. Em 2010, havia cerca de 6 milhões de estrangeiros na Espanha. A população do país passou, em apenas dez anos, de 39,5 milhões a quase 47 milhões, um salto de mais de 18%. Dos ingressantes, 2,67 milhões são cidadãos da União Europeia, em grande parte dos novos Estados-membros (quase 800 mil apenas da Romênia); 2 milhões da América Latina, principalmente do Equador, da Colômbia e da Bolívia; 1 milhão da África e do Magreb, incluindo 650 mil marroquinos. Que indício melhor do fato de que a Espanha havia deixado para trás o seu status periférico tradicional do que a chegada de sua primeira onda de imigração em massa? Conforme esperado, os imigrantes ocuparam em grande parte os empregos de baixa remuneração da construção civil, da agricultura, dos trabalhos domésticos e também dos serviços sexuais. Um sistema complexo de permissões de residência, cotas de empregos e fronteiras europeias e internas subordinou habilmente esses trabalhadores às necessidades de uma economia em expansão, criando períodos longos, às vezes de uma vida inteira, de exclusão da cidadania, o que os deixava indefesos no mercado de trabalho.[14]
Contudo, à medida que gradualmente estabeleceram a si e a suas famílias a partir do início dos anos 2000, os imigrantes também foram convidados a participar da bonança imobiliária. Junto com os jovens nascidos nos anos 1970 (os baby boomers pós-Franco), eles estimularam e sustentaram os anos finais do ciclo: os subprimes espanhóis consistiram em conceder pelo menos 1 milhão de hipotecas a segmentos vulneráveis da sociedade entre 2003 e 2007. Naturalmente, um aumento disseminado do endividamento foi um dos efeitos colaterais da euforia de ativos da Espanha (a razão entre endividamento e renda disponível cresceu, em 2007, para o nível mais alto entre os países da ocde), embora os riscos estivessem muito concentrados nas famílias com rendas mais baixas e com menos propriedades. Como nos Estados Unidos, a mágica do refinanciamento através do aumento crescente dos preços das casas era considerada proteção suficiente em relação aos riscos de crédito. Diferentemente dos Estados Unidos, no entanto, a lei espanhola não considera o ativo subjacente à hipoteca (isto é, o domicílio) uma garantia suficiente no caso de não pagamento pelo devedor. Isso significa que as garantias dadas aos empréstimos podem incluir as casas dos parentes e dos amigos do devedor hipotecário, o que resultaria em uma reação em cadeia alarmante de reintegrações de posse, após o estouro da bolha imobiliária.
O crash
As incorporadoras imobiliárias foram as primeiras a notar que a bolha estava chegando ao fim. Após atingir quase 900 mil novas casas em 2006 (excedendo a quantia combinada de França, Alemanha e Itália), as vendas começaram a definhar. Empreendimentos litorâneos no Mediterrâneo foram atingidos de forma especialmente severa após o estouro da bolha imobiliária do Reino Unido em meados de 2007, que causou problemas para os proprietários ingleses que haviam adquirido uma segunda residência. Áreas cujo zoneamento havia sido alterado, compradas no auge da bolha com empréstimos das cajas, começaram a ser vistas como mau investimento. No fim de 2008, havia 1 milhão de casas não vendidas no mercado, ao passo que o endividamento das famílias espanholas subira para 84% do pib. Incorporadoras imobiliárias em colapso passaram a desembarcar nas cajas com empréstimos ruins substanciais: em julho de 2008, a construtora Martinsa-Fadesa entrou com pedido de falência por dívidas de mais de 5 bilhões de dólares.
A resposta inicial do governo Zapatero foi tentar fazer a crise passar por um fenômeno global, afetando apenas marginalmente a Espanha, em comparação com a débacle (muito maior) do mercado subprime dos Estados Unidos. No máximo, Madri reconheceu que seria necessário dar alguma ajuda às cajas (em outubro de 2008 comentou-se a possibilidade de um auxílio financeiro de 50 bilhões) e expandir o déficit público no curto prazo, em conjunto com o resto do g20. No entanto, essas previsões logo se revelaram desesperadamente otimistas na medida em que o desemprego dobrou, elevando a taxa de desemprego para quase 20% no fim de 2009. A destruição de empregos não ficou confinada à construção civil, mas afetou também os setores de bens de consumo e de serviços. O círculo virtuoso do keynesianismo de preço de ativos inverteu-se, gerando um grave "efeito pobreza" que, em conjunto com a contração do crédito, reduziu drasticamente o consumo privado. Devido à elevada proporção de trabalhadores com contratos temporários ou de curta duração, as empresas foram capazes de reduzir sua força de trabalho rapidamente e com baixo custo em resposta à queda da demanda, a qual, por sua vez, deprimia-se ainda mais em razão do desemprego crescente, que atingiu mais de 40% entre aqueles com menos de 25 anos. As receitas do governo despencaram, uma vez que o pib contraiu-se 7,7%, entre o seu ponto mais alto e mais baixo, e o superávit fiscal de 2%, de 2006, tornou-se em 2009 um déficit de mais de 11%.
Assim como os demais governos europeus, o governo Zapatero focou-se em uma política de socialização das perdas dos blocos oligárquicos do país. Eles incluíam principalmente as maiores construtoras espanholas, algumas delas (acs, fcc e Ferrovial) empresas globais, que foram generosamente engordadas por mais de 25 anos de grandes orçamentos de infraestrutura e que agora demandavam que seus contratos para obras públicas fossem cumpridos, a qualquer custo. Os grandes bancos privados (Santander e BBVA são os maiores) pareciam estar mais bem provisionados do que alguns de seus concorrentes britânicos e norte-americanos, tendo capturado os depósitos das classes médias da América Latina. De fato, eles iniciaram uma gastança. O Santander, em particular, agregou empresas de construção britânicas e bancos de poupança norte-americanos a seus já extensos interesses na América Latina e na Ásia, criando um behemoth grande demais para quebrar [too big to fail] - e talvez grande demais para ser salvo.
Da sua parte, as cajas seguiram saturadas de dívidas. Estimativas de sua necessidade de capital variavam de 15 bilhões de dólares (segundo o Banco da Espanha) até cerca de 100 bilhões, o que se aproximaria de 10% do pib. Em março de 2009, a Caja Castilla-La Mancha recebeu sozinha a quantia de 9 bilhões de dólares.[15] Em junho de 2009, Zapatero anunciou planos para um fundo de socorro de 99 bilhões de dólares, o frob, e para um programa de fusões que reduziriam as 45 cajas a dezessete. Elas também foram instruídas a aumentar seus níveis de capital principal [core-capital] em 10% até setembro de 2011, o que requereria mais 20 a 50 bilhões de dólares em dinheiro. Além disso, as cajas foram encorajadas, pelo Banco da Espanha, a trocar dívidas das incorporadoras por imóveis e terrenos, avaliados um tanto ficticiamente a um valor 10% menor do que o do pico, a fim de incensar seus balancetes e evitar falência técnica. Assim como na Irlanda, contudo, as perdas tenderam a exceder as estimativas iniciais: em março de 2011, revelações acerca de problemas não antecipados na Caja de Ahorros Mediterráneo, a quarta maior caja da Espanha, sediada em Alicante, travou o plano de fusão em que ela estava envolvida. Após sua elevação recorde, os preços das casas espanholas caíram até há pouco mais de 10% (Gráfico 4).
Em meados de 2009, a pressão no âmbito da ue e, mais especificamente, da zona do euro deslocou-se rapidamente de pacotes de socorro a bancos (o total comprometido deve ter atingido 2,5 trilhões de dólares, na ue como um todo) para medidas de austeridade requeridas pela transferência das perdas do capital financeiro para a contabilidade dos Estados nacionais. A partir do início de 2010, cortes orçamentários, congelamentos salariais e o desmonte dos programas sociais foram introduzidos em um país após o outro. A crise foi vista explicitamente como uma oportunidade para "ajustes estruturais", país por país, seguindo receitas bem conhecidas. O papel das instituições de cúpula da ue na crise não poderia ter sido mais estreitamente ligado aos interesses financeiros. Na sequência dos acontecimentos, as crises das dívidas soberanas, sobretudo os episódios envolvendo Grécia e Irlanda, devem ser vistas como uma enorme oportunidade de negócio para os grandes bancos europeus (alemães, franceses e britânicos), os principais credores dos títulos soberanos dos países europeus. Auxiliados pelas agências de classificação de risco, os anúncios de insolvência ou de fragilidade financeira dos membros deficitários da zona do euro (Grécia, Portugal, Irlanda, Espanha e Itália) permitiram que eles acumulassem lucros enormes baseados em taxas de juros dos títulos de dívida artificialmente ampliadas, em um momento em que os lucros financeiros no setor privado não poderiam voltar a seus níveis pré-crise. A meia-volta de Zapatero Em abril de 2010, à medida que a crise da dívida da Grécia se desdobrava, Zapatero foi submetido a pressões crescentes de Berlim, Bruxelas e do bce para impor medidas de austeridade e uma reestruturação do mercado de trabalho, lançando efetivamente um ataque contra os funcionários públicos que ainda tinham contratos de longo prazo e direitos de negociação salarial. Relutante em investir contra setores cruciais da sua base, mas incapaz de mobilizá-la na direção de qualquer solução alternativa, Zapatero procrastinou. Enfim, em 12 de maio, aparentemente após pressões da Casa Branca de Obama, ele anunciou um programa de austeridade drástico: redução de 5% dos salários do setor público, cortes de pensões e benefícios, cancelamento de projetos de investimento, aumento da idade mínima para a aposentadoria, restrição do direito à negociação salarial, simplificação das demissões. O resultado foi um mergulho imediato nas pesquisas de opinião: partindo de uma disputa apertada com o PPo PSOE passou a ficar sete pontos atrás, e continuou a cair. Os líderes sindicais ficaram espremidos entre a pressão de sua base e o medo de precipitar a queda do governo do PSOE. Uma greve geral em 29 de setembro de 2010 foi o principal foco de oposição social às medidas de Zapatero, mas a liderança sindical evitou que alguns dos setores mais bem organizados participassem, como os trabalhadores do setor de transporte, e deixou de mobilizar a imensa massa de trabalhadores dos serviços e do varejo, com contratos de curta duração. Em seguida, a liderança assinou prontamente um acordo sobre cortes nas pensões e uma elevação da idade mínima para a aposentadoria.A máscara de um republicanismo moderno e progressista caiu na medida em que o governo do partido socialista inequivocamente assumiu o lado do bloco financeiro hegemônico. Seguindo o roteiro que tem caracterizado a fase atual da crise, o encargo extraordinário sobre a emissão de dívida pública espanhola tem levado a medidas alinhadas com as políticas de ajuste estrutural mais ortodoxas. Em última análise, isso significa que o gasto público é submetido ao controle político dos agentes financeiros. O resultado tem sido a deserção de uma grande parte do eleitorado do PSOE, deixando o partido no ponto historicamente mais baixo nas pesquisas. Em 2 de abril de 2011, com o desemprego em ascensão (Gráfico 5) e os socialistas perdendo por dezesseis pontos, Zapatero anunciou que não concorreria como líder do PSOE na eleição geral de março de 2012. As principais pressões para sua renúncia à candidatura vieram de dentro do partido, particularmente de candidatos socialistas às eleições regionais de maio de 2011 que desejavam distanciar-se do seu legado político. O favorito para sucedê-lo é Alfredo Pérez Rubalcaba, um veterano da direita do PSOE, cuja carreira política começou no governo de Felipe González. Rubalcaba é ministro do Interior desde 2006 e notoriamente formulou uma reação ao movimento separatista basco no estilo "guerra ao terror" ainda mais dura do que a do PP. Em decorrência dessa postura de homem forte, ele foi premiado com outros dois cargos importantes no governo Zapatero: vice-presidente e porta-voz do governo. Como representante da velha guarda felipista, Rubalcaba é preferido pelo poderoso grupo de mídia PRISA e pelo seu órgão principal, o jornal El País. A principal candidata da ala zapaterista do PSOE e do grupo Mediapro, a ministra da Defesa Carme Chacón, retirou-se da disputa quando percebeu o rumo que as coisas estavam tomando.
A crise deixou a Espanha face a face com a fragilidade das estruturas econômicas que sustentaram sua longa década de prosperidade, e o PSOE diante das aporias que eram o fundamento de sua política. A engenharia financeira perpetuou a ficção de que uma classe média majoritária, proprietária de suas próprias residências, havia atingido níveis permanentes de prosperidade. O colapso da bolha imobiliária removeu o véu de uma ordem social altamente polarizada, com uma grande proporção dela afundada em dívidas, muitos sem emprego e dependentes de serviços públicos atingidos duplamente por cortes de gastos e privatização. Se somarmos a isso o fato de que os mais afetados são os jovens (enfrentando perspectivas muito piores do que a geração anterior) e os trabalhadores imigrantes, as linhas que projetam o custo da crise nos grupos mais vulneráveis ficam claras. A Espanha sempre foi o mais eurofílico dos Estados-membros da UE. O europeanismo era profundamente associado, na imaginação das pessoas, com a democratização e a modernização do país pós-Franco, e o eleitorado espanhol foi, historicamente, quase completamente acrítico da ue. Agora, essa complacência desapareceu.
Em 15 de maio, na corrida para as eleições regionais do dia 22 daquele mês (e exatamente um ano após Zapatero ter anunciado seus imensos cortes), uma enorme onda de protesto social varreu o país de lado a lado. Dezenas de milhares de jovens foram às ruas protestar e, em seguida, acamparam nas praças centrais de várias cidades espanholas, incluindo a Plaza Catalunya, em Barcelona, e a Puerta del Sol, em Madri: estudantes, trabalhadores, empregados e desempregados demandavam o direito ao espaço público, com uma saudação aos jovens árabes que protestavam na Praça Pérola e na Praça Tahrir. Em Puerta del Sol, a ocupação estabeleceu uma assembleia popular permanente, votando diariamente todas as decisões. Dentre os slogans do movimento de 15 de maio estavam: "Para uma transição para a democracia!", "Não somos mercadorias nas mãos de políticos e bancos", "PPSOE: PSOE e PP, tudo a mesma merda", "Democracia real agora!". O manifesto de 20 de maio, aprovado pela assembleia popular de Puerta del Sol, atacou a corrupção política, o sistema eleitoral de lista fechada (no qual apenas os nomes do partido e de seu líder aparecem na cédula de votação), o poder do bce e do FMI e o caráter injusto da resposta da classe dominante à crise. No momento em que escrevemos, os "acampantes" estavam ocupando a praça havia quase duas semanas - durante as quais o PSOE tomou a maior surra da sua história, perdendo o controle de Barcelona, Sevilha e quatro ca, assim como de várias prefeituras na Andaluzia, seu bastião.[16] Mas, se o PP de Mariano Rajoy tomar o poder nas eleições gerais, que ocorrerão em menos de um ano, ele confrontará as forças do movimento de 15 de maio, os indignados e a "juventude sem futuro": "Sem casa, sem emprego, sem pensão - sem medo!".
As perspectivas para a recuperação econômica da Espanha seguem desanimadoras. A escala da bolha imobiliária; a centralidade do keynesianismo de preço de ativos para o crescimento desde os anos 1990; a profundidade da recessão após estouro da bolha, exacerbada por medidas de austeridade verdadeiramente draconianas; o nível valorizado do euro (devido em parte à política monetária de expansão de liquidez [quantitative easing] empregada pelo banco central dos Estados Unidos), que afeta o turismo de fora da zona do euro; e uma contração do crédito pelo bce: tudo isso sugere que qualquer retorno ao crescimento na Espanha ainda está de fato muito distante. As perspectivas imediatas devem ser, muito provavelmente, maior redução de despesas e, portanto, uma elevação do déficit espanhol. Isso coloca dilemas graves para as tentativas da zona do euro de fingir que a crise é apenas um problema temporário de liquidez que pode ser administrado através da injeção de empréstimos provisórios do bce e do FMI para os países em questão, pelo tempo que for necessário para que voltem a crescer. Na realidade, a crise é dos principais bancos alemães, franceses e britânicos, enormemente expostos ao estouro das bolhas imobiliárias da periferia (Gráfico 6). Em vez de encarar o trauma de uma crise bancária profunda em casa, Berlim, Paris e Londres estão conduzindo o que um banqueiro central descreveu como um esquema Ponzi do setor público, "sustentável apenas na medida em que quantias adicionais de dinheiro estejam disponíveis para continuar o fingimento":
Alguns dos credores originais dos títulos de dívida pública estão sendo pagos com empréstimos oficiais que também financiam os déficits primários remanescentes. Quando se revelar que os países não conseguem cumprir as condições de austeridade e as reformas estruturais que lhes foram impostas e que, por essa razão, não conseguem voltar ao mercado voluntário, esses empréstimos serão rolados e ampliados por membros da zona do euro e organizações internacionais... Governos europeus estão achando mais conveniente atrasar o dia do ajuste de contas e continuar jogando dinheiro nos países periféricos do que encarar a fratura financeira doméstica[17].
O colapso do modelo espanhol ameaça, sob vários ângulos, esse esquema de pirâmide: primeiro, a exposição dos bancos alemães e franceses à Espanha é muito maior do que sua exposição à Grécia e à Irlanda; segundo, a escala do problema das cajas precisa ainda ser compreendida; terceiro, o problema social (uma população que cresceu 18% na última década, na maior parte pela imigração, com aproximadamente um em cada dois membros da geração mais jovem desempregado) é potencialmente mais explosivo, na medida em que os gastos sociais e de assistência encolhem ainda mais, a partir de níveis já baixos se comparados aos da Europa central. Uma crise da dívida espanhola finalmente inviabilizaria a tentativa da Alemanha, da França e do Reino Unido de fazer as populações periféricas socorrerem os bancos afetados, que estão cobrando taxas usurárias, artificialmente infladas, sobre os títulos dos governos, para compensar pela ausência de lucros financeiros no setor privado. Por essa razão, será feito indubitavelmente todo o esforço para evitá-la.
Notas
[1] Este artigo resume as principais conclusões do grupo de pesquisa e ativismo, Madrid Metropolitan Observatory, publicado como Fin de ciclo. Financiarización, territorio y sociedad de propietarios en la onda larga del capitalismo hispano (1959-2010), Madrid 2010. Os autores gostariam de agradecer a Brian Anglo por sua tradução.
[2] Ver José Manuel Naredo, La burbuja inmobiliario-financiera en la coyuntura económica reciente (1985–1995), Madrid 1996.
[3] Robert Brenner. The Economics of Global Turbulence: the advanced capitalist economies from long boom to long downturn, 1945-2005. Londres: Verso, 2006, pp. 293-94, 315-23.
[4] Entre 2003 e 2006, os preços das casas na Espanha subiram a uma espantosa média anual de 30%. Fonte: INE (Instituto Nacional de Estatística).
[5] Ativos imobiliários, que desempenham um papel central nas economias altamente financeirizadas, ainda não são considerados uma prioridade para as estatísticas da contabilidade nacional da maior parte dos países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). No caso da Espanha, é necessário utilizar estimativas de pesquisadores independentes como José Manuel Naredo, Óscar Carpintero e Carmen Marcos, Patrimonio Inmobiliario y Balance Nacional de la Economía Española 1995-2007, Madrid 2008.
[6] A expressão é utilizada por Michel Husson. Un pur capitalisme. Lausanne: Page Deux, 2008.
[7] Segundo Harvey, quando problemas de sobreacumulação aparecem no processo de acumulação, capitais deslocam-se do "circuito primário de acumulação" (a produção de mais-valia no esquema de reprodução ampliada) para o "circuito secundário de acumulação" (a circulação do capital no ambiente construído). As formas territoriais que esse deslocamento pode assumir vão desde grandes obras públicas até construção de moradias. Harvey, David. The Limits to Capital. Londres: Verso, 1999 [1982], pp. 235-38.
[8] O único país da zona do euro cuja balança de pagamentos oscilou conclusivamente na outra direção foi, claro, a Alemanha, que passou de um déficit moderado no final dos anos 1990 para um superávit equivalente a mais de 7% do PIB em 2007.
[9] Dados do programa Corine (Coordenação de Informação sobre o Ambiente) Land Cover, disponível no site da Agência Europeia do Ambiente.
[10] Ver David Harvey. "From managerialism to entrepreneurialism". Geografiska Annaler, Série B, Human Geography, vol. 71, n. 1, 1989, pp. 3-17.
[11] Esse tipo de propaganda se tornou tão insistente que um dos principais jornais satíricos de Buenos Aires se autodenomina Barcelona. Una solución europea a los problemas de los argentinos - "Barcelona: uma solução europeia para os 'problemas' dos argentinos".
[12] A mania da construção não ficou sem oposição. Em algumas das áreas mais afetadas, grupos ambientalistas, denunciando tanto a espoliação desproporcional da paisagem quanto a corrupção dos funcionários locais envolvidos, conseguiram derrubar governos locais e até administrações de Comunidades Autônomas (Aragão em 2003; Ilhas Baleares em 2007). Entre 2005 e 2007, as principais cidades espanholas foram sacudidas por um ciclo imaginativo de protestos contra o aumento dos preços das casas, mobilizando-se em torno de slogans como V de Vivienda, segundo o modelo "V de Vingança" ("vivienda" é a palavra espanhola para habitação ) e manifestações crescentes de dezenas de milhares de pessoas.
[13] Progre é um diminutivo meio agradável, meio sarcástico de progresista, ou progressivo. Denota o estilo de comunicação e a retórica da esquerda institucional de centro-esquerda de classe média, baseada em um liberalismo social essencialmente acrítico e benfeitor.
[14] Os anos 2000-01 e 2004-05 assistiram a uma série de mobilizações de migrantes indocumentados, incluindo protestos em igrejas e prédios oficiais, bem como greves de trabalhadores migrantes nos distritos agroindustriais do sudeste.
[15] The Economist propôs um valor de "cenário apocalíptico" de € 270 bilhões que, aponta, seria menor do que o déficit dos bancos irlandeses, em relação ao PIB: "Under siege", 13 de janeiro de 2011.
[16] O PSOE obteve apenas 28% dos votos nas eleições regionais de 22 de maio, uma queda de 7 pontos; mas o PP subiu apenas 2 pontos, em 38 por cento. Enquanto isso, o Izquierda Unida obteve 6,3 por cento, acima dos 5,5 em 2007, mas - punido em parte por coligações locais com o PSOE - obtendo apenas 210.000 dos 1,5 milhão de votos que os socialistas haviam perdido.
[17] Mario Blejer, "Europe is running a giant Ponzi scheme", FT, 5 de maio de 2011.