27 de janeiro de 2012

Em Pyongyang

Tariq Ali

London Review of Books


Neste podcast, Tariq Ali lê trechos de seu Diário sobre a Coreia do Norte. O artigo completo está abaixo.

Tradução / Misteriosamente, há 42 anos, recebi um convite para visitar a Coreia do Norte. A ditadura militar do Paquistão tinha sido derrubada após três meses de luta e, em março de 1970, o país vivia a agitação de sua primeira campanha para eleições gerais. Eu percorri todas as cidades importantes entrevistando políticos da oposição e pessoas que haviam tomado parte no levante para depois escrever um livro. O convite chegou em maio, quando meu trabalho ainda estava incompleto. A Coreia do Norte já era, naquela época, um país isolado.

A carta chegou por intermédio de um comunista local conhecido como Rahim “Koreawallah”, secretário da Pak-Korea Friendship Society. Baixo, barrigudo, falante e cheio de cerveja, ele estava sem fôlego quando me entregou a carta de Pyongyang. Eu teria de partir imediatamente, disse ele. Por quê? Porque os norte-coreanos estavam convencidos de que os Estados Unidos estavam se preparando para invadir o país e os norte-coreanos precisavam da solidariedade mundial. Em janeiro de 1968, os coreanos tinham capturado um navio da inteligência naval americana, e prenderam a tripulação. As relações entre os dois países continuavam ruins. Será que eu poderia partir na semana seguinte?, perguntou Koreawallah. Ri e respondi que não.

Eu estava a caminho do que na época se chamava Paquistão Oriental. A Coreia do Norte seria uma dispersão. Koreawallah se mostrou aborrecido e, ao mesmo tempo, insistente, mas seus argumentos eram fracos. Não havia provas de que Washington estivesse se preparando para uma guerra. Eu tinha experiência no assunto. Anos antes, havia passado seis semanas no Vietnã do Norte e, além de ficar agachado em abrigos antiaéreos durante os bombardeios dos americanos em Hanói, presenciei comunicados oficiais à imprensa feitos por funcionários do governo norte-vietnamita, que deixavam claro que iriam vencer a guerra. Para os americanos, já desgastados na Indochina, uma nova guerra na Coreia seria um ato suicida.

Eu tinha outros motivos para não ir. Considerava Kim Il Sung um líder ridículo e seu regime, uma paródia da Rússia stalinista. Recusei o convite mais uma vez, de maneira mais enfática. Mas meus pais, comunistas, achavam que eu devia aproveitar a oportunidade (eles nunca tiveram a chance de ir até lá). E Koreawallah não desanimava. Com um sorriso astuto, deixou escapar que eu poderia entrar via China, pegando um trem em Pequim para Pyongyang. Isso resolveu a questão. Eu estava ansioso para visitar Pequim e aquela parecia ser minha única saída. Respondi que só poderia ir em meados de junho.

Quando voltei para Daca, depois de duas semanas cansativas na zona rural, surgiu um problema. Os sindicatos do Paquistão Oriental convocaram greve geral de um dia – uma demonstração de força contra o regime de transição do general Yahya Khan, em Islamabad –, justamente no dia em que eu deveria pegar o voo de Daca para Cantão. Tive de resolver a questão pessoalmente. Amigos pediram aos líderes comunistas dos sindicatos dos taxistas e dos condutores de riquixá uma trégua de trinta minutos para que eu pudesse chegar ao aeroporto. Os apelos foram prontamente rejeitados. Quando os líderes estudantis intervieram, os sindicatos se mostraram flexíveis. Não poderia haver nenhum tráfego motorizado nas ruas, mas eu poderia viajar numa bicicleta riquixá.

Eu e minha bagagem éramos pesados demais para o raquítico condutor. Passaram-se dez minutos dele bufando e arquejando, e quase não havíamos saído do lugar. Com medo de perder o voo, pedi que ele sentasse no meu lugar e pedalei eu mesmo feito um louco para vencer os 8 quilômetros que nos separavam do aeroporto. Além de animais soltos, não havia nada nas ruas. Quando chegamos ao aeroporto, o condutor da bicicleta, me vendo banhado em suor, abriu um sorriso e não quis aceitar meu dinheiro. Paguei na marra e corri para o avião. Logo depois da decolagem, o comitê de greve fechou o aeroporto. Eu havia previsto que o Paquistão estava à beira de se desagregar, mas, enquanto observava o sol se levantar sobre as plantações de arroz, não imaginava que aquela seria a última vez que eu veria o Paquistão Oriental.

Em Pequim, cartazes decoravam as ruas, música barulhenta irrompia de alto-falantes e grupos de crianças se curvavam diante de retratos do Grande Timoneiro. Uma torrente de bicicletas fluía por vias públicas sem poluição. Que sorte a deles, pensei, por não tratarem o carro como um fetiche. Saí do hotel caminhando sem rumo, consegui encontrar a Praça da Paz Celestial, descobri um restaurante bom e barato, depois voltei para o hotel onde dois funcionários da embaixada coreana estavam à minha espera para um passeio discreto pela Cidade Proibida. Parecíamos apenas visitantes estrangeiros.

Naquela mesma tarde, fiz as malas para a viagem de trem de dois dias rumo a Pyongyang e fomos à estação. Não havia no hotel nenhum livro de frases e expressões em chinês. As únicas palavras chinesas que eu sabia eram Mao Zhuxi wansui – Mao viverá mil anos –, que não serviam para nada quando eu precisava pedir comida ou achar um banheiro. Por sorte, um mensageiro sikh da embaixada indiana entrou no meu compartimento antes da partida do trem. Nos cumprimentamos em punjabi e ele me disse que era fluente em mandarim e, mais importante, que sua mulher tinha preparado comida e ele poderia dividir comigo.

Pouco antes de o trem começar a andar, dois membros do Exército de Libertação Popular também entraram no compartimento. Não, responderam rindo, não estavam indo para Pyongyang. Meu esforço para arrancar deles uma opinião sobre a Revolução Cultural fracassou, mas se mostraram ansiosos para conversar a respeito do Paquistão e ficaram surpresos ao ouvirem minhas críticas aos ditadores militares: a propaganda chinesa os retratava como “aliados anti-imperialistas”. Não sabiam do recente levante popular. O mais simpático deles me preveniu a respeito do “culto à personalidade” na Coreia e meu amigo sikh exclamou: ele nunca ficava mais de uma noite na embaixada em Pyongyang. Os homens do Exército de Libertação Popular desembarcaram em Beidaihe, uma estação de veraneio à beira-mar situada a leste de Pequim. Outrora frequentada por imperadores, suas mulheres e concubinas, tornara-se um dos locais prediletos dos líderes do Partido Comunista. “Se esses dois vão passar uns dias de folga aqui”, comentou meu companheiro de viagem, “devem ser pessoas importantes, ou ligadas a alguém importante, assim como acontece no nosso mundo.”

Colonizada pelos japoneses entre 1910, quando anexaram o país, e o fim da Segunda Guerra Mundial, a Coreia experimentou a “modernidade” e formas extremas de brutalidade e repressão. A riqueza mineral foi usada para respaldar o militarismo japonês; os trabalhadores locais recebiam salários de fome; dezenas de milhares de mulheres eram tratadas como prostitutas pelos invasores, mas não recebiam pagamento. Os japoneses almejavam a integração completa: a língua coreana era proibida nas escolas, os jornais em língua coreana foram extintos e as pessoas tinham de usar nomes japoneses. A agricultura atendia às necessidades do Império – milhares de lavradores foram expulsos de suas terras e a maior parte do arroz e do trigo produzidos era enviada ao Japão –, acarretando a fome em massa. Um procônsul japonês admitiu que, toda primavera, metade dos lavradores coreanos sobrevivia à custa de capim e casca de árvore. Os 2 milhões de coreanos transportados para o Japão como trabalhadores escravos de certo modo tiveram sorte: tinham o que comer.

Surpreendentemente, tudo isso levou os coreanos a desenvolver fortes sentimentos nacionalistas, embora o medo limitasse o número dos que ingressavam nos grupos clandestinos. Comunistas nativos eram atuantes nesses grupos: trabalhavam lado a lado com os nacionalistas e eram amplamente reconhecidos como figuras heroicas. Durante a Segunda Guerra Mundial, um movimento de resistência aos poucos tomou forma, com mais força no sul. Seus membros – estudantes, intelectuais e camponeses – enfrentaram as punições de costume em países ocupados: tortura, estupro, matanças em massa e enterros em sepulturas anônimas.

A derrota do Japão em 1945 foi saudada com júbilo e surgiram comitês populares em diversas cidades. O futuro da Coreia não foi tratado em Yalta, onde se decidiu a divisão da Europa, mas Moscou e Washington, em caráter privado, concordaram com uma divisão semelhante da península coreana. O Exército Vermelho entrou na Coreia do Norte e consta que Kim Il Sung estava num de seus tanques; os Estados Unidos ocuparam o sul. O general MacArthur viajou de avião para Seul com uma valiosa bagagem de mão: Syngman Rhee. Porém Rhee contava com pouco apoio e MacArthur usou os membros coreanos do Exército Japonês de Ocupação para manter o controle do novo Estado. Por si só, isso bastava para despertar a antipatia do povo. Os dissidentes foram esmagados, houve prisões em massa, comunistas e nacionalistas antiamericanos desapareceram ou foram assassinados. “As prisões em Seul estão abarrotadas de presos políticos”, informou Frank Baldwin, consultor da embaixada dos Estados Unidos:

Seis semanas atrás, inspecionei uma prisão da polícia em Inchon. Lá, os presos viviam em condições que hesito em descrever nesta carta. Traz à memória a sensação da Divina Comédia. Goya poderia ter pintado o que vimos lá. O que irá acontecer com quase 10 mil presos políticos no caso de rendição da capital? É difícil imaginar os atos de vingança e de ódio que o povo irá praticar se sobreviver à conquista de Seul por seus “libertadores”.
O envolvimento dos Estados Unidos e da União Soviética pôs fim a qualquer chance de autonomia coreana, mas o prestígio soviético ainda era grande e muitos acreditavam que os russos ajudariam a libertar e reformar o país inteiro. Poucos acreditavam que a separação seria permanente. Kim Il Sung, empossado pelos soviéticos como líder do Comitê Provisório do Povo, era quase um desconhecido, mas os comunistas locais não tinham motivo para duvidar dele.

A crescente revolta popular no sul e um irresistível desejo de reunificação deflagraram a invasão do sul pelo norte em 1950. Carente de apoio popular, o governo de Rhee caiu e teve de ser salvo por tropas dos Estados Unidos. A União Soviética boicotou uma sessão do Conselho de Segurança da ONU em que poderia ter vetado a guerra americana, travada sob a bandeira das Nações Unidas. A Revolução Chinesa deixara Washington em pânico. Não poderiam permitir que ela se espalhasse.

Tropas americanas e seus aliados (incluindo a Marinha japonesa) obrigaram o Exército coreano a recuar. A Revolução Chinesa ocorrera menos de um ano antes e seus líderes encaravam a Guerra da Coreia como uma tentativa de reverter o rumo dos acontecimentos na China. Uma reunião do Politburo decidiu que era preciso salvar os coreanos. Tropas chinesas sob o comando do general Peng Dehuai cruzaram em massa o rio Yalu. Os americanos e seus aliados foram obrigados a recuar até o paralelo 38. O general MacArthur declarou que talvez fosse necessário lançar bombas nucleares contra as bases aéreas chinesas; Truman o demitiu. Em 1953, foi assinada uma trégua em Panmunjom, no paralelo 38. Cerca de 1 milhão de soldados e 2 milhões de civis tinham morrido (há muitas estimativas diferentes). Um deles era o filho mais velho de Mao, o seu predileto.

Vinte anos depois, eu estava prestes a cruzar o rio Yalu a bordo de um trem chinês. Em Sinuiju, recebi as boas-vindas, na terra sagrada da República Democrática Popular da Coreia, com um buquê de flores. Diante de uma estátua de Kim Il Sung em tamanho natural, meu anfitrião me disse que estava um pouco perturbado com a escala do culto à personalidade na China. Em Pyongyang, um jovem do movimento Pioneiro me deu mais um buquê de flores. Fiquei chocado com o que vi, enquanto percorremos a cidade de carro: parecia a Europa Oriental logo após a Segunda Guerra Mundial. Lembrei que aquilo que o general Curtis LeMay ameaçara fazer com o Vietnã do Norte já tinha sido feito com a Coreia do Norte: o país regredira à Idade da Pedra à força de bombardeios. Não houve nenhum protesto no Ocidente contra os violentos bombardeios sofridos por Pyongyang, anunciados com apenas quinze minutos de antecedência: 697 toneladas de bombas foram jogadas sobre a cidade, 10 mil litros de napalm; 62 mil ataques aéreos foram realizados para “varredura com metralhadoras em baixa altitude”.

Três anos antes, em Phnom Penh, o jornalista australiano Wilfred Burchett me disse que o que eu vi no Vietnã “não era nada comparado ao que fizeram na Coreia. Eu estava lá. Só restaram dois prédios de pé em Pyongyang”. Diziam que os Estados Unidos haviam usado armas de guerra biológica e, embora os americanos negassem e qualificassem tais afirmações de “ultrajantes”, no dia 9 de agosto de 1970 o jornal The New York Times informou que se pensou em usar armas químicas depois que “as forças terrestres americanas na Coreia foram esmagadas pelos ataques de ondas humanas da China comunista, nas imediações do rio Yalu”. Os estrategistas do Pentágono queriam “encontrar um meio de deter os ataques em massa de infantaria”, portanto “o Exército pesquisou documentos capturados dos nazistas a respeito de armas químicas, nos quais se descrevia o sarin, um gás que atua no sistema nervoso, tão letal que poucos quilos bastariam para matar milhares de pessoas em poucos minutos, caso o material mortífero fosse disseminado de maneira apropriada”. Será que ele foi usado na Coreia? Provavelmente não, embora testes de armas biológicas tenham sido realizados em cidades americanas. Num desses testes, uma bactéria “inofensiva” foi introduzida no sistema de ar-condicionado do Pentágono.

Pedi um encontro com o ministro do Exterior para conversarmos sobre as tensões com os Estados Unidos, porém, para surpresa de meus seguranças, não solicitei um encontro com Kim Il Sung. Passei meus primeiros dias em Pyongyang visitando museus, com meu excelente intérprete e um guarda-costas – “o chefe de protocolo”. Os dois me acompanhavam em toda parte. No Museu da Guerra, perguntei por que não havia nenhum sinal dos “voluntários” chineses, sem os quais a guerra teria sido perdida. Nenhuma resposta. Por fim, o guia foi ao 1º andar e depois voltou com o diretor do museu. Repeti minha pergunta. “De fato, tínhamos uma exposição, mas as salas foram fechadas para reparos e pintura. As fotografias foram transportadas para locais seguros.” Pedi para ver onde elas estavam, mas o constrangimento do homem foi tão grande que desisti. De lá, fomos ao Museu de Arte. Depois de percorrer quatro salas cheias de pinturas ruins de Kim Il Sung, de sua mãe e de outros parentes, perdi a paciência e pedi para ver coisas de séculos anteriores. Após uma consulta apressada ao meu segurança, o diretor acenou para que o seguíssemos, deixando claro que estava me fazendo um grande favor.

Trancafiadas em câmaras subterrâneas, estavam as mais assombrosas pinturas tumulares que já vi. Algumas datam de 2 mil anos, outras dos séculos XI e XII. Retratavam soldados, caçadores, cenas de riqueza, mulheres de beleza primorosa. Agradeci efusivamente ao diretor e disse esperar que um dia os coreanos pudessem ver aquele tesouro. Ele sorriu e encolheu os ombros. Foi a única pessoa que não mencionou nem uma vez o nome de Kim Il Sung, muito menos se referiu a ele como “o Grande e Amado Líder” de 40 milhões de coreanos. Certo dia, fui levado de carro até Mangyongdae, onde me prometeram uma grande surpresa. Tratava-se do local de nascimento de Kim e a cidade inteira era quase um santuário dedicado a ele, com as mesmas histórias sobre heroísmo que eu ouvira dezenas de vezes.

De volta ao hotel, vi Kathleen Cleaver, em gravidez avançada, no saguão com Maceo, o filho que tivera com Eldridge Cleaver, o líder dos Panteras Negras. Falamos rapidamente, antes de ela ser levada dali, e nunca mais a vi. Tempos depois, descobri que seu marido tinha encontrado Kim Il Sung e pedido apoio para o Partido Pantera Negra. É inconcebível que nenhum dinheiro tenha sido oferecido em troca. Amigos americanos me disseram, mais tarde, que Kathleen foi mantida num quarto em Pyongyang durante quatro meses, um castigo que o marido havia decretado depois de tomar conhecimento de que o bebê não era seu filho. Kim tinha sido gentil com seu novo amigo. É bom saber disso, pensei.

Ainda era o início da noite. Não havia nenhum bar no hotel, por isso fui ao salão de bilhar jogar um pouco. Três homens altos, que eu não tinha visto antes, estavam junto à mesa. Dois deles falavam inglês. Eram estudantes da Universidade de Havana que estavam em Pyongyang para um curso de três anos, em troca de centenas de estudantes coreanos enviados a Cuba para se formarem em medicina. Por que eles? Riram para mim. O protocolo exigia que alguém fosse enviado para lá. Os estudantes acharam que eu me daria bem com o embaixador cubano, portanto seguimos no carro da embaixada para tomar suco de tamarindo e mojitos, acompanhados de uma refeição excelente. O embaixador era um veterano da Revolução Cubana. Mandá-lo para a Coreia não foi um gesto amistoso: “Mostrei-me um pouco crítico em relação a Fidel e à maneira como as coisas estavam sendo conduzidas em Cuba. Falei com muita gente sobre isso e Fidel ficou aborrecido. Eu preferia a prisão, mas em vez disso me mandaram para cá. Deu certo. Havana é o paraíso e Fidel é um deus. Mas me tirem daqui. Nunca mais vou abrir a boca outra vez.” Foi a noite mais divertida que tive na Coreia do Norte.
Passei a semana seguinte em carros e trens. O carro muitas vezes parava no meio do nada para que me mostrassem o local em que “o Grande e Amado Líder camarada Kim Il Sung deu orientações práticas a camponeses sobre como proceder à colheita do trigo”. A certa altura, no meio do nada, pedi que parassem o carro. Minha bexiga estava cheia. Saí e disse: “Vou dar uma orientação prática àquela árvore ali.” O intérprete e o segurança morreram de rir. Foi o momento mais agradável da viagem. Nada foi dito quando voltei ao carro, mas depois disso não paramos mais.

Em Panmunjom, no paralelo 38, os alto-falantes anunciavam aos brados palavras de propaganda repletas de clichês. Soldados americanos vagavam por ali, de vez em quando apontavam para os alto-falantes e riam. Perguntei aos coreanos se eu podia usar um megafone. Quando afinal concordaram, perguntei aos americanos por que estavam à toa na Ásia quando seu próprio país estava em chamas. Eles despertaram um pouco. Fiz um relato dos tiros disparados na Universidade de Kent – a Guarda Nacional de Ohio havia alvejado e matado quatro estudantes num protesto contra a invasão do Camboja promovida por Nixon –, fato ocorrido poucas semanas antes. Quatro milhões de estudantes americanos tinham entrado em greve. Pedi aos soldados que se unissem a mim num minuto de silêncio em memória dos estudantes mortos, mas um oficial apareceu e os conduziu de volta ao quartel. Os coreanos ficaram admirados. Resisti à tentação de lhes mostrar que minha “orientação prática” tinha sido mais eficaz do que a propaganda do Grande e Amado Líder.

De volta a Pyongyang, autorizaram meu encontro com o ministro do Exterior, que me transmitiu a posição oficial da Coreia do Norte em relação ao cenário mundial. Escutei educadamente. Quando eu estava de saída, ele disse: “Gostamos de seu discurso em Panmunjom, mas há uma coisa que o senhor parece não compreender sobre nosso país. O senhor não aprecia o papel que o camarada Kim Il Sung desempenhou na libertação e na criação da República Democrática Popular da Coreia.” Eu não podia negar isso. Ele me dirigiu um sorriso estranho.

Dois anos depois, me convidaram a voltar, para fazer um discurso numa conferência sobre “o papel do imperialismo americano na Ásia”. Relutei, mas os vietnamitas me persuadiram. Eles não tinham sido convidados e queriam que alguém defendesse sua posição sobre o assunto. Dessa vez a viagem durou mais. Primeiro fomos para Praga, onde o avião militar russo que iria nos transportar chegou com cinco dias de atraso. Quando afinal chegou, era um avião imundo e precário; no meio da noite, parou para reabastecer em Omsk, e desembarcamos para respirar um pouco de ar puro numa temperatura abaixo de zero. Em Pyongyang, cada delegado recebeu um Mercedes com motorista. Eu torcia para ter o mesmo intérprete, mas não tive sorte. Durante nosso convívio, ele havia me pedido um dicionário de inglês: dei para a nova equipe o dicionário que eu havia levado e pedi que o fizessem chegar às suas mãos. Disseram que ele tinha sido transferido para uma cidade pequena. No hotel, um membro do alto escalão do partido estava se reunindo separadamente com cada delegação. O tema da conferência tinha sido alterado, ele explicou. Era o sexagésimo aniversário do Grande e Amado Líder e acharam que devíamos discutir “a contribuição do camarada Kim Il Sung para o marxismo-leninismo”. Recusei-me prontamente e pedi que me mandassem de volta para casa. O membro do partido saiu do quarto muito nervoso.

Durante o jantar naquela noite, um simpático professor argelino e um representante da Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique) não conseguiam acreditar no que eu tinha feito. O argelino disse que havia se vendido por 5 mil dólares, o amigo da Frelimo estava constrangido demais para revelar a quantia que havia aceitado. Na manhã seguinte, me ofereceram 10 mil dólares, que seriam extremamente úteis para a revista que eu estava editando na época. Fiquei tentado a aceitar e depois fazer um discurso simplesmente satírico. Mas recusei. Mesmo assim, não me permitiram ir embora. Não haveria voos para a Europa antes de uma semana. Respondi que eu ia para o Paquistão. Disseram-me que também era difícil. O embaixador vietnamita veio falar comigo. Implorou que eu não fosse embora. “O culto à personalidade é terrível aqui”, ele disse. “Terrível mesmo.”

Numa recepção oficial um dia antes do início da conferência, fomos todos apresentados ao Grande e Amado Líder. Nunca em toda a minha vida senti tamanha aversão a um personagem político de esquerda. Seu pescoço abaloado parecia estar pedindo uma bala. Eu gostaria de ser um dezembrista. As únicas palavras que ele me dirigiu foram bem estranhas: “Londres, não é? The Red Flag [A Bandeira Vermelha]. Ainda cantam a música?”

Cometeram o erro de me dar um assento no plenário. Não aplaudi nenhum discurso, mas fiz anotações. O astro do Politburo que abriu a conferência – o tema era “a tarefa da ciência social de defender integralmente o pensamento revolucionário do grande líder camarada Kim Il Sung e difundi-lo amplamente” – citou um discurso do Grande e Amado Líder. “Existe uma canção revolucionária que diz: ‘Deixemos que os covardes hesitem e os traidores zombem. Aqui, vamos manter a bandeira vermelha desfraldada.’ Isso exprime nossa inabalável determinação.” Eu me perguntei quem em Moscou o teria apresentado ao hino da social-democracia britânica. Seu tenebroso discurso foi interrompido 143 vezes por aplausos, ovações de pé etc. Minha mesa no restaurante do hotel se ampliava dia após dia, à medida que um número crescente de incomodados vinha zombar de nossa situação. O codinome que criamos para o Grande e Amado Líder era Peterson.

A razão absurdamente narcisista para o culto era óbvia. Quem, afinal, era Kim Il Sung? De onde ele veio? Algum dia foi líder de guerrilha? Existiram comunistas coreanos bem conhecidos, inclusive uma mulher general. Kim Il Sung matou alguns deles. Outros fugiram para a China durante a ocupação japonesa e combateram ao lado dos guerrilheiros de Mao. Muitos veteranos da Longa Marcha eram coreanos. É possível que Kim Il Sung tenha sido guerrilheiro na China e depois tenha fugido para a Rússia. Não sabemos muito bem. O que sabemos é que o Exército Vermelho libertou o país em 1945 e os chineses o salvaram durante a Guerra da Coreia. Mas tais fatos nunca foram mencionados na propaganda da República Democrática Popular da Coreia. “Juche”, uma forma agressiva de autossuficiência, era a palavra escolhida para designar essa xenofobia. Na minha primeira viagem, quando perguntei a meu intérprete se havia lido algo de Marx, Engels ou Lênin, ele estranhou a pergunta. “Não”, respondeu-me. “Tudo foi interpretado pelo camarada Kim Il Sung.” Ele nem sabia dizer se algum dos textos clássicos estava disponível nas bibliotecas.

A certa altura, pareceu que os Estados Unidos iam simplesmente comprar os norte-coreanos. Clinton despachou Madeleine Albright para Pyongyang em 2000 para fazer um trato – um caminhão de dinheiro para os Kim, uma espécie de desnuclearização, seguida por uma branda reunificação com o sul –, mas o projeto não foi adiante. Bush não tinha o menor interesse em manter contato. Por quê? Tive uma espécie de resposta após um debate público sobre a Guerra do Iraque em Berlim, em 2003. Minha oponente era Ruth Wedgwood, de Yale, conselheira de Donald Rumsfeld. No almoço, perguntei-lhe quais eram seus planos para a Coreia do Norte. Mostrou-se conclusiva. “Você não viu o brilho nos olhos dos militares da Coreia do Sul?”, disse ela. “Estão loucos para tomar posse do arsenal nuclear da Coreia do Norte. Isso é inaceitável.” Por quê? “Porque se uma Coreia unificada se tornar uma potência nuclear, será impossível impedir que o Japão também se torne uma potência nuclear, e se tivermos a China, o Japão e uma Coreia unificada como Estados nucleares, a correlação de forças vai mudar de maneira desfavorável para nós.” Obama parece concordar com essa maneira de pensar. Seu problema é a China. Antes, os chineses pareciam indiferentes ao destino da Coreia. Não é mais o caso. As regiões próximas da fronteira com a China estão vivendo um boom e programas de tevê chineses são um paraíso em comparação com as produções kimistas. Por quanto tempo Pequim irá permitir que essa ópera absurda continue?

26 de janeiro de 2012

As exclusões e expansões do liberalismo

Uma resenha crítica do livro Contra-História do Liberalismo, do filósofo marxista Domenico Losurdo.

Nick Serpe


Leilão de pessoas escravizadas no estado de Virgínia, nos EUA, pouco antes da Guerra Civil, 1861. Imagem: Associated Press.

Tradução / Domenico Losurdo compõe sua Contra-História do Liberalismo com a ambiciosa tarefa de redefinir uma tradição política de centenas de anos. Ele não gasta muito tempo explorando a definição usual de liberalismo – um sistema de pensamento e organização política baseado na liberdade individual – e, em vez disso, traz à luz aspectos que “até agora têm sido ampla e injustamente ignorados”. Losurdo concentra-se nas cláusulas de exclusão presentes nas ideias e nas sociedades liberais englobando escravos, trabalhadores, os pobres e os povos coloniais. Ele não pretende apenas corrigir um registro hagiográfico demais para o seu gosto, mas também dizer algo profundo sobre os paradoxos no cerne do liberalismo.

O livro debate com pensadores liberais de maior e menor importância, mas não é nitidamente uma história intelectual. Contra o “pensamento liberal em sua pureza abstrata”, Losurdo chama a atenção para como os teóricos liberais, especialmente quando escreveram sobre pessoas a quem foi negada a liberdade, justificavam ou atenuavam aspectos incômodos das sociedades que propagandeavam: principalmente a Grã-Bretanha após a Revolução Gloriosa e os Estados Unidos, mas também Holanda, França (em certos momentos), América Latina pós-revolucionária e a Alemanha que emergiu na segunda metade do século XIX. Esses bastiões liberais são responsáveis por inúmeras políticas de repressão e até barbárie, que hoje seriam chamadas de “iliberais” sem hesitação, mas que na época foram defendidas por uma profusão de pensadores liberais.

Uma das controvérsias centrais de Losurdo, no entanto, diz que instituições como a escravidão racial, o colonialismo e hierarquias de classe codificadas nas leis não apenas encontravam apologistas liberais muito bem dispostos, mas que eram expressões da própria sociedade liberal. Na abertura de seu livro, ele reivindica para o liberalismo a figura de John C. Calhoun, teórico e Estadista do sul escravocrata nos EUA. Calhoun investia contra os “fanáticos” abolicionistas e elogiava a harmonização, o compromisso; ele se declarava um oponente do “governo absoluto” e acreditava firmemente no constitucionalismo. Ele defendia a liberdade – mas apenas para alguns, e ao preço de uma das instituições menos livres e mais brutais da história humana.

Colocar Calhoun no início do livro é útil para alguns argumentos que Losurdo deseja construir. O primeiro é que o liberalismo representaria a revolta da sociedade civil contra o poder central e que, portanto, muitas vezes levou a novas e mais severas formas de poder fora do estado – o poder dos proprietários das plantations, de corporações coloniais e de capitalistas urbanos. Em segundo lugar, a crueldade dessas novas formas de poder derivaria em grande parte da posição fundamental dos direitos de propriedade no interior do liberalismo – incluindo o direito à propriedade humana. Terceiro, as restrições à filiação na “comunidade dos livres” tornariam a liberdade ainda mais preciosa para seus possuidores, produzindo uma casta de homens livres ansiosos por manter “no seu lugar” as castas mais baixas (cuja emancipação completa levaria a reivindicações de longo alcance contra a propriedade privada). A eventual emancipação dos não proprietários, por sua vez, dependeria de uma “linha nítida de demarcação entre brancos, por um lado, e negros e peles-vermelhas, por outro”.

Essa é uma teoria bastante sofisticada, mas a inclusão de Calhoun no panteão liberal não pode deixar de levantar algumas sobrancelhas de desconfiança. Seus argumentos contra o fanatismo e os “governos absolutos” e a favor do “compromisso” e do constitucionalismo o tornam um liberal ou um conservador que sabia mobilizar a linguagem da liberdade em benefício de sua classe? Em alguns momentos, Losurdo parece abraçar a ideia de que não há muita diferença entre os dois, escrevendo que a “celebração da liberdade” do liberalismo estava “vinculada à realidade de um poder absoluto sem precedentes” e que ela “pode ser claramente interpretada como uma ideologia”. Porém, à medida que o livro avança, fica explícito que ele não enxerga todos os teóricos liberais como cúmplices em uma farsa em nome das configurações existentes de poder e riqueza.

Ao mesmo tempo, Losurdo se opõe à ideia de que alguma dialética interna da liberdade teria levado os liberais a enfrentar com mais honestidade as exclusões do liberalismo inicial. Em vez disso, ele aponta para os principais conflitos dentro da comunidade dos livres – durante a Revolução Americana, as Revoluções Francesa e Haitiana, a Guerra Civil Americana e a Primeira Guerra Mundial – como momentos de constrangimento e desmistificação mútuos, quando aqueles em lados opostos em torno de uma questão política expunham as formas de falta de liberdade que seus adversários institucionalizavam. Os revolucionários americanos, por exemplo, proclamavam que sofriam sob o jugo da “escravidão política”. Os britânicos respondiam “ironizando sobre a bandeira da liberdade hasteada por proprietários de escravos” e apontando para o tratamento brutal dispensado aos nativos americanos. Tornou-se mais complicado para os liberais – embora não impossível – continuar justificando a escravidão após essas polêmicas. No rescaldo da Guerra Civil estadunidense, eles abandonaram por completo essa linha de argumentação, embora ainda não abandonassem o princípio da democracia com base racial. Como resultado desses conflitos sangrentos, o liberalismo absorveu ideias mais inclusivas e até mais igualitárias, demonstrando a “flexibilidade” que é um dos poucos méritos que Losurdo atribui à essa tradição.

Embora em alguns casos, como na Revolução Americana, os lados opostos em um conflito fossem compostos por liberais com interesses concorrentes, em outros casos Losurdo encontra uma dinâmica diferente em ação. Durante a Revolução Francesa, argumenta ele, pessoas antes inspiradas pela Revolução Americana ficaram tristes porque sua promessa de liberdade sucumbiu a um Estado racial inveterado. Em sua desilusão, elas deixaram de analisar as sociedades liberais apenas a partir da posição da comunidade dos livres. A palavra que Losurdo usa para o liberalismo desiludido é “radicalismo”, uma tradição cujos proponentes reconheciam que a liberdade em relação ao Estado não é igual à liberdade em geral, pelo menos para a vasta maioria. De acordo com Losurdo, mais do que qualquer compromisso político específico, o radicalismo implicou em uma mudança da perspectiva focada naqueles que desfrutavam da liberdade para uma perspectiva voltada àqueles que não desfrutavam dela e em uma disposição para permitir que estes últimos assumissem a “luta pelo reconhecimento” em suas próprias mãos.

A perspectiva radical desmente a divisão entre aquilo que Benjamin Constant, na esteira da Revolução Francesa, chamou de “liberdade dos antigos” (autogoverno) e “liberdade dos modernos” (o direito à vida privada e à propriedade privada, livre da interferência do Estado). Os defensores liberais do status quo acima de tudo elogiavam a liberdade moderna, ou (nas palavras de Isaiah Berlin) a “liberdade negativa“, especialmente quando se tratava de redistribuição de riqueza. A maioria das pessoas, é claro, não tinha propriedade para desfrutar, em grande parte porque lhes fora negada a liberdade “positiva” de participar do governo de suas sociedades. Mais do que simplesmente privar os pobres dessa participação, no entanto, os liberais muitas vezes demonstraram uma tendência, tanto na teoria quanto na prática, “de governar a existência das classes populares até nos menores detalhes” – por meio da frequência obrigatória à igreja, de internamento de mendigos em casas de correção e de restrições à reunião, entre outros regulamentos. Tanto a liberdade positiva quanto a negativa estavam fora de seu alcance.

Losurdo argumenta, embora apenas brevemente, que o radicalismo devia tanto à religião cristã (que alguns liberais esperavam varrer como uma mera superstição) quanto à própria ideia de liberdade. No final do livro, ele praticamente abandona essa sugestão e, em vez disso, descreve “dois liberalismos”: um que identificava “a ‘verdadeira liberdade’ com o controle irrestrito do senhor sobre sua família, bem como seus servos e seus bens”; e o outro, “mobilizado pelos servos, que se recusavam a se deixar assimilar aos pertences do senhor e que buscavam a emancipação por meio da intervenção do poder político em seu nome, seja este o poder já existente ou o poder formado na esteira de uma revolução vinda de baixo”. Este último, é claro, soa quase idêntico ao “radicalismo” descrito como uma força que se opõe ao liberalismo alguns capítulos antes – uma tensão não resolvida no livro de Losurdo que pode nos levar a questionar se “liberalismo” e “radicalismo” podem ser tão separados de maneira tão nítida. Até Kant e Mill, admite Losurdo, tinham em si algo da perspectiva radical; e, por outro lado, o Rheinische Zeitung, que Marx editou no início da década de 1840, era um jornal radical, mas também “liberal”.

O escrutínio implacável de Losurdo às vezes vem às custas de um quadro mais completo sobre o liberalismo. Se ele admite “dois liberalismos”, é o mais conservador deles que Losurdo passa a maior parte do livro expondo, e o menos conservador mais frequentemente ele chama de “radicalismo” em vez de liberalismo como tal. O livro de Losurdo é, sem dúvida intencionalmente, uma leitura do liberalismo a partir da perspectiva daqueles que o liberalismo marginalizou ou pior, mas muitas vezes ele parece ter medo de permitir que “radicalismo” e “liberalismo” se misturem. Hayek e Von Mises, por exemplo, fazem participações especiais denunciando concessões liberais ao socialismo nos escassos comentários de Losurdo sobre o século XX após a Primeira Guerra Mundial; já Keynes e Rawls, por outro lado, não recebem uma única menção.

Esse problema de viés de seleção perseguirá qualquer livro que cubra tanto terreno e que amarre tantas interpretações históricas disputadas. A erudição de Losurdo é quase inacreditável, o que talvez explique por que seu texto, tão abrangente, carece de uma explicação sistemática sobre aquilo que faz do liberalismo o que ele é. De certa forma, isso é em benefício de Losurdo: embora se possa separar algumas de suas interpretações ou seu ceticismo quase automático em relação ao liberalismo, ele chega a várias conclusões provocativas, e nem todas precisam permanecer de pé para que seu livro seja persuasivo. Tomemos, por exemplo, aquela que talvez seja sua conclusão mais provocante de todas, esboçada rapidamente no capítulo final da Contra-História do Liberalismo: a guerra total, o extermínio e a ordenação racial da sociedade, que receberiam tanto repúdio na esteira da Segunda Guerra Mundial, encontravam expressão na sociedade e no pensamento liberais poucas décadas antes. Embora ele tire essa conclusão do trabalho de outros estudiosos, os pesquisadores do fascismo contestarão corretamente uma genealogia vulgar em que o liberalismo levaria ao nazismo. No entanto, dar atenção aos resultados contraditórios e às vezes cruéis da emancipação liberal da sociedade civil – incluindo o abraço liberal da eugenia – é uma tarefa importante para qualquer pessoa preocupada em evitar uma caracterização da “catástrofe do século XX como uma espécie de nova invasão bárbara que inesperadamente teria atacado, confundido e engolido uma sociedade saudável e feliz.”

O livro de Losurdo é mais do que apenas uma intervenção útil na historiografia liberal. Contudo, como ele o interrompe com alguns breves comentários sobre a Segunda Guerra Mundial, ele nunca integra os desenvolvimentos do liberalismo desde seu encontro com o socialismo, o fim do colonialismo, o fim da segregação racial codificada na lei e a libertação das mulheres com suas teorias decorrentes da revolta da sociedade civil. Em particular, o silêncio de Losurdo sobre as lutas das mulheres por reconhecimento é tão completo que chega a ser intrigante. Ele deixa essas lutas de lado porque liberais como Bentham e Mill eram críticos ferozes de sua sociedade patriarcal?

Em vez de voltar seu olhar crítico para as ideias liberais que floresceram no século XX, como o intervencionismo humanitário e o welfarismo, ele termina com questões em aberto como “será que o liberalismo deixou definitivamente para trás a dialética da emancipação e da des-emancipação, com todos os perigos de regressão e restauração implícitos nela?” Lidar com um século a mais em seu estudo teria exigido acréscimos substanciais a um livro já robusto, mas dados os emaranhados e paradoxos do liberalismo contemporâneo, é difícil não desejar que ele tivesse empreendido esse esforço.

Há outra ausência em Contra-História do Liberalismo que deve incomodar até mesmo os leitores simpáticos aos argumentos apresentados no livro: podemos sentir o capitalismo por toda parte, mas ele quase nunca é nomeado. Em uma passagem, Losurdo distancia explicitamente o “radicalismo” do “socialismo”, que ele acredita poder envolver exclusões (especificamente com respeito às colônias) semelhantes às do liberalismo. Em outra passagem, ele elogia a ênfase liberal na “concorrência entre indivíduos no mercado” para a criação de riqueza social e o desenvolvimento de capacidades produtivas, desde que esses mercados atendam a certas condições que as sociedades liberais do pré-guerra nunca cumpriram. Liberais e radicais têm se encontrado nos dois lados dos debates recentes sobre o imperialismo e, após as vitórias da política identitária, parecem concordar em grande medida na questão da “perspectiva” que para Losurdo é uma linha divisória. Suas divergências com relação a questões de organização econômica e de poder econômico deveriam agora ser mais evidentes do que nunca.

Contra-História do Liberalismo foi publicado na Itália em 2005, quando o império estadunidense provavelmente parecia uma preocupação mais urgente do que o capitalismo global. Se não era óbvio na época, deveria ser agora: os críticos das forças que estão subvertendo a democracia e o livre desenvolvimento de todos os indivíduos precisarão fazer mais do que olhar para o mundo com os olhos dos miseráveis da Terra. Todavia, para os realistas crassos que diriam que infelizmente este é o melhor de todos os mundos possíveis, uma mudança de perspectiva seria um ótimo ponto de partida.

Colaborador

Nick Serpe é editor sênior da revista Dissent.

A revolta da burguesia assalariada: O novo proletariado

Como Bill Gates se tornou o homem mais rico da América? Sua riqueza não tem nada a ver com a Microsoft produzindo bons softwares a preços mais baixos do que seus concorrentes, ou "explorando" seus...

Slavoj Žižek


Vol. 34 No. 2 · 26 January 2012

Tradução / Como Bill Gates tornou-se o homem mais rico dos EUA? Sua riqueza nada tem a ver com os custos de produção do que a Microsoft vende: i.e., não é resultado de ele produzir bom software a preços mais baixos que a concorrência, nem de “explorar” seus operários com melhores resultados (a Microsoft paga salários relativamente altos aos operários intelectuais que contrata). Fosse assim, a Microsoft já teria falido há muito tempo: as pessoas teriam escolhido sistemas abertos, como o Linux que são tão bons, ou até melhores, que os produtos Microsoft. 

Milhões de pessoas continuam a comprar software da Microsoft porque a Microsoft impôs-se, ela mesma, como padrão quase universal, praticamente monopolizou o campo, encarnação do que Marx chamou de “intelecto geral”, significando conhecimento coletivo em todas as suas formas, da ciência ao saberes práticos. Gates efetivamente privatizou parte do intelecto geral e enriqueceu apropriando-se do lucro que extraiu dessa apropriação.

A possibilidade de que o intelecto geral fosse algum dia privatizado jamais passou pela cabeça de Marx, nem por perto de seus escritos sobre o capitalismo (em boa parte porque Marx passou ao largo das dimensões sociais do capitalismo). Mas a questão está na base das lutas de hoje em torno da propriedade intelectual: o papel do intelecto geral – baseado no conhecimento coletivo e na cooperação social – aumentou no capitalismo pós-industrial, assim como a riqueza que se acumula, fora de qualquer proporção com o trabalho usado para produzi-lo. 

O resultado não está sendo, como parece que Marx esperava, a autodissolução do capitalismo, mas a gradual transformação do lucro gerado pela exploração do trabalho em renda apropriada mediante a privatização do conhecimento.

Vale o mesmo para os recursos naturais, cuja exploração é um das principais fontes de lucros no mundo. Daí brota a luta permanente entre os aspirantes àqueles lucros: os cidadãos do Terceiro Mundo, ou as corporações ocidentais.

Há alguma ironia na evidência de que, ao explicar a diferença entre o trabalho (que, usado, produz mais valia) e outras commodities (cujo valor é integralmente consumido, ao serem usadas), Marx fale do petróleo como exemplo de commodity “comum”.

Hoje, qualquer tentativa de ligar aumentos e quedas do preço do petróleo a aumentos e quedas nos custos de produção ou no preço do trabalho explorado seria absolutamente sem sentido: os custos de produção são desprezíveis, como proporção do preço que se paga pelo petróleo, preço que, de fato, é o lucro que os proprietários dos recursos podem exigir, graças à oferta limitada.

Uma modificação na função do desemprego é outra das consequências do aumento na produtividade, por causa do crescimento exponencial no impacto do saber coletivo.

O desemprego é produzido por um capitalismo muito bem-sucedido (maior eficiência, maior produtividade etc.) – que torna os trabalhadores cada vez mais inúteis: o que deveria ser uma bênção – haver cada vez menos trabalho braçal – converteu-se em maldição. Ou, dito de outro modo: a chance de ser explorado num trabalho de longo prazo é vista hoje como privilégio.

O mercado mundial, como diz Fredric Jameson, é agora “um espaço no qual todos foram um dia trabalhador produtivo e no qual o trabalho, por todas as partes, começou a ser precificado fora do sistema”.

No atual processo da globalização capitalista, a categoria do desempregado já não está confinada ao “exército de trabalho reserva”; inclui também, como Jameson escreve, “essas populações massivas em todo o mundo que, como aconteceu, caíram fora da história”, que foram deliberadamente excluídas dos projetos de modernização do Primeiro Mundo capitalista e descartadas como casos terminais sem esperança”: os chamados estados falidos (República Democrática do Congo, a Somália), vítimas de fome epidêmica ou desastre ecológico, presas na armadilha de pseudo arcaicos “ódios étnicos”, objetos de filantropia de ONGs ou alvos da “guerra ao terror”. 

A categoria dos desempregados expandiu-se, pois, e hoje inclui vastas quantidades de pessoas, dos temporariamente desempregados, passando pelos já não empregáveis e permanentemente desempregados, até os habitantes de guetos e favelas (gente que o próprio Marx várias vezes descartou como “lumpen-proletários”), chegando, finalmente, a populações inteiras ou estados excluídos do processo capitalista global, como os espaços em branco dos mapas antigos. 

Há quem diga que essa nova forma de capitalismo oferece novas possibilidades de emancipação. Essa, seja como for, é a tese de Hardt e Negri em Multidão, onde tentam radicalizar Marx, dizendo que, se se decapitar o capitalismo, obteremos o socialismo.

Marx, como esses autores o veem, foi historicamente limitado pela noção de trabalho industrial mecanizado, centralizado, automatizado e hierarquicamente organizado, razão pela qual entendeu o “intelecto geral” como algo de certo modo semelhante a uma agência central de planejamento; só hoje, com o crescimento do “trabalho imaterial”, essa virada revolucionária tornou-se “objetivamente possível”.

Esse trabalho imaterial estende-se entre dois polos: do trabalho intelectual (produção de ideias, textos, programas etc.) ao trabalho afetivo (dos médicos, babás e aeromoças). Hoje, o trabalho imaterial é “hegemônico” no sentido em que Marx proclamou que, no capitalismo do século 19, a grande produção industrial era hegemônica: porque se impõe não pela força dos números, mas pelo papel estrutural chave, emblemático que desempenha. Emerge daí um vasto novo domínio chamado o “comum” conhecimento partilhado e novas formas de comunicação e cooperação.

Os produtos da produção imaterial não são objetos, mas novas relações sociais e interpessoais; a produção imaterial é biopolítica, a produção da vida social.

Hardt e Negri descrevem aí o processo que os ideólogos do capitalismo “pós-moderno”n  celebram como a passagem da produção material à produção simbólica; da lógica centralista-hierárquica à lógica da auto-organização e cooperação multicêntrica. A diferença é que Hardt e Negri são efetivamente fiéis a Marx: tentam provar que Marx estava certo, que o crescimento do intelecto geral no longo prazo é incompatível com o capitalismo. 

Os ideólogos do capitalismo pós-moderno dizem exatamente o contrário: a teoria (e a prática) marxista continua dentro dos limites da lógica hierárquica do controle estatal centralizado e, portanto, não conseguem lidar com os efeitos sociais da revolução da informação. Há boas razões empíricas que sustentam essa posição: o que realmente levou à ruína os regimes comunistas foi a inabilidade para acomodarem-se à nova lógica social sustentada pela revolução da informação: tentaram dirigir a revolução construindo dentro dela um outro projeto centralizado de planejamento estatal em larga escala. O paradoxo está em que o que Hardt e Negri celebram como a única chance de superar o capitalismo é celebrado pelos ideólogos da revolução da informação como o nascimento de um capitalismo “sem atrito”.

A análise de Hardt e Negri tem alguns pontos fracos – o que explica como o capitalismo conseguiu sobreviver ao que teria sido (em termos marxistas clássicos) uma nova organização da produção que o teria tornado obsoleto.

Os autores subestimam a extensão em que o capitalismo de hoje (pelo menos no curto prazo) já conseguiu privatizar o próprio intelecto geral; subestimam também a evidência de que, mais que a burguesia, os próprios trabalhadores estão-se tornando supérfluos (com número sempre crescente de trabalhadores já não só temporariamente desempregados, mas estruturalmente inempregáveis).

Se o velho capitalismo envolvia idealmente um empreendedor que investia dinheiro (seu ou emprestado) na produção que ele próprio organizava e comandava e, na sequência, o empreendedor embolsava o lucro, um novo tipo ideal começa a emergir hoje: já não se trata do empreendedor dono da própria empresa, mas do gerente especialista (ou de um conselho de gerência e administração presidido por um presidente executivo) que administra uma empresa cujos proprietários são bancos (também administrados por gerentes que não são os donos dos bancos) ou investidores dispersos. Nesse novo tipo ideal de capitalismo, a velha burguesia, que ficou sem função, é refuncionalizada como gerência assalariada: a nova burguesia recebe salários, mesmo que seja proprietária de partes da empresa; e parte de sua remuneração são ações da própria empresa (“bônus” pelo “sucesso”).

Essa nova burguesia ainda se apropria da mais valia, mas sob a forma (mistificada) do que tem sido chamado de “salário extra”: recebem mais que o “salário mínimo” proletário (muitas vezes uma referência mítica, da qual os exemplos reais que se conhecem na economia global é o salário de fome de um operário de porão chinês na China ou na Indonésia), e é essa diferença em relação aos proletários comuns que determina o seu status.

A burguesia no sentido clássico tende assim a desaparecer: os capitalistas reaparecem como um subconjunto de trabalhadores assalariados, como gerentes e administradores qualificados para ganhar mais em virtude de sua competência (motivo pelo qual as “avaliações” pseudo-científicas são cruciais: elas legitimam as diferenças nos holerites).

Longe de estar limitada a gerentes, a categoria dos trabalhadores que ganham salário extra inclui todos os tipos de especialistas, administradores, funcionários públicos, médicos, advogados, jornalistas, intelectuais e artistas. A mais valia assume então duas formas: mais dinheiro (para os gerentes, etc.), mas também menos trabalho e mais tempo livre (para – alguns – intelectuais, mas também para os administradores do Estado, etc.).

O processo de avaliação que qualifica alguns trabalhadores a receber “salário a mais” é mecanismo arbitrário de poder e ideologia, sem qualquer vínculo com qualquer competência real; o salário a mais não existe por razões econômicas, mas por razões políticas: para manter uma “classe média” que garanta a estabilidade social.

A arbitrariedade da hierarquia social não é erro; é, isso sim, questão central, com a arbitrariedade da avaliação desempenhando papel análogo à arbitrariedade do sucesso de mercado. 

A violência ameaça explodir não quando há contingência demais no espaço social, mas, sim, quando se tenta eliminar qualquer contingência. Em La Marque du sacré, Jean-Pierre Dupuy concebe a hierarquia como um de quatro procedimentos (“dispositivos simbólicos”) cuja função é tornar não humilhante a relação de superioridade:

- a hierarquia propriamente dita (ordem imposta de fora que me permite experienciar meu status social inferior como se não tivesse qualquer relação com meu valor inerente);

- a desmistificação (procedimento ideológico que demonstra que a sociedade não é uma meritocracia, mas o produto de lutas sociais objetivas, que me permite evitar a dolorosa conclusão segundo a qual a superioridade de outra pessoa seria resultado de seus méritos e realizações);

- a contingência (mecanismo similar, pelo qual se chega a entender que nossa posição na escala social depende de uma loteria natural e social; os de melhor sorte são os que nasceram com os genes certos, nas famílias ricas); e

- acomplexidade (forças incontroláveis levam a consequências imprevisíveis; por exemplo, a mão invisível do mercado pode determinar o meu fracasso e o sucesso do meu vizinho, mesmo que eu trabalhe muito mais e seja muito mais inteligente). 

Diferente do que parecem, esses mecanismos não contestam nem ameaçam a hierarquia, porque a tornam palatável, dado que “o que dispara o torvelinho da inveja é a ideia de que o outro merece a boa sorte que tem, não a ideia oposta – a única que pode ser manifesta abertamente”.

Dupuy extrai dessa premissa a conclusão de que é grave erro pensar que uma sociedade razoavelmente justa que se perceba como justa, estará, por isso, livre de ressentimentos: é exatamente o contrário; precisamente nesse tipo de sociedade os que ocupam posições inferiores buscam e encontraram, em violentas irrupções de ressentimento, vazão para o orgulho ferido.

Ligado a isso é o impasse que a China enfrenta hoje: o objetivo ideal das reformas de Deng foi introduzir o capitalismo sem qualquer burguesia (porque a burguesia seria a nova classe dominante); mas agora os líderes da China estão ante a dolorosa descoberta de que capitalismo sem hierarquia estável (que a existência da burguesia oferece) gera instabilidade permanente.

Que caminho seguirá a China?

Os ex-comunistas estão emergindo como os mais eficientes gerentes do capitalismo, porque a inimizade histórica que nutrem contra a burguesia como classe acomoda-se perfeitamente à tendência do capitalismo de hoje para tornar-se capitalismo gerencial sem uma burguesia – nos dois casos, como Stálin disse há muito tempo, “os quadros decidem tudo”. (Diferença interessante entre a China de hoje e a Rússia: na Rússia, os professores universitários são escandalosamente mal pagos – e, de fato, já são parte do proletariado – na China, recebem confortabilíssimo salário “a mais”, mecanismo pelo qual sua docilidade fica assegurada.)

A ideia do salário a mais também lança nova luz sobre os protestos “anticapitalistas” em curso. Em tempos de crise, os candidatos óbvios ao “aperto do cinto”:  são os baixos níveis da burguesia assalariada: o protesto político é seu único recurso, se querem evitar unir-se ao proletariado. Embora os seus protestos sejam nominalmente dirigidos contra a brutal lógica do mercado, estão, de fato, protestando contra a gradual erosão do lugar econômico privilegiado (politicamente) que sempre foi deles.

Ayn Rand tem uma fantasia em Atlas Shrugged (1957), de capitalistas “criativos”, fantasia que encontra sua realização pervertida nas greves de hoje, que são greves, na maior parte, de uma “burguesia assalariad”’ movida pelo medo de perder seus privilégios (o “a mais” sobre o salário mínimo). Não são protestos proletários: são protestos contra a ameaça de serem reduzidos a proletários. Quem se atreve a fazer greve hoje, em tempos em que ter emprego fixo já é, só isso, um privilégio? Não os trabalhadores mal pagos (no que resta) da indústria têxtil etc., mas os trabalhadores privilegiados que têm empregos garantidos (professores, funcionários dos serviços de transporte público, policiais). Vale o mesmo para a onda de protestos de estudantes: a principal motivação é, pode-se dizer, o medo de que a educação superior não mais lhes assegure “salário a mais” depois que deixarem a universidade.

Ao mesmo tempo, é evidente que o vasto renascimento de protestos do ano passado, da Primavera Árabe à Europa Ocidental, de Occupy Wall Street à China, da Espanha à Grécia, não pode ser reduzido a revolta da burguesia assalariada. Cada caso tem de ser considerado à luz dos próprios méritos. Os protestos de estudantes contra a reforma universitária na Grã-Bretanha foram visivelmente diferentes dos tumultos de rua de agosto, que foram carnaval de destruição consumista, verdadeira explosão dos excluídos.

Pode-se dizer que os levantes no Egito começaram em parte como revolta da burguesia assalariada (jovens educados em protesto contra a ausência de perspectivas de vida para eles mesmos), mas esse foi apenas um aspecto de protesto mais amplo contra um regime opressivo. Por outro lado, os protestos não mobilizaram trabalhadores pobres e camponeses; e a vitória eleitoral dos islamistas é indicação de o quanto era pequena a base secular original das manifestações de rua. 

A Grécia é caso especial: nas últimas décadas, foi criada ali uma nova burguesia assalariada (sobretudo dentro da super ampliada base administrativa do Estado) graças à ajuda financeira e aos empréstimos da União Europeia; e os protestos foram motivados, em grande parte, contra as ameaças de extinguirem-se aqueles privilégios.

Ao mesmo tempo, a proletarização das faixas de salários mais baixos da burguesia ocorre ao lado do oposto extremo: a remuneração economicamente irracionalmente muito alta paga aos gerentes-executivos top e banqueiros. Essa remuneração é economicamente irracional, sim: pesquisas já comprovaram nos EUA que a remuneração dos gerentes-executivos top e banqueiros é inversamente proporcional ao sucesso das respectivas empresas. 

Em vez de nos pormos a escrever crítica moralista contra essas tendências, temos de lê-las como sinais de que o próprio sistema capitalista já não é capaz, ele mesmo, de encontrar níveis de estabilidade autorregulada. É o mesmo que dizer que o capitalismo está a um passo de descontrolar-se completa e absolutamente.

22 de janeiro de 2012

A primavera encontra o inverno

Ecos de rebeliões passadas na onda global de protestos de 2011. Em um cenário de crise econômica mundial, quais forças moldarão o resultado das disputas entre um sistema envelhecido e seus desafiantes emergentes?

Mike Davis


NLR 72 • Nov/Dec 2011

Tradução / Nos grandes levantes, as analogias literalmente explodem no ar. Protestos de 2011 que emocionaram o mundo - a Primavera Árabe, os verões quentes na Espanha e na Grécia, o outono dos movimentos Ocupe nos Estados Unidos - inevitavelmente foram comparados aos anni mirabiles de 1848, 1905, 1968 e 1989. Certamente, algumas coisas fundamentais ainda se aplicam e os padrões clássicos se repetem. Os tiranos tremem, as correntes se partem e os palácios são invadidos. As ruas se tornam laboratórios mágicos onde se criam os conceitos de cidadania e de companheirismo, e ideias radicais adquirem repentinamente um poder telúrico. O Iskra (jornal político redigido por emigrantes russos na Alemanha, de cunho marxista) torna-se o atual Facebook. Mas será que o cometa dos protestos persistirá no céu do inverno ou não passará de uma chuva de meteoros rápida e ofuscante? Como o destino das journées revolutionnaires de outrora nos adverte, a primavera é a estação mais curta, principalmente quando os communards combatem em nome de um "mundo diferente", para o qual não existe projeto concreto nem imagem idealizada.

Mas talvez isso venha mais tarde. Por enquanto, a sobrevivência de novos movimentos sociais exige que eles finquem raízes na resistência das massas à catástrofe econômica global, o que, por sua vez, pressupõe - sejamos honestos - que a disposição atual para a "horizontalidade" possa abranger uma "verticalidade" disciplinada para debater e empreender estratégias de organização. A estrada será assustadoramente longa até alcançar os pontos de partida de tentativas anteriores para a construção de um mundo novo. Entretanto, uma certa geração já iniciou corajosamente a jornada.

Será que o agravamento da crise econômica, que está devorando grande parte do mundo, acelerará uma renovação global da esquerda? Os pontos a seguir são conjeturas minhas. Com a finalidade de instigar o debate, são simplesmente pensamentos em voz alta sobre algumas das especificidades históricas dos acontecimentos de 2011 e os resultados que poderão apresentar nos próximos anos. A premissa subjacente é a de que o segundo ato do drama poderá acarretar cenas hibernais, num cenário de colapso do crescimento econômico baseado em exportações nos países do bloco BRICS e também da estagnação persistente na Europa e nos Estados Unidos.

1. Pesadelos do capitalismo

Em primeiro lugar, devemos prestar um tributo ao medo e ao pânico do capitalismo. O que era inconcebível apenas um ano atrás, até mesmo para a maioria dos marxistas, agora é o fantasma que assombra as páginas dos editoriais da imprensa econômica: a iminente destruição de boa parte da estrutura institucional da globalização e a erosão da ordem internacional depois de 1989. Existe uma crescente apreensão de que a crise da zona do euro, seguida por uma recessão mundial sincronizada, possa nos fazer voltar ao mundo dos anos 30 com seus blocos monetários e comerciais semiautárquicos, obcecados por ressentimentos nacionalistas. Nesse cenário, a norma hegemônica do dinheiro e da demanda já não existe: os EUA estão demasiado enfraquecidos; a Europa, demasiado desorganizada; e a China, com pés de barro, demasiado dependente das exportações. Até as potências de segundo escalão gostariam de ter a própria apólice de seguro representada pelo urânio enriquecido; guerras nucleares regionais se tornariam uma possibilidade. Muito distante? Talvez, mas também é bizarra a crença nas viagens no tempo para os anos loucos da década de 90. Nossas mentes analógicas simplesmente não conseguem resolver todas as equações diferenciais geradas pela incipiente fragmentação da zona do euro ou consertar uma pane no motor do crescimento da China. Enquanto a explosão em Wall Street, em 2008, foi antecipada por vários especialistas, com maior ou menor precisão, o que agora se aproxima rapidamente está muito além da capacidade de previsão de qualquer cassandra ou de três Karl Marx.

2. De Saigon a Cabul

Se um apocalipse neoliberal está realmente por perto, Washington e Wall Street serão considerados os principais anjos exterminadores, por explodirem ao mesmo tempo o sistema financeiro do Atlântico Norte e o Oriente Médio (e ainda destruíram qualquer chance de frear o desastre climático). As invasões do Iraque e do Afeganistão ordenadas por Bush poderão ser consideradas, numa retrospectiva histórica, atos ditados pela clássica arrogância desmedida: rápidas vitórias por meio de armas modernas e ilusões de onipotência, seguidas por longas guerras de desgaste e atrocidades que ameaçam acabar quase tão mal para Washington quanto a aventura de Moscou com a travessia do Rio Oxus, um quarto de século atrás. Numa das frentes, os Estados Unidos foram bloqueados pelo Talibã, com o apoio do Paquistão, e na outra, pelos xiitas, com o apoio do Irã. Embora ainda presa a Israel, e capaz de encher os céus de drones assassinos ou coordenar um ataque mortífero da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), Washington não conseguiu a garantia de imunidade para as forças americanas no Iraque, limitando o número de tropas num país que constitui o eixo do Oriente Médio. Com os levantes democráticos na Tunísia e no Egito, Obama e Hillary Clinton foram obrigados a aplaudir polidamente a eliminação de dois dos regimes por eles favorecidos.

O óbvio dividendo da retirada - um equilíbrio mais racional do poderio militar e dos objetivos americanos de conformidade com a redução dos recursos fiscais e da influência econômica global - continua refém dos planos mirabolantes de Tel-Aviv ou de uma ameaça mortal ao absolutismo saudita. Embora as vastas reservas de petróleo pesado do Canadá e de xisto betuminoso dos Montes Allegheny possam reduzir diretamente a dependência dos EUA dos campos do Oriente Médio, ainda não são suficientes para libertar a economia americana, como alguns pretendem, dos preços da energia nos mercados mundiais, determinados pela política no Golfo.

3. O 1848 árabe

A revolução política do mundo árabe, que ainda não se concluiu, é de dimensões épicas em sua energia social, uma surpresa histórica comparável a 1848 ou a 1989. A ela se deve a reformulação da geopolítica da África do Norte e do Oriente Médio, que torna Israel um obsoleto posto avançado da Guerra Fria (e portanto mais perigoso e imprevisível do que nunca), permitindo ao mesmo tempo que a Turquia, abandonada pela União Europeia (o que, afinal, não é de todo ruim), reivindique uma influência central em territórios outrora otomanos. No Egito e na Tunísia, os levantes também contribuíram para resgatar o autêntico significado de democracia das versões expurgadas propagadas pela OTAN. Paralelos provocadores podem ser traçados com as "revoluções das flores" do passado e do presente. Como em 1848 e 1989, a megaintifada árabe é um levante gerado pela reação contra um sistema autocrático regional, em que o Egito pode ser considerado análogo à França no primeiro caso, e talvez à Alemanha Oriental no segundo. O papel da Rússia contrarrevolucionária é hoje desempenhado pela Arábia Saudita e pelos países do Golfo. A Turquia representa a Inglaterra liberal como modelo regional de parlamentarismo e sucesso econômico moderados, enquanto os palestinos (esticando a analogia até seu ponto de ruptura) constituem uma romântica causa perdida como os poloneses; e os xiitas, indignados forasteiros como eslovacos e sérvios. (O Financial Times aconselhou recentemente Obama a pensar como um "novo Metternich".)

Vale a pena passar rapidamente os olhos pelo volumoso material de Marx e Engels a respeito de 1848 (bem como as interpretações posteriores de Trotski) na tentativa de compreender a mecânica fundamental dessas revoluções. Um exemplo é a convicção de Marx, que acabou cristalizada em dogma, de que na Europa nenhuma revolução - democrática ou socialista - poderia ser bem-sucedida enquanto a Rússia não fosse derrotada numa grande guerra ou passasse por uma revolução interna. Se a substituirmos pela Arábia Saudita, a tese continuará fazendo sentido.

4. Partido do povo

O Islã político está ganhando um mandato popular tão amplo (embora talvez não mais duradouro) quanto o concedido pelos acontecimentos de 1989 aos liberais da Europa Oriental. E nem poderia ser diferente. Nos últimos 50 anos, Israel, os Estados Unidos e a Arábia Saudita - os dois primeiros por meio de invasões e a terceira pelo proselitismo - praticamente destruíram a política secular no mundo árabe. Na realidade, com o fim inevitável do último baatista em seu bunker de Damasco, os grandes movimentos políticos pan-árabes dos anos 50 (nasserismo, comunismo, baatismo, Irmandade Muçulmana) terão sido reduzidos à Irmandade e a seus rivais wahhabis.

A Irmandade, principalmente em seu berço egípcio, é a última solteirona dos movimentos políticos, depois de esperar mais de 75 anos para assumir o poder, apesar do apoio maciço de que desfruta ao longo do Nilo, estimado em vários milhões já no fim dos anos 40. A persistência desse veterano movimento político multinacional em pelo menos cinco países árabes constitui também uma das principais diferenças entre o levante de 2011 e os precedentes europeus. Tanto em 1848 e em 1989, os movimentos democráticos populares possuíam uma organização política apenas embrionária. Na realidade, em 1848 não existia praticamente nenhum partido político de massa no sentido moderno, fora dos Estados Unidos. Por outro lado, em 1989-91 o vácuo deixado pela organização política e pelo conhecimento das relações internacionais foi rapidamente preenchido por um grupo de conservadores alemães e comissários de Wall Street, que afastaram a maior parte das verdadeiras lideranças populares.

Em contraposição, a Irmandade Muçulmana foi aparecendo sem estardalhaço como uma esfinge no cenário egípcio. Suas amplas organizações de fachada, operando na semilegalidade, criaram impressionantes elementos de um Estado alternativo que incluem as redes assistenciais cruciais para os pobres. As listas dos seus mártires (como o "Lênin islâmico" Sayyid Qutb, assassinado por Nasser em 1966) são tão conhecidas entre os egípcios mais observantes quanto as listas dos reis para os ingleses ou dos presidentes para os americanos. Apesar de sua imagem assustadora no Ocidente, ela evoluiu até abraçar aspectos do islamismo mais preocupado com o livre mercado, representado pelo Partido da Justiça e do Desenvolvimento na Turquia.

5. O 18 Brumário do Egito?

Entretanto, como demonstrou vividamente o primeiro turno das eleições parlamentares do Egito, a Irmandade Muçulmana não pode mais declarar-se a representante exclusiva da religiosidade popular. O fato de o Partido salafista Al-Nour provisório obter, ao que se calcula, 24% dos votos (em comparação aos 38% da Irmandade) destaca a turbulência existente nas bases populares da sociedade egípcia. Na realidade, embora os salafistas tenham preferido abster-se inicialmente da revolução de 25 de janeiro, talvez agora constituam a maior organização de quadros do mundo sunita. Seguindo as pegadas da Irmandade Muçulmana, e consideravelmente subsidiados por Riad, eles cultivam um nefasto conflito com os coptas e os sufis. O equilíbrio de poder entre os dois campos islâmicos provavelmente será decidido neste ano pelo preço do pão e pela política do Exército. Se a Irmandade tivesse chegado ao poder mais cedo, na década passada, o crescimento global teria sido fortalecido pelo apelo e pela possibilidade do caminho turco. Mas como todos os sinais apontam agora para a crise, o paradigma de Ancara (como o modelo brasileiro na América do Sul) poderá acabar perdendo seu sucesso econômico e seu considerável apelo regional.

Por outro lado, a imagem pública salafista - incorruptível, antipolítica e sectária - será automaticamente atraída por uma maior miséria e pelas eventuais ameaças ao Islã. Alguns elementos das Forças Armadas egípcias indubitavelmente já analisaram a "opção palestina" de uma tácita ou formal aliança com os salafistas. Existem circunstâncias que podem oferecer de antemão o seguinte cenário: a persistente resistência dos generais a uma transferência substantiva do poder; a incapacidade da Irmandade Muçulmana de atender às mínimas expectativas populares de bem-estar econômico; ou o fato de a coalizão liberal de esquerda tornar-se o árbitro das maiorias parlamentares. (Israel, por sua vez, poderia desestabilizar a democracia egípcia com um único ataque aéreo. Como reagiriam os partidos sunitas a um ataque contra o Irã?)

Nessa eventualidade, a esquerda egípcia estuda o 18 Brumário desde Nasser. Conhece profundamente questões como plebiscitos, lumpenproletariat, governantes napoleônicos e sacos de batatas. Seus grupúsculos e redes, aliados aos trabalhadores e aos jovens de todas as denominações políticas, foram fundamentais para a revolução de 25 de janeiro, e para a nova ocupação da Praça Tahrir, em novembro. Poderá um governo de maioria islâmica garantir o direito da nova esquerda e dos sindicatos independentes de se organizarem? Essa será a prova de fogo da democracia egípcia.

6. Colapso mediterrâneo

Enquanto isso, o sul da Europa enfrenta a mesma devastação por ajuste estrutural que a América Latina experimentou nos anos 80. As ironias são terríveis. Apesar de o centro-norte europeu ter desenvolvido um caso repentino de amnésia aguda, alguns anos atrás a imprensa financeira estava elogiando a Espanha, Portugal e até a Grécia (além da Turquia, fora da UE) por suas competências na redução dos gastos públicos e elevação das taxas de crescimento. Logo em seguida ao colapso de Wall Street, os temores da UE se centraram principalmente na Irlanda, Báltico e Leste Europeu. O Mediterrâneo como um todo era percebido como relativamente bem protegido do tsunami financeiro que cruzava o Atlântico com velocidade supersônica.

De sua parte, o Mediterrâneo árabe teve pouca participação nos circuitos trombóticos de investimento de capital e trading de derivativos, e por isso teve uma exposição direta mínima à crise financeira. O sul da Europa, por sua vez, tinha governos em geral obedientes e, no caso da Espanha, bancos fortes. A Itália era simplesmente grande e rica demais para quebrar, enquanto a Grécia, apesar de incômoda, era uma economia liliputiana (meros 2% do PIB da UE) cujas traquinagens pouco ameaçavam os brobdingnagianos. No entanto, uma defesa mais plausível poderia ser feita de que é o sucesso alemão que está realmente causando a ruína da zona do euro. Com sua mão de obra barata no leste, suas vantagens de produtividade incomparáveis e seu fanatismo de tipo chinês sobre enormes superávits comerciais, a Alemanha compete com vantagens de sobra com seus irmãos de euro no sul da Europa. A UE como um todo, por sua vez, tem seu maior superávit comercial relativo com a Turquia e com Estados norte-africanos não produtores de petróleo (US$ 34 bilhões em 2010), assegurando sua dependência de remessas de fora, turismo e investimento estrangeiro para equilibrar as contas. Por conseguinte, o Mediterrâneo inteiro está agudamente sensível aos movimentos cíclicos da demanda e às taxas de juros na UE, enquanto Alemanha, França, Grã-Bretanha e os outros países ricos do norte fazem mercados secundários servir de amortecedores de choques.

O euro é a caixa de redução dessa economia Grosseuropäische de múltiplas velocidades. Para a Alemanha, o euro funciona como um marco alemão simplificado que, por ser menos vulnerável a uma valorização súbita, assegura uma precificação competitiva para as exportações alemãs enquanto subtrai pouco do poder de veto de fato de Berlim dentro da economia da UE. Para os sul-europeus, por outro lado, ele é uma barganha faustiana que atrai capital nos bons tempos, mas os leva a abdicar do uso de ferramentas monetárias para combater déficits comerciais e desemprego nos tempos ruins.

Agora que a varíola ibérica e helênica infectou a Itália e ameaça a França, uma visão de amor real da Euroeuropa está surgindo de Berlim e Paris: integração fiscal via revisão de tratado. Depois de perderem o controle da política monetária e terem sido obrigados a desfolhar seus setores públicos sob a supervisão de técnicos da UE e do FMI, os países devedores ainda estão sendo solicitados a aceitar um veto permanente franco-alemão sobre seus orçamentos e gastos públicos. No século XIX, a Grã-Bretanha enviou com frequência suas canhoneiras para impor essas tutelas a países inadimplentes da América Latina ou da Ásia. Os Aliados sujeitaram a Alemanha da mesma maneira em Versalhes, e com isso semearam o Terceiro Reich.

Seja por submissão a Sarkozy-Merkel ou por default e saída da zona do euro (e, talvez, da UE), as economias mediterrâneas estão sendo sentenciadas a anos de cruel hiperdesemprego. Mas suas populações não vão aceitar mansamente esse boa-noite. Portugal e Grécia, tendo chegado mais perto de verdadeiras revoluções sociais nos anos 70, preservam as culturas de esquerda mais sólidas da Europa. Na Espanha, o novo governo conservador representa um amplo e convidativo alvo para uma renascente esquerda unida e ao muito maior, mas ainda amorfo, movimento de protesto da juventude. Aliás, as brasas do anticapitalismo provavelmente serão reacendidas por toda a Europa. Mas a direita anti-imigrantes e anti-Bruxelas pode ganhar bem mais que a esquerda com a ruptura da zona do euro e a formação de um círculo com os vagões da UE em torno do centro. Como no caso dos salafistas do Egito ou do Tea Party nos Estados Unidos, os partidos da nova direita europeia têm políticas de identidade e furor de criar bodes expiatórios para pronta entrega. Uma ambição extraordinária para a esquerda anticapitalista na Europa Ocidental seria a reocupação do espaço político mantido pelos comunistas por 30 anos após 1945. Os movimentos liderados por Marine Le Pen e Geert Wilders, por outro lado, têm esperanças razoáveis de se mostrarem um sério desafio às muito maiores e mais bem financiadas agremiações conservadoras em suas políticas nacionais. A tomada pela extrema direita do Partido Republicano nos Estados Unidos lhes oferece um modelo inspirador.

7. Motor de revolta

As rebeliões universitárias de 1968 na Europa e nos Estados Unidos foram espiritual e politicamente alimentadas pela Ofensiva do Tet no Vietnã, as insurgências guerrilheiras na América Latina, a Revolução Cultural chinesa e os levantes dos guetos nos EUA. Da mesma maneira, os indignados do ano passado extraíram sua força primordial dos exemplos de Túnis e Cairo (os vários milhões de filhos e netos de imigrantes árabes no sul da Europa tornam essa conexão intimamente vívida e militante). Por conseguinte, jovens passionais na faixa dos 20 anos agora ocupam praças dos dois lados do Mediterrâneo fundamental de Braudel. Em 1968, porém, poucos dos jovens brancos que protestavam na Europa (com a importante exceção da Irlanda do Norte) e nos Estados Unidos compartilhavam as realidades existenciais de seus congêneres em países do Sul. Mesmo se profundamente alienada, a maioria podia esperar transformar sua formação universitária em carreiras afluentes de classe média. Hoje, ao contrário, muitos dos manifestantes em Nova York, Barcelona e Atenas enfrentam perspectivas dramaticamente piores que as de seus pais e mais próximas das de seus congêneres em Casablanca e Alexandria. Alguns dos ocupantes do Parque Zuccotti, se tivessem se formado dez anos antes, poderiam ter saído da universidade direto para salários de US$ 100 mil anuais num fundo de hedge ou banco de investimento. Hoje eles trabalham na Starbucks.

Globalmente, o desemprego de adultos jovens atingiu níveis recordes, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT) - entre 25% e 50% na maioria dos países com protestos puxados por jovens. De mais a mais, no cadinho norte-africano da revolução árabe um diploma universitário é inversamente proporcional à probabilidade de emprego. Também em outros países o investimento familiar em educação, quando a dívida assumida é considerada, paga dividendos negativos. Ao mesmo tempo, o acesso à educação superior se tornou mais restrito dramaticamente nos EUA, Grã-Bretanha e Chile.

8. Filas do sopão
A crise econômica combina a deflação de ativos populares (os valores das casas e, com eles, do capital familiar nos EUA, Irlanda, Espanha) com forte inflação de itens essenciais para o custo de vida, em especial, combustíveis e alimentos. Na teoria clássica, quando se espera que tendências de preço amplas caminhem em sincronia com o ciclo econômico, essa é uma bifurcação incomum. Na realidade, ela pode ser ainda mais assustadora. A crise das hipotecas nos Estados Unidos e alhures é parte da crise financeira mais geral e, ou será resolvida por intervenção do governo ou pela simples destruição das pretensões de valorização. O preço básico do petróleo bruto, por sua vez, pode cair à medida que a Ásia industrial desacelere e os níveis de produção aumentem no Iraque. O debate sobre o pico da produção de petróleo me parece indeterminável e interminável. Mas os preços dos alimentos parecem estar subindo como uma tendência secular, determinada por forças em grande parte externas à crise financeira e à desaceleração industrial. Aliás, um coro crescente de vozes de especialistas vem advertindo, desde o início dos anos 2000, que o sistema global de segurança alimentar está em colapso. Causas múltiplas se alimentam e se ampliam mutuamente: desvio de grãos para a produção de carne e biocombustíveis; corte neoliberal de subsídios a alimentos e à sustentação de preços; especulação desenfreada em futuros de safras e terras agrícolas de primeira; subinvestimento em pesquisa agrícola; preços voláteis da energia; exaustão de solos e esgotamento de aquíferos; secas e mudanças climáticas; e assim por diante. Na medida em que um crescimento mais lento reduzirá algumas dessas pressões (chineses comendo menos carne, por exemplo), o puro impeto do aumento populacional - outros 3 bilhões de pessoas no tempo de vida dos manifestantes de hoje - manterá as pressões do lado da demanda (as culturas geneticamente modificadas foram promovidas como uma solução milagrosa, é claro, mas mais provavelmente para os lucros do agronegócio que para colheitas líquidas).

"Pão" foi a primeira reivindicação dos protestos na Praça Tahrir, e a palavra ecoa na Primavera Árabe com quase igual intensidade que no outubro russo. As razões são simples: os egípcios comuns, por exemplo, gastam cerca de 60% de seu orçamento familiar em petróleo bruto (aquecimento, cozinha, transporte), farinha, óleos vegetais e açúcar. Em 2008, os preços desses produtos básicos subiram repentinamente 25%. A taxa de pobreza oficial no Egito aumentou abruptamente em 12%. Aplique-se a mesma proporção a outros países de "renda média" e a inflação dos produtos de consumo básicos eliminará uma fração substancial da "classe média emergente" do Banco Mundial.

9. Esperando a China pousar
Marx culpou a Califórnia - a Corrida do Ouro e seu resultante estímulo monetário ao comércio mundial - pelo encerramento prematuro do ciclo revolucionário dos anos 1840. Logo depois de 2008, os países do chamado BRICS se tornaram a nova Califórnia. O dirigível Wall Street caiu do céu e se espatifou na terra, mas a China continuou voando, com Brasil e Sudeste Asiático em formação cerrada. Índia e Rússia também conseguiram manter seus aviões no ar. A levitação resistente dos Brics causou espanto em consultores de investimento, colunistas de economia e astrólogos profissionais - que proclamavam que a China, ou a Índia, agora poderia segurar o mundo com uma mão, ou que o Brasil em breve ficaria mais rico que a Espanha. Sua credulidade eufórica decorria, é claro, de uma ignorância das soberbas técnicas de prestidigitação usadas pelos houdinis do Banco do Povo da China. A própria Pequim, em forte contraste, há muito manifestou temores significativos sobre a excessiva dependência do país de exportações, a ineficiência do poder de compra das famílias e a existência de uma escassez de moradias a preços acessíveis lado a lado com uma imensa bolha imobiliária.

No fim do ano passado, os artigos de fé dos otimistas da China de repente encolheram nas páginas editoriais e o cenário de "pouso acidentado" se tornou o preferido dos apostadores. Ninguém sabe, nem mesmo a liderança chinesa, por quanto tempo mais a economia pode continuar voando em face dos ventos contrários globais. Mas a inevitável lista de baixas de passageiros estrangeiros já foi compilada: América do Sul, Austrália, boa parte da África e a maior parte do Sudeste Asiático. E - de particular interesse - a Alemanha, que hoje comercia mais com a China que com os Estados Unidos. Evidentemente, uma recessão global totalmente triangulada é precisamente aquele pesadelo não linear ao qual aludi no começo. É quase uma tautologia observar que, em países do bloco BRICS, onde as expectativas populares de progresso econômico foram recentemente alçadas tão alto, a dor da "repauperização" pode ser intolerável. Milhares de praças públicas podem pedir para ser ocupadas, incluindo uma chamada Tiananmen (da Paz Celestial).

Pós-marxistas ocidentais - vivendo em países em que o tamanho absoluto ou relativo da força de trabalho industrial encolheu dramaticamente na última geração - matutam preguiçosamente sobre se a "agência proletária" está ou não obsoleta agora, obrigando-nos a pensar em termos de "multidões", espontaneidade horizontal, o que for. Mas esse não é um debate na grande sociedade em industrialização que Das Kapital descreve ainda mais precisamente que a Grã-Bretanha vitoriana ou a América do New Deal. Os 200 milhões de operários fabris, mineiros e trabalhadores da construção chineses são a classe sob maior risco do planeta (perguntem ao Conselho de Estado em Pequim). Seu pleno despertar da bolha ainda poderá determinar se uma Terra socialista ainda é possível ou não.

Guia essencial para a Jacobin

A Jacobin tem divulgado conteúdo socialista em ritmo acelerado desde 2010. Eis aqui um guia prático para algumas das obras mais importantes ...