23 de fevereiro de 2012

Um ângulo exclusivo de Hebron

Jonathan Freedland

The New York Review of Books

Dominique Nabokov

Com a exceção de Jerusalém, Hebron possui a maior população dentre todas as cidades palestinas da Cisjordânia. Ela é, assim como Nablus, um centro comercial, e o que é hoje sua tumultuada praça de mercado enche-se de vida e comércio, ruído e vapores. Há lojas vendendo mantimentos e eletrônicos, assim como barracas na calçada, simples mesinhas com frutas e vegetais, brinquedos, bugigangas, e roupas infantis. Essas lojas estão concentradas principalmente perto do terminal de ônibus, com seus ônibus públicos amarelos, e fileiras de taxis e micro-ônibus privados, muitos deles em direção ao norte, a Belém. Policiais palestinos, vestindo uniformes palestinos, orientam o trânsito. Se você não andasse mais, diria que Hebron, que abriga um número estimado de 175 mil palestinos, é uma próspera cidade árabe.

Isso é, até você se aproximar do ponto de travessia que marca a fronteira de fato entre 80% da cidade, controlada por palestinos, conhecida como H1, e o restante da cidade, controlada por israelenses, conhecida como H2. Nem todos podem atravessar. Desde o começo da segunda Intifada, cidadãos israelenses foram proibidos por seu próprio governo de entrar na H1, da mesma forma como foram barrados de entrar na mais ampla Área A da Cisjordânia, controlada pela Palestina. A decisão baseia-se em motivos de segurança, após a conclusão de Israel de que israelenses visíveis, especialmente os colonos assentados, seriam provavelmente atacados, e após as Forças de Defesa de Israel insistirem que podem garantir a segurança dos cidadãos israelenses somente naquelas áreas que controla.

No entanto, para aqueles que têm a permissão de cruzar a linha que separa H1 de H2, é como atravessar a outro domínio completamente diferente. Para H2, que consiste em um pedaço substancial da parte oriental da cidade, combinado com o que parece no mapa como um dedo largo e grosso apontando para o oeste, inclui o centro histórico de Hebron. Essafaixa, o dedo no mapa, talvez não abranja mais do que 3%do total da área geográfica de Hebron, mas é aíque você encontra os lugares que fizeram dele um local reverenciado por muçulmanos e judeus, entendidoe de fato osjudeus consideram-no um dos quatro lugaressagrados do judaísmo,ao lado de Jerusalém, Tiberíades e Safed. É aí também que se encontra uma estranha cidade-fantasma cujos mercados, antes tão movimentados, permanecem fechados e desertos, sua população palestina sujeita a uma política de separação e restrição, o que torna a cidade o lugar em que a ocupação de 44 anos de Israel na Cisjordânia mostra sua face mais dura.

Pode-se ouvir a batalha por supremacia entre os aproximadamente 30 mil árabes e 800 judeus assentados que vivem em H2, controlada por israelenses, antes mesmo de vê-la. Na manhã clara que visitei a área, havia música klezmer de estilo hassídico tocando alto no Centro Gutnick, um espaço de eventos que recebe visitantes judeus de todas as partes do mundo e especialmente dos Estados Unidos, oferecendo bebidas e passeios. Osítio eletrônicodo centro assegura a qualquer cliente nervoso de que “todos os ônibus são blindados”. Minutos depois, às melodias da velha Europa Ashkenazi junta-se o muezzin tradicional, cantando o chamado muçulmano para a oração. As duas músicas continuavam, no volume máximo, enchendo a praça antiga com o ruído discordante, conflitante. Essa é afamosa guerra de alto-falantes de Hebron.

A visita geralmente começa no Túmulo dos Patriarcas, o centro magnético do poder religioso de Hebron. O judaísmo considera o local – registrado na Bíblia como “Caverna de Machpelah”, adquirida por Abraão – como o segundo local mais sagrado,atrás apenas do Monte do Templo, a parte da antiga Jerusalém na qual o Primeiro e o Segundo Templos foram construídos. Dentro, há caixões que dizem conter os restos mortais de Jacó, Isaac e do próprio Abraão, reverenciado como patriarca pelas três antigas religiões monoteístas.

Como os judeus lembram os visitantes, inclusive o ônibus de cristãos africanos que chegava, durante 700 anos os judeus foram barrados, pelos governantes mamelucos, otomanos, britânicos e jordanianos da cidade,de entrar nesse lugar sagrado; era-lhes permitido subir somente os primeiros sete degraus emsua direção. Em 1967, quando Hebron e o restante da Cisjordânia foram conquistados por Israel na Guerra dos Seis Dias, os judeus puderam finalmente pisar o oitavo degrau, e os outros cinquenta e tantos degraus restantes, e entrar.

Hoje, há entradas separadas aos túmulos para judeus e muçulmanos. Mas o que é mais surpreendente é a estrada que leva ao lugar: ela é dividida de acordo com a nacionalidade, com três quartos da via disponível para os israelenses, e o restante, mais estreito, reservado para os palestinos. Blocos de concreto separam as duas partes. Os israelenses têm a maior parte porque são autorizados a dirigir por esse caminho, um direito negado aos palestinos.

Nos mapas militares israelenses, o caminho aparece como uma estrada verde, o que significa que carros palestinos não são permitidos. A cor azul é usada para as ruas em que carros palestinos não podem circular, e as lojas palestinas não são autorizadas a abrir. Depois, há estradas que são ainda mais restritas: nessas, nenhum palestino pode sequer pôr os pés. As Forças de Defesa Israelenses referem-se a essas estradas como tzirsterili, literalmente, uma estrada estéril.

Grande parte dos palestinos de H2 que tem o azar de ter suas casas em um tzirsterili tiveram suas portas dianteiras fechadas. Para sair, eles precisam usar uma porta dos fundos, o que muitas vezes significa subir no telhado e descer através de uma série de escadas: ise é inconveniente para os jovens em forma, isso é difícil, senão impossível, para os velhos e os doentes. Mais tarde, avisto um homem idoso, com um saco de cimento em seu ombro, andando com um menino que considero serseu neto. Quando ele chega à rua a-Shuhada, que já foi a via principal que cruza o centro de Hebron, mas que é uma “estrada estéril” desde 2000, ele pára e começa a descer uma íngreme série de toscos degraus, necessários para andar ao redor da rua, em vez de na própria rua. Tais degraus os levam por uma série de caminhos não asfaltados e empoeirados, rota alternativa indireta à rua a-Shuhada. Isso acontece para que nem seus pés ou os do menino toquem a estrada proibida – garantindo que continue sterili.

Na rua, há o que costumavam ser lojas, agora fechadas permanentemente sob persianas verdes de metal. Elas estão todas cobertas de pichações. Em um curto passeio, eu vejo: “Árabes fora!” e “Morte aos árabes”, assim como o menos familiar “Vocês têm árabes, vocês têm ratos”, que foi pintado, mas ainda é legível. O mesmo acontece com “Árabes para o crematório”, perto do cemitério muçulmano. (Uma mensagem notória, pintada em inglês, mas coberta há alguns anos, dizia: “Árabes para as câmaras de gás.”) O punho cerrado, símbolo do partido Kach do falecido rabino MeirKahane, o fundador da Liga de Defesa Judaica, uma vez condenado ao ostracismo como um fascista, aparece em vários lugares. Mas a imagem mais recorrente é também a mais chocante. É a Estrela de David. Totalmente familiar aos olhos judeus, é um choque ver esse símbolo – associado com o próprio Judaísmo e a longa história do sofrimento judaico – usado como uma declaração grosseira de dominação, usado, de fato, como um insulto.

Andamos até o centro da estrada. Não há necessidade de usar a calçada porque o lugar está vazio, como um set de filmagem abandonado. Meu guia, YehudaShaul, um israelense judeu ortodoxo de barba preta e quipá – que depois murmuraria o tradicional bracha, ou a bênção, antes de dar uma mordida num sanduíche – está intimamente familiarizado com Hebron, tendo servido dois extensos turnos no serviço militar da cidade, durante a Segunda Intifada: primeiro como soldado regular em 2001-2002, e depois novamente como comandante e sargento em 2003. Na verdade, ele estava em patrulha quando engenheiros da FDI (Forças de Defesa de Israel) selaram as portas, fechando-as, em 2001.

Ele também se lembra das instruções que recebiaparanão tocar nos israelenses assentados, que estavam sujeitos à lei de Israel, e, portanto, sob jurisdição da polícia israelense, e não do Exército, embora pudesse ver que eles estavam envolvidos em uma campanha de assédio à população local, atirando pedras, cortando canos de água e cabos elétricos. Um soldado deu um depoimento à organização Quebrando o Silêncio – fundada por reservistas da FDI determinados a alertar seus companheiros israelenses e judeus por todo o mundo sobre a realidade diária da ocupação militar – informando que uma placa pendurada no quadro de informações da sua unidade explicava sua missão: “Interromper a rotina dos habitantes do bairro”, seja através de buscas domiciliares, revistas físicas ou blitz repentinas, em locais aparentemente arbitrários.

Shaul não está de uniforme hoje, mas está aqui como parte do seu trabalho no Quebrando o Silêncio. Ele está armado com fotografias “de antes” do centro de Hebron, datadas de 1999, que mostram um mercado de frutas animado com pessoas, com produtos, e com vida. O lugar “de após” encontra-se bem à minha frente: o mesmo exato local, agora deserto e silencioso. O que antes ficava aqui foi transferido para H1, ou pelo menos parte disso. O mercado repleto que vi do outro lado é, na verdade, parte de Bab a-Zawiya, que, uma vez apenas um bairro de Hebron, é hoje seu centro substituto. Alguns desses comerciantes de Bab a-Zawiya costumava morar e trabalhar no que agora é H2. Eles já tiveram lojas. Agora, vendem seus produtos em cima de mesas.

E isso não é mera impressão. Um estudo feito pelo grupo israelense de direitos humanos B’Tselem mostra que 1.014 moradias – apartamentos ou casas – foram abandonadas pelos seus ocupantes, cerca de 42% do total nesta parte central de Hebron. Uma estimativa sugere que isso equivale a 8ou 9mil pessoas que descobriram que a vida sob tais restrições não era mais viável ou suportável. Finalmente, vejo uma das raras pessoas que persistiram, permanecendo dentro de H2. Uma mulher árabe estende roupas na sua varanda na rua a-Shuhada. Por todos os lados,ela está cercada deuma malha de fios de metal, inclusive sobre a sua cabeça. Isso não acontece por causa de alguma lei ou regulamento; ela se colocou no que parece ser um pequeno galinheiro para sua própria proteção, para evitar as pedras que seriam atiradas pelos assentados.

O teto da “jaula” está, de fato, sob o peso de pedras. B’Tselem, que distribuiu câmeras para alguns palestinos de Hebron, tem postado diversos vídeos mostrando assentados, inclusive crianças pequenas, jogando pedras nos árabes que estão entre eles – sem restrições dos soldados israelenses que estão por perto. Um vídeo particularmente perturbador mostra uma assentada silvando repetidamente a palavra sharmuta, ou prostituta, à sua vizinha árabe.

O mercado de frango, agora atrás de altas lajes de concreto, fica próximo. Depois, estáa velha estação de ônibus, que hoje funciona como uma base da FDI, e também serve decasa para seis famílias de assentados que se mudaram. E, depois, virando a esquina, atrás de um portão enferrujado, encontra-seum ferro velho, cheio de lixo, ervas daninhas e bobinas de arame farpado. Shaul tem uma foto que revela que esse lixão costumava ser o mercado de jóias de Hebron. (Alguns joalheiros agora continuam com seu comércio na H1 controlada por palestinos, mas o mercado em si não foi reconstituído.) Do outro lado da rua, há um yeshiva.

É isso – judeus e árabes vivendo próximos uns dos outros – que faz com que o centro de Hebron seja excepcional, pelo menos fora de Jerusalém. Assentados judeus são encontrados por toda a Cisjordânia, mas geralmente estão em topos de morros adjacentes, ou com vista para cidades e aldeias palestinas. Mas, nessa região de Hebron, eles se encontram no interior, em quatro grupos referidos como assentamentos, mas muitas vezes são apenas algumas casas e prédios cercados por palestinos. Três deles estão na rua a-Shuhada ou próximos a ela; o quarto fica a uma curta distância à pé.

E assim você só tem que andar alguns passos desde o mercado de frutas esvaziado para chegar aAvrahamAvinu – literalmente, Abraão, nosso pai – o maior dos enclaves judeus em Hebron, onde vivem cerca de quarenta famílias. Dentro, é um outro país. As paredes são feitas de uma pedra chata escovada, que contrasta com o pó e a idade do lado de fora. Há um parquinho, jovens mães ortodoxas, com suas cabeças cobertas, brincando com as crianças – estas últimas, aparentemente, ignoram a presença de cerca de 600 soldados da FDI na região, principalmente para a sua proteção. Há uma prateleira para bicicletas e um aroma distinto de canja. Poderia ser qualquer um dos bairros mais abastados de Jerusalém Ocidental. Há placaspor todos os lados, uma visão tão incomum em Jerusalém – exceto porestas serem,quase todas, em memória àspessoas mortas por “terroristas árabes”. Os benfeitores a quem agradecem são famílias judaicas de Nova York, Londres, e outros lugares.

Essa divisão de Hebron em H1 e H2 foi o resultado do Protocolo de Hebron, de janeiro de 1997, assinado por Yasser Arafat e Benjamin Netanyahu, então no seu primeiro mandato como primeiro-ministro. Disposições especiais foram consideradas necessárias para o bem das poucas centenas de colonos judeus assentados em Hebron, a quem Israel acreditava ter que proteger com suas próprias forças. Nos anos que se seguiram, a proteção passou a significar uma série de medidas mais rigorosas para manter judeus e árabes separados, restringindo a mobilidade dos palestinos em H2. Toda vez que há um ataque terrorista sobre os judeus assentados – sendo o mais notório deles o assassinato de um bebê de dez meses, ShalhevetPass, por uma bala de um franco-atirador em 2001 – os colonos demandam, e geralmente são atendidos, uma maior restrição dos movimentos palestinos, ou a permissão do Estado israelense para expandir, ou até mesmo ambos. Pouco a pouco, o centro de Hebron foi-se esvaziando e os palestinos foram encurralados cada vez mais claustrofobicamente, para que os colonos pudessemmover-se livremente e sem medo, tendo sua segurança garantida pela FDI.

Tentar definir o início desta situação seria provavelmente em vão. Para a comunidade judaica de Hebron, os últimos cem anos são um mero interlúdio, sendo o evento decisivo a aquisição de Machpela por Abraão, há milhares de anos. Ainda assim, muitos consideram 1929 e o massacre de 67 judeus por árabes em Hebron como a data crucial. Eles acreditam que esse evento traumático revela uma verdade essencial sobre o conflito com os palestinos: que a oposição árabe aos judeus é anterior e, portanto, tem pouco a ver com o estabelecimento do Estado de Israel em 1948 ou a ocupação da Cisjordânia em 1967. Para os assentados, o massacre de 1929 mostra que os árabes têm uma intolerância assassina dos judeus em seu meio. Se uma forte presença militar e medidas de segurança onerosas são necessárias, este é o motivo.

Até 1929, os judeus representavam números significativos na cidade. No momento imediatamente posterior ao massacre, forças britânicas evacuaram os judeus sobreviventes para Jerusalém, mas, um ano depois, líderes árabes da cidade os convidaram de volta. Cerca de trinta famílias aceitaram o convite, e então deixaram a cidade outra vez durante os distúrbios de 1936. Acredita-se que um leiteiro judeu tenha ficado até 1946, mas, depois disso, durante duas décadas, não havia ninguém. Ainda assim, quando Hebron foi capturada por forças israelenses em 1967, dizem os colonos que era natural que os judeus retornassem. Sua presença ali agora é, eles insistem, não um empreendimento colonial estrangeiro, mas um regresso à casa, adiado por muito tempo.

A forma do retorno é certamente suscetível à criação de mitos. No primeiro Pessach, a Páscoa judaica, após a “liberação” de Hebron, um grupo de 88 judeus ortodoxos, liderados pelo carismático rabino MosheLevinger, foram ao Hotel Park, em Hebron, de propriedade de árabes, para realizar o sêder, jantar cerimonial judaico. Eles ficaram e recusaram-se a sair. Finalmente, o governo israelense, liderado pelos trabalhistas, sugeriu um acordo: os ocupantes seriam autorizados a mudarem-se para uma base da FDI próxima, onde casas seriam construídas para eles. Assim nasceu KiryatArba, hoje uma cidade com mais de 7mil pessoas próxima a Hebron, o primeiro passo em todo o projeto de assentamento na Cisjordânia. Levinger ainda viria a ser o fundador do GushEmunim (Bloco dos Fiéis), e mais tarde recebeupena de prisão por atirar e matar um lojista palestino. Mas Hebron foi onde ele assumiu sua posição pela primeira vez.

Seus herdeiros hoje não sentem qualquer necessidade de justificar os efeitos da sua presença nos palestinos que vivem em H2. Ao contrário, a comunidade judaica em Hebron vê-se como vítima. “As pessoas dizem que aqui há um apartheid”, diz David Wilder, o porta-voz nascido em Nova Jérsei. “Eu concordo – mas não é contra eles, é contra nós.” Ele aponta o fato de que Casbah, dentro de H2, é uma zona militar fechada e, portanto, fora dos limites, salvo por algumas horas no Sabbath, para os judeus. Ele argumenta que, efetivamente, os judeus têm acesso a apenas 3% da cidade, onde a presença de segurança de Israel éintensa o bastante, enquanto os árabes têm acesso a todo o resto. Claro, ele admite, há uma rua, talvez um quilômetro, um quilômetro e meio, na qual os árabes não podem caminhar. Nãoestariaele se referindo à rua a-Shuhada? “Não sei como eles a chamam. Nós a chamamos de rua David Ha’Melech [Rei David].” A estrada costumava ser aberta até a Segunda Intifada, diz Wilder – de fato, salvo alguns meses, a rota foi barrada para carros palestinos a partir de 1994 – “mas eles começaram a atirar” das colinas próximas.

Mesmo assim, ele insiste, “nunca dissemos que, para que vivêssemos aqui, ninguém mais podia”, enquanto ele acredita queos palestinos não permitirão a presença de judeus em Hebron em um futuro Estado Palestino. São os judeus que são os tolerantes. Quanto às pichações, ele diz, “Nós não gostamos particularmente disso”, mas ele recusa a condená-las, dizendo que são um “escape” para os jovens colonos “frustrados pelos ataques terroristas e as atividades do governo israelense contra eles.”

A mensagem de Wilder – de que se os palestinos parassem de ameaçar os assentados com violência, as restrições seriam abrandadas – é contrária à experiência. Quando, por exemplo, Baruch Goldstein, nascido nos Estados Unidos, matou 29 muçulmanos palestinos no Túmulo dos Patriarcas em 1994, Israel impôs novas restrições – não aos assentados, mas aos árabes em Hebron. Os mercados de carne e vegetais foram fechados, e a proibição aos carros palestinos na rua a-Shuhada foi introduzida. (É chocante que, longe de ser insultado como terrorista e assassino em Hebron, Goldstein está enterrado no Memorial MeirKahane, que se encontra sob os auspícios da autoridade municipal de KiryatArba.)

Ainda assim, e apesar da proteção armada 24 horas-Shaul testemunha que, como soldado, suas ordens eram muito claras: “Estamos aqui para protegeros colonos” –, os judeus de Hebron parecem considerar as Forças de Defesa de Israel e o Estado de Israel como seus adversários. Um pôster no bairro de Bab AL-Khan em H2, vazio com a exceção de alguns poucos antigos residentes árabes, e com seus portões para a Cidade Antiga agora fechados e parafusados, declara em hebreu: “Aqui começa o gueto. Proibida a entrada para judeus.” Em outro lugar, um slogan pintado de spray denuncia o que considera o Estado ateu de Israel: “Nós não temos fé no regime dos infiéis, nós seguimos o caminho da Torá.” Outro slogan procura um regime governado pela lei religiosa: “Queremos um Estado halacha da Judéia agora”. Ainda um outro incita, “Morte aos traidores do Rei”, o Rei sendo Deus.

Nessa disputa, com os colonos hostis a um governo israelense que lhes nega a administração de Hebron em sua totalidade, os palestinos ficam em meio ao fogo cruzado. Eles rejeitam a sugestão dos assentados de que os palestinos são barrados em apenas uma pequena fração da cidade, uma restrição relativamente modesta em suas vidas. Issa Amro, 31 anos, ativo na organização de protestos não violentos em Hebron, diz, “H2 é o centro desta cidade... Todos os mercados estavam aqui: de vegetais, frutas, camelos, carne, ferreiro, todos os mercados estavam em H2. É o coração da cidade. E se seu coração está doente, seu corpo inteiro será afetado.”

Ele explica que as restrições, mesmo aplicadas a áreas superficialmente estreitas, têm um efeito de longo alcance. Famílias são divididas entre H1 e H2, fazendo com que seja difícil que parentes se encontrem, especialmente aqueles que vivem em ruas de H2 barradas para carros ou pedestres palestinos. E existeum impacto maior: se você quiser dirigir de norte a sul por Hebron, deve tomar um caminho longo e complicado por estradas congestionadas. Shaul imagina uma ação equivalente em Jerusalém, fechando a rua Jaffa e a Cidade Antiga. Pode ser que represente apenas 1% do território municipal, ele diz, mas incluiria a rua principal e os monumentos históricos. “Qual o impacto que isso tem em uma cidade?”

Alguns admitem que o que se vê no centro de Hebron é feio, mas se consolam com a ideia de que seja um caso extremo, típico apenas de si mesmo. Para outros, no entanto, Hebron é uma versão intensa e destilada de toda a ocupação israelense. YehudaShaul coloca-se, relutantemente, no último grupo. “Isto é um microcosmo”, ele me diz. “Ande aqui e você entenderá como a Cisjordânia funciona: a separação, a apropriação das terras, as estradas estéreis, a violência”.Nem ele se reanima em dizer que Hebron é a obra de uns poucos colonos inarredáveis. A presença da FDI desmancha essa ilusão, assim como a placa do Ministério de Habitação no prédio de colonos de BeitHaShisha, um selo de aprovação do governo, que data de 2000, quando o suposto líder de centro-esquerda Ehud Barak era primeiro-ministro. Vinte e um ônibus partem todos os dias, mais de um por hora, dos assentamentos judeus dentro de H2 para Jerusalém, oferecendo passagens baratas e subsidiadas pelo governo. A queixa de Shaul não é apenas com os colonos, mas com o Estado.

Para pessoas como Shaul, patriotas israelenses orgulhosos e judeus conscienciosos, Hebron representa um desafio mais profundo do que pode ser capturado pelo brando diplomatês dos “obstáculos para a paz” e afins. Para eles, é mais do que uma falha geológica em uma amarga disputa territorial. “O que está sendo feito aqui é em nome de Deus e em nome do meu Estado”, diz ele, com uma voz muito mais velha do que seus 28 anos.

Shaulé bem conhecido em Hebron. Nos degraus do Túmulo dos Patriarcas, um colono o vê e grita, várias vezes, que ele é um traidor do seu povo. Mas há um rosto mais conhecido que o seu, que eu vejo logo nos dois minutos seguintes à chegada em Hebron. Em uma cadeira de rodas, em consequência de um derrame sofrido em 2007, encontra-se um senhor de cabelos brancos e chapéu panamá, empurrado por um jovem, devoto cuidador. Trata-se deMosheLevinger, o homem que deu início atudo isso, fora de casa, para a sua dose diária de ar fresco. Conversamos, e eu lhe pergunto se, depois de tantos anos enfiado no Hotel Park, ele havia imaginado que aquilo teria esse resultado, o centro de Hebron esvaziado pelo bem de seus colegas assentados. “Não”, diz o rabino, ele não havia previsto nada disso. E aponta um dedo para o céu: “É uma bênção de Deus”.

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