29 de junho de 2013

Socializar a Big Pharma

Manter o setor farmacêutico na esfera privada representa um risco significativo à saúde pública. Uma solução é a nacionalização completa.

Leigh Phillips


Cornell University Catherwood Library, International Ladies Garment Workers Union

Tradução / A indústria farmacêutica, assim como as petroleiras e os fabricantes de armas, não é muito bem vista no imaginário público.

Há boas razões para isso. Há uma crescente conscientização sobre um conflito de interesses inerente ao teste de novos medicamentos pelas empresas que os fabricam - como Pfizer, Merck e Eli Lilly - e um fluxo constante de relatos de jornalistas, pesquisadores e médicos sobre julgamentos deliberadamente desonestos, resultados desfavoráveis sendo escondidos e revistas acadêmicas sendo compradas.

No entanto, o maior crime das principais empresas farmacêuticas privadas do mundo não é aquilo que elas fazem, mas o que elas não fazem. Na atual guerra contra os micróbios e as infecções, essas empresas abandonaram seus postos no momento mais crítico: quando o inimigo está se preparando para seu ataque mais feroz em gerações. Enquanto essas empresas continuam se esquivando de seus deveres – na prática já tendo abandonado a pesquisa de novos antibióticos por cerca de trinta anos -, altos funcionários da área de saúde pública vêm alertando que o mundo poderá em breve retornar à era pré-antibiótica, uma época miserável e terrível, de que poucas pessoas vivas ainda se lembram.

Relatórios do mercado, periódicos de medicina, análises de organizações filantrópicas, estudos governamentais e avaliações do próprio setor farmacêutico preferem uma abordagem mais delicada, atribuindo a ameaça aos “incentivos de mercado insuficientes“. Minha solução é um pouco mais elegante: a socialização de toda a indústria.

Opções de políticas como novas regulações e uma supervisão mais apurada do setor, podem ter sucesso em moderar os malefícios das grandes farmacêuticas em algumas áreas, como em alguns tipos de pesquisas. No entanto, na Guerra contra os Micróbios, essas medidas são radicalmente insuficientes ou de nenhuma utilidade. Existem algumas medidas preventivas de emergência que hospitais e criadores de gado podem adotar para retardar o avanço do inimigo, mas essas tentativas não podem fazer mais do que adiar a desgraça iminente. Socializar o desenvolvimento de medicamentos é a única maneira de resolver esse problema.

Uma ameaça comparável às mudanças climáticas
Alguns anos atrás, o diretor dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA, Thomas Frieden, alertou as autoridades sobre a “janela de oportunidade limitada” para lidar com o “pesadelo” representado pelo surgimento de uma família de bactérias altamente resistentes ao que costuma ser nossa última linha de defesa antibiótica: o conjunto de medicamentos conhecidos como carbapenêmicos. Poucos meses antes, a principal responsável pelos serviços médicos no Reino Unido, Sally Davies, usou uma linguagem semelhante para descrever um futuro “cenário apocalíptico” dentro de vinte anos, quando as pessoas morrerão de infecções que são atualmente consideradas triviais, “porque teremos ficado sem antibióticos aos quais recorrer.”

Davies descreveu como o fenômeno “representa uma ameaça catastrófica” para a humanidade, semelhante às mudanças climáticas, e imaginou um cenário nas próximas décadas em que “nos encontraremos em um sistema de saúde não muito diferente daquele do início do século 19”, onde qualquer um nós poderíamos ir ao hospital para uma pequena cirurgia e morrer de uma infecção comum que já não poderia ser tratada. Intervenções essenciais como transplantes de órgãos, quimioterapia, substituição de ossos no quadril e cuidados com bebês prematuros se tornariam impossíveis.

Por gerações, nos acostumamos àquilo que, francamente, são feitos sobre-humanos da medicina, os encarando como algo sem excepcionalidade e vagamente duradouros, quando na verdade eles dependem da premissa de que podemos prevenir as infecções microbianas. Os antibióticos revolucionaram os cuidados de saúde: o tratamento de traumas, ataques cardíacos, derrames e outras doenças que requerem cuidados extensivos com cateteres, alimentação intravenosa e ventilação mecânica não podem prosseguir sem acesso a medicamentos antimicrobianos. À medida que a população envelhece, a demanda por esse tipo de terapia intensiva apenas crescerá.

Então, como era a época pré-antibiótica? Havia 30% de mortalidade por pneumonia para aqueles que não faziam cirurgia. A mortalidade por apendicite ou por um intestino rompido era de 100%. Antes de Alexander Fleming acidentalmente descobrir o primeiro antibiótico, a penicilina, os hospitais estavam repletos de pessoas que contraíam intoxicação no sangue por meio de cortes e arranhões. Esses arranhões frequentemente se transformavam em infecções que colocavam a vida em risco. Recorrer a uma amputação ou a cirurgia como respostas médicas comuns para remover áreas infectadas não é um tratamento agradável ou preferível, mas essas foram as únicas opções para os médicos do adolescente David Ricci, de dezenove anos, de Seattle, após um acidente de trem na Índia há alguns anos. Ricci sofreu infecções por bactérias resistentes a medicamentos que nem mesmo os antibióticos de último recurso, altamente tóxicos, foram capazes de tratar.

Nós nos esquecemos o quanto as doenças infecciosas costumavam ser comuns e mortais. Nós assumimos que os antibióticos sempre estariam por aí, mas dificilmente poderíamos nos culpar por essa complacência. O general cirurgião estadunidense William H. Stewart é famoso por ter declarado que “é hora de fechar o livro sobre as doenças infecciosas e declarar como vencida a guerra contra a pestilência”. Na década de 1980, os casos de tuberculose – a primeira doença infecciosa conhecida pela humanidade e um dos nossos inimigos mais mortais, que matou 1,4 milhão em 2011 – havia caído para taxas tão baixas que os formuladores de políticas freqüentemente falavam na erradicação da doença.

As taxas de novas infecções e de mortalidade estão caindo, mas essa frágil vitória é ofuscada pelo surgimento da tuberculose multirresistente, uma forma que não é suscetível aos quatro antibióticos padrão e a tuberculose extensivamente resistente a drogas, cepas da doença que não são suscetíveis nem aos medicamentos de segunda linha. Para a tuberculose sensível aos aos medicamentos comuns, o tratamento geralmente dura seis meses, mas para a tuberculose multirresistente, os tratamentos levam cerca de vinte meses e envolvem antibióticos de amplo espectro que são muito mais tóxicos e menos eficazes.

Os antibióticos carbapenêmicos são drogas de último recurso usadas quando tudo mais falha. Enterobacteriaceae resistentes aos carbapenêmicos foram identificados pela primeira vez nos EUA em 1996 e, desde então, se espalharam pelo mundo. Até 2013, 42 dos 50 estados nos EUA haviam confirmado casos de infecções por essas bactérias. Elas são assustadoras por três razões, como apontou Frieden: “Primeiro, elas são resistentes a todos ou a quase todos os antibióticos. Segundo, elas têm altas taxas de mortalidade: matam até metade das pessoas que sofrem de infecções graves. E terceiro, elas podem espalhar sua resistência a outras bactérias. Assim, uma forma de bactéria resistente ao carbapenem, por exemplo, uma Klebsiella, pode espalhar os genes que destroem nossos últimos antibióticos para outras bactérias, como a E. coli, e tornar a E. coli resistente a esses antibióticos também. ”

Atualmente, 80% dos casos de gonorreia são resistentes à tetraciclina – um antibiótico de linha de frente – e vários países, incluindo Austrália, França, Japão, Noruega, Suécia e Reino Unido, estão relatando casos de resistência aos antibióticos cefalosporinos, que é a última opção de tratamento disponível para essa DST.

A resistência aos medicamentos está sendo relatada em todos os tipos de doenças infecciosas. Uma pesquisa recente constatou que 60% dos especialistas em doenças infecciosas haviam encontrado infecções resistentes a todos os antibióticos.

Como chegamos nesse ponto? A Organização Mundial da Saúde classifica a resistência antimicrobiana como uma das três maiores ameaças à saúde humana. Um artigo do Washington Post de Brian Valstag, de 2012, sobre a escassez de novos antibióticos, coloca a questão de maneira mais concisa: “É um caso em que a evolução que está superando a velocidade do capitalismo“.

Eterna corrida armamentista
Quando alguém precisa tomar um antibióticos, isso vai ajudar a matar as bactérias, mas inevitavelmente haverá um pequeno número de bactérias com mutações aleatórias que as tornam resistentes aos medicamentos. Isso é chamado de pressão de seleção. Essas linhagens mais resistentes dos micróbios sobrevivem e se multiplicam, produzindo novas gerações com as mesmas mutações. De fato, é apenas a evolução, só que acontecendo em um ritmo vertiginoso. Criamos uma categoria de antibióticos, os micróbios desenvolvem resistência, desenvolvemos novos antibióticos, esses desenvolvem resistência e assim por diante. É uma corrida armamentista. Nós nunca derrotamos de verdade a resistência microbiana; só podemos acompanhá-la por meio de um incessante e perpétuo desenvolvimento de novas classes de antibióticos.

Porém, se pararmos de desenvolver esses antibióticos, haverá enormes consequências para a saúde pública.

As empresas farmacêuticas produziram treze famílias diferentes de antibióticos entre 1945 e 1968. Esses eram os frutos nos galhos mais baixos – os mais fáceis de desenvolver. Desde então, apenas duas novas famílias de antibióticos foram colocadas em operação. Na década de 1980, as empresas farmacêuticas haviam praticamente parado de desenvolvê-las.

A razão pela qual as grandes farmacêuticas abandonaram esse jogo é que leva anos para desenvolver qualquer novo medicamento e custa entre US $ 500 milhões e US $ 1 bilhão por agente aprovado pelos órgãos regulatórios, sem mencionar que os antibióticos proporcionam um retorno de investimento muito menor do que outros tipos de medicamentos. Ao contrário dos medicamentos que milhões de pessoas precisam tomar pelo resto da vida para combater males crônicos, como doenças cardíacas – medicamentos que suprimem os sintomas, mas que não curam – os antibióticos geralmente são tomados por algumas semanas ou meses, no máximo. Isso torna os antibióticos desfavoráveis para o capitalismo. Como colocou um artigo de ‘chamado às armas’ pela Sociedade de Doenças Infecciosas da América, em 2008: “[Antibióticos] são menos desejáveis para empresas farmacêuticas e capitalistas de risco porque são mais bem-sucedidos do que outros medicamentos”. É a terapia de longo prazo – e não as curas – aquilo que direciona os interesses no desenvolvimento de medicamentos, concluiu o artigo.

Muitas das grandes farmacêuticas fecharam seus centros de pesquisa. Apenas 4 das 12 maiores companhias globais continuam envolvidas em pesquisas com antibióticos. [2] Essas demissões dificultam a solução da situação. Mesmo que houvesse vontade política, levaria tempo para reconstruir a força de trabalho científica altamente qualificada, perdida nas últimas duas décadas, enquanto as empresas abandonavam continuamente o desenvolvimento de medicamentos antibacterianos. “[Pedimos] ações imediatas em nível de base pela comunidade médica para tentar abordar o aprofundamento da crise de resistência antimicrobiana e, em particular, a necessidade de revitalizar significativamente a pesquisa e desenvolvimento de antibióticos”. A resistência aos medicamentos se acelera quando os pacientes não completam o tratamento com um antibiótico. O desmantelamento da infraestrutura de saúde pública e dos sistemas de apoio social nos países mais ricos (e a ausência e fragilidade nos mesmos nos mais pobres) aumentam a possibilidade de os pacientes abandonarem seus medicamentos no meio do regime prescrito, pois há menos métodos para monitorar a adesão.

A luta antibiótica está intimamente ligada à posição geográfica, ao status de classe e à riqueza de cada um. Microrganismos resistentes podem emergir e se espalhar em um ambiente onde antimicrobianos de baixa qualidade são usados. Não é preciso muito para imaginar situações em que pessoas com renda limitada ou hospitais e clínicas sem dinheiro, acossadas por planos de austeridade podem acabar recorrendo a opções mais baratas. A situação é agravada pelo descarte fácil e inadequado de antibióticos vendidos nas farmácias, principalmente nos países em desenvolvimento, mas também no Leste Europeu e na antiga União Soviética.

Assim, o que é que poderia funcionar?

Implorando e subornando as grandes farmacêuticas
No prazo imediato, os especialistas estão exigindo que as autoridades mudem para uma política de guerra, com o racionamento do uso dos antibióticos existentes; uma maior vigilância, redes de rastreamento e coordenação internacional de esforços são imperativos. Um escritório federal dedicado à coordenação de esforços para combater a resistência antimicrobiana e um plano estratégico nacional de pesquisa são vitais. Hospitais, clínicas e casas de repouso podem aumentar adesão a precauções de controle de infecções, como limpeza e lavagem das mãos de maneira mais intensa, maior uso de roupas e luvas, agrupamento de pacientes resistentes a medicamentos e reserva de determinados equipamentos somente para esses pacientes.

Porém, novamente, essas táticas podem apenas retardar o avanço galopante do inimigo. Elas afetam a taxa de propagação da resistência aos medicamentos, mas não enfrentam o próprio fenômeno da resistência aos medicamentos. Esses esforços são importantes, mas apenas porque nos dão tempo.

Fundamentalmente, o que precisamos para combater os micróbios – para passarmos da defesa para o ataque – é desenvolver novas classes de antibióticos de maneira consistente: uma meta que a maioria dos formuladores de políticas hoje já reconhece. Mas tirar essa tarefa das mãos do setor privado não está sendo considerado por ninguém. Em vez disso, as propostas de políticas vindo de instituições como a IDSA, a OMS e a União Européia significam no máximo implorar e subornar as empresas farmacêuticas para ver se assim elas movem um dedo.

Nos EUA, as opções sendo consideradas incluem o fornecimento de créditos fiscais para medicamentos criticamente necessários e subsídios para o desenvolvimento prioritário de antibióticos; compromissos de compra antecipada financiados nacionalmente ou outras “promessas de mercado”; ‘vouchers transferíveis de revisão prioritária’, que dão a outro produto da empresa (à sua escolha), o direito de ter acelerada a sua revisão pelo FDA em troca da obtenção da aprovação do FDA para um antibiótico prioritário; e a oferta de prolongamento de patente ou da exclusividade de mercado para 25 ou 30 anos para novos medicamentos considerados verdadeiramente inovadores. A última opção tem provocado uma controvérsia compreensível por sua ameaça à produção de medicamentos genéricos e à acessibilidade de antibióticos baratos no mundo em desenvolvimento. As “extensões de patentes curinga” concedem às empresas extensões de patentes de outro medicamento de seis meses para dois anos. Esse é o incentivo que as empresas farmacêuticas afirmam ser mais provável de tirá-las de sua letargia, e também aquele que tem provocado a maior controvérsia.

Ainda estamos permitindo que essas empresas escolham os produtos que gerem mais dinheiro para seus acionistas, como Viagra ou Lipitor, enquanto que, através de incentivos fiscais, subsídios ou parcerias público-privadas, pagamos a elas para que pesquisem e desenvolvam produtos que vão lhes render milhões, ao invés de bilhões. O público fica com o risco, e as empresas com o lucro. Se essas empresas fossem trazidas para o setor público sob a rubrica de Institutos Nacionais de Saúde ou de algum órgão autônomo semelhante, o dinheiro ganho com os medicamentos rentáveis poderia subsidiar a pesquisa e o desenvolvimento de medicamentos menos rentáveis, por sua vez, permitindo a liberação de mais dinheiro para ser gasto em pesquisa e desenvolvimento de novas drogas. Colocadas no setor público, as barreiras à pesquisa farmacêutica aberta poderiam ser dissolvidas, o que aceleraria os resultados e limitaria a duplicação de esforços.

Descobrir futuras gerações de antibióticos – supondo que eles estejam por aí para serem descobertos – será uma tarefa diabolicamente difícil. Mas esse é mais um motivo para trazer o setor para a esfera pública: maiores dificuldades significam custos maiores, mesmo que em troca das mesmas oportunidades de lucro risíveis. Existem estratégias completamente novas que evitam por completo a corrida armamentista por antibióticos, mas elas são altamente incertas, arriscadas e exigem anos de pesquisa básica cara, o que exige uma intensa intervenção pública.

Houve um tempo, antes da doença infecciosa especialmente virulenta conhecida como neoliberalismo, quando Washington estava muito mais aberta à intervenção direta do governo nesse setor. Em tempos de guerra, os líderes não confiavam que o setor privado estivesse à altura para essa tarefa; porém, hoje estamos em guerra contra um inimigo invisível mais cruel do que qualquer nazista, e ao setor privado não falta apenas disposição – ele simplesmente abandonou seu posto. Há evidências esmagadoras de que as grandes farmacêuticas são um deserto de inovação. Enquanto isso, a suspeita popular em relação a essas empresas tem jogado milhões de pessoas nos braços de charlatanismos de medicina alternativa. Se todo o tempo e energia focados em remédios “naturais” fossem gastos coletivamente tentando colocar as grandes empresas farmacêuticas sob o jugo do controle democrático, já estaríamos com meio caminho andado.

Por muito tempo, as críticas mais comuns dos setores progressistas a essas empresas têm sido sobre como sua busca por lucros prejudica os pobres dos países desenvolvidos e em desenvolvimento, que não podem comprar seus medicamentos. Isso é verdade até, até onde essa crítica alcança, mas ela não aborda a escala do problema. O setor farmacêutico privado é uma ameaça à saúde pública e precisa ser eliminado por completo.

Sobre o autor
Leigh Phillips é articulista científico e jornalista especializado em questões sobre a União Europeia. É autor de "Austerity Ecology & the Collapse-Porn Addicts" ("Ecologia da austeridade e os viciados em pornô do colapso") e co-autor de República Democrática do Walmart (Autonomia Literária 2020).

20 de junho de 2013

Uma coleção diversificada de povos: Shlomo Sand x Sionismo

A Terra de Israel foi o local de nascimento do povo judeu. Aqui sua identidade espiritual, religiosa e política foi moldada. Aqui eles primeiro alcançaram a condição de estado, criaram valores culturais de ...

Vol. 35 No. 12 · 20 June 2013

The Invention of the Jewish People
por Shlomo Sand.
Verso, 344 pp., £9.99, junho 2010, 978 1 84467 623 1

The Invention of the Land of Israel: From Holy Land to Homeland
por Shlomo Sand.
Verso, 295 pp., £16.99, janeiro 2013, 978 1 84467 946 1

A Terra de Israel foi o berço do povo judeu. Aqui sua identidade espiritual, religiosa e política foi moldada. Aqui eles primeiro alcançaram a condição de estado, criaram valores culturais de significado nacional e universal e deram ao mundo o eterno Livro dos Livros. Depois de serem exilados à força de sua terra, o povo manteve a fé nela durante sua Dispersão e nunca deixou de orar e esperar por seu retorno e pela restauração de sua liberdade política.

Assim diz a Declaração do Estabelecimento do Estado de Israel, emitida em Tel Aviv em 14 de maio de 1948. Os dois últimos livros de Shlomo Sand questionam as suposições do documento: os judeus foram "exilados à força" ou foram para o exterior em busca de novas oportunidades? Se eles "nunca deixaram de orar e esperar por seu retorno", por que tão poucos se preocuparam em visitar sua terra natal por séculos a fio? Como sabemos que as pessoas que "mantiveram a fé" durante a Diáspora foram as mesmas que partiram para começar? Elas compartilhavam os mesmos genes? Ou eles estavam tão distantes dos judeus originais quanto, digamos, os galegos poloneses estão dos galegos da Espanha?

Em The Invention of the Jewish People, Sand procurou desmistificar a identidade de seu povo. Foi um best-seller em Israel e ganhou o Prix Aujourd'hui na França. Eric Hobsbawm chamou isso de um "exercício muito necessário no desmantelamento do mito histórico nacionalista". O novo livro de Sand, The Invention of the Land of Israel, visa traçar o conceito de uma pátria judaica das vagas referências territoriais da Torá ao estado judeu armado e combativo de hoje. O conceito evoluiu ao longo dos anos. Enquanto Gênesis 15 prometeu que a descendência de Abraão governaria "do rio do Egito ao grande rio, o Eufrates", o reino real de Judá, do qual o termo "judeu" deriva, nunca foi mais do que um ducado no topo de uma colina com cerca de trinta milhas de diâmetro. No entanto, hoje é a planície costeira, antigamente o refúgio dos filisteus, que está nas mãos dos sionistas, e Judá, em sua maior parte, está nas mãos dos palestinos na Cisjordânia ocupada. Então, o que exatamente é essa "terra de Israel" sobre a qual todos discutem, quais são seus limites e como ela surgiu?

Sand se propôs a explicar a história de uma terra e um povo — ou melhor, a ideia de uma terra e um povo, já que a população real mudou muito. É um empreendimento ambicioso e complicado. Embora ainda seja permitido questionar este ou aquele aspecto da política israelense, a crítica ao sionismo como um todo é muitas vezes declarada proibida, e não apenas pela Liga Antidifamação, então, para muitas pessoas, a tentativa de Sand de quebrar as suposições ideológicas do sionismo ultrapassa os limites. No entanto, com o Oriente Médio lembrando os Bálcãs pré-1914, ultrapassar os limites não é apenas permitido, mas de rigueur. Alguém tem que descobrir como a tempestade surgiu, e como o sionismo é uma grande parte da história, não há razão para que ele seja protegido de críticas. Quanto mais algumas pessoas tentam barrar a porta, mais outras não conseguem deixar de se perguntar o que estão escondendo.

A investigação de Sand é mais do que justificada, e seria bom relatar que seu esforço é sutil, sóbrio e perceptivo, tão abrangente quanto moralmente sério. Mas não é. Hobsbawm e o resto, não obstante, The Invention of the Jewish People foi uma polêmica confusa — desorganizada, tendenciosa e mal informada. The Invention of the Land of Israel é melhor e termina com uma discussão sobre ambições territoriais sionistas que colocam a política israelense sob uma nova luz. Mas é minado por um conceito instável da história judaica. Sand insiste corretamente na relevância do passado antigo para a política contemporânea, mas suas distorções são um obstáculo para uma compreensão completa da situação moderna israelense-palestina.

O problema de Sand é que ele trabalha a partir de um negativo fotográfico da ideologia sionista. Se uma ideia "está de acordo com a metanarrativa sionista", como ele diz, então ela deve ser falsa. Se os sionistas, como todos os nacionalistas, idealizam a nação e insistem que ela é contínua, ininterrupta e eterna, então deve ter havido uma ruptura em algum ponto entre os judeus da Bíblia e os chamados judeus de hoje. Se o sionismo prega uma história gloriosa que remonta aos dias de Davi e Salomão, então essa história deve ser uma ficção inventada séculos depois para propósitos ideológicos. Se o sionismo afirma que os judeus ansiavam por voltar para casa, então eles devem ter se contentado em ficar parados. E se os sionistas baseiam sua reivindicação à terra de Israel na Bíblia hebraica, então a Bíblia deve ser um documento "antipatriótico" que silencia sobre a questão de uma pátria judaica. Como Sand escreve em The Invention of the Land of Israel, "a ideia de patriotismo que se desenvolveu na bacia do norte do Mediterrâneo era pouco conhecida em suas costas ao sul e ainda menos conhecida no Crescente Fértil". A base bíblica para o estado judeu é nula.

Sand está errado em muitos pontos, entre eles as lições que ele tira da revolução arqueológica que começou a se desenrolar na década de 1980. Arqueólogos anteriores aceitaram a narrativa bíblica como mais ou menos precisa, tomando como certo que uma fuga do Egito havia ocorrido, seguida por uma conquista de Canaã sob Josué. Mas então a narrativa desmoronou: os pesquisadores não conseguiram encontrar evidências de uma presença hebraica no Egito em nenhum momento, muito menos no século XIII a.C., quando o Êxodo era mais provável de ter ocorrido. A fronteira oriental do país acabou sendo especialmente bem fortificada durante esse período: guardas de fronteira monitoravam as idas e vindas até mesmo dos nômades "Shasu". Então por que não havia nada sobre uma fuga em massa de escravos hebreus? Buscas em locais onde os israelitas teriam acampado durante seus quarenta anos no deserto não deram em nada. O mesmo aconteceu com pesquisas conduzidas em outros lugares do Sinai. Após a guerra de 1967, quando arqueólogos israelenses obtiveram acesso à Cisjordânia, o coração da antiga cultura israelita, eles esperavam encontrar as cidades ricas do Livro de Josué. Mas, em vez disso, encontraram evidências apenas de uma sociedade empobrecida por séculos de impostos egípcios. Jericó revelou-se pobre e desprovida de fortificações no século XIV a.C. e totalmente abandonada no século XIII, quando suas muralhas supostamente ruíram. A cidade de Ai, cuja destruição é celebrada em Josué 8, também foi encontrada abandonada. O mesmo aconteceu com Gibeão, Quefira, Beerote e Quiriate-Jearim, mencionadas em Josué 9:17. Todas estavam vazias. Pesquisas extensas de terras revelaram algo ainda menos esperado: um padrão de desenvolvimento que, começando por volta de 1200 a.C., foi totalmente autogerado. Em vez de ser implantada de fora, a cultura israelita do topo da colina cresceu inteiramente por conta própria.

Tais descobertas deveriam ter sido uma dádiva para Sand, pois mostraram que os israelitas, longe de conquistar toda Canaã, criaram raízes em um canto muito pequeno. E, de fato, The Invention of the Jewish People alardeia ansiosamente a descoberta do arqueólogo Israel Finkelstein, o principal proponente da nova arqueologia, de que a conquista de Canaã nunca ocorreu e que a monarquia dual de Davi e Salomão, supostamente a maravilha do mundo antigo, era um mito. Mas Sand também endossa o "minimalismo bíblico" hipercético de Philip Davies, Thomas Thompson e Niels Peter Lemche, que considera tais descobertas irrelevantes, pois, como eles veem, a história inicial de Israel é na verdade uma ficção que os retornados do exílio babilônico inventaram após o século VI a.C. Sand parece não ter consciência do conflito entre as duas visões ou do fato de que Finkelstein e o jornalista Neil Asher Silberman emitiram uma refutação contundente da postura minimalista em 2006. David pode ter sido pouco mais do que um chefe de colina, mas, ao contrário dos minimalistas, a descoberta em 1993 de uma inscrição de vitória aramaica do século IX a.C. referindo-se a uma "Casa de David" real deixa poucas dúvidas de que ele foi uma figura histórica real.

A discussão de Sand sobre a questão da conversão judaica é igualmente confusa. Como o sionismo representa os judeus como "um povo à parte", Sand enfatiza as infusões contínuas de sangue novo; ou, para colocar de outra forma, as ondas de "adulteração" racial que repetidamente inundaram a diáspora, submergindo quaisquer laços que ela pudesse ter com a terra natal. O norte da África, ele escreve, foi o cenário de uma "surpreendente ... nova onda de judaização" na antiguidade tardia, quando os berberes e remanescentes da antiga linhagem fenícia adotaram o judaísmo por atacado. Uma sacerdotisa berbere judia conhecida como Dihya al-Kahina liderou as tribos judaicas em um grande movimento de resistência antiárabe no final do século VII. Al-Kahina "era uma governante forte", escreve Sand, "e em 689, quando os muçulmanos lançaram seu esforço renovado para conquistar o norte da África, ela uniu várias tribos poderosas e conseguiu derrotar as poderosas forças de Hassan ibn al-Nu'man". Como Sand sabe que ela era judia? Bem, o renomado polímata marroquino Ibn Khaldun diz que ela estava em seu relato sobre os berberes em seu grande compêndio histórico, Al-'Ibar. O fato de Ibn Khaldun ter escrito no final do século XIV, quase setecentos anos após a conquista árabe, não faz Sand hesitar. Também não o incomoda que Ibn Khaldun descreva os berberes como tendo sido governados pelo Golias bíblico ou que os cronistas anteriores nem sequer insinuem a identidade judaica de Al-Kahina. Uma revelação sensacional que vem à tona séculos depois do fato normalmente levantaria uma sobrancelha ou duas. Em vez disso, Sand acusa o historiador israelense Haim Ze'ev Hirschberg de sucumbir a uma "ideologia essencialista purificadora" por ousar sugerir que as evidências da judaização berbere são "extremamente frágeis". Dado o desrespeito de Sand pelas regras normais de evidência, é difícil não simpatizar com Hirschberg.

O próximo passo de Sand em The Invention of the Jewish People é estabelecer que os judeus de língua iídiche da Europa Oriental são, na verdade, khazares, descendentes de uma federação tribal turca que adotou o judaísmo, provavelmente em meados do século VIII, para se distanciar tanto do Império Bizantino quanto do califado. Relatos de um império judeu em algum lugar na estepe pôntico-cáspia há muito tempo despertam a imaginação. Eles também despertam especulações sobre uma conexão com o subsequente aumento populacional judeu na Polônia, Hungria e Ucrânia. Para onde os khazares foram quando seu império derreteu? Eles adotaram o islamismo ou o cristianismo? Ou, empurrados para o oeste pelas invasões mongóis, eles se tornaram os asquenazes, que, mesmo após o Holocausto, ainda representam cerca de 80% dos judeus do mundo?

A tese Khazar foi tornada famosa por Arthur Koestler em The Thirteenth Tribe (1976). É tentadora de uma perspectiva anti-sionista porque, se for verdade, significaria que os judeus de hoje não têm nenhuma reivindicação histórica especial à Palestina, especialmente em comparação com os palestinos, cujos laços de parentesco com o povo da Bíblia são provavelmente muito mais fortes. Mas é verdade? Na verdade, sabemos muito pouco sobre esta "Atlântida das estepes", como o historiador soviético Lev Gumilev a chamou. A adoção do judaísmo pelos Khazares não está em disputa: em 837-38, o império emitiu dirhams abássidas de imitação carimbados com a fórmula de influência muçulmana: "Não há deus senão Deus e Moisés é seu mensageiro". Mas a questão da profundidade do judaísmo Khazar - se ele estava confinado a um estrato estreito da classe dominante ou filtrado para a população em geral - é outra questão. D.M. Dunlop, cuja História dos Khazares Judeus (1954) marca o ponto de partida para os estudos Khazar modernos, argumentou que a federação, como outros impérios das estepes, era de rápido crescimento e poderosa, mas ao mesmo tempo superficial e instável. Obtendo sua renda de impostos, pedágios e tributos, uma elite militar era capaz de manter as coisas unidas apenas enquanto conseguia administrar um complexo tabuleiro de xadrez de forças étnicas. Dunlop descreveu a matriz: 'Nômades das estepes, cidadãos da capital e de outras cidades... cultivadores e caçadores das províncias ocidentais, turcos, judeus e árabes, bem como homens de raça eslava e finlandesa ou afins... presididos por uma aristocracia, a quem podemos chamar de Khazares Brancos, consistindo de um número relativamente pequeno de turcos parcialmente judaizados'. A elite resistiu por três séculos, um longo tempo para a estepe, e bloqueou a expansão do califado pelo Cáucaso. Mas por volta de 965, os cazares foram derrotados pelos rus e desapareceram como força política independente.


Que legado eles deixaram? Dunlop cita o explorador e geógrafo persa Ahmad ibn Rustah, que por volta de 903 escreveu que o judaísmo dos cazares era um assunto completamente de classe alta: "Seu governante supremo é judeu, e da mesma forma o Isha [vizir] e os generais e os chefes que seguem seu modo de pensar". Mas a base, ele disse, aderia às crenças tradicionais turcas. Dunlop cita outro geógrafo persa, Al-Istakhri, que cerca de trinta anos depois escreveu que "embora o rei e sua corte sejam judeus", o resto da população era cristã ou muçulmana. Se tais relatos forem verdadeiros, então o impacto do judaísmo foi leve. De acordo com Dunlop, não é implausível que toda a elite cazar tenha ido para o lado islâmico em uma tentativa de angariar apoio para a batalha contra os rus. No final, tudo o que ele dirá é que "falar dos judeus da Europa Oriental como descendentes dos Khazares ... seria ir muito além do que nossos registros imperfeitos permitem". Portanto, a tese Khazar não é apoiada pela evidência documental.

Mas Sand não se deixa intimidar. "O reino Khazar", ele escreve, "permaneceu judeu por muito tempo... não para justificar a suposição de que a prática e a fé se espalharam para camadas mais amplas". No entanto, ele não oferece nenhuma evidência além do relato de um rabino alemão do século XII de que os moradores locais em uma área próxima conhecida como Kedar (localizada provavelmente no leste da Ucrânia de hoje) passavam seus sábados comendo pão fatiado no escuro, mas eram ignorantes das orações judaicas e do Talmude. Sand cita o historiador de meados do século XX Salo Wittmayer Baron, que escreveu que os judeus Khazaria "começaram a se deslocar para as estepes abertas da Europa Oriental" após a queda do império e ajudaram a estabelecer "as fundações para uma comunidade judaica que, especialmente na Polônia do século XVI, ultrapassou todas as outras áreas contemporâneas de assentamento judaico". Sand conclui que Baron concorda com o historiador israelense Ben-Zion Dinur de que Khazaria era a ‘mãe da diáspora’ do judaísmo do Leste Europeu. Baron insiste, Sand escreve, que ‘os “judeus nascidos” que estavam na Khazaria antes de ela ser judaizada’ lançaram as bases para o judaísmo polonês, mas, de outra forma, assume ‘que a maioria do povo iídiche não se originou na Alemanha, mas no Cáucaso, nas estepes do Volga, no Mar Negro e nos países eslavos.’

Mas Baron não assume tal coisa. Pelo contrário, ele escreve que com apenas cinco mil pessoas ou mais no ano 1300, a população judaica polonesa permaneceu minúscula muito depois que o império Khazar desapareceu da memória. Só mais tarde — muito mais tarde — os números de judeus poloneses começaram a aumentar, chegando a 30.000 no ano 1500, 150.000 em 1576 e depois 450.000 em 1648. Isso é meio milênio após o fim do império Khazar, então o que um tinha a ver com o outro? Uma vez que a imigração começou a acelerar, Baron não deixa dúvidas sobre de onde ela veio:

Uma grande força propulsora foi o encolhimento progressivo dos pontos de venda ainda abertos aos judeus alemães nos territórios da Coroa Boêmia e Hungria durante o século XVI. Na verdade, as numerosas expulsões locais da Boêmia e da Morávia, o declínio da Hungria e sua divisão final em seções Habsburgo, Otomana e Transilvânia após 1526 enviaram novas ondas de peregrinos judeus em busca de refúgios. As áreas tchecas agora se tornaram a principal fonte de mão de obra judaica entrando primeiro na Polônia ocidental e depois nas outras províncias ainda muito pouco povoadas da Coroa Polonesa e do Grão-Ducado da Lituânia... Por causa de sua superioridade em números, riqueza e realizações culturais, os recém-chegados conseguiram, em um tempo relativamente curto, impor seus próprios rituais, costumes e discursos aos judeus locais. Até mesmo o segmento que originalmente veio de terras Khazar, Bizantinas ou Muçulmanas ficou totalmente submerso na nova comunidade polonesa-lituana organizada pelos imigrantes ocidentais.

Apesar dos esforços de Sand para alistá-lo na causa Khazar, Baron sustenta que foi a imigração judaica alemã do oeste que sobrepujou a presença judaica mais antiga do leste e não o contrário.

Sand descarta a possibilidade de que o crescimento populacional judeu polonês possa ter sido gerado internamente, mas Baron observa que os judeus poloneses não serviram nas forças armadas, não praticavam o celibato e podem ter obtido certos benefícios à saúde das leis alimentares kosher. Em 1618, um antissemita polonês chamado Sebastyan Miczyński reclamou que os judeus "se multiplicam enormemente, pois não morrem em guerras, fogem antes do "ar" [ou seja, pestilência] e se casam muito cedo". O filósofo judeu polonês do século XVIII Salomon Maimon afirmou ter se casado aos 11 anos e se tornado pai aos 14, enquanto Baron escreve que muitos pais judeus apressaram seus filhos para o casamento antes que o governo czarista pudesse reprimir a prática em 1853. A economia polonesa estava crescendo antes de meados do século XVII e as condições para os judeus eram altamente favoráveis, então o crescimento populacional interno dessa magnitude dificilmente é inimaginável.

Distorções como essas são lamentáveis ​​porque Sand está essencialmente correto ao argumentar que os judeus não são o povo à parte que a ideologia sionista os faz parecer. Mas a infusão de genes estrangeiros não ocorreu no final da jornada, como a tese Khazar sugere: ocorreu no início, quando o judaísmo começou a se unir a partir de um ambiente 'Yahwista' difuso que se estendia por grande parte do mundo antigo.

Sand pensa na influência judaica como algo que ocorre em apenas uma direção: de Judá para fora. Ele tenta mostrar que a noção de que os judeus foram expulsos à força de sua terra natal após a revolta abortada de Jerusalém de 66 a 70 é um mito e que muitos simplesmente se afastaram em busca de oportunidades econômicas: "A incrível expansão dos judeus entre 150 a.C. e 70 d.C. foi o resultado de uma extensa migração de judeus para todas as partes do mundo... [um] processo dinâmico, embora doloroso, que produziu a próspera diáspora israelita". Espalhando a fé nacional, eles ganharam números crescentes para seu lado por meio da força do argumento ou talvez pela força. (Quando os judeus persas saíram para massacrar seus inimigos, Ester 8:17 relata que "muitas pessoas de outras nacionalidades se tornaram judias porque o medo dos judeus os havia apreendido".) Mas quanto mais pessoas eles convertiam, mais o estoque étnico original era perdido.

A realidade era mais complexa. Se Sand não fosse tão desdenhoso da história bíblica, ele saberia que os israelitas — não exatamente a mesma coisa que os judeus — não começaram como adoradores de Yahweh, mas do El cananeu. O próprio nome "Israel" significa "El luta" ou "El batalha"; como o estudioso bíblico do século XIX Julius Wellhausen mostrou, era uma indicação da militância da fé israelita. Só mais tarde os israelitas adotaram o culto de um deus guerreiro não cananeu conhecido como Yahweh do Sinai ou Arabá ao sul. O Cântico de Débora (Juízes 5), um canto de guerra que data talvez de 1100 a.C., proclama assim:

Ó Yahweh, quando saíste de Seir,
quando marchaste da terra de Edom,
a terra tremeu, os céus se derramaram,
as nuvens despejaram água.
Os montes tremeram diante de Yahweh, o deus do Sinai,
diante de Yahweh, o deus de Israel...

Israel era apenas um elemento em um crescente movimento internacional, que nos séculos seguintes se espalharia do Iraque para o sul do Egito e além. Além disso, o que Sand se refere (em homenagem ao estudioso bíblico iconoclasta Morton Smith) como "o culto monoteísta de 'YHWH-somente'" era um subconjunto ainda menor do todo, que outros seguidores consideravam excêntrico e fanático. A maioria das pessoas adorava Yahweh em conjunto com outras divindades: Astarote e Moloque para Salomão; Baal para a princesa fenícia do século IX Jezabel (embora ela tenha dado a seus três filhos nomes javistas adequados); e Anat no caso de uma colônia militar israelita do século V a.C. na ilha de Elefantina, no Alto Nilo. Apenas o partido Yahweh-somente insistiu em adorá-lo isoladamente. Por fim, os exclusivistas venceram, mas o processo pode não ter sido concluído até que o rei idumeu-romano Herodes terminasse de construir um vasto novo templo em 19 a.C., estabelecendo Jerusalém como o principal local de peregrinação no mundo romano.

As palavras "judeu" e "judeu" não significavam a mesma coisa. Uma denotava um nativo da Judeia, para usar o termo latino para Judá, e a outra se referia a qualquer javista que se ajoelhasse em direção a Jerusalém. Os judeus eram uma religião e não uma nação e, no Novo Testamento, os judeus incluíam todos, desde partos e medos até árabes, egípcios e líbios: toda a panóplia étnica da Pérsia a Roma (Atos 2:9-11). Não havia um estoque étnico original para diluir, mas sim uma coleção diversa de povos que olhavam para Jerusalém como sua capital religiosa, mas faziam seus lares em outro lugar.

Os limites confessionais eram ao mesmo tempo vagos. Havia judeus; semi-judeus que sacrificaram a Yahweh, mas resistiram a dar o passo final da circuncisão; companheiros de viagem como os árabes; cristãos que continuaram a visitar sinagogas judaicas até a Idade Média, e assim por diante. As linhas eventualmente endureceram quando os rabinos tomaram as rédeas com o estabelecimento da Pax Islamica após a revolução abássida de 750. Mas foi provavelmente somente no início da Polônia moderna que os judeus realmente se tornaram o povo à parte da tradição sionista. Numa época em que os judeus italianos ainda convidavam amigos cristãos para casamentos, circuncisões e saraus musicais (para grande desgosto da Igreja), os judeus poloneses falavam uma língua diferente, usavam roupas diferentes, ostentavam cachos laterais e barbas e, graças à Cabala, pensavam em si mesmos como existindo em um plano espiritual mais elevado. O abismo que os separava da população ao redor nunca foi tão grande. O que o sionismo considera um aspecto eterno da condição judaica era, na verdade, um produto do início da modernidade.


A tendência geral foi de um meio vagamente definido para uma comunidade legal fortemente vinculada, e de um culto internacional para uma nação dispersa entre a qual religião e etnia eram efetivamente combinadas. Sand pode desprezar a "genética judaica" como racista, mas as últimas pesquisas genéticas parecem de fato contar a mesma história. Um estudo de 2010 por pesquisadores da Emory University, Johns Hopkins e da University of Texas descobriu que os judeus asquenazes são mais geneticamente diversos do que uma amostra comparável de europeus não judeus, possivelmente porque eles "surgiram de uma população fundadora do Oriente Médio mais geneticamente diversa" do que se acreditava anteriormente. Os pesquisadores também descobriram que os asquenazes eram mais intimamente relacionados aos italianos e franceses do que a grupos específicos do Oriente Médio, como palestinos, drusos ou beduínos, o que é consistente com uma população amplamente oriental do Mediterrâneo fluindo para o norte e centro da Europa via Itália e o Vale do Ródano.

Então, os judeus de hoje são, em medida significativa, descendentes dos judeus da antiguidade clássica, exceto que os judeus da antiguidade clássica não eram de Judá, mas da região mais ampla. Se alguma coisa, essa diversa ‘população fundadora’ torna a noção de uma pátria judaica específica ainda mais duvidosa do que Sand percebe. Mas a questão é novamente mais complicada do que ele aprecia. A Palestina não foi o berço do povo judeu, mas foi o berço do movimento Yahweh-alone e, apesar da descrição de Sand da Bíblia como antipatriótica, nada era mais central para o movimento do que a questão da terra. Uma terra, um deus, um povo: este, em essência, era o slogan do movimento monolátrico – não monoteísta – que surgiu no século IX a.C. Era um movimento profundamente xenófobo, oposto ao rei e à rainha, Acabe e a odiada Jezabel, e sua política expansionista, que ameaçava diluir o caráter étnico do estado; e era obcecado com a questão da terra porque o aumento do comércio e da monetização estavam minando o campesinato das terras altas. Em resposta, o profeta Elias (‘Yahweh é Deus’), seu discípulo Eliseu e outros criaram uma trindade sagrada que consistia em uma terra sagrada, um povo escolhido e um senhorio divino para garantir que eles permanecessem unidos perpetuamente. (A história da vinha de Nabote em 1 Reis 21, na qual Elias prevê a queda de Jezabel por tentar comprar uma propriedade israelita, é o documento crucial a esse respeito, porque acusa o casal real de usar dinheiro em violação à confiança divina que une Yahweh, o povo israelita e a terra santa.) Quando, séculos depois, em 587 a.C., o deus da região montanhosa permitiu que a terra caísse para os babilônios, os exilados se culparam e elevaram Yahweh ao status de um monarca universal todo-poderoso para compensar sua perda. Para os sionistas, é um pacote poderoso. Deus deu a terra aos israelitas, ou assim o movimento Yahweh-alone sustentou, e os nacionalistas de hoje acreditam que têm três mil anos de mito a seu favor ao exigir propriedade exclusiva.

Mas propriedade de quê? Os sionistas sempre foram evasivos sobre suas ambições territoriais precisas. Eles queriam a planície costeira, toda a Palestina ou mais? Como a Terra Prometida era um conceito, eles podiam ajustar suas demandas para se adequarem às circunstâncias. David Ben-Gurion era um maximalista que às vezes defendia uma pátria que se estendesse da Palestina até a Margem Leste do Jordão, tão ao norte quanto Damasco e tão ao sul quanto a ilha de Tiran, na foz do Golfo de Aqaba. No entanto, quando a Comissão Peel ofereceu aos sionistas uma fatia relativamente pequena de terra em 1937, ele a agarrou apesar dos protestos de seus colegas: "O debate não foi a favor ou contra a indivisibilidade de Eretz Israel", disse ele. "Nenhum sionista pode renunciar à menor porção de Eretz Israel. O debate era sobre qual das duas rotas levaria mais rápido ao objetivo comum.’ A oferta da Comissão Peel foi apenas o primeiro passo no caminho para um Israel maior. Como Chaim Weizmann disse, o resto da terra não iria a lugar nenhum, e os nacionalistas chegariam a ela no devido tempo.

A estratégia pode ser vista como uma invasão em câmera lenta: os colonos primeiro ganham um ponto de apoio e então aproveitam cada surto de violência armada para ampliar seu domínio. Primeiro, houve os assentamentos dispersos do Yishuv; depois o estabelecimento de um estado judeu em 1948-49; a tomada da Cisjordânia em 1967; e, finalmente, mais assentamentos visando assediar os palestinos. A última proposta do ultradireitista Naftali Bennett, de anexar completamente os 60 por cento da Cisjordânia conhecidos como Área C, pode ser vista como o ápice de um processo de um século visando confinar os palestinos a alguns postos avançados dispersos. Supondo que a anexação aconteça, mais provocações ocorrerão até que a limpeza étnica esteja completa. A região montanhosa palestina é central para a mitologia da Bíblia hebraica, e a Cisjordânia sempre foi o alvo principal. Mas outros prêmios não estão muito distantes, e não faltarão oportunidades de expansão à medida que a violência envolve o mundo muçulmano.

13 de junho de 2013

Por que estamos nas ruas

Nina Cappello, Erica de Oliveira, Daniel Guimarães, Rafael Siqueira

Folha de S. Paulo

O modelo de transporte coletivo baseado em concessões para exploração privada e cobrança de tarifa está esgotado. E continuará em crise enquanto o deslocamento urbano seguir a lógica da mercadoria, oposta à noção de direito fundamental para todas e todos.

Essa lógica, cujo norte é o lucro, leva as empresas, com a conivência do poder público, a aumentar repetidamente as tarifas. O aumento faz com que mais usuários do sistema deixem de usá-lo, e, com menos passageiros, as empresas aplicam novos reajustes.

Isso é uma violência contra a maior parte da população, que como evidencia a matéria publicada ontem pelo portal UOL, chega a deixar de se alimentar para pagar a passagem. Calcula-se que são 37 milhões de brasileiros excluídos do sistema de transporte por não ter como pagar. Esse número, já defasado, não surgiu do nada: de 20 em 20 centavos, o transporte se tornou, de acordo com o IBGE, o terceiro maior gasto da família brasileira, retirando da população o direito de se locomover.

População que se desloca na maioria das vezes para trabalhar e que, no entanto, paga quase sozinha essa conta, sem a contribuição dos setores que verdadeiramente se beneficiam dos deslocamentos. Por isso defendemos a tarifa zero, que nada mais é do que uma forma indireta de bancar os custos do sistema, dividindo a conta entre todos, já que todos são beneficiados por ele.

Esse é o contexto que fez surgir o Movimento Passe Livre em diversas cidades do Brasil. Por isso há anos estamos empenhando lutas por melhorias e por outro paradigma de transporte coletivo. Neste momento, em que nos manifestamos em São Paulo pela revogação do aumento nas passagens, milhares protestam no Rio de Janeiro, além de Goiânia, onde a luta obteve vitória, assim como venceram os manifestantes de Porto Alegre há dois meses.

O impacto violento do aumento no bolso da população faz as manifestações extrapolarem os limites do próprio movimento. E as ações violentas da Polícia Militar, acirrando os ânimos e provocando os manifestantes, levaram os protestos a se transformar em uma revolta popular.


O prefeito Fernando Haddad, direto de Paris, ao lado do governador Geraldo Alckmin, exige que o movimento assuma uma responsabilidade que não nos cabe. Não somos nós os que assinam os contratos e determinamos os custos do transporte repassados aos mais pobres. Não somos nós que afirmamos que o aumento está abaixo da inflação sem considerar que, de 1994 para cá, com uma inflação acumulada em 332%, a tarifa deveria custar R$ 2,16 e o metrô, R$ 2,59.

Além disso, perguntamos: e os salários da maior parte da população, acompanharam a inflação?

A discrepância entre o custo do sistema e o quanto, como e quando se cobra por ele evidenciam que as decisões devem estar no campo político, não técnico. É uma questão de escolha: se nossa sociedade decidir que sim, o transporte é um direito e deve estar disponível a todos, sem distinção ou tarifa, então ela achará meios para tal. Isso parcialmente foi feito com a saúde e a educação. Mas sem transporte público, o cidadão vê seu acesso a essas áreas fundamentais limitado. Alguém acharia certo um aluno pagar uma tarifa qualquer antes de entrar em sala de aula? Ou para ser atendido em um posto de saúde?

Haddad não pode fugir de sua responsabilidade e se esconder atrás do bilhete mensal, proposta que beneficiará poucos usuários e aumentará em mais de 50% o subsídio que poderia ser revertido para reduzir a tarifa.

A demanda popular imediata é a revogação do aumento, e é nesses termos que qualquer diálogo deve ser estabelecido. A população já conquistou a revogação do aumento da tarifa em Natal, Porto Alegre e Goiânia. Falta São Paulo.

NINA CAPPELLO, 23, estudante de direito da USP, ERICA DE OLIVEIRA, 22, estudante de história da USP, DANIEL GUIMARÃES, 29, jornalista, e RAFAEL SIQUEIRA, 38, professor de música, são militantes do Movimento Passe Livre.

4 de junho de 2013

Como destruir o futuro

Da crise dos mísseis cubanos ao frenesi dos combustíveis fósseis, os EUA pretendem vencer a corrida para o desastre

Noam Chomsky

The Guardian

Fotografia: Ralph Crane/Time & Life Pictures/Getty Image

O que o futuro trará? Uma postura razoável seria tentar olhar para a espécie humana de fora. Então imagine que você é um extraterrestre observador que está tentando desvendar o que acontece aqui ou, imagine que és um historiador daqui a 100 anos - assumindo que existam historiadores em 100 anos, o que não é óbvio - e você está olhando para o que acontece. Você veria algo impressionante.

Pela primeira vez na história da espécie humana, desenvolvemos claramente a capacidade de nos destruirmos. Isso é verdade desde 1945. Agora está finalmente sendo reconhecido que existem mais processos de longo-prazo como a destruição ambiental liderando na mesma direção, talvez não à destruição total, mas ao menos à destruição da capacidade de uma existência decente.

E existem outros perigos como pandemias, as quais estão relacionadas à globalização e interação. Então, existem processos em curso e instituições em vigor, como sistemas de armas nucleares, os quais podem levar à explosão ou talvez, extermínio, da existência organizada.

A pergunta é: O que as pessoas estão fazendo a respeito? Nada disso é segredo. Está tudo perfeitamente aberto. De fato, você tem que fazer um esforço para não enxergar.

Houveram uma gama de reações. Têm aqueles que estão tentando ao máximo fazer algo em relação à essas ameaças, e outros que estão agindo para aumentá-las. Se olhar para quem são, esse historiador futurista ou extraterrestre observador veriam algo estranho. As sociedades menos desenvolvidas, incluindo povos indígenas, ou seus remanescentes, sociedades tribais e as primeiras nações do Canadá, que estão tentando mitigar ou superar essas ameaças. Não estão falando sobre guerra nuclear, mas sim desastre ambiental, e estão realmente tentando fazer algo a respeito.

De fato, ao redor do mundo - Austrália, Índia, América do Sul - existem batalhas acontecendo, às vezes guerras. Na Índia, é uma guerra enorme sobre a destruição ambiental direta, com sociedades tribais tentando resistir às operações de extração de recursos que são extremamente prejudiciais localmente, mas também em suas consequências gerais. Em sociedades onde as populações indígenas têm influência, muitos tomam uma posição forte. O mais forte dos países em relação ao aquecimento global é a Bolívia, cuja maioria é indígena e requisitos constitucionais protegem os “direitos da natureza”.

O Equador, o qual também tem uma população indígena ampla, é o único exportador de petróleo que conheço onde o governo está procurando auxílio para ajudar a manter o petróleo no solo, ao invés de produzi-lo e exportá-lo - e no solo é onde deveria estar.

O presidente Venezuelano Hugo Chávez, que morreu recentemente e foi objeto de gozação, insulto e ódio ao redor do mundo ocidental, atendeu a uma sessão da Assembléia Geral da ONU a poucos anos atrás onde ele suscitou todo tipo de ridículo ao chamar George W. Bush de demônio. Ele também concedeu um discurso que foi interessante. Claro, Venezuela é uma grande produtora de petróleo. O petróleo é praticamente todo seu PIB. Naquele discurso, ele alertou dos perigos do sobreuso dos combustíveis fóssil e sugeriu aos países produtores e consumidores que se juntassem para tentar manejar formas de diminuir o uso desses combustíveis. Isso foi bem impressionante da parte de um produtor de petróleo. Você sabe, ele era parte índio, com passado indígena. Esse aspecto de suas ações na ONU nunca foi reportado, diferentemente das coisas engraçadas que fez.

Então, em um extremo têm-se os indígenas, sociedades tribais tentando amenizar a corrida ao desastre. No outro extremo, as sociedades mais ricas, poderosas na história da humanidade, como os EUA e o Canadá, que estão correndo em velocidade máxima para destruir o meio ambiente o mais rápido possível. Diferentemente do Equador e das sociedades indígenas ao redor do mundo, eles querem extrair cada gota de hidrocarbonetos do solo com toda velocidade possível.

Ambos partidos políticos, o presidente Obama, a mídia, e a imprensa internacional parecem estar olhando adiante com grande entusiasmo para o que eles chamam de “um século de independência energética” para os EUA. Independência energética é quase um conceito sem significado, mas botamos isso de lado. O que eles querem dizer é: teremos um século no qual maximizaremos o uso de combustíveis fóssil e contribuiremos para a destruição do planeta.

E esse é basicamente o caso em todo lugar. Admitidamente, quando se trata de desenvolvimento de energia alternativa, a Europa está fazendo alguma coisa. Enquanto isso, os EUA, o mais rico e poderoso país de toda a história do mundo, é a única nação dentre talvez 100 relevantes que não possui uma política nacional para a restrição do uso de combustíveis fóssil, e que nem ao menos mira na energia renovável. Não é por que a população não quer. Os americanos estão bem próximos da norma internacional com sua preocupação com o aquecimento global. Suas estruturas institucionais que bloqueiam a mudança. Os interesses comerciais não aceitam e são poderosos em determinar políticas, então temos um grande vão entre opinião e política em muitas questões, incluindo esta. Então, é isso que o historiador do futuro veria. Ele também pode ler os jornais científicos de hoje. Cada um que você abre tem uma predição mais horrível que a outra.

A outra questão é a guerra nuclear. É sabido por um bom tempo, que se tivesse que haver uma primeira tacada por uma super potência, mesmo sem retaliação, provavelmente destruiria a civilização somente por causa das consequências de um inverno-nuclear que se seguiria. Você pode ler sobre isso no Boletim de Cientistas Atômicos. É bem compreendido. Então o perigo sempre foi muito pior do que achávamos que fosse.

Acabamos de passar pelo 50o aniversário da Crise dos Mísseis Cubanos, a qual foi chamada de “o momento mais perigoso na história” pelo historiador Arthur Schlesinger, o conselheiro do presidente John F. Kennedy. E foi. Foi uma chamada bem próxima do fim, e não foi a única vez tampouco. De algumas formas, no entanto, o pior aspecto desses eventos é que a lições não foram aprendidas.

O que aconteceu na crise dos mísseis em outubro de 1962 foi petrificado para parecer que atos de coragem e reflexão eram abundantes. A verdade é que todo o episódio foi quase insano. Houve um ponto, enquanto a crise chegava em seu pico, que o Premier Soviético Nikita Khrushchev escreveu para Kennedy oferecendo resolver a questão com um anuncio publico de retirada dos mísseis russos de Cuba e dos mísseis americanos da Turquia. Na realidade, Kennedy nem sabia que os EUA possuíam mísseis na Turquia na época. Estavam sendo retirados de todo modo, porque estavam sendo substituídos por submarinos nucleares mais letais, e que eram invulneráveis.

Então essa era a proposta. Kennedy e seus conselheiros consideraram-na - e a rejeitaram. Na época, o próprio Kennedy estimava a possibilidade de uma guerra nuclear em um terço da metade. Então Kennedy estava disposto a aceitar um risco muito alto de destruição em massa afim de estabelecer o princípio de que nós - e somente nós - temos o direito de deter mísseis ofensivos além de nossas fronteiras, na realidade em qualquer lugar que quisermos, sem importar o risco aos outros - e a nós mesmos, se tudo sair do controle. Temos esse direito, mas ninguém mais o detém.

No entanto, Kennedy aceitou um acordo secreto para a retirada dos mísseis que os EUA já estavam retirando, somente se nunca fosse à publico. Khrushchev, em outras palavras, teve que retirar abertamente os mísseis russos enquanto os EUA secretamente retiraram seus obsoletos; isto é, Khrushchev teve que ser humilhado e Kennedy manteve sua pose de macho. Ele é altamente elogiado por isso: coragem e popularidade sob ameaça, e por aí vai. O horror de suas decisões não é nem mencionado - tente achar nos arquivos.

E para somar um pouco mais, poucos meses antes da crise estourar os EUA haviam mandado mísseis com ogivas nucleares para Okinawa. Eram mirados na China durante um período de grande tensão regional.

Bom, quem liga? Temos o direito de fazer o que quisermos em qualquer lugar do mundo. Essa foi uma lição daquela época, mas haviam outras por vir.

Dez anos depois disso, em 1973, o secretário de estado Henry Kissinger chamou um alerta vermelho nuclear. Era seu modo de avisar à Rússia para não interferir na constante guerra Israel-Árabes e, em particular, não interferir depois de terem informado aos israelenses que poderiam violar o cessar fogo que os EUA e a Rússia haviam concordado. Felizmente, nada aconteceu.

Dez anos depois, o presidente em vigor era Ronald Reagan. Assim que entrou na Casa Branca, ele e seus conselheiros fizeram com que a Força Aérea começasse a entrar no espaço aéreo Russo para tentar levantar informações sobre os sistemas de alerta russos, Operação Able Archer. Essencialmente, eram ataques falsos. Os Russos estavam incertos, alguns oficiais de alta patente acreditavam que seria o primeiro passo para um ataque real. Felizmente, eles não reagiram, mesmo sendo uma chamada estreita. E continua assim.

No momento, a questão nuclear está regularmente nas capas nos casos do Irã e da Coréia do Norte. Existem jeitos de lidar com esse crise contínua. Talvez não funcionasse, mas ao menos tentaria. No entanto, não estão nem sendo consideradas, nem reportadas.

Tome o caso do Irã, que é considerado no ocidente - não no mundo árabe, não na Ásia - a maior ameaça à paz mundial. É uma obsessão ocidental, e é interessante investigar as razões disso, mas deixarei isso de lado. Há um jeito de lidar com a suposta maior ameaça à paz mundial? Na realidade existem várias. Uma forma, bastante sensível, foi proposta alguns meses atrás em uma reunião dos países não alinhados em Teerã. De fato, estavam apenas reiterando uma proposta que esteve circulando por décadas, pressionada particularmente pelo Egito, e que foi aprovada pela Assembléia Geral da ONU.

A proposta é mover em direção ao estabelecimento de uma zona sem armas nucleares na região. Essa não seria a resposta para tudo, mas seria um grande passo à frente. E haviam modos de proceder. Sob o patrocínio da ONU, houve uma conferência internacional na Finlândia dezembro passado para tentar implementar planos nesta trajetória. O que aconteceu? Você não lerá sobre isso nos jornais pois não foi divulgado - somente em jornais especialistas.

No início de novembro, o Irã concordou em comparecer à reunião. Alguns dias depois Obama cancelou a reunião, dizendo que a hora não estava correta. O Parlamento Europeu divulgou uma declaração pedindo que continuasse, assim como os estados árabes. Nada resultou. Então moveremos em direção a sanções mais rígidas contra a população Iraniana - não prejudica o regime - e talvez guerra. Quem sabe o que irá acontecer?

No nordeste da Ásia, é a mesma coisa. A Coréia do Norte pode ser o país mais louco do mundo. É certamente um bom competidor para o título. Mas faz sentido tentar adivinhar o que se passa pela cabeça alheia quando estão agindo feito loucos. Por que se comportariam assim? Nos imagine na situação deles. Imagine o que significou na Guerra da Coréia anos dos 1950’s o seu país ser totalmente nivelado, tudo destruído por uma enorme super potência, a qual estava regozijando sobre o que estava fazendo. Imagine a marca que deixaria para trás.

Tenha em mente que a liderança Norte Coreana possivelmente leu os jornais públicos militares desta super potência na época explicando que, uma vez que todo o resto da Coréia do Norte foi destruído, a força aérea foi enviada para a Coréia do Norte para destruir suas represas, enormes represas que controlavam o fornecimento de água - um crime de guerra, pelo qual pessoas foram enforcadas em Nuremberg. E esses jornais oficiais falavam excitadamente sobre como foi maravilhoso ver a água se esvaindo, e os asiáticos correndo e tentando sobreviver. Os jornais exaltavam com algo que para os asiáticos fora horrores para além da imaginação. Significou a destruição de sua colheita de arroz, o que resultou em fome e morte. Quão maravilhoso! Não está na nossa memória, mas está na deles.

Voltemos ao presente. Há uma história recente interessante. Em 1993, Israel e Coréia do Norte se moviam em direção a um acordo no qual a Coréia do Norte pararia de enviar quaisquer mísseis ou tecnologia militar para o Oriente Médio e Israel reconheceria seu país. O presidente Clinton interveio e bloqueou. Pouco depois disso, em retaliação, a Coréia do Norte promoveu um teste de mísseis pequeno. Os EUA e a Coréia do Norte chegaram então a um acordo em 1994 que interrompeu seu trabalho nuclear e foi mais ou menos honrado pelos dois lados. Quando George W. Bush tomou posse, a Coréia do Norte tinha talvez uma arma nuclear e verificadamente não produzia mais.

Bush imediatamente lançou seu militarismo agressivo, ameaçando a Coréia do Norte - “machado do mal” e tudo isso - então a Coréia do Norte voltou a trabalhar com seu programa nuclear. Na época que Bush deixou a Casa Branca, tinham de 8 a 10 armas nucleares e um sistema de mísseis, outra grande conquista neoconservadora. No meio, outras coisas aconteceram. Em 2005, os EUA e a Coréia do Norte realmente chegaram a um acordo no qual a Coréia do Norte teria que terminar com todo seu desenvolvimento nuclear e de mísseis. Em troca, o ocidente, mas principalmente os EUA, forneceria um reator de água natural para suas necessidades medicinais e pararia com declarações agressivas. Eles então formariam um pacto de não agressão e caminhariam em direção ao conforto.

Era muito promissor, mas quase imediatamente Bush menosprezou. Retirou a oferta do reator de água natural e iniciou programas para compelir bancos a pararem de manejar qualquer transação Norte Coreana, até mesmo as legais. Os Norte Coreanos reagiram revivendo seu programa de armas nuclear. E esse é o modo que se segue.

É bem sabido. Pode-se ler na cultura americana principal. O que dizem é: é um regime bem louco, mas também segue uma política do olho por olho, dente por dente. Você faz um gesto hostil e responderemos com um gesto louco nosso. Você faz um gesto confortável e responderemos da mesma forma.

Ultimamente, por exemplo, existem exercícios militares Sul Coreanos-Americanos na península Coreana a qual, do ponto de vista do Norte, tem que parecer ameaçador. Pensaríamos que estão nos ameaçando se estivessem indo ao Canadá e mirando em nós. No curso disso, os mais avançados bombardeiros na história, Stealth B-2 e B-52, estão travando ataques de bombardeio nuclear simulados nas fronteiras da Coréia do Norte.

Isso, com certeza, reacende a chama do passado. Eles lembram daquele passado, então estão reagindo de uma forma agressiva e extrema. Bom, o que chega no ocidente derivado disso tudo é o quão loucos e horríveis os líderes Norte Coreanos são. Sim, eles são. Mas essa não é toda a história, e esse é o jeito que o mundo está indo.

Não é que não haja alternativas. As alternativas somente não estão sendo levadas em conta. Isso é perigoso. Então, se me perguntar como o mundo estará no futuro, saiba que não é uma boa imagem. A menos que as pessoas façam algo a respeito. Sempre podemos.

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