11 de julho de 2013

A grandeza de Nelson Mandela pode estar garantida - mas não o seu legado

Quando minha entrevista com ele terminou, ele me deu um tapinha no braço como se dissesse que fui perdoado por contradizê-lo.

John Pilger

New Statesman

Quando era correspondente na África do Sul nos anos 60, quem ocupava a residência do primeiro-ministro em Cape Town era o simpatizante nazista Johannes Vorster. Trinta anos depois, enquanto eu esperava à porta, era como se os guardas não tivessem mudado. O meu BI foi verificado por africânderes brancos com a confiança de homens com um emprego seguro. Um deles tinha um exemplar de Long Walk to Freedom , a autobiografia de Nelson Mandela. "É muito inspirador", disse.

Mandela havia terminado a sua sesta da tarde e estava sonolento; os seus sapatos estavam desamarrados. Usava uma camisa amarelo vivo e atravessou a sala devagar. "Bem-vindo de volta", disse, radiante, o primeiro presidente de uma África do Sul democrática. "Deve compreender que ter sido expulso do meu país foi uma grande honra". A graça e o encanto do homem faz-nos sentir bem. Riu-se discretamente quanto à sua elevação à santidade. "Não era esse o emprego que eu pretendia", disse ironicamente.

No entanto, ele já estava bem habituado a entrevistas cerimoniosas e eu fui admoestado várias vezes – "esqueceu-se completamente do que eu disse" e "já lhe expliquei essa questão". Sem tolerar qualquer crítica ao Congresso Nacional Africano (CNA), revelou porque é que milhões de sul-africanos vão chorar a sua morte mas não o seu "legado".

Perguntei-lhe porque é que não se tinham mantido as reivindicações que ele e o CNA tinham feito na altura da sua libertação da prisão em 1990. O governo de libertação, havia prometido Mandela, assumiria a economia apartheid, incluindo os bancos, e "é impensável uma alteração ou modificação das nossas perspectivas quanto a essa questão". Uma vez no poder, foi abandonada a política oficial do partido para acabar com a pobreza da maior parte dos sul-africanos, o Programa de Reconstrução e Desenvolvimento (PRD), e um dos seus ministros gabou-se que a política do CNA era thatcherita.

"Pode pôr-lhe o rótulo que quiser", respondeu, "…mas, para este país, a privatização é uma política fundamental".

"Isso é o oposto do que o senhor disse em 1994".

"Temos que pensar que cada processo incorpora uma mudança".

Poucos sul-africanos comuns tinham consciência de que este "processo" começara no maior segredo dois anos antes da libertação de Mandela, quando o CNA no exílio fez um acordo com importantes membros da elite africânder em reuniões na Mells Park House, uma casa imponente perto de Bath. Os pioneiros foram as empresas que tinham apoiado o apartheid.

Mais ou menos no mesmo período, Mandela estava efetuando as suas negociações secretas. Em 1982, foi transferido da Ilha Robben para a prisão Pollsmoor, onde podia receber e conversar com pessoas. O objetivo do regime apartheid era dividir o CNA entre os "moderados" com quem se podia "negociar" (Mandela, Thabo Mbeki e Oliver Tambo) e os da vanguarda dos subúrbios que lideravam a Frente Democrática Unida (FDU). A 5 de Julho de 1989, Mandela saiu da prisão para se encontrar com P.W. Botha, o presidente da minoria branca, conhecido por Groot Krokodil (Grande Crocodilo). Mandela sentiu-se encantado por Botha ter servido o chá.

Nas eleições democráticas de 1994, terminou o apartheid racista e o apartheid econômico conheceu um novo rosto. Durante a década de 80, o regime de Botha ofereceu generosos empréstimos a empresários negros, permitindo-lhes fundar empresas fora dos bantustões. Surgiu rapidamente uma nova burguesia negra, juntamente com um compadrio excessivo. Os chefões do CNA mudaram-se para mansões em "golf and country estates". Enquanto as disparidades entre brancos e negros diminuíam, aumentavam entre negros e negros.

O refrão familiar de que a nova riqueza "chegaria a todos" e "criaria emprego" perdeu-se em duvidosos acordos de fusão e de "reestruturação" que reduziram postos de trabalho. Para as empresas estrangeiras, um rosto negro na direção era a garantia de que nada tinha mudado. Em 2001, George Soros disse no Fórum Econômico de Davos, "a África do Sul está nas mãos do capital internacional".

Nos subúrbios, o povo sentiu poucas alterações e foi sujeito a despejos como na era do apartheid; alguns sentiram a nostalgia da "ordem" do antigo regime. As realizações pós-apartheid na vida quotidiana des-segregacionista na África do Sul, incluindo nas escolas, foram suplantadas pelos extremos e pela corrupção do "neoliberalismo" a que o CNA se dedicou. Isso levou diretamente a crimes estatais como o massacre de 34 mineiros em Marikana em 2012, que fez recordar o vergonhoso massacre de Sharpeville mais de cinquenta anos antes. Foram ambos protestos contra a injustiça.

Também Mandela fomentou relações de compadrio com brancos ricos do mundo empresarial, incluindo os que tinham sidos beneficiados com o apartheid. Considerou que isso fazia parte da "reconciliação". Porventura, ele e o seu querido CNA estiveram em luta e no exílio tanto tempo que estavam dispostos a aceitar e a pactuar com as forças que tinham sido inimigas do povo. Havia os que queriam de fato uma mudança radical, incluindo alguns do Partido Comunista da África do Sul, mas foi a poderosa influência do cristianismo missionário que provavelmente deixou a marca mais indelével. Os liberais brancos no país ou fora dele apreciaram isso, ignorando ou bendizendo a relutância de Mandela em formular uma visão coerente, como fizeram Amílcar Cabral ou o Pandita Nehru.

Ironicamente, Mandela parece ter mudado depois de reformado, alertando o mundo para os perigos pós 11 de Setembro de George W. Bush e de Tony Blair. Sua descrição de Blair como "ministro das Relações Exteriores de Bush" foi maliciosamente cronometrado; Thabo Mbeki, seu sucessor, estava prestes a chegar em Londres para se encontrar com Blair. Pergunto a mim próprio o que é que ele faria com a recente "peregrinação" à sua cela de Robben Island, feita por Barack Obama, o carcereiro implacável de Guantanamo.

Mandela pareceu-me extremamente afável. Quando a minha entrevista com ele acabou, ele me deu um tapinha no braço, como se dissesse que eu estava perdoado por contradizê-lo. Fomos até ao seu Mercedes prateado, onde a sua cabeça grisalha desapareceu no meio de um grupo de homens brancos com armas enormes e arames nas orelhas. Um deles deu uma ordem em africânder e desapareceu.

O filme Apartheid Did Not Die, de John Pilger, pode ser visto em Apartheid Did Not Die.

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