30 de novembro de 2013

Atos de Desaparecimento: Aquino

Nascido por volta de 1225 perto da pequena cidade de Aquino, no sul da Itália, Tomás de Aquino frequentou a Universidade de Nápoles e, enquanto estava na cidade, entrou para a Ordem Dominicana. Ele então foi para o norte para prosseguir...

Terry Eagleton

London Review of Books

Vol. 35 No. 23 · 5 December 2013

Thomas Aquinas: A Portrait
por Denys Turner
Yale, 300 pp., £18.99, maio 2013, 978 0 300 18855 4

Nascido em 1225 ou perto disso, em Aquino, pequena cidade do sul da Itália, Tomás de Aquino frequentou a Universidade de Nápoles e, ainda na cidade, integrou-se à Ordem dos Dominicanos. Viajou então para o norte, para prosseguir seus estudos com Alberto, O Grande - também Dominicano - em Paris e Colônia. Foi nomeado palestrante e depois professor da Universidade de Paris e voltou a Nápoles para organizar ali a casa de estudos dos Dominicanos. Morreu em 1274, em viagem para Roma onde participaria do Segundo Concílio de Lion, mas bateu a cabeça num galho baixo de árvore e morreu. Foi canonizado 50 anos depois.

O curso plácido da vida de Aquino contrasta fortemente com a magnificência de suas realizações. Esse frade taciturno, de cuja personalidade notável sabe-se muito pouco, está entre os maiores teólogos, só comparável a São Paulo e a Santo Agostinho. Das suas publicações, a pedra central é a assustadoramente grande Summa Theologiae. No seu estilo seco, ríspido, contido, esse formidável compêndio de teologia, metafísica, ética e psicologia vai desde as celebradas demonstrações, por Tomás, da existência de Deus, à vida moral, Cristo e os sacramentos. Hoje, a Summa é parte considerável dos fundamentos intelectuais da Igreja Católica Romana, embora jamais tenha gozado de tal prestígio, em seu tempo. Representava então apenas uma dentre várias escolas medievais escolásticas e em vários momentos foi objeto de muita controvérsia.

Para desconsolo de alguns padres tradicionais, Tomás de Aquino estava convencido de que o pensamento do pagão Aristóteles oferecia os recursos filosoficamente mais valiosos para expor a fé cristã, e foi por essa poderosa síntese, sobretudo, que Aquino conquistou seu lugar entre os imortais da filosofia. O conflito em torno de Aristóteles foi particularmente feroz na Universidade de Paris, onde muitos colegas de Tomás de Aquino abraçaram as doutrinas de Agostinho e do neoplatonismo, e consideravam o pensamento de Aristóteles incompatível com o cristianismo. O que Aquino fazia então era guerra por palavras, embora ninguém jamais suspeitasse, se considerado o estilo sem crispações, sempre em tom menor.

Como Marx, Tomás de Aquino também mergulhou num caldeirão fervente, contra a autoridade, por ser materialista. Não que insistisse na ideia absolutamente tediosa de que só há matéria, nada além de matéria. O seu materialismo não era reducionismo brutal, como, tampouco, o de Marx. Tomás de Aquino acreditava na alma, exatamente como Daniel Dennett e Richard Dawkins não acreditam; mas acreditava, dentre outras razões, porque pensava que a alma leva à compreensão a mais rica possível dessa eclosão de matéria chamada corpo. Como Wittgenstein observou: se quiser uma imagem da alma, olhe o corpo. A alma, para Tomás de Aquino, não é algum tipo de “extra” fantasmagórico, como para os cristãos platonizantes de seu tempo; que não se veja a alma como um rim espiritual ou o espectro de um pâncreas.

Dado que a linguagem é matéria que significa, assim, para Tomás, é o corpo, que deve ser visto, para ser mais bem visto, não como um objeto, mas como um significador. Por trás dessa crença está uma teologia da Palavra que se fez carne, e em particular da Eucaristia, na qual aquela Palavra está presente na transformação do pão e do vinho em algo, assim como aquele significado está presente num signo verbal. Segue-se dos ensinamentos de Tomás de Aquino, que não há o tal de corpo morto. Um cadáver é apenas o que resta de um corpo, uma massa de material do qual saiu o significado, como numa hemorragia; não é mais o artigo genuíno.

Tomás dizia claramente que se algo não envolve o meu corpo, então não me envolve. Posso não estar fisicamente presente junto a você pelo telefone, no sentido de partilharmos o mesmo espaço material, mas estou corporalmente presente para você, do mesmo modo. Cristianismo tem a ver com a transfiguração do corpo, não com a imortalidade da alma. Aquino certamente acreditava em almas desencarnadas, mas nem por isso entendia que a alma de alguém fosse alguém. Nunca lhe ocorreria pensar que a alma desencarnada de Amy Winehouse seria Amy Winehouse. A identidade humana, pensava ele, é uma identidade animal. Como Turner argumenta nessa biografia, Tomás de Aquino pensava, diferente dos platonistas, que “somos completamente animal, animal da cabeça ao pés”. Os que protestam que assim se deixaria de fora um extra invisível chamado alma deixam escapar sem ver, simplesmente, a natureza peculiarmente criativa dessa animalidade.

Dito em termos impolidos, temos o tipo de mente que temos, por causa do tipo de corpo que temos. Nosso pensamento, por exemplo, é discursivo, avança no tempo, como avança, porque nossos sentidos-experiência também são assim. O papel dos conceitos abstratos, ensinou ele, é enriquecer nossa experiência, não torná-la ainda mais rala. Marx argumenta exatamente na mesma direção, nos Grundrisse.

Tomás de Aquino também pensava que a metáfora seria o modo de linguagem mais adequado aos animais humanos, por causa de seu caráter concreto, sensorial. Embora seja frequentemente acusado de racionalismo escolástico sem sangue, está, em vários sentidos, muito mais perto dos empiricistas. O objeto natural da mente, ele insiste, não é Deus, o ego ou ideias, mas coisas materiais. Qualquer conhecimento que tenhamos de Deus tem de começar aqui e, em particular, com aquele patético fracasso de um objeto natural conhecido como Jesus. (Em frase esplendidamente esculpida, Turner escreve de Jesus, que foi “executado extrajudicialmente por recomendação de um comitê corrupto de pessoas muito religiosas”.)

Mas não que a expressão “conhecimento de Deus” soasse como perfeitamente não problemática aos ouvidos de Tomás de Aquino. Teria prontamente concordado com Dennett e Dawkins, que quando falamos de Deus, não sabemos, realmente, do que falamos. (Sobre Dawkins, Turner observa, ácido, que “não há uma única frase em toda a teologia de Tomás de Aquino que [Dawkins] seja capaz de formular com clareza suficiente para negá-la com eficácia”).

Para Aquino, toda a linguagem sobre Deus é metafórica, acerta ou erra, correndo constantemente contra os limites do dizível. Os cristãos dizem, por exemplo, que Deus é um, não vários; mas como qualquer outro fragmento de fala-de-Deus, esse também não pode ser tomado literalmente. Deus não é, na visão de Aquino, alguma espécie de ser, princípio ou entidade que possa ser contado com outras entidades que tais. Não é sequer alguma espécie de pessoa, como há quem diga que Piers Morgan seja pessoa. Deus e o universo não fazem dois. Sejam quais forem os demais erros que os crentes cometem, não ser capaz de contar não é um deles. Os crentes não defendem que haja um objeto a mais, no mundo, além dos que há. Deus, para Aquino, não é coisa no ou fora do mundo, mas o campo de possibilidade de tudo, seja o que for. Se caíssemos fora de suas mãos, mergulharíamos no nada; e a fé é confiança em que, por mais odiosos que sejamos uns para os outros, ele não nos deixará escapar entre os dedos.

A doutrina da Criação não é conversa fiada científica, como racionalistas do século XIX demodés como Dawkins pressupõem. Como Turner argumenta, ela trata realmente da extrema fragilidade das coisas. Aquino acredita que tudo que existe é contingente, no sentido de que não há absolutamente necessidade que as coisas supram. Deus fez o mundo por exigência do amor, não da necessidade. É ser gratuito, o que é o mesmo que dizer que é questão de graça e dom.

Como uma obra de arte modernista, ou como alguém contemplando a própria mortalidade, o mundo está cheio de um senso de nada, que brota da consciência, que dá nó na cabeça, de que o que é poderia perfeitamente jamais ter sido. A Criação é o ato gratuito original. Tomas de Aquino não pensa que podemos controlar o mundo, precisamente porque não podemos controlar o nada, seu contrário; mas entende que seja racional perguntar por que há algo, e não nada, como alguns filósofos não fazem. E, dado que pensa que a resposta a essa pergunta é Deus, essa, Turner argumenta, é a razão pela qual ele afirma a existência de Deus, a qual, embora em sentido algum seja autoevidente, pode ser demonstrada racionalmente.

Tem, pois, crença tipicamente católica no poder da razão, diferente de um ceticismo protestante do intelecto, que seria obscurecido e corrompido. Mas, apesar de que morremos, sem a razão, e apesar de a razão ir até bem longe, ela não completa o serviço, como tampouco o completa, para Marx ou Freud. No fim, o que sustenta a razão é a fé, que é um tipo de amor. Nem Dawkins se daria o trabalho de meter-se em seu laboratório, não fosse por algumas crenças e compromissos subjacentes.

E que essa foi a via pela qual Tomás de Aquino viu o assunto, foi dramaticamente ilustrado bem no final de sua vida. Algo aconteceu a ele no dia 6 de dezembro de 1273. Não se sabe se teve uma visão, um colapso nervoso ou ambos. Mas depois de uma vida de produção quase sobre-humana (a certa altura, quando escrevia sua Summa Theologiae, estava produzindo o equivalente a dois ou três romances de tamanho médio, por mês), abandonou a pena. Consta que teria dito ao seu secretário que nunca mais escreveria depois do que vira naquela dia, “porque tudo que escrevi não passa de palha”. Seguiram-se três meses de silêncio, e a morte.

Sete oitavos da Summa já estavam prontos, e Turner vê um significado teológico nessa incompletude. Como o mundo, do modo como Aquino o compreendia, aquele mais fino dos trabalhos de teologia encerra-se com o silêncio. Turner extrai grande aproveitamento do que se pode chamar de o anonimato de Aquino, o fato de que ele se apaga, some, em sua escrita meticulosa, distanciada, sem arroubos, como que para impedir que a personalidade se interponha entre o leitor e a verdade. Paulo e Agostinho se entretecem eles mesmos em cada palavra, e Meister Eckhart, na expressão de Turner, é “um show de efervescência”. Mas Tomás de Aquino é “o santo quase completamente invisível”, um mestre na arte de sumir-se, cuja nenhuma ostentação é, ela própria, uma forma de totalidade. Se seu texto parece não ter autor, se recusa-se a cintilar, é porque, como observou certa vez, melhor lançar luz aos outros, que brilhar por brilho próprio. Nesse sentido, pode ser adequado que a Summa suspenda-se, finalmente, em silêncio, dado que o autor já tinha os lábios bem cerrados, desde o início. Se se empurra a razão até o mais longe que ela pode ir, pode acontecer de, como no sublime kantiano, ela iluminar, por negação, o que está além de seus limites.


Se Tomas de Aquino depôs deliberadamente a pena, há um sentido no qual ele escolheu a pobreza do espírito, acima da realização do intelecto. Essas são duas virtudes caracteristicamente dominicanas. É importante entender que ele foi frade, não monge. Os monges, como os cistercianos e beneditinos, vivem vida de oração e trabalho reclusos, longe do mundo, e seus monastérios são construídos para ser enclaves de ordem, paz e estabilidade. Enraizados num só ponto, os monges visam à autossuficiência, criando as próprias granjas, mantendo escolas pagas, fabricando licores exóticos e coisas do gênero.

Frades, como os dominicanos e os franciscanos, ao contrário, vivem da mão para a boca, na miséria, como mendigos que dependem da caridade das pessoas comuns. Como os monges, também vivem em comunidades, mas, diferentes deles, perseguem a própria missão nas ruas. Os frades são sujeitos urbanos, os monges são, na maioria, rurais. O objetivo original dos frades é liberar a teologia dos claustros e colégios, para que se torne o que esse livro chama de “prática multitarefa nas ruas”. Os dominicanos, em particular, combinam oração e pobreza, como o próprio Jesus. Têm de ser livres de quaisquer posses; e têm de manter o celibato (para não terem de arcar com deveres domésticos), para poderem ir aonde sejam necessários, flexíveis, disponíveis para os que cheguem. Diferentes dos evangelizadores de televisão nos EUA, também têm de deixar claro àqueles aos quais servem, que, ali, eles nada ganham.

Nada disso valeu aos dominicanos do tempo de Tomás de Aquino uma imagem respeitável. Eram vistos quase sempre como vagabundos e parasitas, “gangues de enganadores dedicados à autopromoção”, como Turner escreve sem meias palavras, que supunham que o mundo teria obrigação de sustentá-los. Enquanto os jesuítas são figuras do establishment, os dominicanos são os lobos solitários intelectuais da igreja. Em nossos dias, tem havido jungianos, marxistas, hippies, pacifistas e wittgensteinianos radicais. Como escritores, palestrantes, professores, pregadores e intelectuais públicos, sua forma especial de santidade exerce-se mediante a palavra.

Tomás de Aquino, membro da pequena aristocracia italiana, estava destinado pela família à ordem dos beneditinos, mas chocou-os todos, ao decidir tornar-se dominicano. Foi, mais ou menos, como se o príncipe Harry se alistasse no Partido dos Trabalhadores Socialistas. Alguns de seus irmãos o separaram à força dos dominicanos e o puseram em prisão domiciliar por um ano, no castelo da família. Com tocante solicitude fraternal, também tentaram demovê-lo da decisão de tornar-se frade: mandaram ao quarto dele uma prostituta nua, tática pouco efetiva para um homem que declarou a contemplação o maior de todos os prazeres. Tomás de Aquino afinal achou sua saída, e escreveu a Summa, como uma espécie de recurso pedagógico para seus irmãos dominicanos. Nas palavras de Turner, foi “o escrito que os pregadores mendigos devem carregar com eles; é uma teologia do homem pobre, o Cristo pobre como teologia. Como para Marx, a teoria a serviço da prática”.

É Tomás de Aquino quem, sobretudo, deu forma ao que se pode chamar de uma característica visão católica da realidade. Para esse modo de ver, o modo como as coisas são não é só o modo como dizemos que elas sejam. Ao contrário, o mundo é rico e intrincado de pleno direito dele, feito de camadas complicadas, mas significativamente estruturado, e até Deus Todo Poderoso deve reconhecer esse fato. Poderia ter criado um cosmos no qual não houvesse mousse de chocolate ou Bruce Willis; mas dado que não o fez, tem de curvar-se à lógica de sua própria criação, em vez de reivindicar o direito de decidir, feito prima-donna caprichosa, que os pinguins se ponham a praticar salto com vara ou que a Cidade do Cabo apareça no hemisfério norte.

Mesmo assim, é a mente humana que, na visão de Tomás de Aquino, traz as coisas à fruição, de tal modo que falar delas é fazê-las ser mais plenamente o que elas já são. Os indivíduos podem trazer-se uns à fruição dos outros, no sentido de que o ser deles é completamente relacional, de cabo a rabo. No centro da visão moral de Tomás de Aquino está a ideia da amizade. É esse tipo de amor, não o amor erótico ou romântico, a melhor imagem do inabordável, inimaginável, amor de Deus, que convoca homens e mulheres a serem seus amigos, não seus servos. Tomás de Aquino, para quem a vida humana é comunitária até a raiz, nunca teria compreendido o individualismo moderno. Nem jamais compreenderia o preconceito neoliberal segundo o qual o poder, a autoridade, os sistemas, as doutrinas e as instituições são inerentemente opressivos.

De um ponto de vista tomista, todo o ser é benigno. É bom em princípio, e o mal é uma espécie de não-ser. Em homens e mulheres, é a forma defectiva de existência dos que jamais acharam jeito de ser humanos.

Os seres humanos vivem em amarga carência de redenção, como pode comprovar qualquer um que leia jornais; mas essa redenção não é rudemente imposta sobre eles na contramão do que desejem. Ao contrário, a natureza deles acolhe, hospitaleira, essa transformação profunda, e anseia por ela, mesmo quando eles nem são inteiramente conscientes disso. A vida moral envolve cortar através de densa camada de falsa consciência e de uma autoenganação pia após outra, para descobrir o que nós realmente, fundamentalmente, desejamos.

Deduz-se da visão do ser de Tomás de Aquino que vida boa é vida florescente, ricamente abundante. Quanto mais uma coisa é ela mesma, melhor se torna. Santos são os supremamente bem-sucedidos na exigente tarefa de ser humano, os George Bests e as Jacqueline du Prés da esfera moral. Moralidade não é questão de dever e obrigação (Turner lembra que o léxico moral tomista praticamente nem registra essas palavras), mas de felicidade e bem-estar.

Terry Eagleton escreveu cerca de cinquenta livros, incluindo, o mais famoso, Teoria Literária: Uma Introdução (1983), e cerca de oitenta textos para a LRB. Seus temas incluem críticos (Erich Auerbach, Mikhail Bakhtin, Georg Lukacs, IA Richards, Stanley Fish, Gayatri Chakravorty Spivak), Deus, um Delírio, de Richard Dawkins, e muitos romances. Ele lecionou por muitos anos em Oxford, tornando-se Professor Warton de Literatura Inglesa em 1992, e depois em Manchester e Lancaster.

27 de novembro de 2013

Descobrir o poder da história do povo - e porque hoje ela é temida

John Pilger

New Statesman

Tradução / A Inglaterra é dois países. Um é dominado por Londres, o outro permanece na sua sombra. Quando cheguei da Austrália pela primeira vez, parecia que ninguém ia ao Norte de Watford e aqueles que haviam emigrado do Norte esforçavam-se arduamente por mudar suas pronúncias, encobrir suas origens e aprender os maneirismos e códigos das satisfeitas classes sulistas. Alguns zombavam da vida que haviam deixado para trás. Estavam a mudar de classe, ou assim pensavam.

Quando o Daily Mirror enviou-me em reportagem ao Norte, na década de 1960, meus colegas em Londres divertiram-se com o meu desterro para os antípodas, o seu equivalente da Sibéria. Na verdade, foi o pior Inverno em 200 anos e eu nunca usara um cachecol ou possuira um casaco. Tente imaginar o que é aquilo como a mais sombria Leeds e Hull, advertiram.

Era um tempo em que, segundo se dizia, os trabalhadores na Inglaterra “falavam alto”, até mesmo “tomavam o comando”. Filmes realistas estavam a ser rodados e pronúncias que antes não eram bem vindas nos media e em secções do negócio do entretenimento agora aparentemente eram procuradas, embora muitas vezes como caricaturas.

Durante aquela primeira viagem ao Norte, quando parei para abastecer de gasolina, não consegui entender o que disse o homem; dentro de semanas, o que as pessoas diziam parecia-me perfeitamente claro. Eles eram uma outra nação com uma história diferente, diferentes lealdades, humor diferente, mesmo valores diferentes. No cerne disto estava a política de classe. Transpondo os Pennines, o Império vinha abaixo. As paixões imperiais do Sul mal se manifestavam. Em Merseyside e Tyneside, excepto entre os notáveis habituais, ninguém se importava com a realeza. Havia o um-por-todos-e-todos-por-um de uma sociedade da classe trabalhadora – a menos, como se tornou penosamente claro em anos posteriores – que acontecesse você ser negro ou mulato. Aquela solidariedade era, para mim, a notícia, como se fosse o capítulo em falta no património político da Inglaterra, uma história do povo dos tempos modernos, omitida por Thatcher e Blair e ainda temida pelas suas repercussões.

Eu já havia vislumbrado o poder desta solidariedade no lugar onde cresceram meus pais e conhecia-a enquanto rapaz: a região mineira do Hunter Valley, no Novo País de Gales. Aqui, todos os mineiros do carvão haviam sido despedidos de Yorkshire, Tyneside e Durham. “Observe-os, eles são comunistas”, ouvi alguém dizer. Eles eram combatentes pela decência da classe trabalhadora: pagamento adequado, segurança e solidariedade. Os galeses eram iguais. Traziam consigo os sofrimentos físicos e mentais e a raiva daqueles que haviam industrializado o mundo e ganhavam pouco excepto a perdurável solidariedade de uns com os outros.

O Mirror publicou minhas reportagens de vidas de trabalhadores: mineiros a trabalharem em poços de menos de um metro, trabalhadores do aço no calor inimaginável. Eu encontrava uma rua, virtualmente qualquer rua, e batia às portas. O que me intrigava então era que tal calor humano e auto-domínio pudessem sobreviver no trabalho monótono das cidades nortistas. Além disso, a grande tradição radical de resistência no Norte – desde os trabalhadores do algodão do século XIX até a Grande Greve dos Mineiros de 1984-85 – sempre ameaçou o jogo que em Londres é conhecido como “o consenso”.

Isto foi o arranjo feito às escondidas entre os governos Trabalhista e Conservador e os cinco por cento que possuíam metade da riqueza de todo o Reino Unidos. O deputado trabalhista que se tornou homem dos media, Brian Walden, descreveu como isto funcionou. “Os das poltronas da frente [no Parlamento] gostavam uns dos outros e não gostavam dos seus pares nas poltronas de trás”, escreveu ele. “Nós éramos filhos do famoso consenso… ir da oposição para o governo fazia pouca diferença, pois acreditávamos nas mesmas coisas”.

Meu segundo filme para a televisão, feito para a Granada TV em Manchester, chamou-se “Conversações com um trabalhador”. Era a história de Jack Walker, trabalhador do tingimento de Keighley, no Yorkshire, cujo trabalho era monótono, sujo e maléfico para a sua saúde, mas ele daí retirava um orgulho em “fazer isto bem”. Jack acreditava apaixonadamente que o povo trabalhador deveria permanecer unido. Que a um sindicalista eloquente era permitido exprimir seus pontos de vista sem a intromissão daqueles que muitas vezes afirmam falar por ele, e preocupar-se em alta voz acerca da democracia costurada em Westminster ia além dos limites. A expressão “classe trabalhadora”, diziam-me, tinha “implicações políticas” e não seria aceitável para a Independent Television Authority. Teria de ser mudada para “património dos trabalhadores” (“working heritage”). A seguir havia o problema da palavra “o povo”. Isto era uma “expressão marxista” e também tinha de ser afastada. E o que era este “consenso”? Certamente, a Grã-Bretanha tinha um vibrante sistema de dois partidos.

Ao ler recentemente que 600 mil residentes na Grande Manchester estavam a “experimentar os efeitos da pobreza extrema” e que 1,6 milhão estavam a cair na penúria, recordei-me de como o consenso político ficou imutável. Dirigido agora pela classe sulista dos proprietários de terra (squirearchy) de David Cameron, George Osborne e os seus colegas etonianos, a única mudança é a ascensão da classe administradora de corporações, exemplificada pelo apoio de Ed Miliband à “austeridade” – o novo jargão para a pobreza imposta.

Na Clara Street, em Newcastle-upon-Tyne, no escuro invernal da madrugada, andei colina abaixo com pessoas que trabalhavam mais de 60 horas por semana por uma ninharia. Eles descreveram seus “ganhos” como o Serviço de Saúde. Tinham visto apenas um político na rua, um liberal que veio, afixou cartazes e disse algo inaudível do seu Land Rover e apressou-se a ir embora. A cantilena de Westminster era então “pagar nossas despesas como nação” e “produtividade”. Hoje, seus lugares de trabalho e sua protecção sindical, sempre ténue, foram-se. “O que está errado”, disse-me um homem na Clara Street, “é do que os políticos não querem mais falar. Os governos não se importam de como vivemos, porque não somos parte do seu país”.

21 de novembro de 2013

Os vazamentos de Snowden e o público

Alan Rusbridger

The New York Review of Books

Florian Schuh/dpa/Corbis

1.

Tradução / Conseguir destruir um computador MacBook Pro da Apple é mais complicado do que o leitor possa pensar à partida, pelo menos de acordo com parâmetros do Governo britânico. Se vivêssemos num mundo perfeito, os agentes do Governo que pretendessem destruir este tipo de máquinas optariam por mergulhá-las numa gigante misturadora de cozinha que as pudessem reduzir a pó. À falta de tal equipamento, o Guardian comprou um berbequim elétrico e uma trituradora a 20 de julho deste ano e — sob observação atenta de dois agentes do Estado – destruiu-as à obsolescência.

Fazia calor e havia muito pó na cave do Guardian naquele sábado, uma data que certamente merecerá nota de rodapé nalguma história que se possa escrever sobre como, em democracias modernas, os governos “colidem” com a imprensa. O Governo britânico já tinha decretado como “suficiente q.b.” o debate gerado em torno do material que tinha saído das fugas de informação de um antigo empregado da NSA, Edward Snowden. Se o Guardian se recusasse a devolver, ou a destruir, os documentos, eu, enquanto diretor do jornal, receberia uma notificação ou uma visita da polícia – na verdade, não me foi dito claramente qual das duas coisas iria na realidade acontecer. Mas, fosse qual fosse, o Estado revogava-se o direito de ameaçar a imprensa com restrições à divulgação de mais dados ou discussão sobre o tema, independentemente de ser do interesse público. É o tipo de situação que seria normal acontecer na Grã-Bretanha do século XVIII, mas não na dos dias de hoje.

Durante as nossas conversas com as autoridades governamentais até 20 de julho, tentamos fazê-los ver que, para além de estar por princípio errada, esta tentativa de amordaçar uma organização de mídia seria infrutífera. Havia, explicamos-lhes, cópias de toda a documentação de Snowden espalhadas por diversos países. Explicamos-lhes também que o Guardian estava a colaborar com outras organizações jornalísticas nos Estados Unidos. Glenn Greenwald, o primeiro jornalista a lidar com Snowden, vivia no Rio de Janeiro. A realizadora de cinema Laura Poitras, que também contatara com o ex-analista da NSA, tinha ainda mais material em Berlim. O que é que eles pensavam conseguir com a destruição de uns quantos discos rígidos em Londres?

Os homens do governo disseram estar “dolorosamente conscientes” de que existiam outras cópias mas que tinham instruções claras para fechar a operação do Guardian em Londres, destruindo os computadores que pudessem ter informação sobre Snowden. A um determinado ponto ainda suspeitei que os nossos interlocutores pudessem ter percebido que o jogo tinha mudado de mãos. A tecnologia que tanto entusiasma os fantasmas – e assegura a vigilância sobre milhares de milhões de vidas – é também uma tecnologia impossível de controlar ou conter. Mas burros velhos não aprendem – e lá teve de vir do tribunal a ordem para impedir a publicação de artigos sobre o tema. Tanto a Lei de Espionagem Americana de 1917 como a sua congênere britânica de 1911, cada qual devidamente ancorada em conspirações de guerra e na febre dos espiões, deixaram um longo rasto de sombra.

Os Estados Unidos têm as suas próprias dificuldades com os jornalistas e as suas fontes. Mas ainda assim têm um ambiente mais ameno para quem quer criar o tipo de debate sobre a segurança e a privacidade que todos parecem concordar ser desejável. A principal vantagem nos EUA é que, espero, é impensável o governo tentar impedir antecipadamente a publicação. A Constituição, a Primeira Emenda e a sentença do Supremo Tribunal sobre o caso dos Pentagon Papers, em 1971, desempenharam o seu papel na criação das proteções que faltam no Reino Unido. Jill Abramson, diretora do The New York Times, não vai ser obrigada a comprar trituradoras tão cedo.

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E assim continuam as notícias, muitas delas editadas fora de Nova Iorque, tal como antes, pela nossa editora para os EUA, Janine Gibson. O que tem sido gradualmente revelado é que na última década os governos dos EUA e do Reino Unido, trabalhando em colaboração estreita, têm procurado colocar populações inteiras sob algum tipo de vigilância. O objetivo aparente é conseguir reunir e arquivar “todos os sinais o tempo todo” – ou seja, toda a vida digital, incluindo pesquisas na Internet, e todas as chamadas telefônicas, textos, emails, que fazemos e mandamos uns aos outros.

Uma parte disto são dados, outra parte são metadados – informação sobre quem mandou uma comunicação a quem, de onde para onde, e não sobre o conteúdo específico. Mas tal como disse Stewart Baker, antigo conselheiro geral da NSA, num debate recente em Nova Iorque, estas distinções são matreiras. “Os metadados dizem-nos absolutamente tudo sobre a vida de alguém”, afirmou com admirável candura. “Se tivermos metadados suficientes, não precisamos realmente de conteúdo... É até embaraçoso o quão previsíveis os seres humanos são.”

Começamos a ter uma ideia de como tudo se passa. A NSA e a sua congênere britânica, o GCHQ (Government Communication Headquarters), trabalham de perto com serviços de Internet e empresas de telecomunicações para reunir enormes quantidades de dados sobre nós. Uma parte desse trabalho faz-se de forma aberta – através de pedidos legais formais. Outra parte é feita a montante das empresas de tecnologia e de telefones – ou seja, interceptando os sinais em movimento. As agências colocaram sondas nos cabos transatlânticos, permitindo-lhes sugar dados de milhões de utilizadores nos dois lados do Atlântico. No ano passado, o GCHQ tinha em mãos 600 milhões de “acontecimentos telefônicos” por dia, gravações de mais de 200 cabos de fibra ótica e conseguia processar dados de 46 deles de uma só vez.

Também ficamos sabendo como as agências gastaram balúrdios de dinheiro para subverter a integridade da própria Internet – enfraquecendo a sua segurança de formas que deveriam preocupar todos os indivíduos, organismos públicos ou empresas que a utilizam. Um alçapão que permite a NSA entrar nas nossas mensagens é bastante passível de ser explorado por outros, concordam a maioria dos criptologistas. Se está nervoso por os seus detalhes bancários ou registos médicos estarem pairando online, provavelmente tem razões para estar.

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Se, por exemplo, os chineses tivessem agido assim com a Internet e nas plataformas sociais usadas em todo o mundo, haveria uma fúria difícil de conter no Ocidente. Não admira que o fundador do Facebook, Mark Zuckerberg, não tenha ficado impressionado pelas garantias dadas repetidamente pelo Presidente Obama de que “não há espionagem sobre os americanos”. Isso, salientou ele, não serve de conforto aos empresários americanos que querem criar negócios globais.

Tudo isto está muito distante das origens das agências de espionagem modernas, muitas das quais, como as leis sobre segredos de Estado que as protegem, têm cerca de cem anos. No Reino Unido, começou com pele de sapatos – tentando apanhar espiões alemães que se infiltravam nos navios. Em muito pouco tempo, os espiões estavam tentando captar os novos sinais enviados pela Marconi sem fios. Os jornais dessa altura revelavam a profunda ignorância de governantes e deputados sobre as tecnologias emergentes. O mesmo é verdade hoje.

Durante a maior parte do século XX, a nossa imaginação acerca do que os espiões faziam deveu-se muito a Ian Fleming, John le Carré ou Robert Ludlum. Na maior parte das vezes, era um mundo de espião contra espião. Até agora, quando qualquer tecnologia está envolvida, estão também envolvidos as engenhocas – metralhadoras giroscópicas, impressões digitais falsas, cigarros com gás atordoante ou pasta de dentes explosiva.

A nossa imaginação não resiste a ser colorida por George Orwell, que não escreveu romances de espionagem mas construiu uma visão horrivelmente perturbadora de como as tecnologias que tudo observam podem levar as sociedades a lugares muito escuros. Muito mais recentemente, o filme alemão As Vidas dos Outros deu uma perspectiva assustadora dos horrores que a Stasi, da Alemanha de Leste, estava disposta a infligir a civis com as tecnologias disponíveis da década de 1980. O romance de Henry Porter de 2009, The Dying Light, foi profético na descrição de um mundo de vigilância britânica que ele teve grandes dificuldades em investigar.

Edward Snowden, um colaborador da NSA de 29 anos a viver no Havai, tinha uma visão mais actual da realidade das agências de espionagem – e que tem pouco que ver com o mundo do 007 ou de George Smiley. Ele tinha acesso a milhões de documentos altamente classificados e a relatórios tanto da NSA como do GCHQ. Evidentemente, aquilo que viu perturbou-o. “Mesmo que não estejamos a fazer nada de mal, estamos a ser observados e gravados”, disse ao Guardian quando se desmascarou como fonte do material, no início de Junho. Numa entrevista por vídeo, afirmou: “A capacidade de armazenamento de informação destes sistemas aumenta de ano para ano de forma consistente – nem é preciso fazermos nada de errado. Só precisamos de causar alguma suspeita em alguém, até através de um telefonema por engano. Então eles podem usar este sistema para recuar no tempo e escrutinar todas as decisões que alguma vez tomámos, todos os amigos com quem já tivemos uma conversa. E atacarem-nos com isso, lançando suspeitas sobre um inocente e apresentar qualquer pessoa como um criminoso.”

Snowden acrescentou, ao explicar a sua decisão de revelar aquilo que sabia, arcando com todas as consequências previsíveis para o resto da sua vida: “Apercebemo-nos de que este é o mundo que ajudámos a criar, e vai piorar com a próxima geração e a geração seguinte, que irá alargar as capacidades deste tipo de mecanismo de opressão.”

Na opinião de Snowden, as formas tradicionais de controlo – tribunais secretos unilaterais e comissões de inquérito parlamentares à porta fechada – são inadequadas, até porque apenas possuem uma informação parcial e fraco entendimento técnico e frequentemente são levadas ao engano. Talvez ele estivesse a pensar em momentos como aquele em que o director da National Intelligence James Clapper disse ao Congresso, em Março, que a NSA não coligiu intencionalmente “nenhum tipo de dados” sobre milhões de americanos. Revelou-se não ser verdade. Clapper disse mais tarde que a sua resposta foi “a resposta menos mentirosa” que foi capaz de dar. O que Orwell certamente consideraria uma resposta excelente.

Sem confiança nos tribunais ou no Congresso, Snowden virou-se para quem, em qualquer democracia moderna, está ali para descobrir a verdade, debater e responsabilizar as pessoas – os jornalistas. Quando Daniel Ellsberg deu a conhecer os Pentagon Papers, há mais de 40 anos, ele ou representantes seus foram ao Washington Post e ao New York Times. Hoje em dia, os informadores têm muito mais escolhas. Eles não precisam de “ir” realmente a lado nenhum: podem simplesmente ser eles a publicar. Apenas podemos especular sobre o que ia na cabeça de Snowden quando se preparava para revelar a Greenwald, Poitras e ao Guardian a maior cacha de material secreto alguma vez visto. Mas pode ser que tenha sido alguma coisa deste género:


  • O material será altamente complexo para quem está por fora. Uma equipa de pessoas precisará de milhares de horas para revelar a extensão total daquilo que eu quero que o mundo compreenda. Os jornais de referência às vezes fazem coisas deste género bastante bem.
  • Mas quero que isto seja tratado por pessoas que são apaixonadas e obsessivamente interessadas neste assunto. Pessoas que entenderão o seu verdadeiro significado, que investigarão o contexto legal e político, e que possam voltar repetida e forensicamente ao assunto, com profundidade e de forma abrangente. É isto que bloggers e realizadores de documentários especiais podem fazer bem.
  • O material é tão secreto e revelador que se estivesse nas mãos de uma única organização noticiosa esta ficaria sob uma enorme pressão, que poderia incluir ameaças criminais, legais e do Governo para que não publicasse o material, ou até para que o devolvesse. Os jornais já resistiram a pressões no passado, ou guardaram documentos confidenciais durante meses ou mesmo anos. Por isso, vou garantir que mais do que uma empresa jornalística o receberá.
  • Dispersão geográfica. Dadas as prováveis ameaças legais e pressão governamental, o ideal será ter os documentos em mais do que um país. Um jornal de referência “outsider” com historial de jornalismo de investigação seria interessante.


Qualquer que tenha sido o seu raciocínio, sabemos que Snowden fez uma escolha bastante esperta. Chegou, via Greenwald, ao Guardian, uma empresa jornalística com uma enorme audiência (o terceiro maior do mundo em leitores de inglês) e um historial de agregar algumas das mais formidáveis organizações e indivíduos. Partilhou outros documentos com Barton Gellman, do The Washington Post. E envolveu também dois jornalistas – Greenwald e Poitras – que não só viviam fora dos EUA como vinham de uma tradição jornalística completamente diferente.

O próprio Guardian tem um espaço editorial bastante distinto da maioria dos jornais. Os jornais ingleses cresceram com pouca reverência às noções de objectividade e imparcialidade que podem, bem ou mal, preocupar alguns dos seus colegas americanos. O jornal começou por chamar-se The Manchester Guardian – um forasteiro no mundo aconchegante de Fleet Street [em Londres, onde até há três décadas se concentravam os jornais nacionais]. Apesar de já há muito ter deixado cair o seu “Manchester” do cabeçalho, a sua mentalidade é ainda a de um estrangeiro – e é justo afirmar que é visto por alguns jornalistas britânicos com o tipo de desconfiança de que os membros de um clube sentem em relação a visitantes.

Também temos tido uma perspectiva diferente sobre as novas tecnologias que estão a avassalar radicalmente os actuais modelos editoriais e comerciais. Temos sido, acho, mais receptivos ao argumento de que os jornais podem dar uma cobertura melhor do mundo se juntarem as várias vozes – que nem por sombras serão todas de jornalistas convencionais – que agora são publicadas nas diferentes plataformas e com uma grande variedade de estilos.

Foi assim que Greenwald acabou por ir parar ao Guardian. Intrigou-nos este advogado transformado em blogger, frequentemente erudito, às vezes combativo, que conseguiu criar um grupo considerável de seguidores ao debruçar-se repetidamente sobre assuntos que tinham que ver com privacidade, liberdades civis, guerra e tecnologia. Alguns foram repelidos pelos odores do que diziam ser “activismo” ou “jornalismo de causas”. Nós não.

O filme da Dreamworks sobre Julian Assange e a WikiLeaks tem o nome engraçadinho de O Quinto Poder, evocando um estatuto quase oficial para as novas formas de imprensa digital que agora existem, que ultrapassam as fronteiras tradicionais do Quarto Poder. Greenwald não gosta muito de ser descrito como um membro do Quinto Poder – muito porque existe a tentativa recorrente de pessoas da política e do direito, e também do jornalismo, de limitar as protecções (por exemplo, sobre as fontes ou informação sigilosa) a pessoas que encaram como jornalistas de causas. Mas ele tem um pé em cada campo, no novo e no antigo.

Bill Keller, antigo diretor do The New York Times, confirmou à New Yorker em novembro que o seu jornal teria tido uma abordagem diferente à do Guardian no caso Snowden: “Se um dos nossos colunistas aparecesse com uma história desta magnitude – uma coisa que não se esgotaria na sua coluna de opinião –, nós iríamos entregá-la à nossa equipa de jornalistas. E escreveríamos no artigo ‘Nick Kristof obteve estes documentos’. Mas não íamos ter o Nick Kristof a escrever a história na primeira página do The New York Times.”

Bom, também tivemos os nossos jornalistas a trabalhar nos documentos de Snowden. Mas não impedimos Greenwald de aparecer nas páginas noticiosas. Para além de não usar as capacidades forenses e o conhecimento acumulado de Greenwald, essa demarcação iria reduzi-lo ao papel de mero fornecedor de material secreto, com todos os riscos legais potenciais e sem nenhuma da proteção que teria enquanto redator da peça.

A ironia é que é altamente improvável que Bill Keller alguma vez tivesse de enfrentar este dilema. Snowden – ao que parece deliberadamente – não deu os documentos ao New York Times, e é seguro que Greenwald nunca concordaria com as regras de base de Keller. Nada disto significa que o New York Times e outros não tenham feito um trabalho admirável sobre o material de Snowden. E também há editores britânicos que praticamente afirmaram que não cabe a um jornalista desafiar os serviços de segurança. Isto ajuda a explicar por que é que Greenwald – que anunciou a sua saída do Guardian para formar um grupo de jornalismo independente em formato digital, com um financiamento filantrópico – acabou por receber a maior fuga de informação secreta na História. Será fascinante observar esse grupo, apoiado por 250 milhões de dólares de um bilionário de Silicon Valley. Não é preciso muito para imaginar que será olhado com alguma ansiedade pelas altas instâncias da NSA e do GCHQ. Esta, pensarão alguns deles, é uma organização jornalística saída dos seus pesadelos.

2.

Mas voltemos à cave do The Guardian e ao trabalho sujo de destruir um computador. Por que é que estávamos ali?

Uma resposta plausível é aquela que o Governo deu: não é seguro para o Guardian examinar documentos altamente secretos num escritório do jornal, independentemente das precauções que tenhamos tomado. Nós percebemos este argumento: também não queríamos fugas acidentais de informação. Os agentes que nos deram sermões pareciam não ver a ironia (mais uma!) de que a única organização que perdeu totalmente o controlo dos seus dados não foi um jornal, foi a NSA. Um responsável fechou os olhos à ideia de 850 mil pessoas terem acesso a eles.

Mas, se isto tinha uma importância tão esmagadora, é preciso perguntarmos porque foram precisas cinco semanas para os melhores agentes de segurança do Estado chegarem aos escritórios do Guardian. E porque – quase três meses depois – ninguém da esfera oficial tornou “seguros” os documentos que o New York Times obteve do Guardian, já para não falar em contactar Greenwald, Poitras, o ProPublica, ou o escritório do Guardian em Nova Iorque.

Uma resposta mais plausível é que os serviços secretos britânicos simplesmente têm grandes dificuldades em lidar com jornalistas. O que, em si, é ilustrativo de um problema mais vasto sobre o equilíbrio entre vigilância e liberdades civis. Como é que se reconcilia uma coisa que deve ser secreta com outra que implora ser discutida?

Até há relativamente pouco tempo, era proibido mencionar o nome dos chefes dos serviços de espionagem britânicos. A imprensa britânica era então reunida num grupo — o sistema Defence Advisory (DA) Notice — no qual os editores podiam receber aconselhamento de forma não oficial sobre questões de segurança. O comandante da Força Aérea na reforma que o dirige afirma que entre 80 e 90% dos jornalistas não se importam de lhe entregar as cópias dos seus artigos antes de serem publicados.

Começámos a ter uma ideia de como tudo se passa. A NSA e a sua congénere britânica, o GCHQ, trabalham de perto com serviços de Internet e empresas de telecomunicações para reunir enormes quantidades de dados sobre nós. Uma parte desse trabalho faz-se de forma aberta — através de pedidos legais formais. Outra parte é feita a montante das empresas de tecnologia e de telefones — ou seja, interceptando os sinais em movimento

As duas principais agências de serviços secretos, o MI5 e o MI6, nunca farão comentários em on e preferem lidar com um ou dois jornalistas em cada organização de media – sempre numa base de anonimato. Sei que uma vez recusaram conversar com um jornalista que escrevia o que eles consideravam ser histórias insatisfatórias.

O GCHQ está ainda menos à vontade nas relações com a imprensa. Recentemente, a NSA não se importou de falar com a Der Spiegel. O GCHQ importa-se. Em 18 anos como director, nunca (que eu saiba) me encontrei com um responsável da agência.

O chefe de uma das outras agências disse-me uma vez: “Somos uma organização secreta. Não há nada que nos faça ser mais abertos em relação àquilo que fazemos. Não vemos necessidade de mudar.”

A necessidade de jogar com as cartas coladas ao peito parece espalhar-se ao Governo e até ao Conselho Nacional de Segurança (NSC) – que se reúne uma vez por semana e é chefiado pelo primeiro-ministro, e que se descreve como “o principal fórum de discussão colectiva dos objectivos do Governo para a segurança nacional”.

De acordo com o antigo ministro liberal democrata Chris Huhne, nem o Executivo nem o NSC foram informados dos programas Prism e Tempora revelados por Snowden. “O Executivo não recebeu nenhuma informação sobre... a capacidade extraordinária de sugar e armazenar emails pessoais, contactos por voz, actividade nas redes sociais e até pesquisas na Internet”, escreveu recentemente no Guardian.

O espanto de Huhne ao ler nos jornais sobre segredos que o Governo não partilhou foi ainda maior porque ele tinha feito parte de conversações sobre outro projecto de “supervigilância” – uma lei de dados de comunicações de muito menor envergadura. “Talvez”, especulou ele, “os segurançocratas pensassem que 1,8 mil milhões de libras era um preço modesto para duplicar o que eles já estavam a fazer”.

À medida que as revelações de Snowden continuavam, tornou-se evidente o quanto os serviços de segurança dependem da ajuda, oficial e não oficial, dos serviços comerciais que todos nós usamos – os operadores de Internet, as companhias de telefone e redes sociais. Tanto nos Estados Unidos como no Reino Unido, a bolha de secretismo legal que rodeia esta actividade é tal que nenhuma empresa ousa vir a público discutir as suas relações com os serviços secretos. É ilegal fazê-lo. Pelo que lhes toca, os Governos dos dois lados do Atlântico têm pânico que as empresas comerciais fujam caso os consumidores saibam o que têm feito com as suas informações.

Mas tive um encontro interessante (e que se manteve anónimo, claro) com alguém num cargo muito elevado numa megaempresa da costa Leste [dos EUA] que reconheceu que nem ele nem o CEO da sua organização tinham acesso às informações sobre que tipo de acordos a sua companhia fez com o Governo americano. “Então, é como uma empresa dentro da empresa?”, perguntei. Abanou a mão desdenhosamente: “Conheço o tipo, confio nele.”

Há muita confiança no mundo que Snowden revelou. Qualquer pessoa que use os serviços desta empresa em particular terá de confiar que um homem sem nome (que não é o CEO) tenha uma relação de integridade com o Governo (que pode não ser o Governo do cliente).

Outros documentos a que tivemos acesso mostram que algumas empresas foram “muito para além” daquilo a que legalmente estão obrigadas a fazer. E no Reino Unido temos de confiar num comité governamental cujos próprios membros não conhecem o programa de vigilância mais significativo de todos.

Não admira muito, portanto, que o Estado envie os seus agentes às redacções dos jornais para tentar convencer os directores a manterem bem controlados os seus jornalistas. E usam os argumentos que esperávamos deles: você terá sangue nas mãos porque o nosso mundo “vai ficar fora de controlo”.

O argumento de “ficar fora de controlo” foi dissecado com muita perícia por Peter Swire, que foi conselheiro para a privacidade da Casa Branca do Presidente Bill Clinton e que agora faz parte do painel de observação da NSA de Obama. Num ensaio publicado em 2011, refere que o FBI e a NSA têm protestado contra a perda das capacidades de vigilância – por causa de uma maior encriptação da Internet – desde a década de 1990.

Depois de explicar por que é que a encriptação é “vital para o crescimento económico, criatividade individual, operações governamentais e vários outros objectivos”, Swire sugere aos americanos que tratem estes protestos das agências governamentais com algum cepticismo: “Devido a mudanças tecnológicas, existem realmente formas que fazem com que agências judiciais e de segurança nacional percam capacidades específicas que antes tinham. Estas perdas específicas, no entanto, são amplamente ultrapassadas por outros ganhos. Os debates públicos devem reconhecer que estamos realmente na idade de ouro da vigilância. Ao entender isto, podemos rejeitar os pedidos de uma má política de encriptação. Devemos estudar uma vasta gama de propostas e construir uma infra-estrutura computacional e de comunicações mais segura.”

Isto é dito por um especialista em encriptação na Internet. Um editorial recente da Economist também viu o resultado alarmante das políticas da NSA para enfraquecer a integridade da própria Internet: “Qualquer subversão deliberada de sistemas criptográficos feita pela NSA é simplesmente uma péssima ideia e deve acabar. Isso dificultaria a vida aos infiltrados [agentes dos governos], é verdade, mas há muitas outras técnicas que eles podem usar que não reduzem a segurança da Internet para todos os seus utilizadores, prejudicam a reputação da indústria tecnológica americana e deixam o Governo visto como indigno de confiança e hipócrita.”

Tenho de confessar uma coisa: não fui eu quem apanhou aquela história – de como as agências judiciais estão a tentar pôr em risco as capacidades privadas de encriptação – que vinha nos documentos GCHQ/NSA; e mesmo quando ela me foi explicada por jovens repórteres especialistas em tecnologia que detectaram a sua relevância, eu não a entendi imediatamente.

Foi embaraçoso: tive de fazer um desenho como se fosse uma criança para confirmar aquilo que eu achava que me estavam a dizer o Jeff Larson, um repórter da ProPublica e especialista em Web, e o James Ball, o nosso jornalista de 27 anos barra em tecnologia.

Será que os deputados e congressistas têm uma ideia mais elaborada daquilo que a tecnologia é agora capaz? Conseguem eles, como reguladores, decifrar também estes documentos? Há semanas fiz esta pergunta a outro membro sénior do Governo britânico que tinha seguido vagamente as histórias de Snowden e que a principal experiência em serviços secretos datava da década de 1970. “O problema com os deputados”, admitiu, “é que a maioria de nós não percebe realmente a Internet.”

Será que os deputados e congressistas têm uma ideia mais elaborada daquilo que a tecnologia é agora capaz? Conseguem eles, como reguladores, decifrar também estes documentos?

Voltamos à questão da confiança. Na ausência de jornais para encontrar, analisar e explicar este tipo de coisas, temos de nos apoiar em comités parlamentares ou congressistas, ou tribunais secretos, para nos fazerem esse trabalho.

Nos Estados Unidos, estamos sobretudo nas mãos da senadora Dianne Feinstein e, no Reino Unido, de Malcolm Rifkind, antigo ministro da Defesa. Nenhum deles é, para dizer o mínimo, um filho da era digital. Posso não estar a ajudar Feinstein e Rifkind, mas suspeito de que eles teriam tido dificuldades em entender os documentos que o Jeff decifrou, com ou sem o meu desenho para os ajudar. Ainda há ecos, 100 anos depois, de burocratas terem tentado pôr as mãos nos sinais sem fios de Marconi.

Os documentos de Snowden mostram que a NSA e o GCHQ empregam engenheiros extremamente talentosos e inventivos na criação de formas cada vez mais exóticas de catalogar incontáveis milhões de pessoas. Questionar, e sobretudo noticiar, os seus métodos leva à resposta habitual de que estamos a mostrar o jogo ao inimigo. Os infiltrados insistem que actuam dentro da lei. Explicam pacientemente a diferença entre um palheiro – que eles têm de poder arquivar – e uma agulha, que podem procurar sem quaisquer restrições.

Ninguém tem dúvidas de que o seu trabalho é fundamental. Precisamos de agências de serviços secretos capazes. As democracias liberais têm realmente inimigos determinados e com recursos. Existe uma tensão entre o secretismo que envolve o trabalho de espionagem e a transparência que, em tudo o resto, as democracias exigem. O jornalismo cuidadoso e responsável também é necessário. The Guardian, The Washington Post, ProPublica, e The New York Times tiveram de ser extremamente cautelosos com o material de Snowden. Em privado – e inevitavelmente não em público –, as pessoas familiarizadas com a natureza dos documentos reconhecem isto. (Vale a pena notar que numa entrevista recente ao New York Times, Snowden negou ter levado documentos com ele para a Rússia, acrescentando: “Há 0% de hipóteses de os russos ou os chineses terem recebido quaisquer documentos.” Recentemente, a Reuters confirmou que os governantes americanos não têm provas de que o material de Snowden tenha ido parar a algum desses países.)

A razão pela qual estes assuntos são importantes é que, à medida que a tecnologia se desenvolve, a polícia e as agências de serviços secretos (e outras) quererão sempre mais e maiores palheiros – e a capacidade de os guardar por mais tempo; e a capacidade de criar algoritmos espantosamente poderosos para encontrar as agulhas.

No Reino Unido, existe, como foi referido, outro programa de vigilância prestes a ficar pronto – mas felizmente ainda não activo – que dará ao ministro do Interior poderes para ordenar a retenção de qualquer tipo de comunicação ou dados por parte de qualquer fornecedor de comunicações (CSP, na sigla inglesa) até 12 meses. Isto inclui, pela primeira vez, detalhes de mensagens enviadas pelos media sociais, webmail, Skype e outras chamadas feitas através da Internet, e sites de jogos, tal como detectar todos os emails, textos e utilizações telefónicas. E inclui também dados sobre quem mandou a quem, de onde e quando.

De acordo com a proposta, a polícia, serviços de segurança, autoridades tributárias e várias outras instituições públicas não precisarão de mandado judicial para pedir ao CSP que entregue as informações.

A lei pretende “antever” outras formas de tecnologia. E tudo isto está em sintonia com o que o GCHQ já faz. Vários políticos seniores britânicos protestaram recentemente por não terem sido informados sobre as capacidades das agências de serviços secretos, queixando-se de que a informação não foi dada nem mesmo àqueles que estavam encarregues de escrutinar os pedidos para possibilidades ainda mais intrusivas.

***

Sem um debate agora, é difícil ver o que impedirá o negócio da espionagem de continuar a exigir mais. Estima-se que existem cerca de cinco milhões de câmaras CCTV no Reino Unido. É garantidamente só uma questão de tempo antes de alguém sugerir ligar essas câmaras a software de reconhecimento facial (de um tipo que até o Google actualmente receia difundir) e talvez até a microfones para que também possam captar as conversas.

Irá permitir, argumentarão provavelmente, que os tipos bons possam apanhar os tipos maus e talvez impedir outro ataque terrorista em território britânico. E certamente alguém dirá a um futuro director: “Escreva sobre isso e terá sangue nas mãos. Os terroristas vão começar a evitar as ruas principais e outros locais com CCTV. O nosso mundo está a ficar fora de controlo."

Engenheiros talentosos estarão sempre à frente das leis. Foi revelador o quão perturbado ficou o autor da Patriot Act, o congressista Jim Sensenbrenner, pelas revelações feitas pelo Guardian de ordens ultra-secretas para que se reunissem todas as chamadas feitas pelos assinantes da Verizon [prestadora de serviços de telecomunicações]. Não era isso que ele pretendia há 12 anos, quando redigiu a lei, afirmou. Escreveu imediatamente ao Attorney General Eric Holder a protestar: “Estou extremamente perturbado pela interpretação que o FBI fez desta legislação… Captar registos telefónicos de milhões de pessoas inocentes é excessivo e antiamericano.”

Por que é que, que se saiba, os tribunais FISA [Foreign Intelligence Surveillance Act, criados para avaliar pedidos de mandados de vigilância nos EUA] não manifestaram preocupações sobre estas ordens que, podemos inferir, aprovaram repetidamente (aparentemente, protestaram com a expressão “de fachada”)? Por que não há sinais de desconforto no senador Feinstein? Os tribunais FISA vão mudar o seu comportamento agora que o homem que escreveu a lei disse que a sua intenção não era esta? Alguma vez saberemos?

Vários intelectuais e advogados estão extremamente cépticos que as actuais medidas de controlo funcionem. O antigo juiz do Tribunal de Recurso Sir Stephen Sedley descreveu o seu desespero numa edição recente da London Review of Books: “Um regime de vigilância instituída rodeado de secretismo parte de um modelo constitucional que levou alguns de nós a questionar se a separação tripartida de poderes – legislativo, judicial e executivo – convencionalmente saídos de Locke, Montesquieu e Madison ainda tem valor.

“O regime de segurança consegue hoje em muitas democracias exercer algum poder sobre os outros braços do Estado, aproximando-se da autonomia: procurando legislação que dê prioridade aos seus próprios interesses sobre os direitos individuais, dominando os decisores executivos, mantendo os seus críticos de fora do processo judicial e actuando de forma praticamente imune ao escrutínio público.

“O uso arbitrário de poderes de detenção, buscas e interrogatório criado pelo Terrorism Act (pré-11 de Setembro), que recentemente fez manchetes com a detenção de David Miranda [companheiro de Greenwald] em Heathrow, ilustra uma mudança de longo prazo sobre o que é constitucionalmente permitido, e o que é constitucionalmente aceitável. A primeira pode ser uma questão para o Parlamento, mas a última ainda é uma questão para todos nós.”

Acho que ele tem razão.

4 de novembro de 2013

Um pacto pela reforma da segurança pública

Renato Sérgio de Lima e Claudio Beato

Folha de S.Paulo

Martin Kovensky

Segurança pública ainda é um tema tabu no Brasil. Avançamos na construção de discursos baseados em princípios de direitos humanos e de cidadania, mas ainda convivemos com um modelo em que a ausência de reformas estruturais obstrui --em termos práticos e políticos-- a garantia da segurança pública verdadeiramente para todos.

Os dados publicados na edição 2013 do Anuário Brasileiro de Segurança Pública reforçam a sensação de que vivemos em uma sociedade fraturada e com medo; aflita diante da possibilidade cotidiana de ser vítima e refém do crime e da violência.

Não bastasse isso, nosso sistema de Justiça e segurança é ineficiente, paga mal aos policiais e convive com padrões operacionais inaceitáveis de letalidade e vitimização policial, com baixa taxa de esclarecimento de delitos. Sem falar nas precárias condições de encarceramento.

Não conseguimos oferecer serviços de qualidade, reduzir a insegurança e aumentar a confiança nas instituições, nem conseguimos mediar conflitos e conter atos violentos.

No plano da gestão, paradoxalmente, várias iniciativas têm sido tentadas: sistemas de informação, integração das polícias estaduais, modernização tecnológica, mudança no currículo de ensino policial.

Porém, são mudanças incompletas. Ganhos como a reversão do medo provocada pela implantação das UPPs, no Rio, tendem a perder força, na medida em que não são capazes, sozinhos, de modificar culturas organizacionais anacrônicas.

As instituições policiais não experimentaram reformas significativas nas suas estruturas. O Congresso, há 25 anos, tem dificuldades para fazer avançar uma agenda de reformas imposta pela Constituição de 1988, que até hoje possui artigos sem regulação, abrindo margem para enormes zonas de insegurança jurídica.

Para a segurança pública, o efeito dessa postura pode ser constatado na não regulamentação do artigo 23, que trata das atribuições concorrentes entre os entes, ou do parágrafo sétimo do artigo 144, que dispõe sobre as atribuições das instituições encarregadas em prover segurança e ordem pública.

Ou seja, há uma enorme dificuldade de se assumir segurança pública como um tema prioritário. Ao contrário do jogo de empurra que tem sido travado, com União, Estados e municípios brigando para saber quem paga a conta e/ou quem manda em quem, segurança pública exige superarmos antagonismos e corporativismos e pactuarmos um projeto de uma nova polícia.

Isso significa que resultados de longo prazo só poderão ser obtidos mediante reformas estruturais que enfrentem temas sensíveis como a distribuição e a articulação de competências e a criação de mecanismos efetivos de cooperação, a reforma do modelo policial determinado pela Constituição e o estabelecimento de requisitos mínimos para as instituições no que diz respeito à formação dos profissionais, transparência e prestação de contas, uso da força e controle externo.

Tais iniciativas devem conduzir a discussão sobre o significado da necessária desmilitarização das estruturas policiais, com a adoção do ciclo completo de policiamento e a instituição de uma carreira única de polícia, que valorize o policial.

É necessário, também, consolidar o sistema de garantias processuais e oferecer adequadas condições de cumprimento de penas. Até porque não podemos deixar brechas para o crime organizado.

Estamos aqui propondo um pacto suprapartidário em defesa da democracia e da cidadania. Os autores deste artigo reconhecem que se encontram em diferentes posições do quadro político brasileiro. A nossa união objetiva reiterar que a reforma do modelo de segurança pública não pode ser mais adiada.

Se conseguirmos fazer isso, quem ganha são os policiais brasileiros e, sobretudo, ganha a sociedade.

Sobre os autores
RENATO SÉRGIO DE LIMA, 43, é membro do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

CLAUDIO BEATO, 56, é professor titular de sociologia da Universidade Federal de Minas Gerais
Também subscrevem este texto:
JOSÉ LUIZ RATTON, 46, é professor de sociologia e pesquisador da Universidade Federal de Pernambuco
LUIZ EDUARDO SOARES, 59, foi secretário nacional de Segurança Pública (governo Lula)
RODRIGO GHIRINGHELLI DE AZEVEDO, 45, é professor de ciências criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

Guia essencial para a Jacobin

A Jacobin tem divulgado conteúdo socialista em ritmo acelerado desde 2010. Eis aqui um guia prático para algumas das obras mais importantes ...