1 de fevereiro de 2004

A estratégia imperialista dos Estados Unidos no Oriente Médio

Este ensaio foi adaptado de um capítulo mais longo chamado "U.S. Imperial Strategy in the Middle East in the Early 21st Century" de seu novo livro Eastern Cauldron: Islam, Afghanistan. Palestine and Iraq in a Marxist Mirrar, a ser publicado pela Monthly Review Press.

Gilbert Achcar

Monthly Review



O ponto de virada

Tradução / A estratégia dos Estados Unidos para o Oriente Médio na década de 1991 a 2000 rapidamente se esgotou em suas duas frentes principais: a frente Israel-Palestina e a Árabe-Golfo Pérsico.

Na frente Israel-Palestina, é evidente que o "processo de paz" atolou. Somente uma concessão substancial por alguma das partes poderia colocá-lo em marcha novamente, isto dado que as divergências concernem a assuntos fundamentais para ambos. Do ponto de vista de Ehud Barak, que Clinton apoiava, a liderança palestina teve que aceitar a "generosa oferta" que o líder israelense fizera em Camp David. Na ausência de qualquer consenso amplo tanto do lado israelense quanto do palestino, a oferta de Barak corresponde a uma versão do "acordo" que Washington considera satisfatório.

A inspiração direta para a oferta de Barak foi o acordo negociado em outubro de 1995 (logo antes do assassinato de Yitzhak Rabin) pelos dois principais responsáveis pela negociação dos acordos de Oslo: Yossi Beilin, na época trabalhando para Shimon Peres no Ministério do Exterior de Israel e Mahmoud Abbas, vulgo Abu Mazen, um membro da liderança palestina. O acordo previa que Israel poderia manter assentamentos no território ocupado em 1967, na área que Israel anexaria e na área palestina remanescente. O território do "estado palestino" seria dividido em enclaves separados controlados pelo exército de Israel, que poderia manter posições estratégicas aí. Israel manteria a parte de Jerusalém que fora anexada em 1967, enquanto a capital palestina seria o subúrbio de Abu Dis. Finalmente, os refugiados palestinos receberiam compensação internacional e um "direito de retornar" para o "estado palestino".[1]

Em Camp David, Arafat argumentou, corretamente, que ele quiçá jamais poderia fazer com que a base de sua própria organização Fatah aceitasse este tipo de "acordo" (para não falar no povo palestino como um todo). Tanto Washington quando o Partido Trabalhista de Israel chegaram à conclusão de que o caminho para resolver o impasse era reduzir a resistência e as demandas dos palestinos pelo uso da força. Esta conclusão induziu Barak a autorizar Ariel Sharon a cometer a provocação em Haram Al-Sharif de Jerusalém em 28 de setembro de 2000, tendo por conseqüência a insurreição palestina. A violência da repressão com que Israel respondeu a esta Segunda Intifada - sob as ordens de Barak - tendeu a radicalizá-la, ao nível de criar as condições para sua supressão brutal. Isto supostamente faria com que os palestinos desistissem e aceitassem as condições de Camp David. Os palestinos, por sua vez, desafortunadamente liderados por um autocrata no limite de suas forças e cercado por burocratas corruptos, caíram na armadilha de "militarizar" a Intifada.

Uma frente ampla tomou então forma, incluindo Washington bem como a maior parte das forças políticas israelenses, todos concordando em afogar a rebelião palestina em sangue. Tendo isto por objetivo, ninguém serviu melhor do que Sharon, um general com uma impressionante ficha de criminoso de guerra. Algo que pareceria impensável somente alguns anos antes aconteceu: um dos políticos israelenses mais extremistas, um homem cujo fanatismo exasperou o próprio Menachem Begin, chegou à liderança do Likud e venceu as eleições israelenses de fevereiro de 2001. Sharon concentrou-se na tarefa de quebrar o espírito de resistência palestino, com o objetivo fundamental de impeli-los a abandonar em massa seus territórios. Para isto, ele trabalhou para deixar as condições de vida dos palestinos insuportáveis, pelo máximo de tempo possível. Assim, ele recorreu sistematicamente a provocações, no mesmo naipe das que o levaram ao poder, notavelmente ao levar a cabo "execuções extra-judiciais" de líderes dos grupos palestinos que estavam mais decididos a reagir: os fundamentalistas islâmicos.

Para Sharon, tanto os acordos de Oslo quanto os de Beilin-Abu Mazen, inclusive a versão apresentada em Camp David, eram inaceitáveis. Sua própria visão de acordo oscilava entre sua solução ótima de "transferência" e o número máximo de "concessões" que ele estava disposto a aceitar. "Transferência" é o eufemismo israelense para expulsar os palestinos de seus territórios, isto é, uma reedição do que ocorrera em 1948. Isso era o que Sharon, assim como seus parceiros na coalizão de extrema-direita, ardorosamente desejavam. Mas, se necessário, ele aceitaria uma solução menos "ideal", reduzindo o plano proposto por Yigal Alion a três enclaves palestinos altamente controlados - em suma, três campos de concentração - perfazendo um total de apenas 42% da região da Cisjordânia (margem oeste do rio Jordão) ocupada em 1967. Esta opção, aventada por Sharon quando seu partido chegou ao poder em 1977, poderia de fato ser acompanhada de uma massiva, mas não total, "transferência". O assim chamado muro de segurança, cuja construção fora apenas ameaçada pelos antecessores de Sharon, foi iniciada por este em junho de 2002 e se encaixa perfeitamente nesta perspectiva sinistra.[2]

O mesmo Sharon - que nunca escondeu suas idéias - presidiu urna coalizão governamental incluindo o Partido Trabalhista até novembro de 2002, uma aliança responsável pelos piores episódios da guerra brutal contra os palestinos.[3] Ele também beneficiou-se de uma "negligência benigna" do governo de George W Bush, iniciada apenas um mês antes da eleição do próprio Sharon. A conivência entre as três partes - o Likud sob Sharon, o Partido Trabalhista Sionista e o governo dos Estados Unidos - foi uma clara expressão de sua convergência em direção a um objetivo comum: a destruição de qualquer espírito palestino de resistência. Suas divergências foram lançadas para uma data posterior, quando o objetivo comum tiver sido atingido. Na frente Arabe-Golfo Pérsico, outra frente fundamental na estratégia dos Estados Unidos para o Oriente Médio, ou melhor, numa parte desta frente, outra mudança estratégica ocorreu em 2001. A "dupla contenção" foi substituída pela simples contenção, diretamente no Iraque. Washington tinha a esperança - encorajado pelo aumento dos protestos populares - de que o regime iraquiano se despedaçaria, assim como ocorreu com os regimes do Leste Europeu. No caso de contenção do Iraque, deu-se a derrubada do regime por força militar, designada pelo eufemístico nome de "mudança de regime".

A equipe de George W. Bush tomou posse em janeiro de 2001 com a firme intenção de derrubar o regime em Bagdá. O próprio Bush expressou esta intenção durante sua campanha presidencial. Inúmeros membros e colaboradores de seu governo concordavam com ele, ao ponto mesmo de apresentarem uma petição conjunta ao predecessor de Bush, Clinton, em janeiro de 1998 nesse sentido. A petição foi organizada pelo Project for the New American Century, um think tank reacionário cuja influência sobre o governo Bush vem sendo largamente percebida. O fato de que onze dos dezoito signatários da petição, que clamava que Clinton derrubasse o regime iraquiano por força militar, estejam associados com o governo Bush,[4] particularmente no Pentágono, poderia facilmente dar a impressão de uma conspiração, se seu projeto não fora tão abertamente proclamado. O governo de George W Bush, assim como o governo de seu pai, que lançou a primeira guerra contra o Iraque, é o governo cujos laços com a indústria petrolífera são os mais estreitos da história. É importante afirmar, mesmo correndo o risco de aborrecer aqueles que reagem com gritos de "reducionismo" a qualquer explicação da política externa dos Estados Unidos em termos de interesses econômicos, principalmente petrolíferos: o lobby do petróleo tradicionalmente desempenhou um papel central na formulação da política externa dos Estados Unidos, no mínimo desde a Segunda Guerra Mundial.[6]

Entretanto, alguns administradores são mais sensíveis que outros à influência de companhias de petróleo. O governo do jovem Bush, cuja campanha presidencial teve entre seus doadores todas as principais companhias de petróleo e gás (inclusive o consórcio ExxonMobil, BP Amoco, El Paso e Chevron) é certamente um das mais sensíveis. Além de seus laços pessoais e familiares com a indústria, Bush indicou pessoas com laços iguais ou ainda mais estreitos para postos-chave em seu governo, inclusive o vice-presidente Dick Cheney (da Halliburton) e a conselheira de Segurança Nacional Condoleezza Rice (da Chevron).

Como de costume, houve um expressivo aumento nos preços do petróleo (e no preço do gás nas bombas dos Estados Unidos) durante a campanha presidencial do ano de 2000. Desde a imposição do embargo ao Iraque e ao longo dos anos 1991-1999, os preços nominais do petróleo cru [6] ficaram abaixo dos níveis de 1990 (US$22,26/barril), que por sua vez era 35% abaixo do preço de 1974, já com o ajuste inflacionário.[7] A situação mudou em 2000, com um salto nos preços nominais de US$17,47/barril em 1999 para US$27,60/barril (embora este preço seja inferior em termos reais ao preço de 1990).[8]

Mais importante, o time de Bush compartilhava a concepção geral da classe dirigente estadunidense sobre o futuro do mercado de petróleo e o prospecto de que as fontes de hidrocarbonetos irão gradualmente se esgotar.[9] O influente Center for Strategic and International Studies (CSIS) em Washington expressou esta concepção mais claramente num relatório de novembro de 2000 (publicado em fevereiro de 2001) intitulado The Geopolitics of Energy into the 21st Century. Segundo este relatório, a demanda global de energia deve crescer mais de 50% durante as primeiras duas décadas do século XXI:

"O Golfo Pérsico continuará o principal fornecedor marginal de petróleo para o mercado mundial, com a Arábia Saudita na liderança incontestável. De fato, se as estimativas da demanda futura são razoavelmente corretas, o Golfo Pérsico deve expandir a produção de petróleo para quase 80% durante o período entre 2000-2020, atingível somente se os investimentos estrangeiros tiverem participação permitida e o Irã e Iraque estiverem livres de sanções."[10]

O relatório enfatizou a "contradição fundamental" entre essa necessidade e as políticas de Washington:

"Espera-se que as exportações de petróleo e gás do Irã, Iraque e Líbia - três nações que sofreram sanções impostas pelos Estados Unidos ou por organizações internacionais - desempenhem um papel de crescente importância em satisfazer a demanda global cada vez maior, especialmente ao evitar a competição ampliada por energia com e no interior da Ásia. Onde os Estados Unidos impuserem sanções unilaterais (Irã e Líbia), investimentos serão feitos sem a participação dos Estados Unidos. O Iraque, sujeito a sanções multilaterais, pode ser forçado a construir num tempo oportuno a infraestrutura necessária para satisfazer a curva ascendente na demanda de energia. Se a demanda global estimada para 2020 é razoavelmente correta e deve ser satisfeita, estes três exportadores devem então produzir no limite máximo de sua capacidade ou outras fontes devem ser encontradas."[11]

Para o governo Bush - na verdade, para o capitalismo estadunidense como um todo - a necessidade de colocar um ponto final no embargo imposto ao Iraque estava se tornando urgente. Era o tempo de tornar possível a reconstrução e a modernização da infraestrutura petrolífera do Iraque - significando inúmeros anos de investimento e trabalho. O Iraque se localiza sobre a segunda maior reserva de petróleo, depois do reino Saudita; o objetivo de Washington era fazer com que o Iraque inicialmente dobrasse para então triplicar sua produção (acima de sua capacidade estimada) durante a primeira década do novo século, de forma a evitar uma crise do petróleo durante a década seguinte. Subjacente a esta concepção, está o princípio de que uma substancial margem de flexibilidade na produção saudita - uma margem de segurança entre a produção atual do reino e sua capacidade produtiva[12] - deveria ser mantida. Isto é crucial para a estabilidade do mercado mundial de petróleo sob a supervisão dos Estados Unidos e constitui a "viga-mestre de sua política petrolífera".[13]

O presente-surpresa de Bush: 11 de setembro de 2001

Estava então se tornando urgente criar as condições para a suspensão do embargo ao Iraque. Havia essencialmente dois pré-requisitos. Primeiro, Saddam Hussein deveria ser derrubado e substituído por um governo sobre o controle estadunidense. Sem esta "mudança de regime", Washington não pensaria seriamente em suspender o embargo. Paris e Moscou vinham pedindo há algum tempo a suspensão, precisamente porque respondia a seus interesses e entrava em choque com Washington.

Bagdá concedera a seus dois parceiros privilegiados - historicamente a França e a Rússia - concessões petrolíferas importantes cuja implementação dependia do fim do embargo. Dada a magnitude do que estava em jogo no Iraque - o enorme mercado para a reconstrução do país devastado por 20 anos de guerra e embargo, além de suas gigantescas reservas de petróleo - estava fora de questão para Washington e Londres (pelos mesmos motivos) entregar tudo a Paris e Moscou numa bandeja de prata.

As únicas alternativas do governo Bush - como do governo Clinton antes dele - eram manter o embargo contra o Iraque ou garantir o controle estadunidense deste país. Para esta última, cada vez mais a opção urgente possível, outra condição, entretanto, deveria ser preenchida: era necessário ser politicamente viável, especialmente nos termos da política doméstica dos Estados Unidos, invadir o Iraque e manter o país sobre a ocupação e tutela diretas dos Estados Unidos. Na verdade, a única maneira infalível de manter o Iraque sob o comando dos Estados Unidos era governá-lo diretamente de Washington.

A razão é que o Iraque não está localizado no Leste Europeu, mas num lugar do mundo onde o sentimento popular é mais hostil ao Estados Unidos. Na ausência de qualquer hegemonia ideológica dos Estados Unidos que garantisse a continuação segura da dependência a este país, ele deveria ser colocado sob uma forma original de tutela. Desde que o velho Bush ficou politicamente incapaz de conseguir isto, ele preferiu deixar Saddam Hussein afogar num mar de sangue a rebelião popular de março de 1991 a permitir o triunfo de uma revolução iraquiana que passaria ao largo do controle de Washington. Clinton, pressionado pela exploração do escândalo Lewinsky pela oposição republicana, certamente também não era capaz de invadir ou mesmo ocupar o Iraque, quando a crise acerca dos inspetores da ONU proveu-lhe um conveniente pretexto em 1998.

Neste contexto, o 11 de setembro de 2001 veio como um presente-surpresa para o governo Bush. Assim como com Saddam Hussein em 1990, alguém poderia dizer que se Osama bin Laden não existisse seria necessário inventá-lo - para o benefício de Washington. O espetacular ataque dos fundamentalistas islâmicos, antigos aliados dos Estados Unidos que se tornaram seus inimigos jurados, criou tal trauma político nos Estados Unidos que o governo Bush achou que seria possível, pela primeira vez, destruir de uma vez por todas a "síndrome do Vietnã" e retomar à era das intervenções desmedidas das primeiras décadas da Guerra Fria.

Sabemos por algumas reportagens investigativas e entrevistas que alguns membros da equipe de Bush quiseram aproveitar a ocasião para imediatamente atacar o Iraque, embora soubessem muito bem - independente do que diziam - que Bagdá não tinha nada a ver com os homens que atacaram o World Trade Center e o Pentágono. Havia um debate interno no governo entre os proponentes da opção "primeiro o Iraque" (como Donald Rumsfeld) e a opção "primeiro o Afeganistão, aí então o Iraque" (como Colin Powell). O princípio de, eventualmente, invadir o Iraque era consensual há tempos. Por razões políticas óbvias, o presidente escolheu a segunda opção.

A invasão do Afeganistão era também uma chance para o governo Bush realizar um projeto acalentado desde o colapso final da União Soviética. Contudo, estabelecer uma presença militar estadunidense direta no coração da Ásia Central ex-soviética parecia ainda mais improvável que uma ocupação dos Estados Unidos no Iraque.[14] Uma presença militar no coração do maciço continental da Eurásia faria com que a China se aliasse à Rússia - dois países tentados a se aliarem para resistir às pressões hegemônicas dos Estados Unidos mais eficientemente,[15] ou mesmo se aliar com o Irã - tinha evidente valor geoestratégico. Além disso, a presença militar estadunidense na Ásia e na bacia do Cáspio (no Uzbequistão, Quirguistão, Geórgia etc.) encaixava-se na estratégia global e para o Oriente Médio de tomar o controle das reservas de petróleo, suplementadas neste caso particular pelo gás natural.

De fato, o relatório anteriormente citado da CSIS, conquanto note que o petróleo do Cáspio poderia ser "marginalmente importante, mas não fundamental"[16] indicava que a demanda crescente prevista para o gás natural poderia aumentar o valor estratégico desta fonte de energia nos anos que virão. A região compreendida desde o Leste Europeu até a área total da antiga União Soviética guarda apenas um pouco mais do que 6% do que as reservas confirmadas de petróleo, mesmo que se acredite que as reservas estimadas possam ser muito maiores. Por outro lado, a região tem mais de 30% das reservas confirmadas de gás natural do mundo.[15]

O objetivo central da guerra do Afeganistão, além de destruir a rede da Al-Qaeda, era de fato a implementação estratégica dos Estados Unidos na Asia Central e na costa do Mar Cáspio. Isto explica o pouco interesse de Washington em controlar o interior afegão e em construir o prometido Estado "moderno", a ser liderado por seu vassalo leal Hamid Karzai. Em qualquer evento, os Estados Unidos sabem muito bem que o que está em jogo no Afeganistão é muito pouco para justificar o enorme investimento financeiro e militar que seria necessário para conseguir o efetivo controle deste país - sem nenhuma garantia de sucesso. A fama de inóspito do Afeganistão destina-o a ser a presa dos senhores da guerra em cuja "libertação" dependia Washington.[18] A guerra contra a aliança Taliban-Al-Qaeda realmente providenciou a oportunidade, junto com os erros e ilusões de Wladimir Putin, que permitiu ao governo dos Estados Unidos concluir esta última extensão da sua rede militar imperial calmamente, pelas costas da opinião pública estadunidense.

Uma vez que as operações no Afeganistão estiveram mais ou menos completadas, o governo Bush voltou-se para o seu alvo principal: o Iraque. Neste caso, dado o quanto estava em jogo, Washington estava definitivamente decidido a fazer um gigantesco esforço no sentido de reconstruir um estado iraquiano que fosse seu vassalo legal e capaz de garantir a ordem neocolonial sob a supervisão dos Estados Unidos e a proteção das tropas deste país. Esta perspectiva era mesmo a condição sine qua non para invadir o Iraque e derrubar Saddam Hussein, como já explicamos. A atitude brusca do governo Bush frente a Paris expressa em particular sua determinação de excluir a França de qualquer partilha do botim. Washington sabia que a França tinha alguns trunfos importantes em sua rivalidade com os Estados Unidos: sua longa experiência com o mercado iraquiano e sua reputação entre os povos árabes, que contrastava agudamente com a hostilidade geral contra a dupla Estados Unidos-Reino Unido.

O "atoleiro"

O governo Bush e, acima de tudo a equipe de Rumsfeld no Pentágono, cometeram o monumental erro de subestimar a grande dificuldade da tarefa e superestimar os meios que de fato tinham à disposição. Essas dificuldades eram inteiramente previsíveis e muitas pessoas - incluído quem escreve estas linhas - as previram.[19] O ressentimento da ocupação do Iraque pela coalizão angloamericana, que a grande massa da população dos países árabes está expressando de uma maneira crescente e letal, está impelindo Washington a acelerar sua busca por soluções que podem tornar mais lento o atual tombo num "atoleiro". Incidentalmente, este "atoleiro" assemelhar-se-ia mais com o atoleiro do exército israelense no Líbano do que com o velho atoleiro do Tio Sam no Vietnã. Washington está obviamente improvisando, numa tal forma que os adversários políticos do governo Bush estão duramente criticando. O resultado é um declínio na popularidade artificial e inflada que Bush gozaria desde 11 de setembro de 2001.

Os Estados Unidos podem ter o mais formidável exército do mundo e serem capazes de dispor de qualquer outro exército. Mas, o time Bush-Rumsfeld está descobrindo às suas próprias custas que bombas "inteligentes" ou até mesmo "brilhantes", seus robôs e outras parafernálias guiadas por controle-remoto ou programadas eletronicamente são inúteis quando se trata de controlar massas de pessoas. O problema não é que os Estados Unidos tenham carência de colonizadores ou "imperialistas", isto é, candidatos entre as forças de ocupação que estariam dispostos a viver no país conquistado e administrá-lo, como nos dias gloriosos do domínio britânico no subcontinente indiano. Niall Ferguson, o autor do bestseller sobre o extinto Império Britânico, por analogia, forjou este argumento na New York Times Magazine.[20] Entretanto, ele falhou ao não ver a grande diferença entre a época imperial britânica e a nossa.

De fato, quando hoje a população de um país ocupado é hostil às forças de ocupação e as encara enquanto tal, isso torna a situação incomparavelmente mais perigosa para os ocupantes do que era no século XIX, ou mesmo na primeira metade do século XX. Há um século atrás, a grande massa dos povos colonizadores freqüentemente se resignava à sua submissão. Desde então, os povos deram-se conta das lutas de libertação nacional que caracterizaram a era da descolonização. Some-se a isso o fato de que os níveis de educação e, conseqüentemente de consciência nacional, estão hoje qualitativamente num nível superior. Israel era capaz de ocupar a Cisjordânia e Gaza sem muita dificuldade durante as duas décadas após 1967 - antes que a explosão da primeira Intifada transformasse a ocupação num pesadelo para o exército sionista - somente porque sua ocupação dos territórios de 1967 era e continua uma ocupação genuinamente militar. A colonização sionista é uma forma de colonialismo de povoamento cujo intuito é despejar a população pré-existente. Os colonizadores são isolados dos palestinos por razões de segurança e tem pouco em comum com os administradores coloniais dos tempos passados. Somente o poder quantitativo das tropas de ocupação israelense relativo à população dos territórios ocupados (possível pelo tamanho do território ocupado e pelo fato de que o território dos ocupantes faz fronteira com eles) torna possível que Israel mantenha a situação sobre controle por tanto tempo.

Tais condições são, entretanto, virtualmente opostas às condições que as forças ocupantes encontram no Iraque, onde eles encaram uma população substancial de quase 20 milhões de pessoas (contando somente os árabes). O problema dos Estados Unidos é que eles não têm soldados suficientes para controlar o Iraque e, ao mesmo tempo, manter seu papel imperial sobre o resto do mundo. É por isso que Rumsfeld planeja agora pedir ao Congresso que autorize um aumento considerável no número total das forças armadas estadunidenses,[21] cujo pessoal foi muito reduzido desde o fim da Guerra Fria e a "revolução militar tecnológica". À luz da hostilidade do povo iraquiano e da suscetibilidade nacionalista, a forma essencial da presença dos Estados Unidos no Iraque somente pode ser militar. Os civis estadunidenses no Iraque são vistos como o braço político-econômico de uma ocupação armada e, portanto, precisam de proteção militar.

Washington está tentando desenredar-se do atoleiro em que suas tropas estão afundando através da sondagem da possibilidade de usar forças de outros países, em particular de países muçulmanos. Não obstante, o problema não será resolvido na medida em que as tropas, independente de onde vierem, atuarem como auxiliares das tropas dos Estados Unidos. O dilema de Washington é que mudar a percepção da população iraquiana das forças ocupantes requereria não mais usá-las para supervisionar a drenagem de recursos iraquianos para os Estados Unidos e seus aliados britânicos. Só que este é justamente o motivo principal pelo qual Washington está tentando ocupar o país!

O mito de que Washington quer dotar o Iraque de um governo democrático que seria o modelo para a região toda, o mito de que os Estados Unidos estão reeditando no Iraque a peça da democratização alemã e japonesa do pós-1945, não durará muito à prova do tempo. Nos dois grandes países derrotados na Segunda Guerra Mundial, classes capitalistas de considerável tamanho com hegemonia ideológica sobre suas sociedades estavam preparadas para colaborar com os ocupantes estadunidenses e reconstruir seus países sob sua tutela e com sua ajuda - a maioria de bom grado porque viviam o terror da ameaça "comunista". Enquanto fossem aliadas dos Estados Unidos, elas se manteriam capazes de governar tendo por base maiorias genuinamente eleitorais. Nada comparável existe no Iraque hoje. O efeitos da burguesia iraquiana durante muito tempo confinada na jaula de ferro de um onipotente e semifascista aparelho de estado agravou ainda mais a fraqueza estrutural geral característica das burguesias de terceiro mundo. Não há aliados dos Estados Unidos confiáveis no Iraque com qualquer credibilidade entre, sem falar em hegemonia ideológica sobre, a grande maioria árabe da população. O Iraque, igual a outros países do Oriente Médio, somente confirmam o que Samuel Huntington chamou de "o paradoxo democrático: a adoção por sociedades não-ocidentais de instituições democráticas ocidentais encoraja e dá acesso ao poder a nativistas e movimentos políticos antiocidentais".[22]

Isto é um "paradoxo" somente aos olhos daqueles que acreditam que a democracia anda de mãos dadas com a submissão ao Ocidente. O ressentimento anti-Estados Unidos entre os povos muçulmanos, que é ainda mais profundo que entre os outros povos do terceiro mundo, é o resultado de uma longa história de opressão. O fato de que a dominação ocidental é identificada com os regimes despóticos odiados do qual depende,[23] e com o estado de Israel, manteve o ressentimento vivo até o hoje. Assim é perfeitamente natural que se a maioria do povo pudesse se expressar de maneira livre e verdadeira nas urnas dos povos muçulmanos, ela elegeria governos hostis à dominação ocidental.

O Iraque não é exceção a esta regra; exatamente o contrário. Conseqüentemente, há somente duas possibilidades: ou Washington manterá seu controle no país pela força bruta, exercido diretamente ou através de mediação de fantoches desprezados pelo povo, mas "legitimados" por um arremedo de democracia, no modelo do que é feito hoje no Afeganistão; ou os iraquianos vão democraticamente escolher seus próprios governantes e eleger líderes hostis ao contínuo controle por Estados Unidos-Reino Unido dos recursos do país. O delírio ideológico "democrático" de uns poucos "neoconservadores" nos Estados Unidos contará pouco frente aos interesses econômicos que estão em jogo no Iraque - mesmo se estes "novos conservadores" acreditarem piamente em seu próprio discurso ideológico, ele estará longe de ser verdadeiro.

Os eventos na frente Israel-Palestina desde o fim oficial da guerra no Iraque confirmam definitivamente a regra acima. No caso palestino, Washington não está direcionando suas "reprimendas" democráticas a algum tirano sanguinário, mas a Yasser Arafat, o único homem no mundo árabe com um status comparável ao de um estadista, que foi eleito através de um processo relativamente democrático e que goza de um apoio real da maioria de seu próprio povo. A "reforma democrática" dos Estados Unidos consistiu em impor aos palestinos e seu presidente eleito um "primeiro-ministro" que a esmagadora maioria dos palestinos rejeitou como um novo Quisling. O "primeiro-ministro" era - surpresa! - Mahrnoud Abbas, vulgo Abu Mazen, o mesmo que foi o único que aceitou os acordos de Oslo de 1993 e o acordo com Yossi Beilin em 1995.

O segundo governo Bush, como o primeiro, precisa estabilizar a hegemonia regional dos Estados Unidos através da remoção de todos os obstáculos do caminho para estabelecer a Pax Americana no Oriente Médio. Portanto, ele precisa, como seu antecessor, rumar para um acordo sobre o conflito entre Israel e a Palestina. Para tal, ele publicou seu "mapa da estrada" e deixou claro para todos na região de que ele iria impô-lo. Fortalecido por seu novo controle direto da região ocupada no Iraque, o governo dos Estados Unidos, mais ainda do que em 1991, declarou-se pronto a pressionar fortemente seu aliado israelense.

Mas, Sharon está escorregadio, igual a Shamir em 1991. Ele finge ceder às demandas de Washington, fazendo concessões menores ou puramente formais, enquanto continua a provocar os palestinos. Ele conta com o fato de que em 2004 haverá eleição presidencial nos Estados Unidos e os governos deste país geralmente não ficam muito inclinados a pressionar firmemente Israel durante os anos eleitorais. Além disso, quanto mais a ocupação estadunidense no Iraque chafurda num atoleiro, mais o governo Bush vê a negociação com o Iraque como sua prioridade número um. Logo ele será convencido a desistir de tentar matar dois coelhos com uma cajadada só.

Assim, que resta das perspectivas para a "democracia" no Oriente Médio? De fato, o termo "democracia" cada vez mais cede lugar nos discursos oficiais dos Estados Unidos ao termo "liberdade", termo que oportunamente foi usado para dar nome à invasão do Iraque: "Liberdade do Iraque". Mas, que tipo de liberdade é esta? George W. Bush não demorou em contar as boas notícias aos povos do Oriente Médio: num discurso em 9 de maio de 2003, ele lhes propôs "o estabelecimento de uma área de livre comércio no eixo Estados Unidos-Oriente Médio dentro de uma década"![25] Enquanto isso a missão de supervisionar a reestruturação da indústria petrolífera iraquiana foi incumbida a Philip Carroll, ex-presidente do ramo estadunidense da Royal Dutch/Shell. Seria difícil imaginar um símbolo melhor para a aliança anglo-estadunidense. O trabalho de Carroil consistirá em aplicar as decisões tomadas numa reunião a portas fechadas realizada em Londres pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos com os futuros cabeças designados para a indústria petrolífera do Iraque em 5 de abril, pouco antes da queda de Bagdá.[26] Eram centrais para Londres as decisões sobre os "acordos de partilha da produção" que as companhias petrolíferas dos Estados Unidos e do Reino Unido tencionavam impor ao Iraque. Os acordos serão um modelo - desta vez real, não mítico - para os acordos com os Outros países do Oriente Médio. O objetivo é voltar à "participação" que o ministro saudita do petróleo propôs 30 anos atrás como uma alternativa às nacionalizações!

Um breve posfácio

As linhas acima foram escritas no inverno de 2003. Desde então, a situação caminhou de perfeito acordo com o previsível: o atoleiro está ficando diariamente mais e mais profundo, com um constante aumento nos ataques contra a coalizão e nas baixas estadunidenses. A prisão lastimável do genocida Saddam Hussein, antigo camarada de Washington, não mudará a tendência. A prometida "democracia" - a julgar pelos planos de um "governo provisório" escolhido pelo procônsul estadunidense Paul Bremer e pelo "Conselho governante" indicado por ele - provou não ser nada mais do que um plano para continuar com o "governo da força bruta" de Washington "exercido... através da mediação dos fantoches desprezados pelo povo, mas 'legitimados' por um arremedo de democracia". Um arremedo que parece tão distante de uma real democracia que seu maior oponente é um grão-aiatolá, Ali Sistani, que teimosamente pede por eleições livres que permitam ao povo iraquiano escolher seu próprio governo. Vejam só, Washington, que finge trazer a civilização para os (atrasados) muçulmanos iraquianos, está tomando lições de democracia de um teólogo muçulmano Bem como as liberdades econômicas e privatizações, que são tão impopulares entre os iraquianos que estão crescentemente sendo colocadas de lado por medo de insuflar o ressentimento das massas e, conseqüentemente, aumentar as fileiras do que mesmo as fontes dos Estados Unidos não hesitam em chamar de "resistência".[26]

Notas:

1 Sobre o acordo Beilin-Abu Mazen e o caminho percorrido de Oslo a Sharon, ver Tanya Reinhart Israel/Palestine: Howto Endthe 1948 War. NewYork: Seven Stories, 2002.

2 Joshua Hammer. Words & Deeds. Newsweek (ed. internacional), 9 jun. 2003.

3 Eleito líder do Partido Trabalhista por um ano em junho de 2003, Shimon Peres confessamente aspirava negociar seu retorno ao governo através de uma nova coalizão com Sharon.

4 Rumsfeld, Wolfowitz, Abrams, Armitage, Bolton, Dobriansky, Khalilzad, Pene, Rodman, Schneider e Zoellick.

5 Este não é o lugar para provar esta afirmação. Lembremos apenas que o grupo Rockefeller desempenhou um papel central na política externa dos Estados Unidos. David Rockefeller foi durante muitos anos presidente do Conselho de Relações Exteriores, o principal think tank da política externa dos Estados Unidos. Sua companhia financiava o conselho junto com outras companhias como a Bechtel, a grande empreiteira que se empenhou em ingerir todo tipo de benefícios contratuais nos países produtores de petróleo e hoje está encarregada de reconstruir o Iraque.

6 Preço da OPEC para a cesta de referência.

7 OPEC. Annual Statistical Bulletin 2001 p. 1 19.

8 O preço nominal despencou novamente no ano seguinte (para US$23,12) mesmo permanecendo acima do preço de 1990. Contudo, ele caiu novamente em 2002 (para US$24,36) e atingiu US$27,87/barril em 16 de julho de 2003, apesar dos recordes russos de exportação de petróleo.

9 Ver Michael Klare. Resource War. NewYork: Henry Holt, 2002.

10 CSIS Panei Report. The Geopolitics of Energy into the 21st Century. Washington: CSIS, 2000, "Executive Summary", p. XVi.

11 Idem. p. XIX. Por acaso, as mesmas considerações explicam a avidez do governo Bush em remendar as cercas com a Líbia e sua atitude hesitante para com o Irã.

12 O reino tem hoje uma capacidade instalada ociosa de 3 milhões de barris por dia, sem contar sua bem mais expressiva capacidade potencial.

13 Edward Morse ejames Richard. The Battle for Energy Dominance. Foreign Affairs, v. 81, n. 2, mar.-abr. 2002, p. 20. Ver também o debate acerca deste artigo: Does Saudi Arabia Still Matter? Foreign Affairs v. 8, n. 6, nov.-dez. 2002, p. 167-178.

14 Gilbert Achcar. Operation Oil and War Drive. In: Eastern Cauldron. New York: Monthly Review, no prelo. Ver também Achcar. Le nouvel ordre imperial ou la mondialisation de l'empire etats-unien. In: Gilbert Achcar (ed.). Le nouvel ordre imperial. ActuelMarx, n. 33, lO set.2003, bem como John Bellamy Foster, Harry Magdoff e Robert McChesney. U.S. Military Bases and Empire. Monthly Review, v. 53, n. 10, mar. 2002.

13 Neste aspecto da situação, que vai além do alcance deste artigo, ver Gilbert Achcar. The Strategic Triad: The United States, Russia and China and Rasputin Plays at Chess: How the West Blundered into a New Cold War. In: Tariq Ali (ed.). Masters ofthe Universe? London: Verso, 2000. Ver, também, Gilbert Achcar. A trio of Soloists. Le Monde Dip!omatique,dez. 2001.

16 CSIS. Op. cit., P. XVI

18 OPEC Op. cit., p. 12

18 A situação atual é muito similar com a situação depois do golpe mujahidin sobre o regime Najibullah em 1992; ver Gilbert Achcar. After the FalI of Najibullah. In: Eastern Cauldron. Op. cst.

19 Gilbert Achcar. Washington and London: The Problems Have Only Just Begun and Letter to a Slightly Depressed AntiwarActivist. In: Eastern Cauldron. Op. cit.

20 Niall Ferguson. The Empire Slínks Back. New York Times Magazine, 27 abr. 2003.

21 Thom Shanker. Officials Debate Whether to Seek a Bigger Military. New York Times, 21 jul. 2003.

22 Samuel Huntington. The C!ash of Civilizations. New York: Touchstone, 1998, p. 94

23 Gilbert Achcar. The Arab Despotic Exception. in: Eastern Cauldron.

24 George W Bush. Remarks by the President in Commencement Address at the Universfty of South Carolina. Washington: Ofílce of the Press Secretary, the White House, 9 mal. 2003.

25 Richard Mably e Tom Ashby. Iraqis Agree on Role for 011 Majors, OPEC. Reuters, 5 abr. 2003

26 Rajiv Chandrasekaran. Attacks Force Retreat From Wide-Ranging Plans for Iraq. Washington Post, 28 dez. 2003.

Gilbert Achcar lived in Lebanon before moving to France where he teaches politics and international relations at the University of Paris-VIII. He is the author of The Clash of Barbarisms: September 11 and the Making of the New World Disorder (Monthly Review, 2002), in addition to several books on contemporary politics published in various languages.

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