1 de fevereiro de 2004

A visão em paralaxe

Slavoj Žižek

New Left Review

NLR 25 • JAN/FEB 2004

Tradução / No inglês de hoje, pig refere-se aos animais que os fazendeiros criam, e pork à carne que consumimos. A dimensão de classe é clara aqui: pig é a antiga palavra saxã, já que os saxões eram os fazendeiros desprivilegiados, enquanto pork vem do francês porc, usado pelos privilegiados conquistadores normandos que em sua maioria consumiam os porcos criados pelos fazendeiros. Essa dualidade, que assinala a lacuna entre a produção e o consumo, é um exemplo do que Kojin Karatani, em seu formidável Transcritique: on Kant and Marx [Transcrítica: sobre Kant e Marx], chama de dimensão da “paralaxe”. Conhecido como o mais notável crítico literário japonês de sua geração – o seu Origins of Japanese literature foi apresentado ao mundo anglófono por Fredric Jameson –, Karatani passou das reflexões subseqüentes de Architecture as metaphor [A arquitetura como metáfora] a uma das tentativas mais originais de remoldar a base filosófica e política de oposição ao império do capital no período atual. Em sua ambição teórica heterodoxa e sua preocupação com tradições revolucionárias alternativas – no caso, principalmente anarquistas –, Transcritique pode ser comparada à trilogia Política, de Roberto Unger, obra brasileira. Mas o mundo de idéias de Karatani é mais próximo do de Marx e, por trás dele, da herança da filosofia clássica alemã.

Karatani começa com a pergunta: qual é a resposta adequada quando nos defrontamos com uma antinomia no exato sentido kantiano da palavra? Sua solução é que devemos renunciar a todas as tentativas de reduzir um de seus aspectos ao outro (ou, mais ainda, a encenar um tipo de “síntese dialética” dos opostos). Pelo contrário, é preciso afirmar a antinomia como irredutível e conceber a questão da crítica radical não como posição determinada e oposta a outra posição, mas como lacuna irredutível entre as posições – o interstício puramente estrutural entre elas. A postura de Kant, assim, é ver as coisas “nem de seu próprio ponto de vista, nem do ponto de vista dos outros, mas encarar a realidade que é exposta por meio da diferença (paralaxe)”. Karatani lê a noção kantiana do Ding an sich (a coisa-em-si, para além dos fenômenos) não tanto como entidade transcendental além de nossa compreensão, mas como aquilo que só é discernível pelo caráter irredutivelmente antinômico de nossa vivência da realidade.

Teorias do valor

Segundo Karatani, quando Marx defrontou-se com a oposição entre a economia política clássica (Ricardo e sua teoria trabalhista do valor – contrapartida do racionalismo filosófico) e a redução neoclássica do valor a uma entidade puramente relacional sem substância (Bailey – contrapartida do empirismo filosófico), sua “crítica da economia política” realizou exatamente o mesmo avanço rumo à visão em paralaxe. Marx tratou essa oposição como uma antinomia kantiana, ou seja, o valor tem de se originar tanto fora da circulação, na produção, quanto dentro da circulação. O “marxismo” depois de Marx, tanto na versão socialdemocrata quanto na comunista, perdeu a perspectiva da paralaxe e regrediu para uma promoção unilateral da produção como sede da verdade, como contrária às esferas “ilusórias” da troca e do consumo. Como enfatiza Karatani, até a teoria mais sofisticada da reificação, a do fetichismo da mercadoria, cai nessa armadilha, desde o jovem Lukács até Jameson, passando por Adorno. O modo como esses pensadores compensavam a falta de um movimento revolucionário era argumentar que a consciência dos trabalhadores estava ofuscada pela sedução da sociedade de consumo e/ou pela manipulação das forças ideológicas da hegemonia cultural. Daí a mudança do foco de sua obra crítica para a crítica cultural (a chamada “virada cultural”); em outros, para a revelação dos mecanismos ideológicos (ou libidinais: eis aqui o papel-chave da psicanálise no marxismo ocidental) que mantêm os trabalhadores sob o feitiço da ideologia burguesa. Numa leitura cuidadosa da análise de Marx da forma-mercadoria, Karatani baseia a persistência insuperável da lacuna paraláctica no salto mortal que o produto tem de dar para afirmar-se como mercadoria:

O preço [do ferro expresso em ouro], se indica, de um lado, a quantidade de tempo de trabalho contido no ferro, ou seja, o seu valor, significa ao mesmo tempo o desejo bem-intencionado de converter o ferro em ouro, isto é, dar ao tempo de trabalho contido no ferro a forma de tempo de trabalho social universal. Se essa transformação não ocorre, a tonelada de ferro deixa de ser não só uma mercadoria como também um produto, já que só é uma mercadoria porque não é valor de uso para seu dono, ou seja, seu trabalho só é realmente trabalho se for trabalho útil para os outros e só é útil para ele se for trabalho geral abstrato. Portanto, é tarefa do ferro ou de seu dono encontrar aquele lugar no mundo das mercadorias onde ferro atrai ouro. Mas se a venda realmente acontece, como supomos nesta análise da circulação simples, então essa dificuldade, o salto mortal da mercadoria, é superada. Como resultado dessa alienação – ou seja, sua transferência da pessoa para quem não é um valor de uso para aquela para quem é um valor de uso –, a tonelada de ferro prova ser, na verdade, um valor de uso, e seu preço ao mesmo tempo se concretiza, e o ouro meramente imaginário converte-se em ouro real.4

Esse salto mediante o qual uma mercadoria é vendida e, assim, constituída efetivamente como mercadoria não é resultado de um autodesenvolvimento imanente do (conceito de) Valor, mas um salto mortal comparável a um salto de fé kierkegaardiano, uma “síntese” temporária e frágil entre valor de uso e valor de troca, comparável à síntese kantiana entre sensibilidade e entendimento; em ambos os casos, dois níveis irredutivelmente externos um ao outro são reunidos. Por essa exata razão, Marx abandonou seu projeto original (discernível nos manuscritos dos Grundrisse) de “deduzir”, de modo hegeliano, a cisão entre valor de troca e valor de uso do próprio conceito de Valor. Em O capital, a cisão dessas duas dimensões, o “duplo caráter da mercadoria”, é o ponto de partida. A síntese tem de basear-se num elemento irredutivelmente externo, como em Kant, para quem ser não é um predicado (isto é, não pode se reduzir ao predicado conceitual de uma entidade), ou como em Naming and necessity [Nome e necessidade], de Saul Kripke, em que a referência de um nome a um objeto não se baseia no conteúdo desse nome, nas propriedades que designa.

A própria tensão entre os processos de produção e circulação é, assim, mais uma vez, uma paralaxe. Sim, o valor é criado no processo de produção; no entanto, é criado ali, por assim dizer, apenas em potencial, já que só se efetiva como valor quando a mercadoria produzida é vendida e o ciclo D-M-D assim se completa. A lacuna temporal entre a produção de valor e sua concretização é fundamental aqui: embora o valor seja criado na produção, sem a conclusão bem-sucedida do processo de circulação não há, stricto sensu, valor – a temporalidade, no caso, é aquela do futuro do pretérito, ou seja, o valor não “é” de imediato, ele apenas “seria”. É realizado retroativamente, encenado de modo performativo. Na produção, o valor é gerado “em si mesmo”, enquanto somente pelo processo completo de circulação torna-se “por si mesmo”. É assim que Karatani resolve a antinomia kantiana do valor que é e não é gerado no processo de produção. É em razão dessa lacuna entre em-si-mesmo e por-si-mesmo que o capitalismo precisa da igualdade e da democracia formais:

O que distingue exatamente o capital da relação senhor–escravo é que o trabalhador enfrenta-o como consumidor e possuidor de valores de troca e que, na forma de possuidor de dinheiro, na forma de dinheiro torna-se um simples centro de circulação – um de seus infinitos centros, em que sua especificidade de trabalhador se extingue.5

Isso significa que, para completar o círculo de sua reprodução, o capital tem de passar por este ponto crítico no qual os papéis se invertem: “o valor da mais-valia, em princípio, só se efetiva quando os trabalhadores em sua totalidade compram de volta o que produzem”. Esse ponto é fundamental para Karatani: constitui a alavanca essencial com a qual se opor ao domínio do capital hoje. Não é natural que os proletários concentrem seu ataque naquele ponto único em que abordam o capital na posição de compradores e no qual, conseqüentemente, o capital é obrigado a cortejá-los? “Se os trabalhadores podem de algum modo se tornar sujeitos, é somente como consumidores.” Talvez seja este o principal exemplo da situação de paralaxe: a posição de trabalhador-produtor e a de consumidor deveriam manter-se irredutíveis em sua divergência, sem privilegiar uma como a “verdade mais profunda” da outra. (A economia planejada do socialismo de Estado não pagou um preço terrível pelo privilégio que conferiu à produção em detrimento do consumo, e daí seu fracasso em fornecer aos consumidores os bens de que precisavam, em vez de produtos que ninguém queria?)

Este é um dos temas básicos de Karatani: sua rejeição da oposição – no mínimo protofascista – entre a especulação financeira e a economia “real” dos capitalistas envolvidos na atividade produtiva. Afinal, no capitalismo, o processo de produção é apenas um desvio do processo especulativo em que dinheiro gera mais dinheiro. A lógica do “escorchar” acaba sendo também a que sustenta o impulso incessante para revolucionar e expandir a produção:

A maioria dos economistas alerta hoje que a especulação do capital financeiro global está isolada da economia “material”. No entanto, o que deixam de ver é que a economia material como tal também é movida a ilusão e que é essa a natureza da economia capitalista.8

Há, conseqüentemente, quatro posições básicas à propos do dinheiro: (1) a crença mercantilista – um fetichismo ingenuamente direto – de que o dinheiro é uma “coisa especial”; (2) a “economia política burguesa clássica” representada por Ricardo, que desdenhava esse fetichismo, considerando-o mera ilusão, e percebia o dinheiro como nada além de um signo da quantidade de trabalho socialmente útil, concebendo o valor como algo inerente à mercadoria; (3) a escola “neoclássica”, que rejeitava não só a teoria trabalhista do valor como também qualquer noção “material” de valor, sendo o preço da mercadoria resultado, simplesmente, da inter-relação entre sua oferta e a procura ou a utilidade de uma mercadoria para outras mercadorias. Karatani está certo ao enfatizar como, paradoxalmente, Marx rompeu os limites da teoria “clássica” ricardiana – do valor advindo do trabalho – a partir de sua leitura de Bailey, o primeiro economista “vulgar” a enfatizar a condição puramente relacional do valor – sua expressão de como essa mercadoria se relaciona com todas as outras mercadorias. Foi Bailey, assim, que abriu caminho para a abordagem formal de Marx, que insiste na lacuna entre o objeto e o lugar estrutural que ocupa; do mesmo modo que um rei não é rei por suas propriedades inerentes, mas porque todos o tratam como rei (exemplo do próprio Marx), a mercadoria é dinheiro porque ocupa o lugar formal do equivalente geral de todas as mercadorias e não porque, digamos, o ouro seja “naturalmente” dinheiro.

Mas é fundamental observar como os mercantilistas e seus críticos ricardianos continuam “materialistas”. Sem dúvida Ricardo sabia que o objeto que serve de dinheiro não é dinheiro “naturalmente”, e ria-se da superstição ingênua do dinheiro, desdenhando os mercantilistas, que considerava primitivos crentes em propriedades mágicas. Contudo, ao reduzir o dinheiro a um signo externo secundário do valor inerente da mercadoria, ainda assim voltou a naturalizar o valor, concebendo-o como propriedade “material” direta da mercadoria. Foi essa ilusão que gerou as engenhosas propostas socialistas primitivas e proudhonianas de superar o fetichismo do dinheiro com a criação de um “dinheiro-trabalho” direto, que designaria apenas o volume com que cada indivíduo contribuía para o trabalho social. E é por isso que, embora o Darstellung de Marx da automobilização do capital esteja cheio de citações hegelianas, o automovimento do capital está longe do automovimento circular da Noção (ou Espírito) de Hegel. A questão de Marx é que esse movimento nunca alcança a si mesmo, nunca recupera seu crédito, porque sua resolução é adiada para sempre e a crise é seu constituinte mais íntimo (sinal de que o Todo do Capital é o não-verdadeiro, como diria Adorno). Em outras palavras, seu movimento é uma “infinidade má”, reproduzindo-se para sempre.

Apesar do estilo descritivo hegeliano [...] O capital distingue-se da filosofia de Hegel em sua motivação. O fim do Capital nunca é o “Espírito absoluto”. O capital revela o fato de que o capital, embora organize o mundo, jamais irá além de seu próprio limite.10

É uma crítica kantiana do impulso incontido do capital/razão para efetivar-se além de seus limites.10 É interessante notar que Adorno, em Três estudos sobre Hegel, caracterizou criticamente o sistema de Hegel nos mesmos termos “financeiros” de um sistema que vive de um crédito que jamais poderá pagar. A mesma metáfora “financeira” costuma ser usada para a própria linguagem. Brian Rotman, entre outros, definiu o significado como aquilo que sempre “se toma emprestado ao futuro”, confiando em seu pagamento ulterior e sempre adiado11. Afinal, como surgem os significados compartilhados? Por meio do que Alfred Schuetz chamou de “idealização mútua”: o sujeito elimina o impasse da sondagem interminável da pergunta “dizemos todos a mesma coisa com a palavra ‘pássaro’?” pressupondo e agindo simplesmente como se quiséssemos mesmo dizer a mesma coisa. Não há linguagem sem esse “salto de fé”. Essa pressuposição, esse “salto de fé”, não deveria ser concebida na linha habermasiana como normatividade embutida no funcionamento da linguagem, o ideal pelo qual todos os falantes lutam (ou deveriam lutar). Pelo contrário, longe de ser um ideal, é uma ficção que tem de ser solapada repetidamente caso se queira que o conhecimento progrida. Assim, no mínimo, esse “e se” pressuposto é profundamente antinormativo. É claro que um habermasiano responderia que o ideal, a norma inscrita na linguagem, é, apesar de tudo, o estado em que essa ficção não seria mais ficção, e sim comunicação direta em que os sujeitos chegariam a um acordo sem atrito. Mas tal defesa erra o alvo, que é, não só e simplesmente, que tal estado seja inacessível (e também indesejável), mas que o “salto de fé” não só não tem conteúdo normativo como pode até bloquear uma maior elaboração – por que lutar por uma coisa que supostamente já temos? Em outras palavras, o que a leitura desse “e se” como normatividade deixa de perceber é que o “salto de fé” é necessário e produtivo (permitindo a comunicação) exatamente na medida em que é uma ficção contrária aos fatos. Seu “efeito-verdade”, seu papel positivo de permitir a comunicação, depende exatamente do fato de não ser verdade, de pular para a ficção; sua condição não é normativa porque impede o impasse debilitante da linguagem, sua falta básica de garantia, ao apresentar como já realizado aquilo pelo que deveríamos lutar.

A mesma lógica de viver de crédito tomado ao futuro também serve para o stalinismo. A versão evolucionária padrão é que, embora o socialismo stalinista tenha desempenhado certo papel ao permitir a industrialização rápida da Rússia, em meados da década de 1960 o sistema já esgotara seu potencial. No entanto, o que essa avaliação deixa de levar em conta é que todo o período de comunismo soviético, desde 1917 – ou, mais exatamente, a partir da proclamação por Stalin do objetivo de “construir o socialismo num só país”, de 1924 em diante –, viveu com tempo emprestado, estava “endividado com seu próprio futuro”, de modo que o fracasso final desqualificou retroativamente as próprias épocas anteriores.

Economia e política

No entanto, a principal paralaxe marxista não é aquela entre economia e política, entre a “crítica da economia política”, com sua lógica de mercadorias, e a luta política, com sua lógica de antagonismos de classe? Ambas as lógicas são “transcendentais”, não meramente onto-empíricas; e as duas são irredutíveis uma à outra. É claro que apontam entre si – a luta de classes está inserida no próprio coração da economia, mas tem de permanecer ausente, não-tematizada (basta lembrar de como o manuscrito do terceiro volume de O capital abandona de repente as classes). Mas esse mesmo envolvimento mútuo é distorcido, de modo que impede todo contato direto entre elas. Qualquer tradução direta da luta política em mero reflexo dos “interesses” econômicos está fadada a falhar, assim como qualquer redução da esfera econômica numa sedimentação “reificada” secundária de um processo político básico subjacente.

Nesse sentido, a “política pura” de Badiou, Rancière e Balibar, mais jacobina do que marxista, divide com seu grande adversário os Estudos Culturais anglosaxões, a degradação da esfera da economia. Ou seja, o que pretendem todas as novas teorias francesas (ou de orientação francesa) da política, de Balibar a Laclau e Mouffe, passando por Rancière e Badiou, é – usando termos filosóficos tradicionais – a redução da esfera da economia (da produção material) a uma esfera “ôntica” privada de dignidade “ontológica”. Dentro desse horizonte, simplesmente não há lugar para a “crítica da economia política” marxista: a estrutura do universo das mercadorias e do capital em O capital, de Marx, não é apenas aquela de uma esfera empírica limitada, e sim um tipo de sociotranscendental a priori, a matriz que gera a totalidade das relações sociais e políticas. A relação entre economia e política é, em última instância, aquela do conhecido paradoxo visual dos “dois rostos ou um vaso”: ou se vêem os rostos ou o vaso, nunca as duas coisas ao mesmo tempo; é preciso optar. Do mesmo modo, podemos nos concentrar no político, reduzindo o domínio da economia ao “fornecimento de bens” empírico; ou no econômico, reduzindo a política a um teatro de aparências, um fenômeno passageiro que desaparecerá com a chegada de uma sociedade comunista (ou tecnocrática) desenvolvida, na qual, como explicaram Saint-Simon e Engels, o “governo do povo” dá lugar ao “governo das coisas”.

A crítica “política” do marxismo – a alegação de que, quando se reduz a política a uma expressão “formal” de algum processo socioeconômico “objetivo” subjacente, perde-se a abertura e o constitutivo contingencial do próprio campo político – deveria ser, assim, complementada com seu anverso: o campo da economia é, em sua própria forma, irredutível à política. É essa realidade do econômico como forma determinante do social que os “pós-marxistas políticos” franceses deixam de ver quando reduzem a economia a uma das esferas sociais positivas.

A idéia básica da visão em paralaxe é, portanto, que o próprio isolamento produz seu objeto. A “democracia” como forma só surge quando se isola a textura das relações econômicas, assim como a lógica inerente do aparelho político de Estado – ambas têm de ser abstraídas para que as pessoas efetivamente incorporadas aos processos econômicos e sujeitas aos aparelhos de Estado sejam reduzidas a agentes eleitorais individuais. O mesmo também serve para a “lógica da dominação”, da maneira como todos são controlados ou manipulados pelos aparelhos de sujeição: para discernir esses mecanismos de poder, é preciso abstrair-se não só do imaginário democrático (como faz Foucault em suas análises da microfísica do poder, e Lacan em sua análise do poder no “Seminário XVIII”), mas também do processo de (re)produção econômica. Finalmente, a esfera da (re)produção econômica também só surge quando se isola metodologicamente a existência concreta da ideologia política e do Estado; não surpreende que tantos críticos de Marx se queixem de que falta à sua “crítica da economia política” uma teoria do poder e do Estado. É claro que a armadilha a ser evitada aqui é a idéia ingênua de que se deva ter em vista a totalidade social, da qual a ideologia democrática, o exercício do poder e os processos da (re)produção econômica são meras partes. Quando se tenta manter tudo isso em vista ao mesmo tempo, acaba-se não vendo nada – seus contornos desaparecem. Esse isolamento não é um mero procedimento epistemológico; ele responde ao que Marx chamou de “abstração real” – uma abstração do poder e das relações econômicas que está inserida na própria realidade do processo democrático, e assim por diante.

Filosofia e falta de lar

De maneira ainda mais radical, não deveríamos afirmar como tal a condição paraláctica da filosofia? Desde seu início, com os pré-socráticos jônicos, a filosofia a surgiu nos interstícios das comunidades sociais materiais como pensamento daqueles que estavam presos numa posição de “paralaxe”, incapazes de identificar-se por completo com alguma identidade social positiva. Eis o que falta na descrição de Heidegger: como, a partir de seus amados pré-socráticos, o filosofar envolveu uma posição “impossível” de afastamento de toda identidade comunal, seja na “economia”, como organização do lar, ou na pólis. Assim como a troca, na visão de Marx, a filosofia surge nos interstícios entre comunidades diferentes, num espaço frágil de circulação a que falta toda identidade positiva. Isso não fica ainda mais claro no caso de Descartes? A experiência fundamental de seu manifesto de dúvida universal é, exatamente, a revelação “multicultural” de que nossa própria tradição não é melhor do que as tradições dos outros que nos parecem “excêntricas”:

Fui ensinado, ainda em meus tempos de escola, que não há nada imaginável tão estranho ou tão pouco crível que não tenha sido defendido por este ou aquele filósofo, e reconheci ainda mais, no decorrer das minhas viagens, que mesmo aqueles cujos sentimentos são tão contrários aos nossos não são necessariamente bárbaros ou selvagens, mas podem estar de posse da razão em grau tão grande quanto nós, e até mesmo em grau maior. Também refleti sobre como o mesmíssimo homem, idêntico em mente e espírito, pode tornar-se tão diferente, quer seja criado desde a infância entre os franceses ou os alemães, quer tenha passado toda a sua vida entre chineses ou canibais. Do mesmo modo, notei como até nas modas do vestir a mesma coisa que nos agradava há dez anos, e que talvez venha a nos agradar mais uma vez antes que se passem mais dez anos, parece, no momento atual, extravagante e ridículo. Assim, concluí que é muito mais o costume e o exemplo que nos convencem, mais do que algum conhecimento certo, mas que, apesar disso, a voz da maioria não constitui nenhuma prova do valor de verdades um pouco difíceis de descobrir, porque tais verdades têm muito mais probabilidade de terem sido descobertas por um só homem, e não por uma nação. No entanto, não consegui destacar ninguém cuja opinião parecesse preferível às dos outros e descobri que, por assim dizer, estava constrangido em realizar eu mesmo a condução de meu procedimento.12

Desse modo, Karatani tem razão ao enfatizar o caráter insubstancial do cogito: “Não se pode falar dele positivamente; assim que isso é feito, sua função se perde”13. O cogito não é uma entidade material, e sim uma função estrutural pura, um lugar vazio (Lacan: $) – que, como tal, só pode surgir nos interstícios de sistemas comunais materiais. Há, assim, um vínculo intrínseco entre o surgimento do cogito e a desintegração e a perda das identidades comunais materiais, o que vale ainda mais para Spinoza do que para Descartes. Embora Spinoza criticasse o cogito cartesiano como entidade ontológica positiva, endossou-o implicitamente como “posição do enunciado”, de uma dúvida radical de si mesmo, já que, mais ainda que Descartes, Spinoza falava a partir de um espaço social intersticial, nem como judeu nem como cristão.

Seria fácil retrucar que essa abertura e relativização multicultural cartesiana da própria posição de alguém é apenas o primeiro passo, o abandono das opiniões herdadas, no caminho para chegar ao conhecimento filosófico absolutamente certo – o abandono do lar falso e vacilante para atingir nosso verdadeiro lar. O próprio Hegel não compara a descoberta do cogito de Descartes a um marinheiro que, depois de muito vagar pelo oceano, vê finalmente a terra firme? A falta de lar cartesiana não seria, assim, apenas uma ação tática enganosa, uma precursora “negação da negação”, a Aufhebung do falso lar tradicional no verdadeiro lar conceitual finalmente descoberto? Nesse sentido, Heidegger não teria razão ao aprovar a citação da definição de filosofia de Novalis como a saudade do verdadeiro lar perdido? Podemos nos permitir duvidar. Afinal de contas, o próprio Kant apresenta-se como testemunha de acusação; em sua filosofia transcendental, a falta de lar continua irredutível – estamos para sempre cindidos, condenados a uma posição frágil entre as duas dimensões e a um “salto de fé” sem nenhuma garantia. Mesmo com Hegel, as coisas são realmente tão claras? Será que, para Hegel, esse novo “lar” não seria, de certo modo, a própria falta de lar, o próprio movimento aberto da negatividade?

Ao longo dessas linhas da “falta de lar” constitutiva da filosofia, Karatani defende – em oposição a Hegel – a idéia de Kant de uma “sociedade civil mundial” cosmopolita (Weltburgergesellschaft), que não seria uma simples expansão da cidadania do Estado-nação para a cidadania num Estado multinacional global. Para Karatani, isso envolve a passagem da nossa identificação com a substância étnica “orgânica”, concretizada numa tradição cultural específica, para um princípio de identificação radicalmente diferente – ele se refere à noção de Deleuze de uma “singularidade universal” oposta à tríade individualidade-particularidade-generalidade. Essa oposição é o contraste entre Kant e Hegel. Para Hegel, a “sociedade civil mundial” é uma noção abstrata sem conteúdo material, à qual falta a mediação do particular e, portanto, a força da realidade total. Afinal, a única maneira pela qual o indivíduo pode participar efetivamente de uma humanidade universal é pela identificação total com um Estado-nação específico – sou “humano” apenas como alemão, inglês, francês, e assim por diante.

Para Kant, pelo contrário, a “sociedade civil mundial” designa o paradoxo de uma singularidade universal, ou seja, de um objeto singular que, numa espécie de curto-circuito, passa por cima da mediação do particular para participar diretamente do universal. Essa identificação com o universal não é a identificação com uma substância global abrangente (“humanidade”), mas com um princípio éticopolítico universal – um coletivo religioso universal, um coletivo científico, uma organização revolucionária global, todos os quais, em princípio, acessíveis a todo mundo. É exatamente isso, como ressalta Karatani, que Kant queria dizer, num trecho famoso de “O que é Iluminismo?”, com “público” em oposição a “privado”. Para ele, o “privado” não era o indivíduo em oposição à comunidade, mas a própria ordem comunal-institucional da identificação específica de alguém, enquanto o “público” era a universalidade transnacional do exercício da própria razão. O paradoxo, assim, é que se participa da dimensão universal da esfera “pública” exatamente como indivíduo singular, extraído da identificação comunal substantiva ou até oposto a ela – só se é realmente universal quando se é radicalmente singular, nos interstícios das identidades comunais.

Isso, contudo, nos leva à nossa primeira observação crítica. Karatani realmente “dá uma chance a Hegel” ou o transforma num testa-de-ferro conveniente (como tantas vezes acontece com os críticos de Hegel)? Uma prova negativa dessa insuficiência é uma característica do livro de Karatani que salta aos olhos: a ausência de qualquer referência a Alfred Sohn-Rethel, que também desdobrou diretamente o paralelo entre a crítica transcendental de Kant e a crítica da economia política de Marx, mas no sentido crítico oposto (a estrutura do universo da mercadoria é aquela do espaço transcendental kantiano)14. Karatani só pode basear-se de forma acrítica em Kant caso ignore a demonstração de que a própria lógica de Kant já está “contaminada” pela estrutura do fetichismo da mercadoria e que apenas a dialética de Hegel fornece as ferramentas para romper as antinomias do universo das mercadorias.

Loterias de poder

Além disso, alguns detalhes da leitura de Kant feita por Karatani são questionáveis. Quando Karatani propõe sua solução “transcendental” para a antinomia do dinheiro – precisamos de um x que será dinheiro e não-dinheiro – e depois reaplica sua solução ao poder – precisamos de algum poder centralizado mas não fetichizado numa substância que seja o poder “em si” –, ele evoca, de forma explícita, uma homologia estrutural com Duchamp, em que um objeto se torna arte não por causa de suas propriedades intrínsecas, mas simplesmente por ocupar um lugar determinado no sistema estético. Mas tudo isso não se combina exatamente com a teorização de Claude Lefort da democracia como ordem política na qual o lugar do poder está a princípio vazio e só é preenchido temporariamente por representantes eleitos? Ao longo dessa linha, até a noção aparentemente excêntrica de Karatani de combinar eleições com loterias no procedimento de determinar quem nos governará é mais tradicional do que parece. Ele mesmo menciona exemplos da Grécia Antiga, mas sua proposta cumpre paradoxalmente a mesma tarefa da teoria da monarquia de Hegel.

Nessa conjuntura, Karatani assume o risco heróico de uma definição meio maluca da diferença entre ditadura da burguesia e ditadura do proletariado: “Se o sufrágio universal com voto secreto, ou seja, a democracia parlamentar, é a ditadura da burguesia, a criação de uma loteria poderia ser considerada a ditadura do proletariado”15. Desse modo, “o centro existe e não existe ao mesmo tempo”16: existe como lugar vazio, um x transcendental, e não existe como entidade positiva material. Mas isso seria mesmo suficiente para minar o “fetichismo do poder”? Um indivíduo ocasional pode ocupar temporariamente o lugar de poder e ter o carisma do poder a si conferido por algum tempo, seguindo a bem conhecida lógica do repúdio fetichista: “Sei muito bem que esta é uma pessoa comum como eu, mas ainda assim [...] (enquanto no poder, ele se torna o instrumento de uma força transcendente, o poder fala e age por meio dele)”. Em conseqüência, a verdadeira tarefa não seria exatamente livrar-se da própria mística do lugar de poder, segundo a matriz geral das soluções de Kant, na qual as proposições metafísicas (Deus, imortalidade da alma etc.) são afirmadas “por apagamento”, como postulados?

Por fim, a descrição que Karatani faz das noções de mais-valia e de exploração de Marx tem uma estranha lacuna: ignora por completo o elemento-chave de sua crítica da teoria padrão do valor advindo do trabalho. Para Marx, os trabalhadores não são explorados por lhes negarem o valor total de seu trabalho – os salários, em princípio, são “justos”, pois eles recebem o valor integral da mercadoria que vendem: sua força de trabalho. Em vez disso, são explorados porque o valor de uso dessa mercadoria não tem igual, já que produz um novo valor maior do que seu próprio valor, e é esse valor maior que é apropriado pelos capitalistas. Karatani, pelo contrário, reduz a exploração a apenas mais um caso de diferença de preço entre sistemas de valores: em função da incessante inovação tecnológica, os capitalistas conseguem ganhar com a venda dos produtos do trabalho mais do que têm de pagar aos trabalhadores. Aqui a exploração capitalista é apresentada como estruturalmente semelhante à atividade dos mercadores que compram e vendem em lugares diferentes, aproveitando o fato de que o mesmo produto é mais barato aqui (onde o compram) do que ali (onde o vendem):

Só quando há uma diferença de preço entre sistemas de valor – A (quando vendem sua força de trabalho) e B (quando compram as mercadorias) – é que se concretiza a mais-valia. Essa é a chamada mais-valia relativa. E só é obtida pela inovação tecnológica incessante. Assim, descobre-se que o capital industrial também obtém mais-valia a partir do interstício entre dois sistemas diferentes.17

Karatani termina recomendando o experimento do LETS (Local Exchange Trading System, ou Sistema Comercial de Trocas Locais, com base em moeda nãocomercializada) como modelo econômico da “oposição” ao capital. Mas é difícil ver como isso evita a mesma armadilha que Karatani também ressalta – a armadilha de um meio de troca que não seria mais um fetiche e serviria apenas como “dinheiro-trabalho”, um instrumento transparente que designasse a contribuição de cada indivíduo para o produto social. Mas, embora possa parecer fraco nessas articulações, o livro de Karatani é fundamental para quem quiser romper o impasse da resistência “cultural” ao capitalismo e reafirmar a realidade da crítica da economia política de Marx. A ironia objetiva da teoria de Karatani é que ela também pode ser lida como alegoria da cisão paraláctica que determinou sua própria posição subjetiva: está geograficamente cindido entre Osaka e o mundo acadêmico da Costa Leste dos Estados Unidos, onde hoje trabalha; seus textos estão cindidos entre as análises literário-culturais e a obra sociopolítica engajada; sua própria obra é também mais uma vez cindida entre uma leitura “desconstrucionista” da economia política marxista e o envolvimento prático no Novo Movimento Associacionista do Japão. Longe de assinalar uma falha crítica, essa posição paraláctica de Karatani serve de índice da verdade: no universo globalizado de hoje, marcado por lacunas inconciliáveis entre níveis diferentes da nossa vida, a fidelidade a visões em paralaxe, a antagonismos não-resolvidos, é a única forma de abordar a totalidade da nossa experiência.

1 Ver Kojin Karatani, Transcritique: on Kant and Marx (Cambridge, Massachusetts, 2003). Daqui em diante, TKM.
2 Origins of modern Japanese literature (Durham, Carolina do Norte, 1993); Architecture as metaphor: language, number, money (Cambridge, Massachusetts, 1995). Sobre a posição de Karatani no campo crítico japonês, ver Asada Akira, “A left within the place of nothingness”, New Left Review, n. 5, setembro-outubro de 2000, p. 24, 35-6.
3 TKM, p. 3.
4 Karl Marx, “A contribution to the critique of political economy”, em Collected works (Nova York, 1976), v. 29, p. 390 [ed. bras.: Contribuição à crítica da economia política, São Paulo, Martins Fontes, 2003].
5 Karl Marx, Grundrisse (Harmondsworth, 1993), p. 420-1.
6 TKM, p. 20.
7 TKM, p. 290.
8 TKM, p. 241.
9 Ver, entre outros, Helmut Reichelt, Zur logischen Struktur des Kapitalbegriffs (Frankfurt, 1969).
10 TKM, p. 9. 
11 Ver Brian Rotman, Signifying nothing: the semiotics of zero (Londres, 1975). 
12 Discourse on method (Indiana, Notre Dame, 1994), p. 33 [ed. bras.: Discurso do método, São Paulo, Martins Fontes, 1999]. 
13 TKM, p. 134. 186
14 Alfred Sohn-Rethel, Intellectual and manual labour: a critique of epistemology (Londres, 1978).
15 TKM, p. 183. Karatani evoca a prática do sorteio na democracia ateniense. Mas a combinação de votação e sorteio que defende não se parece com o procedimento oligárquico para eleger o doge de Veneza, procedimento criado em 1268 depois que um ocupante tentou adquirir poderes monárquicos hereditários? Houve primeiro uma votação para escolher os 30 membros de um conselho, depois outra para selecionar 9 deles. Esses 9, então, indicaram 40 eleitores provisórios que, por sua vez, sortearam 12, que então elegeram 25. Estes foram reduzidos a 9, e cada um deles, então, indicou 5. Os 45 indicados foram reduzidos por sorteio a 11; eram necessários 9 dos 11 votos para escolher os 41 finais, que, reunidos em conclave, elegeriam o doge. A meta desse procedimento labiríntico era, naturalmente, impedir que algum grupo ou família exercesse influência indevida sobre o resultado. Além disso, para impedir que o próprio doge assumisse poder demasiado, havia uma lista de coisas que ele não poderia fazer (seus filhos e filhas não se podiam casar fora da República, ele só poderia abrir cartas oficiais na presença de outrem etc.). 
16 TKM, p. 183.
17 TKM, p. 239.

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