1 de fevereiro de 2007

A economia brasileira sob o Governo Lula: Balanço de suas contradições

Fabrício Augusto de Olivera e Paulo Nakatani

Monthly Review

Plano de fundo


A economia brasileira passou por um longo processo de estagnação e inflação durante os anos 80 decorrente da crise da dívida externa que se abateu sobre todos os países endividados, em especial os da América Latina. Essa crise se manifestou através de um agudo processo inflacionário que chegou a 2.012,6% em 1989 e 2.851,3% em 1993, estimados pelo índice geral de preços (IGP-DI) da Fundação Getúlio Vargas. Assim, a segunda metade da década de 80 e a primeira da de 90 foi marcada por sucessivos planos de combate à inflação, que se iniciou com o Plano Cruzado em 1986 e foi concluído, finalmente, em 1994, com o Plano Real.[1] Esse período foi marcado, também, pelo esgotamento final do processo de industrialização conhecido como “de substituição de importações”, e pelo início da adoção das políticas neoliberais no Brasil.

A última tentativa importante de continuidade da construção de uma economia industrial integrada e relativamente independente das grandes potências econômicas foi o ambicioso II Plano Nacional de Desenvolvimento, ainda no governo do General Ernesto Geisel que terminou em 1979, ano que marca o início da crise da dívida. Após o II PND, os sucessivos governos enfrentam-se, por um lado, com a pressão externa decorrente dos vultosos pagamentos de juros e amortização da dívida e, por outro, no front interno, com a aceleração da pressão inflacionária. A economia passa, então, a ser redirecionada no sentido de ampliar o esforço exportador visando obter as divisas necessárias ao pagamento dos serviços da dívida. Em 1981 o saldo da balança comercial, que até então era negativo, torna-se positivo e cresce continuamente até 1994, quando volta a ser negativo. A média desse saldo nesses 14 anos supera os US$ 10,0 bilhões ao ano e todo ele é destinado ao pagamento dos juros da dívida externa.

Esse esforço transformou-se em um círculo vicioso infernal em que o governo, por um lado, estimulava as exportações e, por outro lado, comprava os dólares. A produção para exportação gerava produto e renda, em que o primeiro era exportado e a renda permanecia internamente. O resultado das exportações, as divisas, era adquirido pelo governo através da emissão de moeda e devolvido ao exterior pelo pagamento do serviço da dívida, e parte dessa emissão não era compensada pelo endividamento interno devido ao ambiente extremamente instável decorrente das pressões inflacionárias, que foram tornando-se incontroláveis. O resultado acumulado desse processo, durante quase uma década, culminou com os surtos hiperinflacionários de 1989 e 1993, que felizmente não produziram integralmente os desastres típicos desse fenômeno.

A crise aguda que se desenrolou no início dos anos 80 foi acompanhada pelas grandes manifestações contra a ditadura militar e pelas eleições diretas para a presidência da república. Com a queda da ditadura e o novo governo civil, a economia recupera por pouco tempo as taxas de crescimento, mas não escapa do sufoco da dívida e nem das pressões inflacionárias, que aguçam ainda mais as contradições internas. É também neste contexto, de luta contra a ditadura militar, entre o final dos anos 70 e o início dos anos 80, que surge e se expande o movimento sindical dos operários da indústria paulista e o Partido dos Trabalhadores, cujo líder principal é Luís Inácio Lula da Silva. Durante os anos 80 e 90, o PT ganha corpo, estrutura e significativo peso político nacional, com centenas de milhares de filiados e militantes, tornando-se a principal força política de oposição aos governos de José Sarney, Fernando Collor de Mello, Itamar Franco e de Fernando Henrique Cardoso (FHC).

Assim, logo na primeira eleição direta à presidência da república, após a ditadura militar, Lula venceu o primeiro turno e caminhava para uma vitória no segundo. Entretanto, as classes dominantes retomaram rapidamente a iniciativa e iniciaram uma ampla ofensiva contra ele, na qual utilizou sem limites as redes de televisão, principalmente a rede globo de televisão. Dessa forma, elegeu Fernando Collor de Mello, candidato de um partido minúsculo e politicamente inexpressivo, que acabou renunciando em dezembro de 1992, para não ser cassado, sob acusações de corrupção e desvio de recursos públicos. Lula ainda foi candidato em 1993 e em 1998 e perdeu para Fernando Henrique Cardoso nas duas eleições. Nesse processo, a fração majoritária, dirigente do PT, foi mudando gradativamente de posição e de estratégia eleitoral, até a vitória de Lula em 2002.

Durante esse período são gestadas as condições e adotadas as medidas de política econômica neoliberal, assim, o governo implementa progressivamente a liberalização do comércio internacional, dos fluxos de capitais especulativos, a privatização das empresas estatais, a reforma do estado, a reforma tributária e a reforma da previdência do setor privado[5]. Em junho de 1994, ainda durante o governo de Itamar Franco, o Ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso comanda a execução do Plano Real que consegue controlar o processo inflacionário e reduzir a inflação a níveis muito baixos, com isso consegue eleger-se presidente da república por dois mandatos consecutivos.

Fundamentos econômicos e o governo Lula

O Plano Real foi implantado em junho de 1994. Seu principal resultado foi a drástica redução da inflação, entretanto, sua concepção baseada em uma taxa de câmbio semi-fixa e supervalorizada, taxas de juros elevadas e forte ingresso de capitais estrangeiros, principalmente especulativo, estabeleceram seus próprios limites. As contradições internas desse plano aceleraram rapidamente o endividamento interno e externo, transformou o saldo positivo na balança comercial em déficit e aumentou o saldo negativo em transações corrente. Em conseqüência, o aumento da vulnerabilidade externa e as crises financeiras internacionais levaram-no ao colapso em fins de 1998.[2]

A reformulação da política macroeconômica foi baseada em três pontos: a implementação da política de metas de inflação, a mudança no regime cambial com taxa flutuante e as metas de superávit primário. São esses os novos elementos introduzidos na política econômica pelo governo de FHC e que são mantidos e aprofundados pelo governo Lula.

Em março de 1999, foi implementado o sistema de metas de inflação no Brasil com a utilização do Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) como meta e a substituição das Taxa Básica do Banco Central (TBAN) e Taxa de Assistência do Banco Central (TBC) por uma única taxa chamada de SELIC. Naquele momento, a taxa básica foi fixada em 45,0% ao ano, mas foi caindo rapidamente terminando o ano a 19,0%, para uma inflação, estimada pelo IPCA, de apenas 8,94%, em 1999.

A mudança na política cambial e o aprofundamento dos benefícios concedidos ao capital externo, associado ao crescimento acelerado das exportações devido à conjuntura internacional favorável dos últimos anos, permitiram que o Governo Lula conseguisse uma significativa redução na vulnerabilidade externa.[3] À primeira vista, todos os indicadores apresentados na tabela 1 são extremamente positivos, entretanto, nem tudo pode ser interpretado como resultado direto da política econômica.[4]



Tabela 1

Indicadores de vulnerabilidade externa

Indicadores
2000
2001
2002
2003
2004
2005
Dívida externa total/PIB (%)
36,02
41,18
45,87
42,41
33,29
21,28
Dívida externa total líquida/PIB (%)
28,41
31,92 
35,88 
 29,79
22,43 
12,69 
Serviço da dívida/PIB (%)
8,15
10,35
10,09
8,37
8,03
6,11
Serviço da dívida/Exportações (%)
89,08
90,64
76,80
58,07
50,32
41,14
Juros pagos ao exterior/PIB (%)
2,84
3,46
3,33
3,02
2,53
1,97
Transações correntes/PIB
-4,02
-4,55
-1,66
-0,82
1,94
1,78
Reservas internacionais/Dívida externa total (%)
15,22
17,08
17,95
22,94
26,29
31,75

Fonte: Bacen. Boletim do Banco Central do Brasil. Vários números. 

Desde o final do governo FHC, a dívida externa em percentagem do PIB caiu de 45,87 por cento para 21,28 por cento em dezembro de 2005. No mesmo período, o serviço da dívida externa caiu de 10,09 por cento do PIB para 6,11 por cento, e o pagamento de juros encolheu de 3,33 por cento para 1,97 por cento.

Os indicadores mais impressionantes do sucesso do governo na construção de seus fundamentos são as relações entre o saldo em transações correntes e o PIB, e o mesmo saldo e as exportações. Nos últimos três anos do governo Cardoso as transações correntes em percentagem do PIB foi negativa, mas mostrou uma tendência a melhorar e tornaram-se positivas nos primeiros três anos do governo Lula, confirmando assim a evidente redução na vulnerabilidade externa do Brasil.

No front fiscal, o governo Lula continuou e intensificou a política de criação de grandes excedentes aprovadas em 1999. O presidente começou trazendo a meta de 3,75 por cento acordado com o FMI, para 4,25 por cento do PIB. Nos anos seguintes, ele ultrapassou facilmente o maior superávit alcançado por Cardoso (3,89 por cento em 2002). Em 2004 o excedente atingiu 4,6 por cento do PIB e em 2005 subiu para 4,8 por cento. Mas desde que os pagamentos de juros ascenderam a 7,26 por cento e 8,13 por cento do PIB nos últimos dois anos, a dívida continua a crescer porque os excedentes, altos como têm sido, não foram suficientes para cumprir as obrigações. Assim, o Brasil incorreu nominalmente em um déficit de 3 por cento do PIB.

Quando fundamentos não ajudam o crescimento

Apesar de estar exibindo indicadores financeiros e variáveis econômicas bem mais favoráveis, de ter reduzido consideravelmente o grau de vulnerabilidade externa da economia e caminhar bem, na visão do mercado, no ajuste fiscal, o Brasil não tem se beneficiado dessas condições para os objetivos do crescimento econômico. Em 2005, o PIB cresceu apenas 2,3%, contra uma expansão de 4,3% registrada para a economia mundial. Na América Latina, que apresentou média de crescimento em torno da observada para o mundo, o Brasil só conseguiu melhor resultado do que o Haiti, um país mergulhado numa guerra civil que paralisou sua economia, para a qual se projetava expansão inferior a 1,5%. A Argentina, com um índice de crescimento de 9,1% no ano, a Venezuela, com 9%, e mesmo o México, com 3%, apesar de prejudicado pelos efeitos dos furacões na sua agricultura no último trimestre, confirmam que o Brasil não está conseguindo aproveitar a melhoria de seus fundamentos econômicos e nem o cenário externo favorável para reverter a trajetória de perda de importância relativa de sua economia em relação tanto ao mundo como à região.

Desde o seu lançamento, em 1994, o programa de estabilização, conhecido como Plano Real, tem se mostrado inimigo do crescimento econômico. Apenas nos seus dois primeiros anos de vida – 1994-1995 – o Brasil conseguiu superar a média de crescimento da economia mundial, como mostra a tabela 3.1. De lá para cá, situou-se sempre abaixo dessa média, aproximando-se desta apenas nos anos de 2000 e 2004, que foram marcados por um cenário externo excepcionalmente favorável. Em todos os demais, apresentou crescimento medíocre ou ficou estagnado como nos anos de 1998, 1999 e 2003.

Tabela 2

Taxas de Crescimento do PIB no Brasil e na economia mundial - 1994-2005 

Ano
Taxa de crescimento do PIB (%)
Brasil
Economia Mundial
1994
5,9
3,8
1995
4,2
3,6 
1996
2,7
4,1 
1997
3,3
4,2
1998
0,1
2,8
1999
0,8
3,7
2000
4,4
4,7
2001
1,3
2,4
2002
1,9
3,0
2003
0,5
4,0
2004
4,9
5,1
2005
2,3
 4,3

Fonte: CNI. Sem crescer, não há saída. Revista da CNI. São Paulo, CNI, no. 62, abril de 2006, p.16-21 

Não há diferenças significativas, neste período, do ponto de vista do crescimento, entre os governos que comandam o país. Como mostra a tabela 3.2, no primeiro mandato do governo Fernando Henrique Cardoso (1995-1998), a média de crescimento anual foi de 2,6%, enquanto no segundo (1999-2002) essa média caiu para 2,1%. Nos três anos do governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva o crescimento médio alcançou 2,6%, não devendo ser alterado de forma significativa com a expansão projetada em 3% para 2006. Na média dos últimos dez anos (1996-2005), o crescimento de apenas 2,2%, que pode ser considerado um nível medíocre para o país superar seus desequilíbrios, atender as necessidade de emprego da população e melhorar suas condições de vida.

Tabela 3

Brasil: Taxas de crescimento por governo

Anos/períodos
Governo
Taxas de crescimento do PIB (%)
1995-1998
Fernando Henrique Cardoso
2,6
1999-2002
Fernando Henrique Cardoso
2,1
1995-2002
Fernando Henrique Cardoso
2,3
2002-2005
Luiz Inácio Lula da Silva
2,6
2006 – projeção
Luiz Inácio Lula da Silva
3,0
1996-2005
FHC e Lula
2,2

Fonte: IBGE 

Em favor do governo Fernando Henrique Cardoso pode-se argumentar que este enfrentou uma série de intempéries econômicas internacionais e internas nos seus dois mandatos, que prejudicaram os objetivos do crescimento, embora não se possa atribuir exclusivamente a esses acontecimentos o insucesso de sua política econômica neste campo. No primeiro, as crises financeiras que se abateram sobre as economias mexicana (1995), do sudeste asiático (1997) e da Rússia (1998), que conduziram à falência e desvalorização do Real, em 1999. No segundo, a desaceleração da economia norte-americana, os ataques terroristas nos EUA (2001), a crise argentina e a crise na oferta de energia no país, ambas também em 2001. No governo Luiz Inácio Lula da Silva, contudo, tirante o primeiro ano (2003) em que a desconfiança em sua política econômica não havia sido desfeita, o Brasil navegou em águas tranquilas e favoráveis do cenário internacional e, contando também com o apoio do mercado e das instituições financeiras internacionais, conseguiu melhorar consideravelmente, como visto na seção anterior, os indicadores financeiros, fiscais e de risco do país, o que o tem levado a acenar, desde que assumiu o governo, com a promessa de que ingressaremos num longo e permanente ciclo de crescimento. Até o momento, contudo, o fato é que, apesar de todas essas melhorias a economia se encontra com o crescimento travado, sem perspectivas de vislumbrar, no curto prazo, uma retomada mais forte e firme de seu ritmo.

Tabela 4

PIB per capita: Taxa média anual de crescimento entre 1996/2005 e Valor em 2004 (US$)

Países
Crescimento médio anual (1996/2005) (%)
Valor em 2004 (US$)
Grupos
País
G7
Estados Unidos
2,2
39.710
Japão
1,0
30.040
Alemanha
1,2
27.950
Reino Unido
2,4
31.460
França
1,7
39.320
Itália
1,2
27.860
Canadá
2,4
30.660
Outras economias avançadas
Austrália
2,4
29.200
Coréia do Sul
3,7
20.400
Espanha
3,1
25.070
Portugal
1,6
19.250
Emergentes:
Ásia
China
7,7
5.530
Índia
4,4
3.100
Europa
Polônia
4,1
12.640
Rússia
4,3
9.620
África
África do Sul
1,7
10.960
América Latina
Argentina
09
12.460
Brasil
0,7
8.020
Chile
2,8
10.500
México
2,1
9.590
Venezuela
-0,5
5.760

Fonte. FMI e Banco Mundial. In: CNI Informa - Notas Econômicas. São Paulo, CNI, ano 7, n. 89, 15 de março de 2006.

Os dados contidos na tabela 4 revelam, com maior clareza como, em virtude dessa performance, o Brasil tem ficado para trás em relação às economias desenvolvidas, às emergentes e, em boa medida, às da América Latina. Nos últimos dez anos (1996-2005), a média de crescimento de seu PIB per capita foi de apenas 0,7% ao ano, apenas superior à observada para a Venezuela, que registrou taxa negativa de – 0,5%. Todos os demais países arrolados na tabela apresentaram crescimento superior, destacando-se a China (7,7%), a Índia (4,4%) e as economias emergentes da Europa, como a Polônia e a Rússia. Mesmo em relação às economias desenvolvidas, que convivem com taxas mais modestas de crescimento, o desempenho do Brasil tem sido pífio, situando-se, em alguns casos, em torno de um terço ou um quarto das que foram por elas alcançadas. Com isso, não somente tem se ampliado a distância que separa o país das nações desenvolvidas, em termos de renda per capita, como dele se aproximam, rapidamente, países como a China e a Índia, que contam com populações superiores em mais de cinco vezes.

Ora, se os fundamentos econômicos são, de fato, sólidos como vem sendo defendido pelo mercado e pelos gestores da política econômica, não se justifica o país abdicar do crescimento e não aproveitar, também como as demais economias emergentes, os ventos favoráveis da economia mundial. Afinal, a construção de fundamentos econômicos sólidos visa exatamente criar as condições para o crescimento sustentado. A menos que a estabilidade monetária alcançada no país tenha se transformado em um objetivo em si mesmo ou que estes fundamentos não sejam assim tão sólidos como se apregoa, o país estaria novamente perdendo a oportunidade de aproveitar essas condições para avançar na correção de seus desequilíbrios e de muitos de seus problemas.
As travas do crescimento: O modelo de estabilização

Para se entender as razões que têm inibido o crescimento e impedido vôos mais altos dos governantes brasileiros nessa direção, é necessário lançar um olhar para as peças que compõem a arquitetura do modelo de estabilização, o Plano Real, desde a sua implementação em 1994: nele é possível identificar a armadilha em que o país se viu enredado para garantir a estabilidade monetária, em detrimento do crescimento econômico.

Em sua primeira fase (1994-1998), o plano, para ser vitorioso no combate à inflação, valeu-se, na ausência de uma âncora fiscal confiável, da combinação de um câmbio sobrevalorizado, que cumpriu o papel de âncora nominal dos preços, com a manutenção de elevadas taxas de juros voltadas para manter desaquecida a demanda interna e garantir a atração de capitais externos para o país, ao mesmo tempo em que promoveu uma rápida abertura comercial, visando também obter ganhos no front inflacionário, embora com prejuízos para a produção nacional.

Com esse mix de medidas, a inflação desfaleceu e caiu para níveis moderados (entre 5% e 10% ao ano), mas seus resultados foram desastrosos para as contas externas e para o aumento dos desequilíbrios fiscais do setor público: de um equilíbrio na balança de conta-corrente obtido em 1994, o país amargou um déficit de US$ 33 bilhões em 1998 e viu a relação Dívida Líquida do Setor Público/PIB evoluir de 30% para 43% (treze pontos percentuais do PIB em apenas 4 anos!).

Diante desses números, alguns analistas não têm dúvidas em afirmar que a estabilidade só foi alcançada à custa de um brutal endividamento, o qual limitaria suas possibilidades de crescimento nos períodos seguintes. Com o aumento de sua vulnerabilidade externa, o país tornou-se altamente sensível ao efeito-contágio das crises externas, que se abateram sobre a economia mundial a partir da metade da década de 1990, obrigando-o a promover fortes ajustamentos em sua economia. Com a crise da economia russa, em 1998, e a rápida fuga de capitais externos do país, não lhe restou outra alternativa senão a de recorrer ao FMI e sujeitar-se a adotar um novo modelo de estabilização, que, pela sua arquitetura, se revelaria ainda mais desfavorável para os objetivos do crescimento.

Na sua segunda fase, que se inicia em 1999 e prossegue até os dias atuais, as peças do modelo foram ajustadas para estancar e reverter a trajetória de crescimento da dívida, e assegurar, ao mesmo tempo, a estabilidade de preços. No novo modelo, o câmbio tornou-se flutuante, a âncora de preços deslocou-se para o regime de metas inflacionárias estabelecidas pelo Banco Central (inflation targenting) e o compromisso com a geração de crescentes e elevados superávits fiscais primários foi nele incluído para garantir uma trajetória mais confiável para a relação dívida/PIB, com o pagamento de parcela de seus encargos para os credores do Estado.

Eleitas como prioridades absolutas neste modelo, a estabilidade monetária e o controle da dívida não deixam muito espaço para o crescimento econômico, dada a interação de suas peças, a não ser em períodos em que a conjuntura internacional se mostre extremamente favorável, como nos últimos anos. Mesmo neste caso, se a política econômica não for suficientemente capaz de aproveitar essa oportunidade — como tem ocorrido no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva —, primando-se pelo conservadorismo — ou pelo medo de crescer! —, o país continuará fadado a conviver com baixas e medíocres taxas de crescimento.

O fato de o modelo possuir um forte viés anti-crescimento explica-se por que os instrumentos que são manejados para viabilizar o atingimento das metas de inflação e da relação dívida/PIB asfixiam a atividade produtiva e operam contra os investimentos – públicos e privados –, aumentando o “custo-Brasil” e impedindo a remoção de gargalos estruturais da economia brasileira, o que é indispensável para a criação das condições necessárias para o crescimento sustentado.

São três, basicamente, os instrumentos que têm sido utilizados para garantir o atingimento dessas metas: a taxa de juros, a carga tributária e os gastos públicos.

A manutenção de elevadas taxas de juros reais (atualmente em torno de 11% ao ano, a mais alta do mundo) inibe o consumo, desestimula o investimentos e, também importante, garante um acentuado e permanente ingresso de capitais externos na economia brasileira, em busca de lucros rápidos e fáceis, valorizando a moeda nacional (o Real) e prejudicando o setor exportador. Embora este ainda venha apresentando um excelente desempenho, beneficiado pela continuidade do crescimento da economia mundial, vários setores já enfrentam dificuldades para sustentar suas atividades com a situação atual do câmbio, como os de calçados, vestuário e até mesmo o automobilístico, entre outros. Os sinais de que o crescimento da economia mundial pode se desacelerar nos próximos anos indicam que o Brasil pode enfrentar dificuldades com um dos poucos setores que ainda tem conseguido garantir algum dinamismo para sua economia. De quebra, e nem por isso menos importante, as elevadas taxas de juros contaminam e expandem a dívida pública, exigindo esforços ainda maiores na geração de superávites primários para evitar seu descontrole.

A elevação da carga tributária, instrumento preferencial que tem sido utilizado pelo governo, desde 1999, para garantir a geração de superávites primários, aumenta o “custo-Brasil”, reduz a lucratividade dos investimentos privados e inibe o mercado interno, ao reduzir a renda disponível da população. Não bastasse a forte elevação que conheceu nos últimos seis anos – entre 1998 e 2004 a carga tributária brasileira deu um salto de 29,7% para 35,9% do PIB – sua composição é ainda mais perversa para o crescimento econômico: contando com cerca de 80% de impostos indiretos em sua estrutura, o que torna o sistema tributário um forte instrumento de concentração de renda, cerca de 35% de toda arrecadação provêm de impostos cumulativos, também conhecidos como impostos “em cascata”, prejudiciais para a tão cara questão da competitividade no mundo globalizado e para a integração econômica regional.

O terceiro instrumento de que tem lançado mão o governo para garantir a geração de superávites primários – os cortes de gastos públicos – não alimenta apenas as forças da recessão, mas impede que o governo realize os investimentos em infraestrutura econômica para remover os gargalos estruturais da economia que poderiam melhorar as expectativas do setor privado e dar um novo impulso aos seus investimentos, se convencido de que não encontraria rapidamente limites à expansão de sua capacidade produtiva. Isso porque, com o orçamento público, comprometido com despesas de caráter obrigatório e com o compromisso de pagamento de parcela expressiva dos juros da dívida pública, os cortes de gastos têm se centrado, predominantemente, nos investimentos públicos e em despesas sociais que não contam com receitas protegidas por alguma norma constitucional ou legal, como se verifica para os casos dos setores da saúde e da educação, por exemplo. Sem investimentos públicos, que atualmente estão reduzidos a algo em torno 0,5% do PIB não há como gerar um estado de confiança indispensável para a retomada dos investimentos privados e para o crescimento sustentado.

Não sem razão, o Brasil vem apresentando as mais baixas taxas de investimento no mundo de acordo com levantamento realizado pela Confederação Nacional das Indústrias (CNI) apresentados na tabela 5. Como se percebe na tabela, enquanto se registrou para a economia mundial uma taxa média de investimento de 22,1% do PIB, no período 1995/2004, a observada para o Brasil não foi além de 19,3%. Essas diferenças se tornam ainda mais acentuadas quando se considera esses países por 13 blocos: as economias emergentes da Ásia investiram, em média, 32,6% ao ano neste período, seguidos pelos países do Leste e do Centro da Europa, com 23,9%. Apenas em relação aos resultados atingidos pela América Latina e África, o Brasil apresenta-se mais próximo, mas, ainda assim, em posição inferior.

Ora, com baixo nível de investimentos não há como crescer de forma mais expressiva a longo prazo. E mais grave: sem aumento na capacidade de oferta, qualquer pressão de demanda dele resultante termina gerando pressões adicionais sobre os preços, exigindo que a recuperação seja abortada para impedir o comprometimento das metas de inflação, como ocorreu no Brasil, por exemplo, em 2000 e 2004. Os instrumentos do modelo, neste caso, terminam sendo acionados e retorna-se ao circulo vicioso da armadilha da estabilização: elevação dos juros, desaquecimento do consumo, paralisia dos investimentos, contaminação da dívida pública, aumento do superávit primário, com mais cortes de gastos e ampliação da carga tributária, produzindo novo período de baixo crescimento ou de estagnação.

Para o mercado e os responsáveis pela política econômica, a manutenção dessa estratégia, por tempo prolongado, poderá permitir, ao país, colher os frutos do crescimento sustentado e compensar os elevados custos impostos à sociedade. É uma questão de fé, da qual continua se beneficiando – e muito! – o capital financeiro. Para os críticos deste modelo, sem alterações e mudanças importantes em sua arquitetura, é mais fácil que produza a “paz dos cemitérios”, com o progressivo enfraquecimento do tecido econômico, o aumento do desemprego, da pobreza e da exclusão social. Por enquanto, os resultados dão razão aos últimos: depois de dez anos de baixo crescimento, não se vislumbra possibilidades de reversão dessa trajetória num futuro próximo, enquanto o controle da dívida pública, o principal objetivo perseguido com o modelo, tem se mantido insistentemente em níveis superiores a 50% — e isso sem enfrentar nenhuma crise externa nos últimos anos.

Conclusão


Nós tentamos mostrar que a política macroeconômica seguida pela administração Lula tem sido bem sucedida e melhorou os fundamentos da economia brasileira nos anos desde o fim do governo FHC. No entanto, a estrutura interna do modelo econômico tem provocado um fraco crescimento e lucros fantásticos para os financiadores e tornou impossível esperar crescimento sustentado - supondo que isso é possível dentro da atual ordem capitalista mundial.

Nos primeiros três anos do governo Lula, foram pagos R$ 263.3 bilhões para rolar a dívida externa. No mesmo período, apenas um décimo desse montante foi gasto com o Programa Fome Zero, criado para alimentar os mais pobres dos pobres. O departamento nacional de estatísticas mostrou que houve um ligeiro declínio na pobreza no país por causa do programa. Mas isso não pode ser visto como uma mudança nas seculares taxas catastróficas de desigualdade social no Brasil. Nós tentamos mostrar aqui que a mudança fundamental na política macroeconômica parece descartar uma política de crescimento para o bem. E crescimento, crescimento estável ao longo do tempo, é a única forma de criar emprego e renda, e reduzir a pobreza e a desigualdade social no Brasil.

Notas

1. Ipeadata, http://www.ipeadata.gov.br.

2. Para assegurar a vitória de Fernando Henrique Cardoso contra Lula, o FMI e a comunidade financeira internacional organizaram um gigantesco empréstimo de US$ 41,6 bilhões ao Brasil. Desse total, US$ 18,1 bilhões do próprio Fundo, mais de 600% da cota do Brasil, US$ 9,0 bilhões do Banco Mundial e do BID e US$ 14,5 bilhões dos Estados Unidos, Japão e Canadá.

3. Em 15 de fevereiro de 2006, o Presidente Lula assinou a Medida Provisória 281, que isentou do Imposto de Renda e da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira o capital estrangeiro aplicados em títulos públicos. Ver também, ASSIS, J. Carlos de. Isenção de imposto para especulador estrangeiro, http://www.desempregozero.org.br/editoriais/insencao_de_imposto.php.

4. Grande parte da melhoria deve ser creditada à evolução das taxas de câmbio. Entre 1999 e 2002, a forte desvalorização da moeda brasileira diminuiu o valor do PIB do país em dólares, fazendo com que os indicadores piorassem muito. Desde 2003, o real ganhou 40 por cento em valor frente ao dólar e os indicadores melhoraram substancialmente. Isso explica por que o Brasil saltou de décimo quarto a décimo primeiro no ranking internacional das economias, mesmo sem mostrar muito crescimento real.

Sobre os autores

Fabrício Augusto de Oliveira (fabricioaugusto@hotmail.com) teaches economics at the Fundação João Pinheiro. Paulo Nakatani (pnakatani@uol.com.br) teaches economics and social policy at the Federal University of Espírito Santo.

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