27 de novembro de 2017

O argumento para não nascermos

O filósofo anti-natalista David Benatar argumenta que seria melhor se ninguém mais tivesse filhos.

Joshua Rothman


Filósofos antinatalistas afirmam que a vida é tão dolorosa que os humanos não deveriam se reproduzir. Fotografia da ESA / eyevine / Redux

Tradução / David Benatar deve ser o filósofo mais pessimista do mundo. Como “anti-natalista”, ele acredita que a vida é tão ruim e tão dolorosa que os humanos fariam melhor em deixar de ter filhos por motivos de compaixão. “Embora boas pessoas façam grandes esforços para proteger suas crianças do sofrimento, poucos parecem perceber que a primeira (e única) maneira garantida de prevenir todo o sofrimento de seus filhos é não trazer essas crianças à existência”, escreveu ele num livro de 2006 intitulado Better Never to Have Been: The Harm of Coming Into Existence [Melhor nunca ter sido: os danos de vir à existência]. Do ponto de vista de Benatar, reproduzir-se é intrinsecamente cruel e irresponsável — não apenas porque um destino horrível pode ocorrer a qualquer um mas porque a própria vida é “permeada por ruindade”. Por esse motivo, em parte, ele acredita que o mundo seria um lugar melhor se a vida senciente desaparecesse completamente.

Para uma obra de filosofia acadêmica, Better Never to Have Been encontrou uma audiência incomumente ampla. O livro tem 3,9 estrelas no GoodReads, onde um resenhista o considera “leitura obrigatória pro pessoal que acha que a procriação é justificável.” Há alguns anos Nic Pizzolatto, roteirista por trás de True Detective, leu o livro e fez um personagem anti-natalista e niilista, Rust Cohle, interpretado por Matthew McConaughey. (“Acho que a consciência humana é um trágico equívoco da evolução”, diz Cohle). Quando Pizzolatto mencionou o livro à imprensa, Benatar, que considera suas visões mais ponderadas e humanas que as de Cohle, saiu das sombras de uma vida reclusiva para esclarecer sua postura em entrevistas. Agora, ele já publicou The Human Predicament: A Candid Guide to Life’s Biggest Questions [O Dilema Humano: um cândido guia às grandes questões da vida], onde refina, expande e contextualiza seu pensamento anti-natalista. O livro abre com uma epígrafe dos Quatro Quartetos de T.S. Eliot — A Humanidade nunca pode suportar muito bem a realidade — e promete oferecer respostas “sombrias” a perguntas como “Nossas vidas têm sentido?” e “Não seria melhor se pudéssemos viver para sempre?”

Nascido na África do Sul em 1966, Benatar é chefe do Departamento de Filosofia da Universidade da Cidade do Cabo, onde também dirige o Centro de Bioética da universidade, que foi fundado por seu pai, Solomon Benatar, especialista em saúde mundialmente famoso — Benatar dedicou Better Never to Have Been “aos meus pais, mesmo que eles tenham me trazido à existência”. Além desses simples fatos, há pouca informação sobre ele online. Não existem fotos de Benatar na internet e os vídeos de suas palestras no YouTube consistem apenas de slides de PowerPoint. Um vídeo, intitulado “Qual a aparência do David Benatar?” dá um zoom numa fotografia granulada tirada do fundo de uma sala de aula, até que aparece uma seta com a inscrição “David Benatar”, que indica uma cabeça abstrata, pixelada, de um homem com um boné de beisebol.

Após concluir a leitura de The Human Predicament, escrevi a Benatar para perguntar se poderíamos nos encontrar. Ele concordou prontamente mas depois de ler algumas de minhas outras matérias, acrescentou uma nota:

Percebo que seu objetivo é retratar a pessoa que você entrevista, além de seu trabalho. Um fato pertinente sobre mim é que eu sou uma pessoa bem privada e ficaria mortificado se fosse descrito com o tipo de detalhe que observei nas outras entrevistas. Assim, eu declinaria de responder perguntas que considero pessoais demais (e ficaria igualmente desconfortável com o uso de uma fotografia minha). Vou entender perfeitamente se você não quiser prosseguir com a entrevista sob essas circunstâncias. Se, entretanto, você se contentar em conduzir uma entrevista que reconheça esse aspecto de mim, ficaria agradecido.

Sem sombra de dúvidas, Benatar é de uma personalidade privada por natureza. Mas seu anonimato também tem um propósito: impedir os leitores de psicologizarem-no e atribuírem suas visões a uma depressão, um trauma ou qualquer outro aspecto de sua personalidade. Ele deseja que seus argumentos sejam confrontados por si mesmos. “Às vezes me perguntam: ‘Você tem filhos?’” — contou-me mais tarde, falando sempre calma e espaçadamente num sotaque sul-africano — “E eu respondo: ‘Não vejo como isso é relevante. Se eu tiver, sou um hipócrita, mas meus argumentos ainda poderiam estar certos.’” Quando me declarou ser anti-natalista desde que era “bem jovem”, perguntei o quão jovem. “Criança”, disse, depois de uma pausa e com um sorriso desconfortável. Essa era exatamente uma daquelas perguntas pessoais que ele preferia não responder.

Benatar e eu nos encontramos no World Trade Center, onde a The New Yorker mantém seus escritórios. Ele é pequeno e barbeado, com uma cara de elfo e muito bem-vestido com um conjunto de suéter e calças lavanda. Eu o reconheci pelo seu boné de beisebol. No 64º andar do edifício, nos acomodamos num par de cadeiras almofadadas arranjadas próximas das janelas com vistas panorâmicas de Manhattan: o rio Hudson à esquerda, o rio East à direita e a silhueta dos arranha-céus do meio da cidade.

Cientistas sociais frequentemente perguntam às pessoas sobre seus níveis de felicidade. Uma pesquisa típica pede aos participantes para dar uma nota para suas vidas numa escala de 1 (“a pior vida possível para você”) a 10 (“a melhor vida possível para você”). Segundo o Relatório de Felicidade Mundial de 2017, os americanos entrevistados entre 2014 e 2016 deram a suas vidas uma nota média de 6,99 — menos feliz que a vida dos canadenses (7,32) mas mais feliz que a dos sudaneses (4,14). Outro levantamento pergunta: “Considerando todas as coisas, você diria que é (I) bem feliz; (II) um tanto feliz; (III) não muito feliz ou (IV) nem um pouco feliz?”. Nos últimos anos, em países como Índia, Rússia e Zimbábue, as respostas a essa questão tendem a ser mais positivas. Em 1998, 93% dos americanos consideravam-se bem felizes ou um tanto felizes. Já em 2014, após a Grande Recessão, esse número caiu, ainda que ligeiramente, para 91%.

Em resumo, as pessoas costumam dizer que a vida é boa. Para Benatar, elas estão enganadas. “A qualidade da vida humana é, ao contrário do que muitos pensam, na realidade bastante lamentável.”, afirma em The Human Predicament. O autor enumera uma lista crescente de males, feita para comprovar que as vidas das pessoas felizes são piores do que elas imaginam. Estamos, ele escreve, quase sempre famintos ou sedentos e quando não estamos, devemos ir ao banheiro. Quase sempre experimentamos um “desconforto térmico” — nos sentimos quentes demais ou frios demais — ou então estamos cansados sem poder tirar uma soneca. Sofremos com coceiras, alergias, resfriados, dores menstruais ou o calorão da menopausa. A vida é uma procissão de “frustrações e irritações”: ficar preso no trânsito, esperar na fila, preencher formulários. Forçados a trabalhar, geralmente consideramos nossos trabalhos cansativos e mesmo “aqueles que apreciam seu trabalho podem ter aspirações profissionais que continuam irrealizadas.” Muitas pessoas solitárias continuam solteiras enquanto os que se casam brigam e se divorciam. “As pessoas querem ser, parecer e sentir-se mais jovens e mesmo assim envelhecem irremediavelmente”, escreve Benatar, acrescentando em seguida:
Elas mantém grandes expectativas por seus filhos e essas são geralmente quebradas quando, por exemplo, a criança torna-se um desapontamento por um motivo ou outro. Quando os que estão ao nosso lado sofrem, sofremos só de ver. Quando morrem, ficamos órfãos.

Uma resposta grosseira a observações como essa seria: “Se a vida é tão ruim, por que você não se mata?”. Benatar dedica um capítulo de 43 páginas para provar que a morte só piora os nossos problemas. “A vida é ruim, mas a morte também é”, conclui. “Evidentemente, a vida não é ruim de todas as formas. Nem é a morte ruim em todos os casos. Entretanto, ambas são, em aspectos cruciais, terríveis. Juntas, elas constituem um torno existencial — o mecanismo perverso que executa os nossos dilemas.” Para ele, é melhor evitar entrar em um dilema desde o princípio. As pessoas às vezes se perguntam se vale a pena viver. Benatar considera melhor se perguntar questões mais sutis: Vale a pena continuar a vida? (Sim, porque a morte é ruim). Vale a pena começar a vida? (Não)

Benatar está longe de ser o único anti-natalista. Livros como Every Cradle is a Grave [Todo Berço é um Túmulo], de Sarah Perry e The Conspiracy Against the Human Race [A Conspiração contra a Raça Humana], de Thomas Ligotti, também têm seus seguidores. Existem muitos “anti-natalistas misantrópicos”: o Movimento pela Extinção Humana Voluntária, por exemplo, tem milhares de membros que acreditam que, por razões ambientais, os seres humanos deveriam deixar de existir. Para os anti-natalistas misantrópicos o problema não é a vida e sim nós mesmos. Benatar, ao contrário, é um “anti-natalista compassivo” e seu pensamento é paralelo ao do filósofo Thomas Metzinger, que estuda consciência e inteligência artificial. Metzinger defende um anti-natalismo digital, argumentando que seria errado criar programas de computador artificialmente conscientes porque ao fazer isso aumentaríamos a quantidade de sofrimento no mundo. O mesmo pode-se dizer dos seres humanos.

Como um boxeador que treinou seus contragolpes, Benatar antecipa uma variedade de objeções. Muitas pessoas sugerem que as melhores experiências da vida — o amor, a beleza, a descoberta, etc. — compensam as piores. Diante disso, Benatar replica que a negatividade da dor é maior que a positividade do prazer. A dor dura mais: “Existe uma coisa chamada dor crônica mas nada como um prazer crônico”, afirma. A dor também é mais poderosa: você trocaria cinco minutos da pior dor imaginável por cinco minutos do maior dos prazeres? Além disso, num nível mais abstrato, podemos considerar que perder boas experiências não é tão ruim quanto passar por coisas ruins. “Para uma pessoa que existe, a presença de uma coisa ruim é ruim e a presença de algo bom é bom.”, explica Benatar, que prossegue: “Mas compare isso com um cenário no qual tal pessoa jamais existiu: aí, a ausência do que é ruim seria bom mas a ausência do que é bom não seria ruim, porque não haveria ninguém para ser impedido de ter coisas boas.” Essa assimetria, continua o filósofo, “coloca as cartas completamente contra a existência” pois sugere que “todos os desgostos e todas as misérias e todos os sofrimentos poderiam acabar sem qualquer custo real.”

Algumas pessoas argumentam que ao falar de dor e prazer perde-se o foco: mesmo se não for boa, a vida é significativa. A isso, Benatar responde que, de fato, a vida humana é cosmicamente insignificante: nós existimos num universo ou talvez mesmo num multiverso indiferente e estamos sujeitos a forças naturais cegas e despropositadas. Na ausência de um sentido cósmico, só nos restam sentidos “terrestres” — e, conforme o autor, há “algo de circular em argumentar que o propósito da existência humana é que os indivíduos humanos deveriam ajudar uns aos outros.” Benatar também rejeita o argumento de que o lutar e o sofrer, por si mesmos, podem dar sentido à existência. “Eu não acredito que o sofrimento nos dá sentido”, disse ele. “Eu penso que as pessoas tentam buscar sentido no sofrimento porque de outro modo o sofrer seria tão gratuito quanto insuportável.” Ele até reconhece que “Nelson Mandela criou um sentido pelo meio como reagiu diante do sofrimento — mas isso não é defender as condições na qual ele viveu.”

Perguntei a Benatar por que a resposta adequada aos seus argumentos não seria tentar fazer do mundo um lugar melhor. A possível criação de um mundo melhor no futuro, respondeu-me, dificilmente justifica o sofrimento das pessoas no presente. De qualquer modo, um mundo dramaticamente aperfeiçoado é impossível. “Isso nunca vai acontecer. As lições parecem nunca ser aprendidas, parecem nunca ser absorvidas. Talvez alguém aqui e ali possa aprendê-las mas você ainda verá essa loucura [que é o mundo] ao seu redor.”, disse Benatar. “Você pode até dizer: ‘Pelo amor de Deus! Vocês não percebem que estão cometendo os mesmos erros que os humanos já cometeram? Custa fazer as coisas de modo diferente?’ Só que isso não vai acontecer.” Em última instância, diz ele, “os desgostos e sofrimentos estão arraigados demais na estrutura de vida senciente para serem eliminados.” Nesse ponto, sua voz se torna mais urgente e seus olhos ficam esbugalhados: “Somos obrigados a aceitar o que é inaceitável. É inaceitável que as pessoas (e os outros seres) tenham que passar pelo que passam sem ter quase nada o que fazer a respeito.” Numa conversa normal, eu teria murmurado algum consolo. Nesse caso, fiquei sem saber o que dizer.

Benatar escolheu um restaurante restaurante vegano para o almoço e saímos a pé até lá, caminhando ao longo do Hudson. No fim da Vesey Street, passamos pelo Memorial da Fome Irlandesa — um quarto de acre [cerca de 1000 metros quadrados] de solo transplantado da Irlanda em 2001 para relembrar os milhões que sucumbiram durante da Grande Fome da Irlanda. A pedido de Benatar, passamos ali alguns minutos, explorando e lendo os relatos históricos apresentados no portal. A fome durou sete anos e um homem, ao recordá-la, escreveu: “Ela habita em minha memória como uma longa noite de amargura.”

O dia estava ameno. No Battery Park havia mães em piqueniques com suas criancinhas pela grama. Um grupo de colegas de trabalho jogava tênis-de-mesa. Perto da água, casais passeavam de mãos dadas. Na ciclovia, passavam os corredores — homens descamisados e de peitos musculosos e mulheres em roupas chiques de ginástica.

“Você sente uma dissonância entre suas crenças e seu ambiente?”, perguntei. “Não sou contra as pessoas se divertirem nem nego que a vida contém coisas boas”, disse Benatar, rindo. Dei uma olhada e vi que ele havia removido seu suéter e agora estava em mangas de camisa. Seu boné parecia intocado. Nós alcançamos o ponto onde, oito semanas mais tarde, um homem de 29 anos iria matar oito pessoas e ferir outras 11 com uma van.

Como todo mundo, Benatar sabe que suas opiniões são perturbadoras. Ele mantém, portanto, uma ambiguidade sobre compartilhar suas ideias. Ele não seria de entrar numa igreja, dirigir-se ao púlpito e declarar que Deus não existe. Similarmente, ele não gosta da ideia de ser um embaixador do anti-natalismo. A vida, diz ele, já é desagradável o bastante. Ele conforta-se justificando que, como seus livros são filosóficos e acadêmicos, serão lidos apenas pelos que os procuram. Ele sabe que há leitores gratos por encontrar seus pensamentos secretos expressados. Um homem com vários filhos leu Better Never... e depois disse a Benatar que acreditava que ter tido eles havia sido um terrível engano. Pessoas que sofrem de terríveis aflições mentais e físicas escrevem-lhe para dizer que desejariam jamais ter existido. Ele também recebe cartas de pessoas que compartilham de suas visões mas são paralisadas por isso. “Eu me encho de tristeza por pessoas como essas”, disse, em voz baixa. “Elas têm uma visão precisa da realidade e estão pagando um preço por isso.” Perguntei a Benatar se ele alguma vez já considerou seus próprios pensamentos avassaladores. Ele sorriu de modo desconfortável — era outra questão pessoal — e disse que escrever ajuda.

Ele não imagina que o anti-natalismo será amplamente adotado: “isso vai contra muitos impulsos biológicos”. Ainda assim, ele têm um quê de esperança: “Diante da loucura do mundo como um todo, o que você ou eu podemos fazer?”, disse, enquanto caminhávamos. Nada, “mas cada casal ou cada pessoa pode decidir não ter um filho. Evita-se assim uma imensa quantidade de sofrimento, o que é tudo pelo bem.” Quando os amigos têm filhos, ele se vê medindo suas palavras. “Sinto-me dilacerado”, confessa. Ter um filho é “bastante terrível, dado o dilema no qual ele vai se encontrar”. Por outro lado, o “otimismo faz a vida ser mais suportável.” Há alguns anos, quando uma colega filosofa anunciou que estava grávida, a resposta de Benatar foi o mutismo. “Vamos — ela insistia — você tem que estar feliz por mim”. Benatar consultou sua consciência e respondeu: “Eu tô feliz — por você.”

No almoço, nos sentamos perto de uma menininha e da mãe dela. A garota tinha uns 8 anos, usava um vestido e carregava um livro. “Você quer levar elas para casa?”, perguntou a mãe, apontando para algumas batatas fritas. Sim, respondeu a menina. Minha conversa com Benatar continuava mas eu achei difícil falar sobre anti-natalismo ao lado de uma mãe e sua filha. Passamos a maior parte do nosso almoço discutindo amigavelmente sobre nossos hábitos de trabalho. Na rua, trocamos um aperto de mãos. “Vou andar por aí mais um pouco”, despediu-se Benatar, que queria passear por West Village antes de ir ao aeroporto. Eu fui para o sul e, perto do World Trade Center, desci dentro do Oculus, a vasta e sepulcral praça e estação ferroviária que substituiu a destruída nos ataques de 11 de setembro. Com seu teto agudo e suas costelas de mármore branco, é um misto de esqueleto e de catedral. De pé, na escada rolante, assisti uma mulher que tinha uma jaqueta num braço e brigava para vestir o outro. Um homem de negócios obeso, fones de ouvido metidos nas orelhas, passou depressa ao meu lado, acertando-me com sua maleta. Ao chegar lá embaixo, ele ajudou a mulher com o casaco e ela pode terminar de vesti-lo.

Joshua Rotman é editor do arquivo da “The New Yorker”. Ele contribui frequentemente para a revista, onde escreve artigos sobre livros e ideias.

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