14 de junho de 2017

O lamentável declínio das utopias espaciais

Por que apenas os libertários fantasiam sobre o espaço hoje em dia?

Adrian Rennix

Current Affairs

Ilustração: Mike Freheit / Current Affairs

Tradução / Star Trek é um daqueles programas de TV cuja premissa básica seria horrível se o show não estivesse tão comprometido com seu próprio otimismo. Olhando superficialmente, é difícil imaginar como alguém ficaria são em uma nave estelar. Os personagens de Star Trek estão constantemente voando cegamente direto para algum novo inferno. Literalmente em cada canto do universo que visita, a Starfleet encontra alguma merda que desafia todo o conhecimento científico existente. Os membros da tripulação sofrem rotineiramente trocas de corpos, lavagens cerebrais, possessões por formas de vida extraterrestres, implantes de memórias falsas. Óh, e a maioria dos membros da tripulação trazem suas famílias inteiras a bordo, então durante os combates semanais da nave contra a morte, todos eles precisam lidar com o conhecimento de que seu cônjuge e filhos quase certamente serão queimados vivos ou sufocados no vácuo do espaço. Todos naquele programa devem estar à beira de uma psicose completa, mas de alguma forma, todos parecem bastante satisfeitos com suas vidas. O nível de paz sobrenatural dos personagens diante do desconhecido é provavelmente uma das principais razões pelas quais Star Trek é extraordinariamente reconfortante de se assistir.

Outra razão pela qual Star Trek é tão reconfortante é o fato de que não tem nenhum maldito advogado no espaço.

Isso não é completamente verdade, há sim alguns advogados no espaço. Porém, não há advogados afiliados à Federação Unida dos Planetas, a grande e alegre aliança humanitária das civilizações planetárias comprometidas com a paz universal, o intercâmbio cultural e a acumulação de conhecimentos científicos. Existem alguns conselheiros jurídicos militares itinerantes, mas não há nenhum conselheiro jurídico à bordo. Não há equipes legais despachadas para cenas de conflito interestelar. Quando os personagens se encontram em situações comprometedoras, eles nunca perguntam se podem falar com um advogado.

Isso, por um lado, é completamente insano. Afinal, os planetas que não pertencem à Federação possuem todo tipo de normas legais, desde “culpado até que se prove inocente” até “pena de morte automática para quem acidentalmente pisa num canteiro dentro da Zona de Punição invisível”. Dados os muitos perigos previsíveis desta abordagem, você pensaria que cada nave teria a bordo alguns pesquisadores legais altamente treinados, prontos para lidar com estas situações horríveis. Só que não há nada disso. Está implícito que a Federação tem advogados em algum lugar, e há até mesmo uma noção vaga de que eles são importantes para o funcionamento eficaz do sistema judicial. Em um episódio, aprendemos que durante um período da história da Terra conhecido como “o Horror Pós-Atômico” (que está agendado para ocorrer – estejam prontos, rapazes – em meados do século 21), todos os advogados do mundo foram sistematicamente assassinados. Esse evento é caracterizado como tendo sido um desenvolvimento indesejável para a humanidade, de modo que podemos inferir que a profissão de advogado foi posteriormente restabelecida. Mas sempre que há uma audiência legal de qualquer tipo, o pessoal da Starfleet ou A) representam a si mesmos, ou B) são representados por um oficial de ponte aleatório que é delegado para agir como advogado.

Agora, por um lado, você pode dizer que não deveríamos dar muita atenção a isso. Talvez escrever um advogado aleatório no roteiro de um episódio só resultaria em mais um ator desordenando o set de filmagem, desperdiçando o orçamento do episódio semanal com falas dispensáveis. No entanto, a ausência completa de advogados atravessando múltiplas temporadas de Star Trek, cada uma delas sob direção criativa diferente, cada uma com seus próprios episódios autônomos centrados em leis, é no mínimo um pouco estranha. Então, será que existe alguma outra razão pela qual a Federação não precisa de advogados?

Ilustrações de Mike Freheit

Uma das premissas centrais do universo de Star Trek, que se passa alguns séculos no futuro, é que a humanidade evoluiu – não dramaticamente a ponto de se tornar irreconhecível, mas ainda assim, de maneira significativa. Depois de um período de calamidades em massa na Terra, caracterizado por guerra nuclear, genocídio e fome, o restante da população global do planeta Terra finalmente chega à mesa de negociações, por assim dizer. Um governo mundial é estabelecido. Sociedades são reconstruídas. O dinheiro é abolido. Todas as necessidades humanas básicas são supridas. As pessoas entram em profissões, aprendem ofícios e prestam serviços porque acham essas atividades satisfatórias, não por necessidade econômica. O crime é quase inexistente; com a eliminação das carências materiais, o ímpeto para a maioria dos tipos de crime também é eliminado, e está implícito que as disposições psicológicas para a violência são de alguma forma detectadas e reabilitadas em seus estágios iniciais. O estabelecimento de um regime igualitário de distribuição de recursos e a descoberta de civilizações alienígenas em outros planetas parecem ter unido a espécie humana e corroído as distinções sociais. Embora haja ainda bolsões de corrupção institucional, e embora os seres humanos ainda cedam às vezes aos seus impulsos mais baixos, as pessoas são em grande parte motivadas pela boa vontade. Os oficiais da federação em particular possuem uma reputação de honestidade muito difundida, que, estranhamente, na maior parte das vezes as outras civilizações parecem aceitar por completo.

Estas características parecem permear o sistema legal da Federação. Nos episódios da sala de audiências, nunca há momentos do tipo “te-peguei”, em que alguém vence com base em tecnicidades ou onde alguém tropeça em uma formulação legal arcana. Defender um argumento de bom-senso, ou um solilóquio sobre princípios gerais de justiça, é normalmente o suficiente para conquistar uma situação de arbitragem. A implicação parece ser a de que em um mundo em que os pesquisadores sejam honestos e onde as partes possam fazer reivindicações mais ou menos sensatas em suas próprias defesas, o sistema pode ser equitativo e ad hoc. É o sonho definitivo do acesso à Justiça, onde – até melhor do que se houvesse um advogado para cada cliente – a lei seria tão razoável e os juízes tão justos que cada pessoa poderia representar a si mesma no tribunal com total confiança, ou, no máximo, trazer um amigo moderadamente inteligente para ajudá-lo a apresentar o seu caso. Além disso, ao interagir com outros sistemas jurídicos, a forte presunção de integridade por parte dos atores da Federação ajuda muitas vezes o processo legal.

Tudo isso pode parecer bom demais para ser verdade – mas será que não poderia realmente ser possível? Será que a humanidade poderia algum dia, teoricamente, se as inseguranças materiais básicas estivessem resolvidas, alcançar um estado geral de compaixão e razoabilidade um para com o outro? Será que os advogados, atualmente um mal hediondo mas necessário, poderiam eventualmente serem tornados obsoletos por atitudes sociais mais humanas? Deus, isso seria incrível, não seria?

É claro, a teoria de “natureza humana” oposta diz que nosso impulso para o egoísmo e a crueldade estariam tão profundamente enraizados, espiritualmente ou biologicamente, que nunca poderíamos esperar eliminá-lo; que, no máximo, poderíamos atenuá-lo, mas que isso nunca será uma conquista perdurável entre culturas ou entre gerações. Esta teoria é bastante popular, mas não temos ideia se ela é verdadeira. Certamente parece ser o modo padrão da humanidade, se não fizermos nenhuma tentativa de auto-aperfeiçoamento. Mas nossa espécie não tem estado por aí por um período terrivelmente longo, no grande esquema das coisas, e se formos honestos com nós mesmos, a maioria de nós não tem feito exatamente o seu máximo para melhorar o mundo em que vivemos. Como escreveu G.K. Chesterton uma vez sobre o cristianismo: “não é que o cristianismo já tenha sido tentado e sendo considerado insuficiente; é que ele foi considerado difícil e não foi tentado”. O mesmo poderia ser dito facilmente sobre a maioria dos esquemas de organização social que exigem algum tipo de esforço moral ou renúncia material voluntária.

Infelizmente, utopias estão atualmente fora de moda, como a tediosa proliferação de ficção distópica e filmes de desastre parece indicar. Nenhum gênero está seguro. Game of Thrones é o reboot distópico d’O Senhor dos Anéis; House of Cards é o reboot distópico de The West Wing; Black Mirror é o reboot distópico de The Twilight Zone. Os murais de posters de cada cinema se tornaram uma efusão indistinguível em tons de sépia de zumbis, terroristas e paisagens infernais pós-apocalípticas. Até mesmo filmes de super-heróis, supostamente leves, dedicarão pelo menos 3,5 horas de seu tempo à destruição de grandes metrópoles, generosamente renderizada.

Há claramente um apelo profundo nesse tipo de filme; e, de fato, seria necessário um coração com uma fibra moral super-humana para de fato lamentar o desaparecimento repentino da cidade de Nova York, cuja existência não serve a nenhum propósito benéfico para a humanidade que eu esteja ciente (ironia, por favor). Mas o meu sentimento geral é que a nossa afeição por narrativas distópicas é uma indulgência muito sórdida, especialmente para aqueles de nós que vivem vidas mais confortáveis, longe das realidades viscerais do sofrimento humano. Assistir a cenas de destruição a partir da cadeira de pelúcia de um cinema, ou talvez em nossa pequena tela de laptop, enquanto estamos enrolados na cama, aumenta a nossa própria sensação imediata de segurança, nos entorpececendo em relação à realidade triturante, intermitente, inescapável da violência em partes negligenciadas do nosso mundo, que desfaz gerações inteiras de seres humanos em terror e pavor.

Ilustrações de Mike Freheit

Permanecer submerso em narrativas onde 99% dos personagens são totalmente egoístas também nos impregna com um tipo de falso-cinismo muito popular atualmente, que se pretende como um verdadeiro conhecimento sobre o mundo, mas que na realidade é uma atitude simplesmente preguiçosa. Digo que se trata de um “falso-cinismo” porque não acredito que a maioria das pessoas que professam serem pessimistas acredite verdadeiramente que a humanidade está condenada, pelo menos não no seu tempo de vida, ou nos seus arredores geográficos específicos: se esse fosse mesmo o caso, então assistir a um filme que apresenta de maneira arrastada a aniquilação de uma paisagem estadunidense familiar provavelmente faria com que eles sujassem suas calças. Só que dizer para si mesmo que tudo é horrível, e que nada pode ser corrigido, é uma maneira maravilhosamente conveniente de absolver-se da sua responsabilidade pessoal. Pode-se viver alegremente diante do fato de que não há nada relacionado a uma visão de mundo apocalíptica que nos obrigue a renunciar a qualquer conforto e conveniências que tenhamos acumulado como consequência da injustiça global; e, ainda por cima, você começa a se sentir superior a todos aqueles fofos tolinhos que ainda acreditam que um mundo mais gentil é possível! É uma forma muito satisfatória de escapismo moral. Não é de se surpreender que nossos criadores de tendências no ambiente corporativo venham despejando esse material.Além disso, não há dúvidas de que muitas vezes é difícil fazer utopias soarem dramaticamente sofisticadas. Star Trek é célebre, até mesmo entre aqueles que adoram o programa, pela sua teatralidade exagerada. É muito comum que contos morais sejam por vezes açucarados demais e que lhes faltem substância. São adequados para crianças, ou talvez para adultos emocionalmente-atrofiados, mas não são algo para se levar a sério. Chegamos ao ponto de vermos narrativas utópicas como sendo inerentemente piegas, pregações enfadonhas. No entanto, é claro, as distopias são uma forma própria de pregação; elas estão pregando outra hipótese sobre a humanidade, que, devido a uma iluminação taciturna e a um diálogo oblíquo, tem uma aparência inteiramente imerecida de profundidade e a clarividência ilusória de uma profecia auto-realizável.

Dois apelos em nome do futuro da humanidade

Não queremos todos um mundo sem advogados? Não seria, no mínimo, algo sobre o que nossa espécie inteira poderia concordar? Star Trek nos diz que há dois obstáculos entre nós e este grande objetivo: justiça econômica global e tecnologia de velocidade de dobra espacial. Pode ser que leve ainda vários séculos para alcançarmos esses dois, mas aqui estão duas coisas em que podemos começar a trabalhar agora mesmo.

1. Tornar as utopias populares novamente.

As narrativas ficcionais são um fator enorme moldando nossas expectativas do que é possível. No entanto, como discutido anteriormente, utopias são difíceis de se escrever. Você tem de abrir mão de um monte de truques baratos que os escritores usam para gerar carga dramática. Afinal de contas, é sempre fácil criar tensão quando todos seus personagens são bastardos egoístas e traidores; não se pode dizer o mesmo quando seus personagens se dão bem (é célebre o fato de que os roteiristas de Star Trek: TNG arrancavam os cabelos com a insistência do criador Gene Roddenberry de que todo o elenco principal tinha de ser formado por amigos). Construir enredos que se baseiam principalmente em torno da solução de problemas exige um planejamento intrincado. Entretanto, já vimos mil iterações narrativas sobre o colapso da sociedade: por que não escrever algumas narrativas sobre a construção societal? Como se pareceria um mundo melhor, em diferentes estágios de sua realização – na sua concepção? Como ele resistiria a crises internas precoces? Como enfrentaria uma ameaça existencial? Devemos colocar mais imaginação no pensamento sobre como tudo isso poderia se parecer, e sobre como gerar investimento emocional no seu resultado.

A ficção de aspiração parece especialmente importante neste momento em nossa história, quando um número significativo de pessoas lança seus votos em candidatos dois quais não gostam, ou por quem até mesmo se sentem perturbados, simplesmente porque querem alguma coisa diferente. Sempre existiu uma loucura de jogatina no espírito humano, uma espécie de coceira perversa e instintiva que, de repente, nos torna dispostos a cortejar o desastre, simplesmente pela possibilidade de alterar os parâmetros mundanos ou miseráveis de nossas vidas diárias. Se pudéssemos transformar uma parte dessa maluquice em uma loucura de otimismo e criatividade, em vez de tédio, raiva e desespero, isso só poderia ser uma coisa boa.

2. Não deixar os imbecis vencer a corrida espacial.

Você sabe quem está realmente animado sobre a exploração interplanetária nos dias de hoje? Os magnatas do Vale do Silício e os supremacistas brancos. Elon Musk quer criar uma repugnante colônia privada em Marte para sobreviventes ultra-ricos que possam desembolsar $ 200.000 pelo seu lugar, e tem declarado sua própria intenção de morrer em Marte. Enquanto isso, uma nova safra de racistas está convencida de que se os EUA desistissem de tentar fornecer serviços sociais e educação aos seus cidadãos, gênios brancos-e-puros poderiam facilmente estar conquistando a galáxia neste exato momento. Como coloca Richard Spencer, famoso pelo "Heil Trump" e pelo vídeo onde recebe um soco, que gerou todo o debate e o meme do "punch a nazi" ("dê um soco em um nazi"):

"É nosso destino Faustiano explorar o universo exterior. É para isso que fomos colocados nesta Terra. Nós não fomos colocados nesta Terra para sermos agradáveis para as minorias, ou para sermos uma nação de diversão multicultural. Por que não estamos explorando Júpiter neste momento? Por que estamos tentando equalizar os resultados dos testes de negros e brancos? Penso que nosso destino está nas estrelas. Por que não estamos mirando nas estrelas?"

Esses escrotos estão mirando nas estrelas! O resto de nós, portanto, precisa garantir que eles não cheguem primeiro. Se tipos como Elon Musk e Richard Spencer forem os embaixadores da humanidade, nossa entrada no espaço exterior será simplesmente uma recapitulação em alta tecnologia de todos os horrores morais de nossa última Era de Exploração. Felizmente, tenho certeza de que Richard Spencer não é astrofísico e que as nave espaciais de Elon Musk continuam explodindo na plataforma de lançamento. Agora é nossa chance de frustrá-los!

A exploração espacial não tem de ser um último esforço para salvar a espécie depois de termos estragado tudo na Terra; nem deveria ser um projeto alternativo à construção de uma sociedade global igualitária. Ainda temos tempo para fazer um mundo melhor aqui, no planeta que temos, antes de nos enfiarmos em outras partes do universo. A viagem espacial pode muito bem ter um efeito de melhoria sobre a humanidade, mas também devemos garantir que melhoremos a nós mesmos antes de nos dirigirmos para o além interestelar. Somente então teremos o privilégio de “ir corajosamente” aonde nenhum homem jamais esteve.

Starfleet ou nada!

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